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[MISTURANDO-IDEIAS] LANÇAMENTO Livros Loureiro: O Dinheiro - Arthur Hailey

O DINHEIRO


Dinheiro. Gente. Transação bancária. Inquietante e surpreendente
romance, O Dinheiro, de Arthur Hailey, é a verdadeira história
dessas três coisas terríveis, esses monstros que exigem cada vez
maior número de vítimas na sociedade americana — o dinheiro, as
transações bancárias e as pessoas do alto e baixo mundo que se
envolvem no dinheiro e com o dinheiro.
Este romance mostra o cotidiano das finanças no maior centro de
decisões financeiras de todos os tempos: a América do Norte.
Este romance revela os meandros do cerne desse centro de decisões:

o banco.
E no meio disso tudo a força do dinheiro. Nada mais que dinheiro.
O DINHEIRO
Novo best-seller do autor de Primeiro-Ministro, Automóvel, Hospital,
Hotel, Aeroporto, Voando para o Perigo, Close-Up, todos da
Nova Fronteira. Todos, romances de sucesso que consagram um
escritor. Neste grande lançamento de 75 Hailey esmiuça a própria
essência dos negócios, põe a nu o sistema financeiro. O
envolvimento dos homens públicos e de altos políticos pelas
multinacionais.

Visto de fora, o First Mercantile American Bank — um dos mais
sólidos da América — parece uma catedral respeitável. Sólida e
poderosa como o Fort Knox, onde os Estados Unidos guardam suas
incalculáveis reservas de ouro.
Roscoe Heyward, vice-presidente executivo, astuto, implacável, está
engajado na luta pelo poder com Alex Vander-voort, cuja atenção às
transações bancárias se dilui entre a trágica insanidade da jovem


esposa, Célia, e a vida ardente de Margot Bracken, a amante,
advogada ativista de minorias despossuídas.
Ao mesmo tempo, um elemento de fora, manipulando os diretores
do FMA através de Heyward, em proveito de seu egoísmo e
interesses, é o poderoso chefão G.G. (Big George) Quartermain,
presidente da Supranational Corporation, multinacional gigantesca.
E Quatermain quem promove a corrupção nua e crua em mansões
das Bahamas, com deslumbrantes mulheres e notórios homens públicos
e das finanças.
Em outro nível do mundo bancário, mas perto do público, estão
Edwina d'Orsey, a prudente, sofisticada e elegante gerente da
matriz do FMA e Eastin Miles, alto funcionário que se envolve em
tramas ligadas a mafiosos, dá seu desfalque de milhares de dólares
e cumpre pena na penitenciária, onde sofre as piores humilhações,
mas que ganha na luta da falsificação de cartões de crédito com o
negro Nolan.
Em meio a isso tudo estão os fascinantes relances do mundo do
dinheiro, dos cartões de crédito, as poupanças populares, as
pressões dos grandes negócios. Por trás deles seus perigosos
descuidos, as imprudências. Neste livro mostra-se porque os
banqueiros, comerciantes do dinheiro, se desgastam e aviltam como
a própria mercadoria com que lidam. Rapidamente. O analista do
boletim financeiro, inteligente, aponta os momentos de ficar mais
rico e prevê as quedas.
O Dinheiro, de Arthur Hailey, mostra como a engrenagem dos
negócios burla o público; aponta verdades amargas sobre a inflação;
denuncia como as instituições de patrimônio aparentemente seguro
podem despedaçar-se em ruínas, de repente, após um mau passo
nos negócios. O Dinheiro é um romance que comove, emociona,
informa e fará quem o lê ficar encolerizado com tanta manobra de
interesses pessoais. Mas o que é mais incrível neste livro é a maneira
como Hailey cria os seus personagens, arma a intriga entre eles,
como ele lança na trama elementos frios como dinheiro, banco,


sistema financeiro, cartão de crédito, etc, injetando-lhes reações
nervosas como gente, e envolve o leitor totalmente, absorvendo-o
até o fim de sua história.

Arthur Hailey

O DINHEIRO


Tradução de: MARIA THEREZA CORREIA DE MELLO


Se és rica, és pobre; pois, semelhante a um asno cujo lombo está
vergado ao peso de lingotes, só carregas tuas pesadas riquezas um
único dia e a morte te livra delas.
Shakespeare, Medida por medida


A ferrugem corrói o tesouro enterrado. Mas o ouro a circular
produz mais ouro ainda.
Vénus e Adônis


PARTE I



1


Muito tempo depois, ainda se conservavam, vivos e angustiantes na
lembrança de muitos, aqueles dois dias da primeira semana de
outubro.
Foi numa terça-feira que o velho Ben Rosselli, presidente do First
Mercantile American Bank e neto do seu fundador, fez uma
comunicação chocante e sombria que repercutiu em todos os
escalões da organização, e muito além. E no dia seguinte, quarta-
feira, a matriz do Banco, no centro da cidade, constatou ter sido
vítima de um furto — o que deu início a uma série de
acontecimentos que poucos teriam previsto e que culminaram em
desastre financeiro, tragédia e morte.
A comunicação do presidente do Banco ocorreu sem aviso prévio;
surpreendentemente não houve indiscrições. Ben Rosselli telefonou
a seus principais executivos de manhã, bem cedo. Alcançou alguns
ainda em casa, na hora do café, outros quando chegavam ao
trabalho. Nem todos eram executivos, alguns apenas empregados
antigos que Ben considerava amigos.
Dava invariavelmente o mesmo recado:

— Faça o favor de comparecer à sala de reuniões da torre, na Matriz,
às 11 horas de hoje.
Já todos, cerca de vinte pessoas à exceção de Ben, estavam reunidos
na sala, falando baixo, em grupos, à espera. Todos de pé, ninguém
decidia ser o primeiro a puxar uma cadeira junto à mesa da
diretoria, maior que certos apartamentos e que comportava
quarenta pessoas.
Uma voz áspera cortou o rumor das conversas:
— Quem autorizou isto?
Voltaram-se as cabeças: Roscoe Heyward, vice-presidente executivo
e comptroller, fez a pergunta a um garçom de jaqueta branca. O

homem tinha entrado na sala trazendo uma garrafa de cristal com
xerez, que servia em cálices.
Heyward, austero, um dos deuses no Olimpo do FM A, era
abstêmio radical. Apontou expressivamente para seu relógio, num
gesto que queria dizer: não apenas bebendo, mas tão cedo! Vários
dos que já esticavam a mão para a bebida se retraíram.

— Instruções do Sr. Rosselli, Senhor — declarou o garçom. — Ele
insistiu mesmo para que fosse servido do melhor.
Uma figura atarracada, bem vestida, de cinza claro, virou-se e disse,
à vontade:
— Seja qual for a hora não faz sentido rejeitar o melhor.
Alex Vandervoort, com seus olhos azuis e fartos cabelos já com toques
brancos nas têmporas, era também vice-presidente executivo.
Jovial, informal, seu ar descontraído encobria a dureza da sua
capacidade de decidir. Os dois — Heyward e Vandervoort —
representavam o segundo escalão empresarial, logo abaixo da
presidência. Embora fossem experientes e capazes de colaborar,
eram, em muitos pontos, rivais. Essa rivalidade e a divergência de
pontos de vista eram conhecidas de todos no Banco; daí cada um
dos dois ter adeptos extremados nos escalões inferiores.
Alex pegou dois cálices com xerez e passou um a Edwina D'Orsey,
escultural morena, única executiva feminina na diretoria do FMA.
Edwina percebeu o olhar reprovador de Heyward: pouca diferença
faz, pensou, pois Roscoe sabia que ela jogava no time de
Vandervoort.
— Obrigada, Alex — disse, ao pegar o cálice. Após breve
tensão, outros seguiram-lhe o exemplo.
O rosto de Roscoe Heyward fechou-se, raivoso. Pareceu que ia dizer
mais alguma coisa, mas mudou de idéia.
Na porta da sala o vice-presidente da Segurança, Nolan Wainwright,
enorme, um dos executivos negros ali presentes, parecido
com Otelo, o Mouro de Veneza, levantou a voz:

— Senhora D'Orsey e senhores — o Sr. Rosselli.
Voltaram-se todos. O burburinho cessou.
Ben Rosselli ali estava, com um leve sorriso, à medida que passava
os olhos pelo grupo. Como sempre, sua aparência dava a impressão
de atingir um ponto mediano, entre a figura do pai benevolente e a
solidez maciça de alguém a quem milhares de concidadãos
confiaram seu dinheiro para guardar com segurança. Representava
bem ambos os papéis, e os vestia: o banqueiro-estadista de terno
preto, uma fina corrente de ouro cruzando o inevitável colete para
segurar o relógio de bolso. Impressionante a sua semelhança com o
primeiro Rosselli — Giovanni — que havia um século fundara o
Banco no porão de uma mercearia. A mesma cabeça patrícia de
Giovanni, cabelos grisalhos e bigode cheio, reproduzida nas
cadernetas e nos cheques de viagem do Banco, como símbolo de
probidade, e cujo busto adornava a Rosselli Plaza, lá embaixo.
O Rosselli de hoje tinha o mesmo cabelo e o mesmo bigode quase
tão abundante. A moda, em um século, havia dado uma volta
completa. Mas o que nenhuma reprodução mostraria era o mesmo
drive que emanava de todos os Rossellis, que com engenho e
ilimitada energia trouxeram o FMA à sua proeminência atual..Mas,
hoje, Ben Rosselli parecia ter perdido a vitalidade habitual.
Apoiava-se em uma bengala; os presentes nunca haviam
presenciado isso.
Esticou o braço, como para puxar uma das pesadas cadeiras. Mas
Nolan Wainwright, que estava a seu lado, foi mais rápido. O chefe
da Segurança puxou a cadeira e colocou-a com o alto espaldar de
costas para a mesa. Com um murmúrio de agradecimento, o
presidente sentou-se. Ben Rosselli acenou para os demais:
— Trata-se de uma reunião informal. Não vai demorar. Sentem-se à
vontade. Ah, obrigado.
O agradecimento foi para o garçom, do qual aceitou um cálice de
xerez. O homem saiu, fechando atrás de si a porta da sala.

Alguém ofereceu uma cadeira a Edwina D'Orsey. Outros sentaram-
se. Mas a maioria ficou de pé.
Foi Alex Vandervoort quem disse:


— Parece claro que estamos aqui para comemorar. — Rodou seu
copo de xerez. — Resta saber... o quê?
Ben Rosselli mais uma vez sorriu:
— Gostaria que fosse uma comemoração, Alex. Mas é apenas uma
ocasião em que pensei que um drinque poderia ajudar.
Parou, e de súbito nova tensão se instalou na sala. Era evidente que
não se tratava de uma reunião comum. Os rostos refletiam
incerteza, preocupação.
— Estou morrendo — disse Ben Rosselli. — Meus médicos me dizem
que não vou durar. Achei que todos deveriam ficar sabendo.
Elevou seu próprio copo, contemplando-o, e tomou um gole de
xerez.
Se a sala estava quieta antes, agora o silêncio era quase palpável.
Ninguém se mexeu ou falou. Ouviam-se, apagados, ruídos de fora:
as batidas abafadas de uma máquina de escrever, o zumbido do ar-
condicionado e de um avião a jato que subia ao céu.
O velho Ben inclinou-se apoiado na bengala.
— Por favor, não vamos complicar. Somos todos velhos amigos,
esta é a razão pela qual os chamei. Ah! sim, para poupar a pergunta
de algum dos senhores, o que lhes acabo de dizer é definitivo; se
julgasse que havia alguma esperança, teria deixado para contar
depois. Outra pergunta que deve estar em suas cabeças: trata-se de
câncer do pulmão, bem avançado, segundo me dizem. É provável
que no Natal eu já não mais esteja aqui. — Fez uma pausa, e de
repente toda sua fragilidade e cansaço apareceram. Mansamente
acrescentou: — E agora que vocês já sabem, podem passar adiante a
informação, como e quando acharem melhor.
Edwina D'Orsey pensou.: "não haveria escolha de quando. Logo que
a sala esvaziasse, o que acabavam de ouvir se espalharia pelo Banco
todo, e muito além, como fogo num pasto. A notícia afetaria a

muitos — a alguns, emocionalmente, a outros, de modo mais
prosaico". Ela, de sua parte, estava aturdida e sentia que a reação
dos demais era a mesma.

— Sr. Ben — atreveu-se a dizer um dos mais velhos, Pop Monroe,
funcionário antigo do Departamento de Custódia; sua voz veio
trêmula. — Sr. Ben, parece que o senhor nos derrubou, parece até
que ninguém sabe que raio vai dizer...
Houve um murmúrio de assentimento e simpatia. Roscoe Heyward
interrompeu:
— O que podemos dizer, e devemos — havia um ligeiro toque de
reprovação na voz do comptroller como que significando que todos
deviam esperar que ele falasse primeiro — é que, embora essa
notícia terrível nos tenha chocado a todos, e a todos entristecido,
fazemos votos para que haja uma margem de esperança em relação
ao prazo e opiniões dos médicos que, como todos sabemos,
raramente são exatas. E a ciência médica pode conseguir muito,
paralisar, e até curar...
— Roscoe, eu disse que já passei por tudo isso — acrescentou Ben
Rosselli, denotando um primeiro sinal de impaciência. — E quanto
a médicos, tive os melhores. Não é o que esperavam de mim?
— E, sim — disse Heyward. — Mas devemos lembrar que há um
poder mais alto que o dos médicos e é dever de todos nós — olhou
os circunstantes — apelar para a misericórdia de Deus a fim de que,
pelo menos, lhe dê mais tempo.
O velho retrucou secamente:
— Tenho a impressão de que Deus já se decidiu. Alex
Vandervoort observou:
— Ben, estamos todos perturbados. Peço que me desculpe pelo que
disse antes.
— Sobre comemoração? Deixe isso pra lá... Você não sabia — disse o
velho Ben. — Aliás, por que não? Tive uma vida boa, que nem todos
têm, portanto uma razão válida para comemorar. — Apalpou os

bolsos do paletó, depois olhou em torno de si: — Alguém tem um
cigarro? Os tais médicos me proibiram de fumar.
Apareceram vários maços. Roscoe Heyward inquiriu:


— Acha que pode?
Ben Rosselli olhou-o com ironia e nem respondeu; não era segredo
para ninguém que, apesar do velho respeitar a capacidade de
Heyward como banqueiro, os dois nunca tiveram grande
aproximação pessoal.
Alex Vandervoort acendeu o cigarro que o presidente escolhera.
Seus olhos, como os dos demais, estavam úmidos.
— Num momento como este, sempre se consegue descobrir
algumas coisas que dão satisfação — disse Ben. — Receber um
pequeno aviso é uma delas. Dá oportunidade de arrematar o que
andava inacabado. — A fumaça do cigarro fazia evoluções à sua
volta. — Claro que, por outro lado, também se lamenta o modo pelo
qual certas coisas foram feitas. A gente pára e pensa nelas também.
Ninguém precisava indagar sobre um desses pesares. Ben Rosselli
não tinha herdeiros. Um filho único morrera em combate durante a
Segunda Guerra Mundial e, mais recentemente, um neto, muito
promissor, perdera a vida nesse desperdício insensato chamado
Vietnã.
Um acesso de tosse tomou conta do velho. Nolan Wainwright, a seu
lado, recebeu o cigarro daqueles dedos trêmulos e esmagou a brasa
no cinzeiro. Agora se evidenciava a fraqueza geral de Ben e quanto
o cansara o esforço daquela reunião.
Embora ninguém previsse, era a última vez que ele estaria em
pessoa no Banco.
Um a um, todos foram apertar-lhe a mão, procurando e não encon


trando o que dizer. Quando chegou sua vez. Edwina D'Orsey
beijou-o de leve no rosto e ele, em retribuição, piscou-lhe o olho.


2


Roscoe Heyward, vice-presidente auditor, deixou o salão de reuniões
com dois objetivos urgentes: assegurar uma sucessão tranqüila
após a morte de Ben Rosselli e garantir para si a presidência do
Banco.
Ele já era um candidato forte. Mas tinha um concorrente em Alex
Vandervoort, muito estimado entre os empregados e talvez com
boas possibilidades de vir a ocupar o lugar do velho Ben. Na Junta
de Diretores, entretanto, Heyward acreditava ter mais prestígio que
o outro.
Conhecedor dos meandros da política bancária, dono de uma mente
disciplinada e fria, Heyward começara a planejar a campanha no
correr da própria reunião. Chegado ao seu escritório, magnífico
conjunto decorado com tapetes e cortinas bege, com uma vista
deslumbrante da cidade, deu instruções urgentes a uma de suas
duas secretárias, a Sra. Callaghan. A primeira, para que localizasse
todos os diretores externos, com os quais Roscoe Heyward queria
falar; a outra, que fechasse a porta da sala quando saísse — o que
importava na quebra de uma tradição secular, observada por todos
os diretores que sempre mantinham abertas as portas de seus
escritórios, a começar por Ben Rosselli. Mas, para Heyward, ficar só
era agora essencial.

A reunião tinham comparecido só dois membros da Junta de
Diretores, afora funcionários administrativos mais graduados. Esses
dois diretores eram amigos pessoais de Ben Rosselli, motivo óbvio
pelo qual haviam sido convidados. Outros quinze, entretanto,
ignoravam a notícia da morte iminente. Heyward providenciaria
para comunicar-lhes isso pessoalmente.

Ele imaginou duas probabilidades: primeira, o fato era de tal modo
perturbador que levaria a uma aliança instintiva entre quem
recebesse a notícia e quem a transmitisse; segunda, alguns diretores
poderiam ressentir-se por não terem sido avisados com


antecedência de ocorrência tão grave, tanto mais que funcionários
subalternos dela já tinham conhecimento. Roscoe Heyward
pretendia tirar partido desse ressentimento.


A cigarra soou em sua mesa. Ele pegou o telefone e começou a falar.
Seguiram-se outros telefonemas. Vários diretores não estavam na
cidade, mas a experiente e leal Dora Callaghan ia localizando um
por um.
Meia hora depois entrava em contato com o Honorável Harold Austin
e lhe dizia, aparentando tristeza:


— Aqui no banco estamos emocionalmente arrasados: o que Ben
nos disse não parece possível ou real.
— Deus do céu! — exclamou perplexo Harold Austin do outro lado
do fio. — E ter que dar a notícia ele próprio!
O interlocutor de Heyward era um homem de prestígio na cidade,
terceira geração de uma família ilustre. Há tempos exercera um
mandato no Congresso; daí o título de Honorável. que o lisonjeava.
Atualmente era proprietário da maior agência de propaganda local
e um dos mais antigos diretores do Banco, com muita influência
sobre os demais membros da Junta.
O comentário sobre a comunicação pessoal de Ben foi o pretexto de
que Heyward precisava.
— Compreendo exatamente o que você quer dizer sobre a forma de
comunicar o assunto e. com franqueza, pareceu-me insólita. O que
me preocupou mais é que os diretores não foram informados com
antecedência. Em minha opinião, deveriam ter sido os primeiros a
saber. Mas não o foram, e então achei do meu dever participar-lhe
imediatamente, bem como aos demais.
O rosto de Heyward demonstrava preocupação; havia frieza em
seus olhos cinzentos por trás dos óculos sem aro.
— Estou de acordo com você. Roscoe — disse Austin. — Acho que
devíamos ter sido informados, e agradeço sua lembrança.

— Obrigado. Harold. Em ocasiões como esta, nunca se sabe ao certo
o que é melhor. A única coisa certa é que alguém deve exercer a
liderança.
Heyward usava os prenomes com grande desembaraço. Era
também de família tradicional; mantinha relações com
personalidades influentes no Estado e era membro destacado da
sociedade local. Aliás, seu círculo de amizades ia muito além das
fronteiras estaduais, pois tinha boas relações em Washington e em
outros pontos do país. Era sempre com orgulho que proclamava ser
descendente direto de um dos signatários da Declaração da
Independência.
Astutamente, ele prolongou a conversa:
— Outro motivo para manter os membros da Junta informados é
que essa triste notícia sobre Ben vai causar um tremendo impacto. E
se espalhará com rapidez.
— Não há dúvida — Harold concordou. — É possível que já
amanhã a imprensa esteja fazendo perguntas.
— Exato. E se o noticiário for mal orientado, nossos clientes poderão
ficar assustados e a cotação das ações do Banco cair na Bolsa de
Valores.
— Hum!
Roscoe Heyward notou que Harold se inquietara. É que o Fundo da
Família Austin, que o Honorável representava, possuía grande
número de ações do FM A.
Mas Heyward interveio:
— É claro que se a Junta tomar medidas enérgicas para tranqüilizar
os acionistas e os depositantes, bem como o público em geral, o
impacto será praticamente nulo.
— Exceto para os amigos de Ben Rosselli — Harold Austin retrucou
com secura.
— Creia-me que eu falava num contexto mais amplo, no qual os interesses
do Banco se sobrepõem aos assuntos pessoais. Meu pesar,
esteja certo, é tão profundo quanto o de qualquer outro.

— O que é que você tem em mente. Roscoe?
— De um modo geral. Harold, que a autoridade não sofra solução
de continuidade. Em particular, que o posto de presidente não fique
vago um só dia. — E prosseguiu: — por maior que seja nosso
respeito e amizade por Ben. este Banco sempre foi considerado
como instituição de um só homem. Naturalmente, há muitos anos
tal não acontece; nenhum banco pode formar entre os vinte maiores
do país sob direção de uma só pessoa. Mas há os que. lá fora, ainda
pensam assim. Eis porque, embora pesarosos, precisamos
aproveitar a oportunidade para dissipar essa lenda. E só os
diretores podem fazê-lo.
Heyward percebeu qi.e o outro estava refletindo um pouco antes de
responder. Enquanto isso vinha-lhe à mente a figura de Austin: um
tipo \ istoso. sempre no rigor da moda, com abundante cabeleira
grisalha, que lhe dava um aspecto de playboy maduro.
Provavelmente, como sempre, estaria fumando um comprido
charuto. Mas o Honorável Harold não era nenhum tolo; ao contrário,
tinha a reputação de um astuto e bem sucedido homem de negócios.
Afinal ele disse:

— Acho válida sua observação sobre continuidade. E concordo
que se deva escolher o novo presidente e, talvez, divulgar seu nome
mesmo antes da morte de Ben Rosselli.
Heyward continuou a ouvir com o máximo interesse.
— Acho que você é o homem indicado, Roscoe. Tenho pensado
nisto há tempos. Você reúne todas as qualidades: é experiente e
também sabe ser duro. Estou disposto portanto a apoiá-lo e a
persuadir outros membros da Junta para que me acompanhem.
Penso que você gostaria.
— Por certo, ficaria muito grato...
— E em troca eu poderia pedir-lhe ocasionalmente retribuição.
— Seria razoável.
— Bem. Então estamos entendidos.

A conversa, achou Roscoe Heyward após ultimada a ligação, fora
por certo satisfatória. Harold Austin era um homem leal, que
cumpria a palavra.
Os telefonemas anteriores tinham sido também positivos.


Nova oportunidade surgiu quando ele falou com outro diretor —
Philip Johannsen, presidente da MidContinent Rubber. Johannsen
foi logo dizendo que não se dava muito bem com Alex. cujas idéias
considerava avançadas, ultrapassando o convencionalismo
apropriado a um banqueiro.


— De fato, Alex não é bem um ortodoxo — disse Heyward. — Sem
dúvida, ele tem alguns problemas pessoais. Mas, sinceramente, não
sei até que ponto uma coisa tem a ver com a outra.
— Que espécie de problemas?
— Mulheres, esta é que é a verdade. Não é agradável falar, mas...
— Isto é importante, Roscoe, e também confidencial. Continue.
— Bem, em primeiro lugar, Alex tem dificuldades com a esposa.
Segundo, está metido com outra mulher. Terceiro, esta mulher é ativista
da esquerda. Com freqüência aparece no noticiário dos jornais
num contexto que em nada ajudaria o Banco. Às vezes gostaria de
saber qual a influência que ela exerce sobre Alex. Repito, não é
agradável...
— Você agiu certo me contando. Roscoe — disse Johannsen. — Os
diretores devem saber disso. Esquerdista, hein?
— Sim. Chama-se Margot Bracken.
— Acho que já ouvi falar dela. E não gostei do que ouvi. Heyward
sorriu.
O telefonema seguinte não lhe deu tanto prazer; pelo contrário,
aborreceu-o. Seu interlocutor foi o diretor Leonard L. Kingswood,
presidente da Junta da Northam Steel. Ele, que começara como
soldador numa siderúrgica, tinha um linguajar desabrido.


— Não me venha com essa conversa fiada, Roscoe — quando Heyward
lhe disse que a diretoria do Banco deveria ter sido informada

previamente da declaração de Ben Rosselli. — Ben procedeu como
eu também faria em seu lugar. Informaria primeiro os mais íntimos,
só depois os diretores e os outros grandões.
Quanto à' possibilidade de uma queda das ações do First Mercantile
American, Len Kingswood limitou-se a dizer:


— E daí? Certamente as ações cairão um ou dois pontos quando a
notícia for conhecida. E assim mesmo porque a maioria das
transações são feitas em nome de umas tantas bichas nervosinhas
que não sabem distinguir entre boatos histéricos e fatos. Mas as
ações voltarão a subir no máximo em uma semana porque têm valor
patrimonial, o Banco é sólido e todos nós que estamos por dentro
sabemos disto.
E prosseguiu:
— Roscoe, esta sua cabala é transparente como cristal, por isso vou
falar claro, assim fica tudo em pratos limpos. Você é um auditor
extraordinário, o melhor sujeito para lidar com números e com
dinheiro que conheço. A qualquer hora que resolva vir aqui para a
Northam, será colocado no topo da empresa com salário mais alto e
melhores condições do que aí no FM A.
Kingswood interrompeu Heyward quando este lhe agradecia a
generosidade da oferta.
—Mas, não obstante seu talento e capacidade. Roscoe, o que quero
dizer é que você não é um líder completo. Pelo menos é assim que
penso e isto mesmo direi quando a Junta se reunir para escolher o
sucessor de Ben. Outra coisa que vou lhe dizer logo é que meu
candidato é Vander-voort. Acho que você deveria saber disto.
Heyward agradeceu com calma.


— Agradeço muito a sua franqueza, Leonard.
— Não há de quê. E se algum dia você pensar seriamente na minha
proposta, é só telefonar.
Roscoe Heyward não pretendia trabalhar para a Northam Steel.
Embora o dinheiro fosse importante para ele, seu orgulho não o

permitiria, depois do mordaz juízo de Leonard Kingswood. Além
disso, ainda estava confiante que obteria a presidência do FM A.
O telefone voltou a chamar. Era Dora Callaghan anunciando que
mais um diretor estava na linha: o Sr. Floyd LeBerre

— Floyd — Heyward começou falando em voz baixa e circunspecta
— sinto muito ter que lhe dar uma notícia triste e trágica.
3


Nem todos os presentes à reunião saíram tão depressa quanto Roscoe
Heyward. Alguns, ainda chocados, ficaram conversando um
pouco.
O veterano Pop Monroe, do Departamento de Custódia, disse baixo
a Edwina D'Orsey:

— Este é um dia muito triste.
Edwina concordou com a cabeça; não conseguia falar. Ben Rosselli
tinha para ela a importância de um amigo; não se esquecia do
orgulho com que ele acompanhara sua ascensão na hierarquia do
Banco.
Alex Vandervoort parou ao lado de Edwina, quando se dirigia para
seu gabinete:
— Quer vir comigo, conversar um pouco? Edwina
respondeu, agradecida:
— Quero, muito obrigada.
As salas dos executivos do primeiro escalão do Banco ficavam no
36.° andar, o mesmo da sala do Conselho, bem no alto da Matriz do
FMA. O conjunto de Alex Vandervoort, como os outros, tinha uma
sala de entrevistas, informal. E ali Edwina serviu-se de café do bule
que fervia; Vandervoort pegou um cachimbo e acendeu-o. Ela

observava seus dedos, que se moviam com eficiência, sem
desperdício de movimentos. Tinha mãos, como o corpo, curtas e
largas, e os dedos terminavam abruptamente, com unhas rentes mas
bem tratadas.
A camaradagem entre os dois datava de muito tempo. Embora Edwina,
que gerenciava a agência central do FM A na cidade, estivesse
vários níveis abaixo de Alex, ele sempre a tratara em pé de
igualdade e até, em assuntos ligados à sua agência, lidava
diretamente com ela. vencendo os escalões da hierarquia entre
ambos.

— Alex, você está parecendo um esqueleto.
Um sorriso iluminou o rosto macio e redondo de Alex:
— Já deu para notar, hem?
Alex Vandervoort era um guloso convicto; amava a boa cozinha e
os bons vinhos. Mas engordava com facilidade. Periodicamente,
como agora, entrava em regime.
Por um tácito acordo evitaram no momento o assunto em que
ambos, afinal, pensavam.
Ele perguntou:
— Como vão os negócios na agência este mês?
— Excelentes. E estou ainda mais otimista em relação ao ano que
vem.
— Por falar em ano que vem, qual é a opinião de Lewis? — Lewis
D'Orsey, marido de Edwina, era editor e proprietário de um boletim
de informações para investidores, muito lido.
— Sombria. Prevê outra grande queda do dólar.
— Concordo com ele. Você sabe, Edwina, uma das falhas do sistema
bancário americano é que nunca encorajamos nossos clientes a manter
contas em moedas estrangeiras — francos suíços, marcos
alemães e outras — como fazem os banqueiros europeus. De fato,
atendemos às grandes companhias porque elas sabem como insistir
e os bancos americanos obtêm para si mesmos lucros consideráveis

com outras moedas, mas raramente, ou nunca, para o depositante
pequeno ou médio. Se tivéssemos incentivado contas em moedas
estrangeiras há dez ou mesmo há cinco anos, alguns de nossos
clientes teriam lucrado, e não perdido, com a desvalorização do
dólar.

— O Tesouro Nacional não se oporia?
— É provável. Mas acabaria por permitir sob pressão do público. É
o que ocorre sempre.
Edwina perguntou:
— Você já considerou a possibilidade de mais gente abrir contas em
moedas estrangeiras?
— Já, uma vez, e não me dei nada bem. Entre nós, banqueiros americanos,
o dólar, por mais fraco que seja, é sagrado. É um conceito
de avestruz que incutimos no público: meter a cabeça na areia. E
isso lhe tem custado bom dinheiro. Apenas alguns poucos clientes
mais evoluídos tiveram o bom senso de abrir contas em bancos
suíços, antes de começarem as desvalorizações do dólar.
— Já pensei nisso muitas vezes — disse Edwina. — Toda vez que
aconteceu, os banqueiros sabiam antecipadamente que a
desvalorização era inevitável. Ainda assim, mantemos nossos
clientes... com exceção de alguns favorecidos... desinformados.
Nunca sugerimos que vendam dólares.
— Isso tem sido considerado pouco patriótico. Até Ben... Alex
calou-se. Ficaram algum tempo em silêncio.
Pela parede de vidro que vedava o lado direito do escritório,
podiam ver a robusta cidade do Meio-Oeste espalhada à sua frente.
Bem à mão, os desfiladeiros comerciais do centro, os edifícios
maiores apenas pouco mais baixos que o FMA. Mais além, sinuoso
como um duplo S, o rio supertrafegado e, como de costume, cor de
cinza poluído. Uma treliça de pontes, linhas ferroviárias e rodovias
levava aos complexos industriais e aos subúrbios distantes, os
últimos mais pressentidos que vistos, devido à neblina. Porém mais
perto do que as indústrias e os subúrbios, embora do outro lado do

rio, estava a parte residencial interna da cidade, um labirinto
predominantemente abaixo do padrão razoável, rotulado por
alguns como "uma das vergonhas da cidade".
No centro desta última área erguia-se um novo e imenso edifício e a
estrutura de aço de um outro delineava-se no horizonte.
Edwina apontou para o edifício e a estrutura.


— Se eu estivesse na situação de Ben e quisesse ser lembrada por
alguma coisa, gostaria que fosse pelo Fórum East.
— Acho que eu também. — O olhar de Alex voltou-se para Edwina.
— Não há dúvida de que sem ele tudo não teria passado de uma
idéia, nada mais.
O Fórum East era um ambicioso projeto de desenvolvimento
urbano e tinha como principal objetivo reabilitar a cidade em seu
núcleo. Ben Rosselli meteu o FMA financeiramente no projeto e
Alex Vandervoort foi o responsável direto pela participação do
Banco. A grande agência central, dirigida por Edwina, cuidava dos
empréstimos para construção e das hipotecas.
— Estive pensando — disse Edwina — sobre as mudanças que vão
surgir. — Ia acrescentar: "quando Ben morrer"...
— Claro, serão muitas... talvez bem grandes. Espero que nenhuma
venha a atingir o Fórum East.
Edwina suspirou.
— Não faz uma hora que Ben nos revelou... E nós já estamos discutindo
o futuro do Banco antes que sua sepultura tenha sido aberta.
— Afinal, é o que temos que fazer, Edwina. Ben esperaria isto de
nós. Muito breve algumas decisões importantes terão que ser
tomadas.
— Inclusive a escolha de quem irá sucedê-lo na presidência.
— Esta é uma delas.
— Muitos de nós, no Banco, desejaríamos que fosse você.
—Para falar a verdade, eu também.
O que ambos não disseram foi que Alex Vandervoort era considerado,
até aquele dia, o herdeiro escolhido por Ben Rosselli. Mas não



tão cedo. Afinal, Alex estava no FMA há dois anos apenas. Antes,
fora alto funcionário da Receita Federal e Ben Rosselli convenceu-o,
pessoalmente, a vir para o Banco, acenando com a possibilidade de
progredir até chegar ao topo.

— Daqui a uns cinco anos — disse-lhe Ben na ocasião — quero passar
o Banco às mãos de alguém que saiba lidar eficientemente com
grandes números e apresente um saldo positivo, porque esta é a
única maneira pela qual um banqueiro terá sempre um bom cacife.
Mas é preciso que esta pessoa seja mais que um técnico de primeira.
O tipo de homem que quero para administrar este Banco nunca
deverá esquecer que os pequenos depositantes — pessoas físicas —
foram sempre nossa base mais forte. O que acontece hoje é que nós,
banqueirosr ficamos inabordáveis.
Não estava fazendo uma proposta formal, Ben Rosselli deixou isso
bem claro, mas acrescentou:
— Minha impressão, Alex, é que você é o tipo de homem de que
precisamos. Vamos trabalhar juntos algum tempo, e veremos.
E assim Alex trocou de emprego, trouxe sua experiência além de
um certo jeito para a nova tecnologia, e com ambos logo sobressaiu.
Assim como na filosofia da empresa, percebeu que partilhava de
muitos dos pontos de vista de Ben.
Antes disso, Alex adquirira visão bancária com o pai — um imigrante
holandês que virou fazendeiro em Minnesota.
Pieter Vandervoort, pai, viu-se sobrecarregado com um empréstimo
bancário e para pagar os juros trabalhava no campo da madrugada
à noite, sete dias por semana. Afinal morreu de exaustão e na
pobreza; após o quê, o Banco vendeu suas terras, reembolsando-se
não só dos juros vencidos mas do investimento inicial. A
experiência do pai serviu para mostrar a Alex, através daquela
desgraça, que o bom lugar para se ficar é do lado de dentro do balcão
do Banco.

O caminho para o jovem Alex chegar ao doutoramento foi uma
bolsa de estudos em Harvard e uma aprovação com louvor em
Economia.

— Tudo ainda pode correr bem — disse Edwina D'Orsey. — Suponho
que o Conselho escolherá o presidente.
— Sim — respondeu Alex meio distante. Estava pensando em Ben
Rosselli e no pai; as recordações dos dois entrelaçavam-se de modo
estranho.
— O tempo de casa não é tudo.
— Mas conta.
Mentalmente, Alex pesava as possibilidades. Reconhecia que tinha
o talento e a experiência necessários para dirigir o FMA, mas era
mais provável que os diretores preferissem alguém que andasse por
ali há mais tempo. Roscoe Heyward. por exemplo, já trabalhava no
Banco há vinte anos, e apesar de sua falta de afinidade com Ben
Rosselli, tinha apoio expressivo no Conselho.
Ontem as probabilidades eram a favor de Alex. Hoje, o quadro era
outro.
Levantou-se e esvaziou o cachimbo:


— Preciso voltar ao trabalho.
— Eu também.
Mas quando ficou só Alex sentou-se calado, pensativo.
Edwina tomou o elevador expresso que vai do andar da diretoria ao
térreo do FMA — mistura arquitetônica do Lincoln Center com a
Capela Sistina. O amplo salão regurgitava — bancários apressados,
mensageiros, visitantes, turistas. Respondeu ao cumprimento
amável de um guarda da segurança.
Pelas vidraças côncavas ela podia ver a Rosselli Plaza lá fora, com
suas árvores, seus bancos, esculturas e a fonte copiosa. No verão a
praça era ponto de encontro e os empregados dos escritórios do
centro ali vinham lanchar; mas hoje estava vazia e inóspita. Um
vento de outono carregava as folhas e a poeira, formava pequenos

redemoinhos e obrigava os pedestres a correrem procurando


abrigar-se no interior do edifício.
Era a época do ano, pensou Edwina, de que menos gostava. Falava
de melancolia, do inverno quase a chegar, e de morte.
Com um ligeiro arrepio, dirigiu-se para o túnel atapetado e suavemente
iluminado que ligava o escritório central do Banco à sua
principal agência, a Agência Central — estrutura palaciana de um
só andar.
Este era o seu domínio.


4


Quarta-feira, na Agência Central, o dia começou dentro da rotina.
Edwina D'Orsey estava de plantão na semana e chegou pontualmente
às 8h30min, meia hora antes das imponentes portas de
bronze do Banco se abrirem ao público.
Como gerente da principal agência, assim como vice-presidente da
empresa, não estava de fato obrigada a fazer plantão. Mas Edwina
sempre preferiu fazê-lo. Era seu modo de demonstrar que não
esperava privilégio algum por ser mulher — coisa que sempre a
preocupou em seus 15 anos de FMA. De resto, esse plantão era
apenas um cada dez semanas.
Na porta lateral do edifício remexeu na bolsa Gucci marrom, à procura
da chave. Encontrou-a entre uma mistura de batom, carteira,
cartões de crédito, estojo de pó, pente, uma lista de compras e
outros objetos. Tinha a bolsa sempre desarrumada, ao contrário de
suas características pessoais. Antes de usar a chave, examinou a
fechadura para ver se não havia vestígio de alguma cilada.


Havia, isto sim, um sinal constante de um pequeno cartão amarelo,
posto disfarçadamente numa janela. Ali teria sido colocado minutos
antes, por um porteiro a quem cabia essa atribuição, a primeira do
dia. Se tudo estivesse em ordem lá dentro, ele colocava o sinal num
ponto em que os funcionários pudessem vê-lo, ao chegarem. Mas, se
assaltantes tivessem penetrado no Banco durante a noite, e lá
estivessem à espera de reféns, nenhum cartão seria colocado e sua
ausência constituía um aviso. Então, ninguém mais entraria e os que
fossem chegando dariam o alarma.

Devido ao número crescente de assaltos de todo gênero, a maioria
dos bancos passara a empregar esse sistema contra emboscadas,
trocando com freqüência o tipo e a localização do aviso.
Ao entrar, Edwina se dirigiu ao painel existente na parede e abriu-o.
Ficou então à vista uma campainha que ela tocou em código: dois
toques longos, três curtos, um longo. Agora a sala da Central de
Segurança, na Torre da Matriz, ficava ciente de que o alarma da
porta, acionado por Edwina ao entrar, podia ser ignorado, pois
assinalara apenas a entrada no Banco de um funcionário autorizado.
Também o porteiro, ao entrar, tinha de tocar em seu próprio código.
A sala de operações, ao receber sinais similares de outras agências
do FMA, imediatamente mudava o sistema de alarma do prédio, de
"alerta" para "normal".
Tivesse Edwina, como funcionária de plantão, ou o porteiro,
deixado de tocar corretamente, segundo o código de cada um, a sala
de operações alertaria a polícia: Minutos depois a Agência estaria
inteiramente cercada.
Tal como outros sistemas, os códigos eram trocados amiúde.
Por toda parte os bancos buscavam segurança no emprego de sinais
positivos quando tudo estava bem e na ausência de sinais se
surgissem problemas. Assim, qualquer bancário retido como refém
estaria dando um aviso pelo simples fato de nada fazer.


Nesta altura, outros bancários e funcionários graduados chegavam
ao Banco, sempre controlados pelo porteiro uniformizado que já
estava no comando da porta lateral.

— Bom dia, Sra. D'Orsey — era um veterano do Banco, de cabelos
brancos, chamado Tottenhoe, que se dirigia a Edwina. Como
encarregado de operações, tinha a seu cargo a rotina e o pessoal da
Agência. O rosto comprido e lúgubre dava-lhe a aparência de um
canguru velho. Seu mau humor e pessimismo habituais
aumentavam à medida que se aproximava a aposentadoria
compulsória; ressentia-se da idade, e parecia culpar os outros por
isto. Edwina e Tottenhoe caminharam pelo andar térreo, depois
desceram uma ampla escada atapetada, em direção à caixa-forte,
cuja supervisão da abertura e do fechamento era responsabilidade
do funcionário de plantão.
Enquanto esperava perto da porta da caixa-forte o funcionamento
do mecanismo que a abria, Tottenhoe disse sombriamente:
— Corre o boato de que o Sr. Rosselli está pra morrer. É verdade?
— Infelizmente, é. — De modo sucinto Edwina contou a reunião da
véspera. Durante a noite, em casa, não pensara em outra coisa. Mas
agora estava decidida a se concentrar nos assuntos do Banco. Era o
que Ben desejaria.
Tottenhoe resmungou qualquer coisa inaudível que ela não
conseguiu perceber.
Edwina conferiu o relógio: 8h40min. Segundos depois um leve
clique na porta maciça de aço cromado anunciou que o mecanismo
de relojoaria, armado antes de fechar o Banco na noite anterior, já se
desligara, como previsto. Assim, a combinação da caixa-forte
poderia ser acionada; antes disso, não seria possível.
Apertando mais um botão secreto, Edwina avisou à Central de Operações
de Segurança que a caixa-forte ia ser aberta — abertura
normal, não forçada.

Em pé, cada qual de seu lado, defronte à porta. Edwina e Tottenhoe
faziam suas combinações de segredos no cofre. Um não sabia a do
outro; nenhum poderia abrir, sozinho, a caixa-forte.
Acabava de chegar o assistente de Operações, Miles Eastin. Jovem,
bonito, bem penteado, sempre alegre e agradável, contrastava com a
melancolia usual de Tottenhoe. Edwina gostava de Eastin. Com ele
veio um caixa graduado, encarregado da caixa-forte, supervisor das
entradas e saídas do dinheiro durante o dia. Só em moeda corrente,
cerca de um milhão de dólares, em cédulas e moedas, estariam sob
seu controle durante as próximas seis horas.
Os cheques a passarem na grande Agência, durante essas seis horas,
representariam uns vinte milhões.
Edwina recuou enquanto o caixa e Miles Eastin, juntos, movimentaram
a pesada porta de precisão da caixa-forte. que ficaria aberta até

o fim do expediente.
— Acabo de receber um telefonema — informou Eastin a Tottenhoe.
— Pode riscar mais dois caixas por hoje.
O olhar melancólico de Tottenhoe ficou mais fundo.
— É gripe? — perguntou Edwina.
Uma epidemia tomava conta da cidade, nos últimos dez dias, deixando
o Banco com poucos funcionários, em especial caixas.
— É. — respondeu Miles Eastin.
Tottenhoe queixou-se:
— Pena que eu não tenha pegado essa gripe, senão iria pra casa.
cama. e deixava qualquer pessoa tratar do meu trabalho. — Virou-
se para Edwina e perguntou: — Você insiste que o banco abra hoje?
— Acho que é o que esperam de nós.
— Bem, então o banco terá uma ou duas vagas ae diretor. Você é o
primeiro a ser eleito — disse para Miles Eastin — portanto pegue
uma caixa e fique pronto para o público. Ainda se lembra como se
conta dinheiro?
— Até vinte eu sei — disse Eastin — contanto que possa trabalhar
sem gravata.

Edwina sorriu. Não tinha dúvidas sobre o jovem. Tudo que ele
fazia, fazia bem. Quando Tottenhoe se aposentasse, no próximo
ano, Miles Eastin seria provavelmente indicado para chefe de
Operações.
Ele retribuiu-lhe o sorriso.

— Não se preocupe, Sra. D'Orsey. Sou um bom tapa-buraco. Além
do mais, ontem à noite joguei handball durante três horas e consegui
bom resultado.
— Mas, ganhou?
— Claro que ganhei; afinal, quem se ocupou do escore fui eu...
Edwina conhecia também outra mania de Eastin, uma mania que
várias vezes fora útil ao Banco — estudar e colecionar moedas e
cédulas. Era Miles Eastin quem dava explicações para orientar os
novos funcionários da Agência. Começava sempre com dados
históricos, tais como o fato de ter sido na China que se adotou o
papel-moeda pela primeira vez, assim como lá é que ocorreu a
primeira inflação. O primeiro sinal registrado de inflação, explicava,
foi no século XIII, quando o imperador mongol Cublaicã não pôde
pagar seus soldados em moeda e usou um bloco de madeira
gravado para produzir dinheiro. Infelizmente imprimiu-se tanto
dinheiro que em pouco tempo já não valia nada. — Há quem
acredite, dizia Eastin, que o dólar está sendo mongolizado. Devido a
seus estudos, ele havia também se tornado o melhor conhecedor do
Banco no que se referia a dinheiro falso e notas duvidosas, que eram
logo levadas às suas mãos para opinar.
Os três — Edwina, Eastin e Tottenhoe — subiram as escadas e voltaram
para o andar térreo.
Sacos de lona contendo dinheiro eram entregues por um caminhão
blindado, lá fora, e o dinheiro vinha acompanhado por dois guardas
armados.
O dinheiro em notas grandes sempre chegava em primeiro lugar,
pela manhã, transferido da Receita Federal à caixa-forte central do
FMA. Daí era distribuído às outras agências.

A razão para a entrega no mesmo dia era simples. O dinheiro
desnecessário na caixa-forte não dava lucro. Além disso,
representava perigo de perda ou roubo.
A habilidade de qualquer gerente de agência era nunca ficar sem dinheiro
e nunca tê-lo demais.
Uma agência como a do FMA, no centro da cidade, mantinha em
caixa meio milhão de dólares. O dinheiro que agora chegava —
mais de um quarto de milhão — era a diferença exigida para um dia
normal de transações bancárias.
Tottenhoe resmungou para os guardas de entrega:


— Espero que nos tenham trazido dinheiro mais limpo desta vez...
— Eu bem que comuniquei aos rapazes da Caixa Central sua reclamação,
Sr. Tottenhoe — disse um guarda. Era um jovem de cabelos
pretos e compridos que roçavam na gola do uniforme. Edwina
olhou-o até os pés, para ver se estava calçado. Claro que estava.
_ Me disseram que o Senhor tinha reclamado por telefone também
— acrescentou o guarda. — Quanto a mim, dinheiro é bom, tanto
faz sujo como limpo.
— Infelizmente — disse o chefe de Operações — nem todos os nossos
clientes pensam assim.
O dinheiro novo, chegado da Casa da Moeda através da Receita Federal,
era cuidadosamente conferido e guardado. Grande era o
número de clientes considerados "exigentes" que se recusavam a
receber notas muito usadas ou sujas e reclamavam notas novas ou,
pelo menos, limpas. Felizmente havia outros para quem isso não
fazia a mínima diferença; nesse caso os caixas tinham instruções de,
a estes, empurrar as piores cédulas que tivessem, e guardar as notas
frescas, estalando, para os que as exigissem.
— Ouvi dizer que há um monte de grana falsa em circulação. Talvez
se possa arranjar um montão — disse o segundo guarda piscando
para o companheiro.
Edwina respondeu-lhe:


— Podemos passar sem essa espécie de ajuda. Desse gênero já temos
tido muita.
Na semana anterior o Banco descobrira quase mil dólares em notas
falsas — dinheiro recebido, embora de fonte desconhecida. É
provável que viesse de numerosos depositantes, alguns também
defraudados, passando ao Banco seu prejuízo; outros não tinham
idéia de que o dinheiro fosse falso, o que não era de admirar, pois a
qualidade era muito boa.

Agentes do Serviço Secreto, discutindo o assunto com Edwina e Miles
Eastin, mostraram-se preocupados.


— O dinheiro falso que temos visto nunca foi de tão boa qualidade,
e nunca em volume tão grande — reconheceu um deles. — Uma
estimativa bastante prudente indica que cerca de 30 milhões de
dólares de dinheiro falso foi produzido no ano passado. E muito
mais ainda, com certeza, nunca foi identificado.
A Inglaterra e o Canadá eram as maiores fontes de moeda espúria
americana. Os agentes também contaram que um montante incrível
circulava na Europa.


— Não é tão fácil identificá-lo por lá; assim é bom alertar seus amigos
que vão à Europa para que nunca aceitem cédulas americanas.
É muito provável que sejam falsas.
O primeiro dos guardas armados mudou para o outro ombro o saco
de dinheiro.


— Não se preocupe, gente boa! Estas, sim, são verdinhas autênticas.
Tudo incluído no serviço!
Os dois guardas desceram a escada para a caixa-forte. c Edwina
dirigiu-se à mesa, na plataforma. No Banco, a faina aumentava.
Abertas as portas da frente, começavam a chegar os clientes matutinos.
A plataforma onde, por tradição, trabalhavam os funcionários de
maior categoria ficava um pouco acima do andar térreo e, ainda
como parte da tradição, tinha um tapete cor de vinho.

A mesa de Edwina, a maior e a mais imponente, era ladeada por
duas bandeiras; atrás e à direita, a nacional, das estrelas e listras e, à
esquerda, a estadual. Às vezes, ali sentada, vinha-lhe a impressão
de estar na TV, pronta a fazer uma comunicação solene, enquanto as
câmaras rodavam.

A agência central fora reconstruída há dois anos, quando da
construção da Torre da Matriz do FMA. A instalação, projetada com

o máximo cuidado, custara uma fortuna. O resultado, onde
predominavam o mogno e a cor de vinho, com cintilações douradas,
procurava aliar ao conforto e à segurança do cliente ótimas
condições de trabalho e um certo ar de opulência. Edwina, às vezes,
admitia para si mesma que toda opulência deve ter um limite.
Sentando-se na cadeira giratória de grande espaldar, que lhe era tão
familiar, Edwina — alta, escultural — passava de leve as mãos pelos
cabelos, gesto inútil, já que seu penteado, como tudo nela, estava
sempre irrepreensivelmente arrumado.
Ela manuseou uma pilha de pastas de pedidos de empréstimo para
importâncias acima das que outros funcionários da agência podiam
aprovar.

Seu próprio limite para empréstimos não excedia a um milhão de
dólares, fosse qual fosse o caso e, mesmo assim, desde que dois
outros funcionários categorizados já houvessem concordado. De um
modo geral, estes já haviam dado sua aprovação. Acima de tal
limite, os pedidos eram encaminhados a quem tivesse poder de
decisão.

No FMA, como em qualquer outro banco, o que um funcionário
podia autorizar representava seu gabarito e também determinava a
posição que ocupava na organização. Os empregados referiam-se a
uma pessoa sempre levando em conta o que chamavam de "valor da
rubrica", porque, afinal, era essa rubrica que dava a decisão final
sobre qualquer pedido de empréstimo.


O valor da rubrica de Edwina era altíssimo, embora refletisse
apenas sua responsabilidade como gerente da agência central, a
mais importante do FMA. Um gerente de agência menor poderia
aprovar empréstimos de até 10 000 a meio milhão de dólares,
dependendo de sua capacidade e categoria. A Edwina sempre
pareceu divertido que esse valor da rubrica representasse uma
espécie de prestígio, com seus conseqüentes privilégios. Segundo a
política do Banco, um assistente de inspetor de empréstimos, cuja
autoridade se limitasse a qualquer coisa como 50 000 dólares,
trabalhava numa mesa impressionantemente comprida, ao lado de
outras, num imenso escritório. Na ordem ascendente de prestígio,
um inspetor cuja rubrica valesse um quarto de milhão de dólares,
merecia mesa ainda maior, instalada num cubículo envidraçado.

Uma sala de tamanho médio, com porta e janela, já era privilégio de
um assistente de supervisor de empréstimos, cuja rubrica valesse,
digamos, mais de meio milhão de dólares. Também ele merecia
uma grande mesa, um quadro a óleo na parede e blocos de
memorando com o nome impresso. Tinha direito a uma assinatura
grátis do Wall Street Journal e podia utilizar os serviços do engraxate
pela manhã. Repartia ainda, em conjunto com outro assistente
supervisor, os serviços de uma secretária.

Por fim, um vice-presidente encarregado de empréstimos, cuja rubrica
valesse um milhão de dólares, trabalhava numa sala de
esquina, com duas janelas, dois quadros a óleo e tinha uma secretária
só para si.

Seu nome, nos blocos de memorando, era impresso em relevo.
Também ele tinha direito ao jornal grátis, não pagava para engraxar
os sapatos e recebia gratuitamente revistas e jornais, afora ter o
direito de usar um automóvel do Banco, quando em serviço. Afinal,
tinha acesso à sala de refeições dos graduados, na hora do almoço.

Edwina tinha direito a tudo isso, dado o valor de sua rubrica; claro,
só não usava o engraxate.


Naquela manhã, ela estudou dois pedidos de empréstimo; aprovou
um e assinalou, no questionário, algumas perguntas relativas ao
outro. O terceiro, de fato, tirou-lhe o fôlego.
Com surpresa, pensava na coincidência desse pedido com a manhã
anterior e leu com cuidado todo o material referente, contido na
pasta.
A seguir, chamou pelo interfone o funcionário que o encaminhara.
A resposta veio imediata:


— Castleman.
— Cliff, dê um pulinho até aqui.
— Claro. — Ao chegar, Castleman foi logo dizendo: — Aposto que
sei porque me chamou.
Sentado à frente de Edwina, ele olhou a pasta aberta e confirmou:
— É isso. De vez em quando nos aparecem alguns birutas, não?
Cliff Castlemanjera miúdo e de mentalidade objetiva; tinha rosto rosado,
redondo e risonho. Todos os clientes que o procuravam
gostavam dele, pois sabia ouvir e agradar. Mas isso não obstava que
fosse também um homem equilibrado e sua opinião a respeito da
concessão ou da negativa de um empréstimo era sempre abalizada.
— Juro que pensei, ou que desejei — disse Edwina — que este pedido
fosse uma espécie de brincadeira idiota.
— Horripilante, seria o termo mais adequado, Sra. D'Orsey. Embora
a coisa toda possa parecer doentia, asseguro-lhe que é real. — Castleman
abriu a pasta. — Incluí todos os detalhes. Por certo, a
senhora já viu o relatório, bem como minha aprovação.
— Você jura que não estava brincando quando propôs que se empreste
dinheiro para esta finalidade?
— Juro que não. — Castleman parou de repente e recomeçou: —
Lamento muito, não quis fazer humor negro, mas, de fato, sou
favorável à aprovação do empréstimo.
Estava tudo lá na pasta. A história de um homem, ex-farmacêutico,
de 43 anos de idade, chamado Gosburne, com emprego na cidade.



Os Gosburne, casados há 17 anos, possuíam casa própria no

subúrbio, praticamente paga, exceto uma pequena hipoteca.
Pleiteavam um empréstimo de 25 000 dólares. Tinham conta
conjunta no FMA há oito anos, sem nenhum problema. Seu
empréstimo anterior, de menor valor, fora pago com a maior
correção. A ficha de Gosburne era muito boa, tanto em seu emprego
como no Banco.

O empréstimo solicitado destinava-se à compra de uma grande cápsula
de aço inoxidável na qual seria colocado o corpo de sua filha
Andréa, falecida há seis dias, aos 15 anos de idade, de uma doença
renal. O corpo de Andréa estava em uma agência funerária,
conservado em gelo seco. Seu sangue havia sido retirado logo após
a morte e substituído por uma solução similar, porém
anticongelante, denominada dimetilsulfato.
A cápsula de aço fora desenhada especialmente para conter nitrogênio
líquido, numa temperatura abaixo de zero. O cadáver, envolto
em uma lâmina de alumínio, ficaria imerso nessa solução.
Uma cápsula similar, com a aparência de uma gigantesca garrafa, e
que era denominada crio cripta encontrava-se em Los Angeles e seria
enviada de avião, caso o empréstimo fosse concedido. Dele um
terço destinava-se ao pagamento prévio do aluguel e da
armazenagem da cápsula, bem como à substituição do nitrogênio
líquido, cada quatro meses.
Castleman indagou:

— A Senhora já ouviu falar nas sociedades criônicas?
— Francamente! São pseudocientíficas e não gozam de grande reputação.
— De fato. Não têm boa reputação, nem base científica. Mas ocorre
que os grupos criônicos já têm grande número de adeptos e
convenceram os Gosburne de que, quando a ciência médica estiver
mais avançada — digamos em 50 ou 100 anos — Andréa poderá ser
retirada da cápsula e trazida de volta à vida, para ser curada. Aliás,
os criônicos têm um lema: congele — espere — reanime.

— Que coisa horrível — disse Edwina.
Castleman prosseguiu:
— Claro que concordo com a Senhora. Mas vejamos o outro lado, o
ponto de vista de Gosburne. Sua família acredita. São pessoas de
razoável inteligência, religiosas ao extremo. Portanto, quem somos
nós, banqueiros, para nos arvorarmos em juiz e júri? Em minha
opinião, só existe um problema: poderá Gosburne pagar o
empréstimo? Estudei bem a situação e sei que pode e que pagará. O
homem pode ser maluco, mas sua ficha evidencia que é um louco
que sabe pagar suas dívidas.
Com relutância, Edwina estudou a renda de Gosburne, bem como
suas despesas de rotina.
— Ele vai ficar num terrível aperto financeiro.
Gosburne sabe disso, mas garante que pode contornar a situação.
Arranjou outro emprego, fora de seu horário normal e a mulher
também está procurando trabalho.
Edwina retrucou:
— Mas eles têm quatro filhos menores.
— Têm, sim.
— Será que ninguém lhes fez ver que essas crianças, as quatro
crianças vivai, precisarão em breve de dinheiro para colégio e
outras coisas importantíssimas e que 25 000 dólares poderiam ser
melhor aplicados em benefício delas, que estão vivas?
— Tive duas entrevistas com Gosburne e expliquei-lhe tudo isso.
Mas ele assevera que a família inteira debateu o assunto várias
vezes. E que já se decidiram, pois estão convencidos que esses
sacrifícios valerão a pena, pois algum dia, segundo crêem, Andréa
voltará a viver. Até as crianças dizem que, quando tiveram mais
idade, contribuirão com algum dinheiro para devolver-lhe a vida.
— Oh, meu Deus!
Mais uma vez os pensamentos de Edwina voltaram-se para o dia
anterior. A morte de Ben Rosselli, quando o momento chegasse,

seria cercada de dignidade, mas o caso presente fazia a morte
parecer uma coisa feia, uma anedota. Deveria o dinheiro do Banco

— em parte dinheiro de Ben — ser empregado para tal fim?
Sra. D'Orsey — falou Castleman — estou com esta pasta em minha
mesa há dois dias; meu primeiro sentimento foi idêntico ao seu... a
coisa toda é doentia. Já pensei no assunto detidamente e afinal
cheguei à presente opinião, ou seja, que para o Banco é um risco
aceitável.
Risco aceitável. Edwina concordava com ele, de vez que o Banco, na

prática, vivia de riscos aceitáveis. Castleman tinha razão ao dizer
que na maioria dos assuntos pessoais dos clientes um banco não
pode ser juiz e júri.

Claro, no caso em espécie, talvez esse risco viesse a não ter cobertura,
embora Castleman não pudesse ser considerado responsável
se tal ocorresse. A ficha do cliente era boa e ele acertava muito mais
que errava. Quase nunca se enganava e ainda há pouco recuperara
um caso dado como perdido, quando ninguém esperava que o
cliente ainda pudesse pagar.


— Está certo — disse Edwina. — A idéia me apavora, mas apoiarei
seu parecer.
Ela rubricou o documento de empréstimo e Castleman voltou à sua
mesa.
No mais, a não ser este caso de pedido de empréstimo para congelar
uma filha, o dia começara como qualquer outro.
E continuou do mesmo modo até certa hora da tarde.
Quando almoçava sozinha, Edwina ia à lanchonete da sede do FM
A. Era um local barulhento, a comida apenas regular, mas o serviço
rápido e ela podia entrar e sair em 15 minutos.
Hoje, no entanto, tinha um cliente convidado e, exercendo seu privilégio
de vice-presidente, levou-o para almoçar no refeitório dos
categorizados, no último andar. O convidado, tesoureiro de uma
das maiores cadeias de lojas, precisava de três milhões de dólares, a

curto prazo, para cobrir um deficit proveniente da queda das
vendas no outono, bem como do estoque comprado para o Natal,
dentro de dois meses.

— Essa droga de inflação!
O tesoureiro se queixava enquanto devorava um delicioso suflê de
espinafre. Depois, limpando os lábios, acrescentou:
— Mas teremos nosso dinheiro de volta nos próximos dois meses.
Papai Noel sempre foi bom para nós.
A conta dessa cadeia de lojas era muito importante. No entanto,
Edwina procurava tornar o caso um tanto difícil, tentando favorecer


o Banco. O cliente relutou um pouco; mas à altura da sobremesa
chegaram a um acordo. Os três milhões de dólares ultrapassavam a
autoridade pessoal de Edwina, embora ela soubesse de antemão
que não teria problemas para conseguir a aprovação da matriz. Se
fosse necessário, para que o assunto se resolvesse com maior
rapidez, falaria com Alex Vandervoort, que nunca deixara de apoiála.
Quando estavam tomando o café, uma garçonete lhe transmitiu um
recado.
— Sra. D'Orsey — disse ela — o Sr. Tottenhoe chama-a ao telefone;
diz que é muito urgente.
Edwina pediu licença e dirigiu-se à cabina telefônica. Logo se fez
ouvir a voz de Tottenhoe:
— Estou louco tentando localizá-la.
— Bem, agora que me localizou, o que é que você quer?
— Estamos com um caso grave de diferença de caixa.
E explicou que uma caixa tinha constatado perda de dinheiro há
meia hora atrás. Estavam conferindo tudo que podiam. Edwina
ficou em pânico; a voz de Tottenhoe era dramática. Ela indagou
qual o montante exato da falta e ouviu quando Tottenhoe engoliu
em seco:
— Seis mil dólares.

— Vou já para aí.
Em menos de um minuto, após as necessárias desculpas apresentadas
a seu convidado, ela tomava o elevador expresso para o térreo.
5


— Pelo que me foi dado apurar — disse Tottenhoe pausadamente
— a única coisa que todos nós sabemos com absoluta certeza é que
faltam em caixa 6 000 dólares que não estão onde deviam estar.
O chefe de Operações era uma das quatro pessoas sentadas em
volta da mesa de Edwina D'Orsey. Os demais era ela própria, o
jovem Miles Eastin, assistente de Tottenhoe, e a caixa, Sra. Juanita
Núnez.
Era na gaveta desta última que o dinheiro estava faltando.
Já decorrera meia hora desde que Edwina regressara do restaurante.


Agora, com todos a olhá-la, ela respondia a Tottenhoe:

— O que você diz é exato, mas creio que podemos fazer um pouco
melhor. Quero que todos nós tentemos, mais uma vez, reconstituir
aquilo que se passou, devagar e com cautela.
Era pouco mais das três horas da tarde*; os clientes já se haviam
retirado e as portas externas estavam cerradas.
No entanto, como de hábito, o movimento interno prosseguia. Edwina
percebia os olhares dissimulados de alguns empregados que
sabiam da existência de alguma anormalidade.

* Nos EUA os bancos encerram o expediente às 15 horas. (N. do T.)

Ela procurava concentrar-se, certa de que o essencial era permanecer
calma, analítica, levando em consideração todo e qualquer
resquício de informação. Queria ouvir com cuidado todas as
nuanças do falar e da atitude dos presentes, em particular no que se
referia à caixa.
Edwina sabia também que logo, logo, teria de notificar seus superiores
a respeito da possível perda de dinheiro, após o que a Segurança
do Banco seria chamada é, provavelmente, também o FBI. Mas,
enquanto fosse possível, procuraria encontrar uma solução imediata
e discreta, sem convocar toda aquela artilharia pesada.

— Se quiser, Sra. D'Orsey — disse Miles Eastin — posso começar, já
que fui o primeiro a quem Juanita relatou o ocorrido.
Edwina concordou.
A provável falta do dinheiro, Eastin esclareceu, chegou a seu conhecimento
alguns minutos antes das duas horas da tarde, quando
Juanita Núnez comunicou-lhe que supunha estarem faltando 6 000
dólares em seu caixa.
Miles Eastin, ele próprio, estava trabalhando como caixa, em substituição
a um empregado ausente por motivo de saúde. Encontrava-
se distante de Juanita apenas pelo espaço de dois guichês e ela veio
comunicar-lhe o fato, tendo fechado sua caixa a chave antes de se
ausentar.

Eastin fez o mesmo — isto é, fechou a própria caixa — e dirigiu-se a
Tottenhoe.
Este, mais sombrio que nunca, tomou conhecimento do fato e, a seguir,
procurou a interessada para ouvir sua versão pessoal.
De início, ele não acreditara que uma importância tão vultosa como
6 000 dólares pudesse estar faltando, pois mesmo que moça
suspeitasse da falta de algum dinheiro, era quase impossível que
soubesse seu montante exato, naquela altura.

O chefe de operações mencionou: Juanita Núnez trabalhara o dia
todo. começando com pouco mais de 10 000 dólares, em dinheiro


retirado da caixa-forte pela manhã e tinha estado recebendo e
pagando desde as nove horas, quando o Banco abria para o público.
Isto significava que ela já estava em atividade fazia cerca de cinco
horas, descontados os 45 minutos de intervalo para o almoço.
Durante todo esse tempo, o Banco esteve superlotado, com todos os
caixas ocupados. Além do mais, os depósitos em dinheiro do dia
tinham sido mais vultuosos que o usual. Assim, o volume de
dinheiro em poder de Juanita Núnez — não incluindo cheques —
poderia ter aumentado, chegando a 25 000 dólares. Portanto,
raciocinava Tottenhoe. como poderia ela estar tão certa, não só de
que lhe faltava dinheiro, mas ainda do montante exato dessa falta?
Edwina concordou; a mesma dúvida já lhe ocorrera.
Sem querer ser óbvia, Edwina estudava a moça: era pequena,
esguia, morena, não realmente bonita, mas provocante no seu tipo
miúdo. Parecia porto-riquenha, o que era confirmado por seu
sotaque. Falou pouco, respondendo de forma sucinta quando
alguém lhe dirigia a palavra.
Era difícil ter certeza sobre a atitude que ela adotava; por certo não
era de colaboração ampla, pensava Edwina, pois a moça não
contribuíra com qualquer esclarecimento, além de sua declaração
original. Desde o início da conversa, sua expressão foi sempre malhumorada
ou hostil. Por vezes parecia divagar, como se estivesse
entediada e considerasse toda aquela rotina uma perda de tempo.
Mas sem dúvida estava nervosa, como demonstravam suas mãos
fechadas e a maneira como girava a aliança de casamento.
Edwina D'Orsey sabia, pela ficha de emprego, que Juanita tinha 25
anos de idade, que era casada mas separada, e que tinha uma filha
de três anos. Trabalhava para o FM A há mais ou menos dois anos,
sempre como caixa. O que não constava da ficha, mas Edwina
recordava-se de ter ouvido dizer, era que Juanita Núnez sustentava
sua criança e que estivera e provavelmente ainda estava em difícil
situação financeira devido a dívidas contraídas pelo marido, que a
abandonara.


Apesar de suas dúvidas quanto ao modo pelo qual a Sra. Núnez
pôde saber quanto lhe faltava em dinheiro — Tottenhoe continuou a
relatar — ele a havia liberado de sua permanência no guiché,
dando-a como "'impedida".
Isto representava, na prática, uma proteção para o empregado e era

o procedimento padrão em qualquer problema desta espécie.
Simplesmente significava que o caixa fora isolado num pequeno e
fechado escritório, só com sua caixa e sua máquina de calcular, com
a obrigação de fazer um levantamento de todas as transações do
dia.
Tottenhoe esperava do lado de fora. Pouco depois ela o chamou e
informou que sua caixa simplesmente não fechava; faltavam 6 000
dólares.
Tottenhoe convocou Miles Eastin e juntos conferiram tudo na presença
de Juanita Núnez. Chegaram à mesma conclusão que ela: sem
dúvida lhe faltava dinheiro; precisamente a importância que
indicara desde o começo.
Foi então que Tottenhoe telefonou para Edwina.
— O que nos leva de volta à estaca zero — disse Edwina. — Por
acaso ocorreu alguma idéia nova e você ou a quem quer que seja?
Miles Eastin falou:
— Gostaria de perguntar a Juanita algumas pequenas coisas, se é
que ela não se incomoda.
Edwina concordou.
— Pense cuidadosamente sobre isto. Juanita — disse ele então. — A
qualquer hora do dia de hoje você fez algum vale com outro caixa?
Como todos sabiam, um vale, ou o que eles chamavam de TX (teller's
exchange) era coisa muito usada entre os caixas. Um caixa
durante seu plantão, às vezes precisava de notas ou mesmo de
moedas e, se na hora o movimento fosse intenso, em vez de ir ao
cofre-forte, recorria a um companheiro, fazendo uma espécie de
"compra" ou "venda" de dinheiro. Para isto, usavam um formulário
especial de controle que chamavam de TX. Mas. vez por outra, por

pressa ou negligência, cometiam erros, de tal modo que, ao fim de
um dia muito concorrido, uma caixa poderia acusar falta e a outra
excesso. Mas, claro, era difícil acreditar que uma diferença tão
grande quanto 6 000 dólares pudesse vir a ocorrer.

— Não — disse a moça. — Nenhum vale. Não houve.
Miles Eastin insistiu:
— Você percebeu se mais alguém, qualquer pessoa do escritório, a
qualquer hora do dia, se aproximou de sua caixa o suficiente para
que pudesse ter acesso a seu dinheiro?
— Não.
— Quando você me procurou pela primeira vez, Juanita — falou
Eastin — e me disse que julgava estar faltando dinheiro, fazia muito
tempo que tinha dado pela falta?
— Poucos minutos. Edwina indagou:
— Isto ocorreu exatamente quantos minutos após sua pausa para o
almoço. Sra. Núñez?
A moça hesitou, parecendo menos segura de si:
— Talvez vinte minutos.
— Então, vamos falar sobre antes de você ter saído para almoçar —
disse Edwina. — Acha que, já então, faltava dinheiro?
Juanita Núñez acenou negativamente.
— Mas, como pode ter certeza?
— Eu sei.
As respostas monossilábicas, pouco elucidativas, começavam a irritar
Edwina. E a hostilidade que percebia na moça parecia acentuar-
se. Tottenhoe, mais uma vez repetiu a pergunta crucial:
— Mas como foi que, depois do almoço, você teve certeza não só de
que o dinheiro estava faltando, como do total exato?
A jovem respondeu em tom de desafio:
— Eu sabia.
Houve um silêncio de absoluta descrença.
— Por acaso você acredita que, a qualquer hora durante o dia, pudesse
ter pago por engano, 6 000 dólares a mais a um cliente?

— Não.
Miles Eastin perguntou:
— Quando você interrompeu o plantão da caixa, antes de sair para
o almoço, Juanita, você levou em mãos sua caixa-gaveta ao cofre-
forte e fechou a combinação. Certo?
— Certo.
— Você está segura de que trancou a combinação? A moça
confirmou com segurança.
— A combinação do chefe de operações estava trancada?
— Não, estava aberta.
Isto, também, era normal. Uma vez que a combinação do chefe de
operações tivesse sido "aberta" cada manhã, o hábito era deixá-la
assim o resto do dia.
— Mas, quando você voltou do almoço sua caixa permanecia fechada
no cofre-forte?
— Sim.
— Alguém mais conhece sua combinação? Por acaso confiou-a a alguém?
— Não.
Em poucos minutos o questionário esgotou-se. Edwina pensava que
os presentes, como ela própria, estavam revendo mentalmente o
procedimento habitual no cofre-forte da agência.
O que Miles Eastin chamava de gaveta ou caixa-gaveta, na
realidade, era uma caixa portátil, muito forte, montada numa
estrutura dotada de rodinhas, o que possibilitava sua
movimentação com facilidade de um lado para o outro. Alguns
bancos davam-lhe o nome de caminhão de caixa ou caminhão de
dinheiro. Cada caixa tinha, para uso pessoal, um desses carrinhos,
numerado de forma visível e que era usado pela mesma pessoa.
Existiam alguns sobressalentes como, por exemplo, o de Miles
Eastin, que hoje estava substituindo um caixa ausente.
Todos estes caixas-carrinhos eram conferidos à entrada e à saída do
cofre-forte por um caixa mais categorizado, que mantinha um

registro das saídas e retornos. Era de todo impossível retirar uma
caixa, ou devolvê-la, sem a rigorosa verificação do caixa do cofre-
forte, bem como impossível retirar a de qualquer outra pessoa, de
propósito ou por engano. Após o expediente, as caixas, os cofres-
fortes, tudo, enfim, ficava encerrado com mais segurança que a
tumba de um faraó.
Cada caixa tinha duas combinações-segredo à prova de violação.
Uma delas era feita pelo próprio caixa; a outra, pelo assistente de
operações. Assim, ao se iniciar o expediente, cada caixa era aberta
sempre em presença de duas pessoas — o caixa e o funcionário
encarregado de operações.
Logo de início, todos os caixas eram informados de que tinham de
memorizar suas combinações e jamais confiá-las a outrem, embora a
combinação pudesse ser trocada a qualquer momento, sempre que o
caixa assim o desejasse. O único registro escrito da combinação de
uma caixa ficava encerrado num envelope, assinado por duas
pessoas e em poder de terceiros — ainda outra vez em dupla
custódia — num cofre de segurança especial. O lacre deste envelope
só era quebrado na eventualidade de morte, doença, ou se o caixa
deixasse o quadro de funcionários do Banco.
Assim sendo, apenas o usuário de cada caixa sabia a combinação
que poderia abri-la; além disso, os caixas, bem como o Banco, eram
segurados contra roubo.
Outra circunstância que tornava mais complexa ainda a segurança
era um sistema de alarma embutido. Onde quer que estivesse
dentro do guiché, o caixa tinha acesso a um contato elétrico que
ligava cada caixa a uma rede de comunicação interna. O botão de
alarma ficava escondido dentro da gaveta oculto por um maço de
cédulas, chamadas "isca".
Os caixas nunca deviam usar esse dinheiro-isca para transações
normais, mas apenas em caso de assalto, porque o simples remover
dessas notas ligava um alarma silencioso que se comunicava com o
serviço de Segurança do Banco, bem como com a polícia, que se


punham imediatamente em ação. Fazia ainda acionar câmaras
ocultas. Os números de série deste dinheiro-isca eram anotados
para servir de evidência em caso de furto.
Edwina perguntou a Tottenhoe:


— A "isca" estava entre os 6 000 dólares de cuja falta a Sra. Núñez se
deu conta?
Não — respondeu Tottenhoe. — A "isca" estava intacta; eu próprio
verifiquei.


Edwina pensou: — quer dizer que. deste modo, não há condição de
se chegar a ninguém.
Mais uma vez Miles Eastin dirigiu-se à moça:


— Juanita. existe alguma possibilidade de você se lembrar ou pensar
em alguém, em qualquer pessoa, que pudesse ter retirado o dinheiro
de sua gaveta?
— Não — respondeu ela.
Observando com cuidado, enquanto a moça respondia, Edwina
verificou que ela deixava transparecer o medo que sentia. É bem
verdade que tinha todos os motivos para estar amedrontada,
porque o Banco — nenhum banco — desistiria facilmente de tão
grande perda.
Edwina já não tinha a mínima dúvida a respeito do que ocorrera
com o dinheiro: Juanita Núnez o roubara. Nenhuma outra
explicação era possível. A dificuldade era saber — como?
Havia a possibilidade de ela tê-lo passado, através do guiché, a um
cúmplice. Ninguém notaria. Num dia de extraordinário movimento,
isso teria parecido uma retirada rotineira de dinheiro. Por outro
lado, ela poderia tê-lo levado consigo para fora do Banco na hora de
almoço, embora, neste caso, o risco fosse maior.
De uma coisa a Sra. Núnez já tinha certeza absoluta: era que perderia
o emprego, ficasse ou não provado que roubara o dinheiro. E
bem verdade que os caixas de bancos são perdoados por
discrepâncias ocasionais em matéria de dinheiro; constituem erros

normais e mesmo esperados. Durante o curso de um ano, oito
enganos "a mais" ou "a menos" era a média para a maioria dos
caixas e desde que tais enganos não ultrapassassem 25 dólares, em
geral, nada acontecia. Mas ninguém que tivesse sofrido perda
superior a essa quantia jamais conservou o emprego; todos os caixas
sabiam disso.
Claro, Juanita Núnez devia ter levado tudo isto em consideração e
decidido que a quantia de 6 000 dólares, recebida assim de uma vez,
valia a perda de seu emprego, muito embora, daí em diante, viesse a
ter dificuldade em encontrar outro. Fosse como fosse, Edwina tinha
pena da moça; naturalmente ela devia estar desesperada. Quem
sabe se essa necessidade financeira se relacionava com sua filha?
— Acho que não há mais nada que se possa fazer de nossa parte —
disse Edwina dirigindo-se ao grupo. — Terei que informar à matriz
e eles então se encarregarão da investigação.
Quando os três se levantaram. Edwina acrescentou:

— Sra. Núnez, por favor, fique mais um pouco. A
moça sentou-se outra vez.
Quando os outros já não mais estavam presentes, Edwina disse em
tom natural:
— Juanita, pensei bem e achei que essa era a ocasião oportuna para
que tivéssemos uma conversa franca, quase como entre amigas.
Edwina procurava controlar sua impaciência anterior. E sentia os
olhos da moça fixos nos seus.
— Estou certa de que você deve ter levado em consideração duas
coisas. Primeiro, que haverá uma investigação cuidadosa de todo o
assunto e que o FBI será envolvido, porque o nosso é um banco
federal. Segundo, é inevitável que a suspeita recaia sobre você —
Edwina fez uma pausa. — Estou sendo absolutamente franca, você
compreende?
— Compreendo, sim. Mas não tirei o dinheiro.
Edwina observou que a jovem continuava a girar nervosamente a
aliança no dedo.

Assim, começou a escolher as palavras com maior cuidado, levando
em conta que tinha que ser cautelosa para evitar uma acusação
direta, que poderia mais tarde resultar em complicações legais para

o Banco.
— Não importa quanto tempo leve a investigação, Juanita, é quase
certo que a verdade aparecerá. Os investigadores são competentes
ao extremo. Muitíssimo experientes. E não desistem com facilidade.
A moça repetiu com mais ênfase ainda:
— Não tirei o dinheiro.
— Eu não disse que você o tenha tirado, mas faço questão de dizer
que, se por acaso você sabe alguma coisa além do que disse até
agora, este é o momento para me dizer toda a verdade, para me
contar, enquanto estamos só nós duas conversando calmamente.
Depois disso, não haverá outra oportunidade; será tarde demais.
Juanita Núnez deu a impressão de que ia falar. Edwina levantou a
mão:
— Não, espere até o fim. Eu lhe faço uma promessa: se o dinheiro
for devolvido ao Banco, digamos, no máximo até amanhã, não
haverá nenhuma espécie de ação legal. Com a maior honestidade,
digo-lhe que seja quem for que tenha tirado o dinheiro não poderá
mais trabalhar aqui. Afora isso, nada aconteceria, eu lhe garanto.
Juanita. Agora sim, responda: você tem mais alguma outra coisa a
dizer, qualquer coisa?
— Não. não. não, te lo juro por mi hija!
Os olhos da moça se inflamaram em seu rosto zangado.
— Já lhe disse e repito: não tirei nenhum dinheiro.
Edwina suspirou.
— OK, então é tudo. no momento. Mas. por favor, não se retire do
Banco sem antes falar comigo.
Juanita Núnez parecia estar a ponto de dar outra resposta irritada.
No entanto, com um leve encolher de ombros levantou-se e virou as
costas.

Do alto de sua mesa. Edwina observava toda a atividade em volta;
era o seu pequeno mundo, sua responsabilidade pessoal. As
transações da agência referentes ao dia ainda estavam sendo
computadas, registradas, embora urna conferência preliminar
indicasse que nenhum caixa — como haviam esperado desde o
começo — tivesse 6 000 dólares a mais.
Os sons eram amortecidos no edifício moderno; as vozes, baixas, o
barulho de papéis, quase nenhum. Até as moedas faziam um
barulho apenas razoável, bem como as máquinas de calcular. Ela
observou tudo com calma e começou a pensar que. por duas razões,
era uma semana que jamais esqueceria. Depois, deixando de
divagar, retirou o fone do descanso e ligou um número interno.
Respondeu-lhe uma voz de mulher:

— Departamento de Segurança.
— O Sr. Wainwright. por favor — disse Edwina.
6


Nolan Wainwright, desde o dia anterior, encontrava dificuldade
para se concentrar em seu trabalho normal no Banco. O chefe da
Segurança havia ficado profundamente afetado pela revelação na
reunião de terça-feira pela manhã porque, há dez anos, entre ele e
Ben Rosselli haviam-se consolidado uma boa amizade e respeito
mútuo.

Mas não fora sempre assim. Ao regressar da reunião para seu modesto
escritório, Wainwright disse à secretária que não o
interrompesse durante algum tempo. Então sentou-se à sua mesa,


triste, meditativo, pensando no primeiro conflito que tivera com os


pontos de vista de Ben Rosselli.
Fazia dez anos, Nolan Wainwright tinha sido recentemente designado
Chefe de Polícia de uma pequena cidade do interior do
Estado.


Antes disso fora tenente-detetive em uma grande cidade, com uma
ficha excepcional. Possuía a habilidade necessária para cargos de
chefia e, no clima da época, provavelmente o fato de ser negro
pesara a favor de sua candidatura.


Pouco tempo depois de estar ele exercendo a chefia de polícia daquela
cidade, Ben Rosselli dirigia seu carro pelos subúrbios a 120km
por hora. Um guarda de trânsito entregou-lhe uma intimação para
que comparecesse ao Tribunal.
Talvez para compensar o equilíbrio e a maneira tranqüila como levava
sua vida, Ben Rosselli sempre tivera paixão por carros velozes
e dirigia-os exatamente como seus fabricantes pretendiam: a toda
velocidade.
Receber uma intimação por excesso de velocidade era rotina para
ele: encaminhava-a ao FM A. O Departamento de Segurança do
Banco sabia como resolver o assunto. Tudo se torna mais fácil
quando se trata do capitalista mais poderoso do Estado e muitas
coisas podem ser resolvidas sem que ele se aborreça.
A intimação foi, pois. enviada no dia seguinte ao gerente da agência
do FM A na cidade onde ocorrera a infração. Ocorreu, no entanto,
que o gerente era também político e havia influenciado de modo
decisivo na designação de Nolan Wainwright para Chefe de Polícia.
Por isso, dirigiu-se à chefatura para ver se conseguia tornar a
intimação sem efeito. Procurou agir com habilidade, mas
Wainwright foi inflexível.


Já com menos amabilidade, o gerente lembrou-lhe que ele era novo
naquela comunidade, que necessitava de amigos e que sua falta de
colaboração não contribuía para que estabelecesse boas relações.



Ainda assim, o Chefe de Polícia manteve-se inflexível: não retiraria
a intimação.
O gerente preparou-se para sair, não antes de lembrar a Wainwright
que ele pleiteara no banco um empréstimo para pagar a hipoteca
que lhe possibilitara trazer a família. E acrescentou de modo sutil:
_ O Sr. Ben Rosselli, Nolan, é o presidente do FMA.
Mas este declarou que não via qualquer ligação entre um pedido de
empréstimo e uma intimação por excesso de velocidade.
No devido tempo, o Sr. Rosselli foi considerado culpado pelo Tribunal
e multado por dirigir irresponsavelmente, tendo ainda recebido
em seu prontuário três pontos negativos. A punição deixou-o
zangadíssimo.
Também no devido tempo, o. empréstimo pleiteado por Nolan foi
recusado.
Alguns dias depois, este dirigiu-se ao escritório de Rosselli no 36.°
andar do escritório central do FMA, valendo-se da acessibilidade de
que o presidente tanto se orgulhava.
Quando Ben Rosselli soube quem era o visitante, surpreendeu-se
que ele fosse preto. Não que isto fizesse diferença para a raiva que
ainda sentia pela multa e pelos pontos de demérito — pela primeira
vez em sua vida.
Wainwright agiu com toda tranqüilidade: foi logo dizendo não
acreditar que Ben Rosselli houvesse influenciado na recusa ao seu
modesto pedido de empréstimo; assuntos dessa natureza eram, por
certo, conduzidos por pessoas de menor gabarito. Mas ele se sentira
injustiçado. Ben Rosselli mandou imediatamente buscar a pasta de
Nolan e deu-lhe uma vista de olhos.

— Só para satisfazer minha curiosidade — perguntou ele ao
visitante — o que pretende fazer se não lhe concedermos o
empréstimo?
A resposta de Nolan Wainwright foi seca:

— Lutar. De início, tomarei um advogado e iremos à Comissão de
Direitos Civis. Se não formos bem sucedidos, faremos o que seja
possível pára prejudicá-lo. Isso eu lhe asseguro.
Ele falara com franqueza e convicção, isentas de rudeza, tendo recebido
a resposta imediata do banqueiro:
— Não dou atenção a ameaças.
— Não estou fazendo ameaças; o senhor me fez uma pergunta e eu
respondi.
Ben Rosselli hesitou. Em seguida, rubricou um dos documentos
constantes da pasta e. dirigindo-se a Nolan, disse:


— Seu pedido de empréstimo acaba de ser aprovado.
Quando Wainwright se retirava, ele perguntou-lhe:
— O que acontecerá agora se eu for multado outra vez por excesso
de velocidade em sua cidade?
— Se for uma intimação por dirigir de modo irresponsável, talvez
acabe na cadeia.
Esta resposta levou o banqueiro a dizer consigo mesmo:
— Seu grandissíssimo sacana! Ainda acertaremos nossas contas! Este
pensamento ele o comunicaria a Nolan muitos anos depois. Nunca
chegaram a acertar as contas — não naquele sentido. Mas em
outro, sim. Dois anos mais tarde, quando o Banco estava precisando
de um executivo para que o serviço de Segurança fosse, conforme
definia o chefe do Pessoal, "tenazmente forte e à prova de
corrupção". Ben Rosselli logo retrucou:
— Conheço o homem com capacidade para dirigi-lo.
Em seguida, Nolan Wainwright foi convidado, contrato assinado, e
veio trabalhar no FMA.
A partir daí, os dois nunca mais divergiram. O novo chefe da Segurança
fazia seu trabalho com eficiência e ainda procurou
aperfeiçoar-se em teoria de segurança bancária freqüentando cursos
noturnos.

Rosselli, por seu lado. nunca pediu que ele quebrasse qualquer dos
seus rígidos códigos de ética e sempre que recebia uma intimação
por excesso de velocidade procurava outra pessoa não pertencente a
seu serviço de Segurança, esperando que Wainwright não viesse a
ser informado, o que. em geral, não acontecia. Com o passar do
tempo, a amizade entre os dois foi crescendo até que, após a morte
da esposa do banqueiro. Wainwright passou a jantar com
freqüência em casa dele; após o jantar disputavam partidas de
xadrez.
De certa forma, essas visitas também eram um derivativo para
Wainwright. pois seu casamento terminara em divórcio, pouco
depois que passara a trabalhar no FMA. As responsabilidades do
serviço e as visitas ao velho Ben contribuíram para minorar suas
mágoas.
Durante esses encontros falavam sobre as crenças de cada um. procurando
influenciar-se mutuamente, ora com consciência disso, ora
sem se aperceberem, tal a afinidade que passou a existir entre
ambos. E foi Wainwright, embora só os dois soubessem disso, quem
contribuiu para persuadir Ben Rosselli a empregar seu prestígio e o
dinheiro do FMA na execução do projeto do Fórum East, construído
naquela área negligenciada da cidade onde Wainwright nascera e
passara a adolescência.
Assim como outros no Banco. Wainwright tinha suas lembranças
pessoais de Ben Rosselli e suas tristezas pessoais. Hoje. continuava
deprimido e após o expediente da manhã, quando permanecera a
maior parte do tempo em sua mesa, evitando as pessoas que não
tinha absoluta necessidade de ver. saiu para almoçar sozinho em
um pequeno restaurante. no outro extremo da cidade, onde, às
vezes, dava-se ao luxo de ir quando queria afastar-se dos problemas
do FMA.
Voltou a tempo para o encontro que tinha marcado com
Vandervoort.


Encontraram-se na divisão de cartões de crédito, no escritório central
do Banco. O sistema Keycharge de cartões de crédito fora uma
iniciativa pioneira do FMA e, agora, funcionava em conjunto com
um poderoso grupo de outros bancos, nos Estados Unidos, no
Canadá e em diversos países. Em volume de operações, Keycharge
estava entre as maiores organizações congêneres, como o
Bankamericard e Mastercharge. No FMA, a responsabilidade total
deste setor era de Vandervoort.
Quando Nolan chegou, Alex já estava no centro de autorizações do
Keycharge, observando as operações. O chefe da Segurança
aproximou-se.

— Nunca me canso de ver isso — disse Vandervoort. — E o melhor
show grátis da cidade.
Numa sala imensa, que mais parecia um auditório, com iluminação
indireta e à prova de som, cerca de 50 operadores, na maioria
mulheres, sentavam-se diante de uma verdadeira bateria de
aparelhos. Cada um deles compreendia um tubo de raios catódicos,
semelhante a uma tela de televisão, e mais um teclado na parte
inferior.
Nesta sala é que se decidia se o usuário desse tipo de cartão merecia
crédito ou não.
Quando um cartão Keycharge era apresentado em qualquer lugar,
para pagamento de serviços ou para compras, o negociante
aceitava-o automaticamente, desde que a importância não atingisse
um determinado limite que. em geral, variava entre 25 e 50 dólares.
Para uma despesa maior, fazia-se necessária uma autorização que
levava pouco mais de alguns segundos para ser obtida.
Os telefones funcionavam sem parar durante 24 horas por dia, sete
dias na semana. Os chamados vinham de todas as partes dos
Estados Unidos e do Canadá, enquanto uma série de máquinas telex
recebiam perguntas de mais de 30 países, alguns da órbita russa.
Assim como os construtores do Império Britânico davam vivas ao
"vermelho, branco e azul", os criadores do império econômico

Keycharge aplaudiam com igual fervor o "azul, verde e dourado" —
as cores internacionais do cartão Keycharge.
Tudo funcionava a jato. Onde quer que se encontrassem, os comerciantes
ligavam diretamente, pelas linhas WATS, para o centro
nervoso do escritório central do FMA. Automaticamente, cada
chamada era encaminhada ao operador que estivesse livre, o qual
logo indagava:

— Qual é o seu número de registro?
Obtida a resposta, o operador anotava os algarismos que. ao mesmo
tempo, apareciam na tela do raio catódico, indicando esta. a seguir,
a importância do crédito solicitado.
O operador pressionava uma tecla, encaminhando esses dados a um
computador que, no ato. assinalava "ACEITE" ou "NEGADO". Na
primeira hipótese, o usuário tinha crédito, e a compra estava
aprovada; na segunda hipótese, ele estava em falta e o crédito lhe
fora cortado. Como as regras para crédito eram flexíveis e os bancos
integrados no sistema tinham interesse em emprestar dinheiro, os
aceites eram em número muitíssimo maior que as negativas. O
operador dava a devida informação ao comerciante, enquanto o
computador memorizava a transação. Num dia normal, o número
de chamadas desse tipo era de 15 000.
Tanto Vandervoort quanto Wainwright usavam fones duplos para
ouvir as comunicações entre quem chamava e o operador que
respondia.
O chefe da Segurança cutucou Alex chamando sua atenção para
uma resposta do computador: "CARTÃO ROUBADO."
O operador, falando de modo calmo e pausado, como fora treinado,
respondeu:
— O cartão que acaba de ser apresentado é roubado. Se possível,
detenha quem o apresentou e chame a polícia local. Guarde o
cartão. Keycharge lhe dará uma recompensa de 30 dólares pela
devolução.
Seguiu-se uma conversa sussurrada e logo uma voz que respondia:

— O filho da mãe fugiu, mas o cartão ficou em meu poder. Será
emviado pelo correio.
O dono da loja sentia-se satisfeito com a perspectiva de ganhar um
dinheiro fácil: 30 dólares. Para a organização também era um bom
negócio, pois se o cartão continuasse a circular poderia ser usado
para quantias superiores ao valor da recompensa.
Wainwright tirou os fones dos ouvidos e Vandervoort fez o mesmo.
— Dá certo — disse o primeiro — quando recebemos a informação a
tempo de programar o computador. Por infelicidade, a maior parte
das fraudes ocorre antes que sejamos informados da perda ou roubo
de um cartão.
— Mas, mesmo assim, recebem sempre um aviso em caso de compras
excessivas?
— Recebemos. Quando são feitas dez despesas em um só dia com o
mesmo cartão, o computador logo nos informa.
Poucos usuários, ambos o sabiam, faziam mais de seis ou oito compras
diárias. Assim, um cartão podia ser considerado "PROVAVELMENTE
FRAUDULENTO", mesmo que seu real proprietário ainda
não se tivesse dado conta de que não o tinha mais em seu poder.
No entanto, apesar de todos os sistemas de aviso, um cartão
perdido ou roubado, quando usado com habilidade, poderia
representar 20 000 dólares em despesas fraudulentas durante,
digamos, uma semana, prazo em que, geralmente, os usuários
davam conhecimento à Keycharge da perda ou do furto.
Entre as compras preferidas pelos ladrões figuravam passagens
aéreas para locais distantes e caixas de bebidas finas, as quais eram
depois vendidas por preços abaixo dos da praça. Outro golpe era o
aluguel de um automóvel, de preferência caro, que. levado para
outra localidade, era dotado de placa e documentos falsos, sendo
então vendido ou exportado. A agência locadora nunca mais via
nem o carro nem o cliente. Outro golpe consistia na compra de jóias
na Europa, com um cartão fraudulento, respaldado por um
passaporte também falso. As jóias eram depois contrabandeadas e

vendidas nos Estados Unidos. Em todos os casos, Keycharge arcava
com os prejuízos.
Tanto Vandervoort quanto Wainwright sabiam que os ladrões
faziam testes iniciais para saber se o cartão de crédito em poder
deles podia ser usado, ou se era "frio". Um destes testes era tentar
pagar com o cartão, num bar ou restaurante, numa despesa de 25
dólares. O garçom consultava a "Lista de Avisos" emitida pela
companhia. Se o cartão era aceito e a conta paga com ele, o ladrão
saía às pressas para fazer uma série de despesas.

— É incrível como, de uns tempos para cá, temos perdido dinheiro
com fraudes — disse Nolan. — Muito acima do habitual; esta é uma
das razões por que precisamos conversar.
DirigÍFam-se para uma sala do sistema Keycharge onde poderiam
ficar à vontade. Wainwright fechou a porta. Os dois eram
completamente diferentes de físico: Vandervoort baixo, corpulento,
de uma gordura um tanto flácida, a tez clara; Wainwright alto,
esguio, cheio de músculos, preto. Suas personalidades também
diferiam, mas o relacionamento entre ambos era fácil.
— Trata-se de um concurso sem prêmio, — disse Nolan Wainwright
ao vice-presidente executivo. Colocou sobre a mesa da sala oito
cartões plásticos Keycharge. distribuindo-os como o faria um
jogador de pôquer dando as cartas.
— Quatro destes cartões são falsos — disse o chefe da Segurança. —
Será você capaz de identificar os falsos e os legítimos?
— Claro. E fácil. Os falsificadores sempre usam uma espécie de tipo
de máquina diferente que chama logo a atenção para o nome do
associado e... — Vandervoort silenciou ao fixar a vista na série de
cartões. — Por Deus! Estes não. O tipo é o mesmo em todos os
cartões.
— Quase o mesmo. Se você souber bem o que procurar, notará leves,
pequenas diferenças... com uma lupa.
Dividindo os cartões em dois grupos, mostrou as dessemelhanças
entre os falsos e os legítimos. Vandervoort disse então:

— Agora percebo as diferenças, embora não as visse sem a lupa. E
como reagem os cartões aos raios ultravioleta?
— Exatamente como os genuínos.
— Isso é que é ruim.
Vários meses antes, seguindo o exemplo da Americanexpress. todos
os cartões Keycharge autênticos tinham uma insígnia impressa em
tinta invisível que só ficava patente sob a ação dos raios ultravioleta.
A intenção era acelerar a identificação da legitimidade do cartão.
Mas, de alguma forma, esta medida de segurança também estava
sendo fraudada.
— Ruim, não... isto é péssimo — disse Wainwright. — E só lhe mostrei
alguns exemplares; tenho mais quatro dúzias, interceptadas
somente depois dos cartões terem sido usados com êxito tota! em
supermercados, restaurantes, companhias de aviação, mercearias,
etc. E todos esses cartões apresentam o que de melhor já vi em
matéria de falsificação.
— Alguma prisão?
— Até agora, nenhuma. Quando o falsário percebe que estamos fazendo
alguma consulta sobre o cartão, deixa depressa a loja,
companhia de aviação ou mercearia, como aconteceu com o caso
que acabamos de ouvir. — Moveu-se em direção da sala de
autorização. — Além do mais. quando por acaso prendemos
alguém, não quer dizer que estejamos perto da fonte produtora dos
cartões; em geral são vendidos e revendidos com o mais absoluto
cuidado para que não se possa seguir a trilha.
Alex pegou um dos cartões falsos e virou-o:
— O plástico parece também absolutamente igual.
— São feitos de plástico autêntico, também roubado. Por isto são tão
perfeitos. — O chefe de Segurança prosseguiu: — Julgamos estar a
caminho de localizar a fonte da falsificação. Há quatro meses, um
dos fornecedores foi assaltado. Os' ladrões entraram na sala onde
estava o estoque de folhas de plástico e levaram trezentas folhas.

Vandervoort assobiou. Uma folha, somente uma, era o suficiente
para a fabricação de 66 cartões Keycharge. Assim sendo, cerca de 20
000 cartões poderiam estar sendo confeccionados.
Wainwright disse:


— Também fiz as contas. Pense bem, Alex. Esses cartões podem vir
a representar um prejuízo para nós de dez milhões de dólares em
compras, antes que os tiremos de circulação. E ainda pode haver
outros cuja existência ignoramos. Talvez um número dez vezes
maior.
— Posso imaginar.
Alex Vandervoort andava pela sala enquanto procurava dar forma a
seus pensamentos.
Refletia: desde que os cartões de crédito haviam sido lançados,
todos os bancos que os emitiam acusaram pesadas perdas por
fraude. No início, roubavam sacos inteiros dos correios. Alguns
embarques por navio eram contrabandeados para futuro resgate. Os
bancos pagavam o resgate porque sabiam que os cartões seriam
distribuídos por todo o mundo — e usados Por ironia, em 1974, a
Pan American foi criticada pela imprensa e pelo público por ter
admitido que pagava a criminosos pelo resgate de grande
quantidade de passagens roubadas. O objetivo da companhia de
aviação era evitai' enormes prejuízos pelo uso indevido das
passagens. No entanto, na mesma ocasião, alguns dos maiores
bancos do país faziam, embora sem alarde, exatamente o mesmo
com os cartões.
Aos poucos, o roubo de cartões nos correios foi diminuindo, porque
os criminosos já haviam imaginado esquemas mais engenhosos. Um
deles era a falsificação. As primeiras falsificações eram
rudimentares, identificáveis com facilidade. Mas a qualidade foi-se
aprimorando até o ponto atual, em que só mesmo um técnico no
assunto podia, e com dificuldade, constatar a diferença.
Tão logo uma nova medida de segurança era descoberta a esperteza
dos criminosos achava uma saída. Por exemplo: um novo tipo de

cartão de crédito apresentava uma fotografia desfocada de seu
dono.
Aos olhos dos incautos, a fotografia não passava de um borrão
indistinguível, mas levada a um aparelho especial, tornava-se nítida
e o usuário era identificado. Até a esta altura o esquema parecia
bom. mas Alex não tinha a menor dúvida de que os falsários em
breve descobririam um jeito de imitar as fotografias desfocadas.
Periodicamente, efetuavam-se prisões de pessoas que usavam esses
cartões roubados ou falsificados, mas a proporção era pequena. O
problema maior, no que tocava aos bancos, era a falta de pessoal
encarregado de investigar e agir. Simplesmente não havia gente
suficiente.
Alex parou de andar.

— Quanto a estas falsificações mais recentes, você acha que há possibilidade
de uma espécie de ligação entre elas?
— Não só é possível, mas é quase certo que sim. Para que o trabalho
tenha uma qualidade tão elevada é necessário que seja feito por
uma organização completa. Com muito dinheiro por trás de tudo,
maquinaria, know-how especializado, sistema de distribuição. Além
disso, outras indicações levam a esta conclusão.
— Quais?
— Como você sabe — disse Wainwright — mantenho contato com
todo tipo de pessoal ligado a segurança. De uns tempos para cá tem
havido em todo o Centro-Oeste grande aumento de falsificações de
dinheiro, bem como de cartões de crédito, cheques de viagem,
nossos e de outros bancos. Houve também um aumento no roubo e
na falsificação de cheques e valores.
— E você acredita que tudo isso, inclusive os nossos prejuízos, tenham
alguma ligação?
— Digamos que é possível.
— E o que está fazendo a Segurança?
— Tudo que podemos. Cada cartão perdido ou roubado e usado
fraudulentamente é recuperado. Temos conseguido, cada mês,

aumentar o número de cartões recuperados; você tem sido
informado disso por meus relatórios. Mas uma coisa dessas exige
uma investigação meticulosa, em escala ampla, abrangendo tudo, e
não tenho nem pessoal nem orçamento para tanto.
Alex Vandervoort sorriu:

— Sabia que chegaríamos ao assunto do orçamento.
Fazia uma idéia do que viria a seguir, pois conhecia bem os problemas
que Nolan enfrentava em seu trabalho.
Wainwright, vice-presidente do FMA, era encarregado de todos os
assuntos relativos à segurança na sede e nas agências. A divisão de
segurança do cartão de crédito era apenas uma de suas múltiplas
responsabilidades. Nos últimos anos, a Segurança do Banco havia
evoluído muito; mas suas verbas, embora aumentadas, ainda eram
insuficientes. Toda a administração tinha conhecimento disso. Mas,
como a Segurança era um setor que não trazia renda alguma ao
Banco, sua posição na lista de prioridades para verbas adicionais
não era das primeiras.


— Você deve ter propostas e dados, suponho — disse Alex.
Wainwright imediatamente pegou numa pasta parda que trazia
consigo:
— Está tudo aqui. A necessidade mais urgente é de mais dois investigadores
em tempo integral para a divisão de cartões de crédito.
Também precisaria de um agente secreto cuja função seria a de
localizar a fonte desses cartões falsos e de descobrir onde se dá o
derrame dentro do banco.
Vandervoort pareceu surpreso:
— Você acha que pode arranjar alguém? Desta vez Wainwright
sorriu:
— Bem, a gente não começa pondo anúncio nos "classificados" Mas
estou disposto a tentar.
— Pensarei seriamente no que acaba de me dizer e farei o possível.
Mas é tudo que está a meu alcance prometer. Posso ficar com estes
cartões?

O chefe da Segurança concordou.

— Tem mais alguma coisa?
— Apenas isto: não creio que ninguém aqui dentro, nem mesmo
você, Alex, esteja levando a sério o problema da fraude nos cartões.
Satisfazemo-nos com o fato de que temos conseguido manter os
prejuízos dentro do limite de três quartos de um por cento do
negócio global, mas o negócio, em si, desenvolveu-se de modo
quase incrível, ao passo que a percentagem se manteve firme. Pelo
que sei, espera-se que o faturamento do cartão Keycharge no ano
que vem atinja três bilhões de dólares.
— É o que esperamos.
— Na mesma proporção, os prejuízos por fraude podem chegar a
mais de 22 milhões de dólares.
Com secura, Vandervoort retrucou:
— Preferimos falar sempre em termos percentuais. Desta forma, os
números não parecem tão elevados e os diretores não chegam a
ficar alarmados.
— Uma atitude bastante cínica.
— É, acho que sim.
No entanto, raciocinou Alex, era uma atitude que os bancos —
todos os bancos — tomavam. Eles deliberadamente aceitavam os
prejuízos com os cartões como se isso fizesse parte do custo do
negócio. Se qualquer outro departamento apresentasse um prejuízo
de sete e meio milhões de dólares em um só ano, o mundo viria
abaixo. Mas quanto aos cartões de crédito, "três quartos de um por
cento" por fraude eram aceitos ou convenientemente ignorados. A
alternativa — uma luta aberta contra o crime — custaria muito
mais. Poder-se-ia dizer, é claro, que a atitude dos banqueiros não
tinha defesa porque, no final, eram os próprios clientes, possuidores
de cartões de crédito, que pagavam pelas fraudes, através do
aumento dos custos. Mas. do ponto de vista financeiro, fazia
sentido.

— Em certas ocasiões — disse Alex — o sistema de cartões de crédito
fica atravessado na minha garganta. Mas tenho uma norma de
vida: vivo dentro dos limites daquilo que acho que posso mudar, e
não daquilo que gostaria de poder mudar. Esta mesma norma
aplica-se no que se refere a prioridades orçamentárias. — Pegou na
pasta parda de Wainwright.
— Deixe isso comigo. Já lhe prometi que farei o possível.
Alex Vandervoort foi-se embora, enquanto Nolan Wainwright recebia
um recado. O chefe da Segurança deveria entrar imediatamente
êm contato com a Sra. D'Orsey.
7


— Já informei ao FBI — disse Nolan Wainwright a Edwina. — Vão
mandar dois agentes especializados amanhã.
— Por que não hoje? Ele sorriu:
— Não temos nenhum cadáver. E não houve nenhum tiro. Além
disso, eles têm um problema... falta daquilo que chamamos de mãode-
obra.
— Parece ser um problema geral.
— Então libero o pessoal, para que possam ir para casa? — perguntou
Miles Eastin.
Wainwright respondeu:
— Todos, menos a moça. Gostaria de falar com ela mais uma vez. Já
era noite e fazia duas horas que Wainwright atendera o chamado
de Edwina e tomara a si a responsabilidade pela investigação do
dinheiro roubado. Desde então, interrogara todos: a caixa Juanita

Núnez, Edwina D'Orsey. Tottenhoe e seu assistente, o jovem Miles
Eastin.
Falara também com outros caixas que haviam trabalhado perto de
Juanita.
Não desejando ser o centro das atenções, Wainwright resolveu usar
a sala de conferências, nos fundos do Banco. Lá se encontrava agora
em companhia de Edwina D'Orsey e Miles Eastin.
Até o momento, apenas uma coisa estava clara: tinha havido um
roubo e. de acordo com a lei federal, o FBI deveria ser chamado. A
lei.

em certas ocasiões, não era aplicada ao pé-da-letra, como
Wainwright sabia. Tanto o FMA como os demais bancos rotulavam
roubos em dinheiro de "prejuízo injustificável" e. desta maneira,
incidentes tais podiam ser resolvidos internamente, abafados,
evitando uma publicidade desfavorável. Assim, se um empregado
do banco era suspeito de roubo, poderia ser apenas demitido, o que
era feito de público, mas sob uma razão falsa, que servia de capa à
verdade. E como os culpados não se inclinavam a falar, um número
surpreendente de roubos era mantido sob sigilo, mesmo dentro do
próprio banco.
Mas a importância do caso presente — supondo-se que de fato tivesse
sido um roubo — era por demais vultosa para ser escondida
ou ignorada.
De nada adiantava aguardar, esperando por maiores informações.
Wainwright sabia que o FBI não gostava de ser chamado dias
depois do incidente. Até que os agentes do FBI chegassem, ele
pretendia agir por conta própria.
Quando Edwina e Miles Eastin saíam da sala, o assistente de operações
disse:

— Mandarei a Sra. Núhez imediatamente.
Minutos depois a figura pequena e frágil de Juanita entrava na sala.
— Entre — disse Nolan Wainwright. — Feche a porta e sente-se.

Fez questão de que sua voz soasse de maneira absolutamente
profissional. O instinto lhe dizia que qualquer tentativa de
amabilidade não enganaria a moça.

— Quero ouvir toda sua história outra vez, palavra por palavra.
Juanita Núnez parecia mal-humorada e desafiadora, como antes,
mas agora traços de fadiga apareciam em seu rosto. Ela respondeu:
— Já contei tudo três vezes. Tudo!
— Mas talvez tenha esquecido algum detalhe.
— Não esqueci absolutamente nada!
— Bem, então esta será a quarta vez que repetirá tudo que se passou;
e quando chegar o FBI, será a quinta vez, e depois talvez ainda
haja uma sexta.
Ele fixou a moça e, embora não alterasse o tom da voz, manteve-a
firme. Se fosse da polícia, teria de alertá-la a respeito de seus
direitos; mas não era, e não o faria. As vezes, numa situação como
esta, a segurança particular tinha certas vantagens sobre a polícia.
— Sei o que está pensando — disse ela. — Está pensando que talvez
desta vez eu diga algo diferente, provando assim que estive
mentindo.
— E você está mentindo?
— Não!
— Então, por que se preocupar? Sua voz tremeu:
— Porque estou cansada e gostaria de ir embora.
— Também eu gostaria. E se não fosse pelos 6 000 dólares... que
você admite que estavam em seu poder antes... já teria encerrado
meu expediente e ido para casa. Mas o dinheiro sumiu e gostaríamos
de encontrá-lo. Por isto vá logo dizendo o que se passou, mais uma
vez... desde o momento em que se deu conta de que algo estava
errado.
— Foi. como lhe disse... vinte minutos após o almoço.
Ele percebeu que. em sua presença, a moça sentia-se mais à vontade
que com os outros. Talvez, pelo tato de ser negro e ela portoriquenha,
pensasse que pudessem tornar-se aliados ou. pelo menos,

ele pudesse tratá-la com menor rigor. O que Juanita ignorava era
que, em seu trabalho. Wainwright não via cor nem credo. Nem
tampouco levaria em consideração os problemas pessoais da moça.
Edwina D'Orsey mencionara-os mas. segundo Nolan Wainwright,
nada justificava roubo ou desonestidade.
A moça tinha razão, é claro, quando dizia que ele queria pegar alguma
falha em sua história. De fato. isso podia realmente acontecer,
apesar da maneira cuidadosa com que repetia suas palavras. E
queixava-se de exaustão. Como investigador experimentado.
Wainwright sabia que as pessoas culpadas, quando cansadas,
ficavam sujeitas a cometer enganos durante os interrogatórios; um
pequeno engano aqui. outro acolá e. de repente, a pessoa via-se
presa numa teia de mentiras.
Imaginando se isso ocorreria com ela. Nolan prosseguiu no interrogatório.
Durante 45 minutos Juanita repetiu sua versão dos fatos de maneira
idêntica às anteriores. Apesar de desapontado por nada ter
descoberto de novo. Nolan não estava muito convencido da firmeza
da moça. Sua experiência na polícia levava-o a concluir que essa
firmeza podia ter duas interpretações: ou ela falava a verdade, ou
havia ensaiado sua história com tanto cuidado que a interpretava
com perfeição. Esta última hipótese parecia a mais provável, porque
as pessoas de fato inocentes em geral alteram alguma coisa cada vez
que recontam um caso. Era um sintoma no qual os detetives sempre
prestavam atenção.

Por fim, Wainwright disse:

— Está bem; por hora, é tudo. Amanhã você fará um teste com o
detetor de mentiras.
Ele dissera isso naturalmente, embora esperando uma reação qualquer.
O que, na verdade, não esperava era que a reação fosse tão
forte e tão explosiva.
A moça enrubesceu. Levantou-se da cadeira.


— Não o farei! Não farei esse teste!
— E por que não?
— Porque considero um insulto!
— Não é insulto algum. Muita gente passa por este teste. Se você é
inocente, a máquina acusará.
—Não confio nesta máquina. Nem no senhor. Basta mi palabra! Ele
não entendia espanhol, mas podia sentir, pelo tom de sua voz,
que era um abuso qualquer:
— Você não tem razão alguma para desconfiar de mim. Tudo que
me interessa é saber a verdade.
— Já lhe contei a verdade! Mas todos vocês acreditam que roubei o
dinheiro. Não adianta mais dizer que não fui eu.
Wainwright levantou-se. Abriu a porta da pequena sala para que a
moça saísse.
— Sugiro — disse — que entre hoje e amanhã a senhora reconsidere
sua atitude em relação ao teste. Recusando-se a aceitá-lo, as
aparências lhe serão ainda mais desfavoráveis.
Ela olhou-o, decidida:
— Eu não sou obrigada a fazer o teste, sou?
— Não.
— Então não o farei.
Saiu da sala com seus passos curtos e rápidos. Nolan
também saiu a seguir.
A maior parte do pessoal do Banco já devia estar em casa, embora
alguns funcionários permanecessem em suas mesas. Lá fora já era
noite, uma escura noite de outono.
Juanita dirigiu-se à sala onde guardava seus pertences, e voltou. Ignorou
ostensivamente a presença de Nolan. Miles Eastin que a
esperava de chave na mão, abriu a porta principal.
— Juanita — disse ele — que posso fazer por você? Dar-lhe uma
carona para casa, talvez?
Ela recusou, com um aceno. E sem dizer nada, saiu.

Nolan Wainwright, da janela, viu-a dirigir-se ao ponto de ônibus,
em frente. Se contasse com um corpo maior de auxiliares, pensou,
poderia mandar segui-la, embora duvidasse que isso levasse a
alguma coisa. A Sra. Núnez era bastante esperta para não se deixar
trair, fosse pela entrega do dinheiro a alguém, em público, fosse por
guardá-lo em algum lugar previsível.
Nolan estava absolutamente convencido de que a moça não levava

o dinheiro consigo. Era esperta demais para correr tal risco; e a
importância muito volumosa para passar despercebida. Ele a havia
estudado durante a entrevista e observava que suas roupas eram
demasiado juntas para que pudessem ocultar um volume estranho;
a bolsa era pequena e não levava nenhum embrulho ou sacola.
Wainwright convencera-se de que Juanita tinha um cúmplice.
Estava quase certo de que ela era culpada. Sua recusa em submeter-
se ao teste do detetor de mentiras, somada a outros detalhes
significativos davam-lhe esta convicção. Rememorando a explosão
emocional da moça poucos minutos atrás, começou a suspeitar de
que tudo houvesse sido planejado e ensaiado. Todo mundo no
Banco sabia que, em casos de suspeita de roubo, os empregados
eram submetidos ao detetor de mentiras; portanto, Juanita não
devia desconhecer o fato e para reagir da maneira como reagiu, era
porque, sabendo que o assunto viria à tona, ensaiara tal reação.
Lembrando-se do modo pelo qual ela o olhara no início da
entrevista, com simpatia, dando-lhe a impressão de querer tê-lo
como aliado, Wainwright foi tomado por uma onda de rancor.
Sentiu que passara a desejar com intensidade que no dia seguinte o
FBI fosse bastante rigoroso, a ponto de perturbá-la. Mas não seria
fácil; ela era dura na queda.
Miles Eastin voltara a fechar a porta principal a chave e estava de
volta.
— Bem — disse alegremente — por hoje chega, não? Vamos para
casa.
O chefe da segurança concordou:

— Foi um dia e tanto. Vamos embora.
Eastin parecia querer dizer algo; mas mudou de idéia.
Wainwright perguntou-lhe:
— Você ia dizer alguma coisa? Eastin hesitou, depois disse:
— Bem, sim, é algo que não mencionei antes a ninguém, porque
poderia ser apenas uma impressão pessoal.
— Mas tem alguma relação com o dinheiro roubado?
— Talvez tenha.
— Então você deve dizer, impressão ou não.
— Está certo. Hoje a Sra. D'Orsey lhe disse que Juanita Núnez é
casada. Seu marido abandonou-a. Largou-a com a criança.
— Eu sei.
— Enquanto ainda viviam juntos, ele vinha ao Banco, vez por outra.
Falei com ele várias vezes. Lembro-me bem; chama-se Carlos.
— E daí?
— Creio que o vi no Banco, hoje.
— Tem certeza?
— Quase diria que sim, embora não possa jurar. Apenas sei que vi
alguém que julguei ser ele, depois tirei isso da cabeça. Estava
ocupado demais e não havia razão para ficar pensando no assunto...
pelo menos até agora há pouco.
— Lembra-se a que horas o viu?
— No meio da manhã.
— Este homem que você acredita possa ter sido o marido de Juanita...
você o viu dirigir-se ao guiché onde ela trabalha?
— Não. — O rosto jovem de Eastin parecia meio perplexo. — Como
disse, não dei muita atenção ao fato. Mas, se era mesmo ele, não
estava longe de Juanita.
— E isto é tudo?
— E tudo. Lamento que não possa acrescentar mais nada.
— Fez bem em me contar. Pode vir a ser um dado importante.
Se Eastin estivesse certo, pensou Wainwright, a presença do marido
de Juanita poderia ter alguma relação com sua teoria de um

cúmplice externo. Talvez a moça e seu marido estivessem juntos
outra vez ou mantivessem alguma espécie de relacionamento.
Talvez Juanita tivesse passado o dinheiro ao marido e este o levasse,
para mais tarde repartirem. Era uma possibilidade que o FBI tinha
que estudar e esmiuçar.

— Pulando de um extremo a outro — disse Eastin — todo mundo
do Banco está falando a propósito do Sr. Rosselli... soubemos de sua
declaração ontem, de que se achava muito doente. Está todo mundo
triste com a notícia.
Foi uma lembrança amarga para Wainwright, e olhando para
Eastin, sempre tão jovial e alegre, viu tristeza em seus olhos.
Wainwright deu-se conta de que a investigação lhe havia tirado da
cabeça qualquer pensamento sobre Ben. Agora, pensando nisto,
revoltava-se.
Disse algo inaudível a Eastin, deu-lhe boa noite e entrou no túnel,
fazendo uso de sua chave para mais uma vez entrar na sede do FM
A.
8


A figura de Juanita Núnez, tão pequena, fazia um tremendo contraste
com o bloco de concreto maciço do FMA e a imensa Praça
Rosselli, enquanto ela esperava o ônibus.
Tinha visto o chefe de segurança a observá-la da janela do Banco, e
sentiu-se aliviada quando aquele rosto desapareceu — embora
soubesse que seu alívio era apenas temporário e tudo pelo que
havia passado hoje se repetiria no dia seguinte, de maneira muito
pior.


Um vento frio penetrava através do seu casaco fino e ela tiritava.
Perdera o ônibus do horário regular e pedia a Deus que o próximo
viesse logo.
Juanita sabia que tiritava principalmente de medo, porque no momento
sentia mais medo, mais terror do que jamais sentira em toda
a sua vida.
Estava amedrontada e perplexa.
Perplexa, porque não tinha idéia de como o dinheiro havia sumido.
Sabia que não o roubara, nem o pagara a alguém por engano. Fosse
como fosse, sabia que não era culpada.
O que a preocupava era que ninguém jamais acreditaria nela.
Em outras circunstâncias, pensava, talvez ela própria não
acreditasse em si mesma.
Como poderiam sumir 6 000 dólares? Era impossível! E, no entanto,
havia acontecido.
Durante toda a tarde, recapitulara cada minuto do dia para ver se
encontrava explicação. Mas em vão. Rememorou cada transação
feita durante a manhã e o início da tarde, recorrendo à memória que
sabia ser muito boa. mas não encontrou solução; nada fazia sentido.
Tinha certeza também de que havia chaveado a sua caixa antes de
levá-la ao cofre-forte ao sair para o almoço e que estava fechada
quando voltou. Quanto ao segredo, que ela própria escolhera,
jamais o confidenciara a quem quer que fosse, nem mesmo o
anotara, guardando-o apenas na memória.
De certa forma, era essa memória excelente que lhe dificultara as
coisas. Juanita sabia que tanto a Sra. D'Orsey, como o Sr. Tottenhoe
e o Sr. Miles não haviam acreditado nela, muito embora este último
fosse mais amável que os outros. Ninguém levara a sério quando
afirmara que, às duas horas da tarde, sabia qual a importância exata
que faltava: 6 000 dólares. Julgavam impossível que ela pudesse
saber isso com tamanha exatidão.
Mas ela sabia. Como sempre soubera quanto tinha em caixa, mas era
difícil explicar aos demais como e por quê.


Era como se ela tivesse um registro na cabeça. Nada mais; isso não
lhe custava qualquer esforço mental. Tinha apenas uma tremenda
facilidade para aritmética. Desde quando podia lembrar-se, soma,
subtração, multiplicação e divisão lhe pareciam tão simples e
naturais como respirar.
Calculava automaticamente, à medida que recebia ou pagava aos
clientes. E com um simples olhar para sua caixa-gaveta, podia dizer
se o dinheiro estava certo, com as diversas notas em seus
determinados lugares, e em número suficiente. Mesmo com as
moedas era assim; embora ela não pudesse dizer o total exato, podia
fazer um cálculo aproximado com um simples olhar. Vez por outra,
ao final de um dia de grande movimento, quando conferia sua
caixa, verificava que o montante que calculara diferençava da
importância real apenas por uns poucos dólares, nunca mais.
De onde lhe vinha essa habilidade? Não fazia idéia.
Ela nunca tirara notas excelentes na escola. Durante sua educação
ginasial em Nova Iorque, poucas vezes conseguira mais que a
média necessária, na maioria das matérias. Mesmo em matemática,
não fora excelente aluna: apenas tinha uma incrível habilidade para
cálculos, uma velocidade de pensamento extraordinária e uma
grande facilidade para memorizar números.
Afinai o ônibus chegou. Juntamente com outros que esperavam,
Juanita entrou. Não havia assento disponível e os passageiros em pe
se apertavam'. Ela conseguiu segurar uma alça e continuou
pensando, pensando em cada minuto do dia.

Como seria o dia de amanhã? Miles lhe havia dito que os agentes do
FBI estariam presentes. O simples pensar neles deixava-a gelada e
seu rosto ficava tenso de ansiedade, assumia aquela expressão que,
de maneira errada, Edwina D'Orsey e Nolan Wainwright haviam
interpretado como hostilidade.

Continuaria a falar o mínimo possível, como havia feito, tão logo
percebera que ninguém acreditava nela.


Quanto à máquina, o detetor de mentiras, não se submeteria a ele.
Não tinha idéia como tal máquina trabalhava, mas quando
ninguém, absolutamente ninguém, podia compreender, acreditar,
ou ajudá-la, por que uma máquina, ainda mais do Banco — seria
diferente?
A escola maternal onde deixara Estela, pela manhã, distava apenas
três quarteirões do ponto final do ônibus. Juanita correu esta
distância, sabendo que estava atrasada.
A garotinha precipitou-se a seu encontro quando ela entrou na salinha
de brinquedos da escola, localizada no porão de uma casa
particular. A casa, como outras naquela área, era antiga e
maltratada, mas as salas de aula, limpas e alegres, tinham levado a
que preferisse esta a outras escolas, apesar do preço ser maior e
sacrificar demasiado seu orçamento.
Estela estava excitada e alegre, como sempre.

— Mamãe! Mamãe! Veja o que eu pintei hoje! E um trem. E isto aqui
dentro é um homem.
Era uma criança miúda, mesmo para seus três anos, morena como
Juanita, com os mesmos olhos grandes e expressivos refletindo
encantamento em cada nova descoberta, e cada dia descobrindo
uma coisa nova.
Juanita abraçou-a dizendo:
— Estelinha querida, mi amorcita.
O silêncio nas salas de aula, na de recreio e em toda a escola indicava
que as demais crianças já tinham ido embora.
A Srta. Ferroe, dona e administradora da escola, chegou e, arqueando
as sobrancelhas, olhava para o relógio.
— Sra. Núnez, como um favor especial concordei que Estela ficasse
na escola até um pouco depois das outras, mas não tão mais tarde...
— Lamento muito, Srta. Ferroe. Mas é que houve um imprevisto no
Banco que me reteve.
— Também tenho minhas responsabilidades. Os pais das outras
crianças sempre observam o horário de encerramento da escola.

— Não acontecerá outra vez, prometo.
— Muito bem. Mas já que está aqui, Sra. Núnez, aproveito para
lembrar-lhe que a conta do mês passado ainda não foi paga.
— Pagarei sexta-feira, quando receber meu salário.
— Lamento ter que mencionar isto, a Senhora compreende, não?
Estela é uma menininha tão doce! Todos nós gostamos muito dela.
Mas tenho contas a pagar...
— Claro que compreendo. Sexta-feira, com certeza, prometo.
— A Senhora acaba de fazer duas promessas, Sra. Núnez.
— Sim, eu sei.
— Então boa noite. E boa noite, Estela querida.
A Srta. Ferroe, apesar de sua aparência de mulher dura, inflexível,
administrava uma excelente escola maternal, onde Estela se sentia
muito feliz. O dinheiro que devia à escola, decidiu Juanita, teria que
vir do seu salário desta semana. Ela daria um jeito, até o pagamento
da próxima semana, para as outras despesas. Qual, não sabia. Seu
salário como caixa era de 98 dólares semanais. Após as deduções de
taxas e impostos, sobravam-lhe 83 dólares líquidos. Desse dinheiro
tinha que comprar alimentos para ambas, pagar a escola de Estela e
o aluguel do apartamento minúsculo em que viviam, no Fórum
East; e ainda teria de pagar à companhia de crédito e financiamento,
com a qual já estava em atraso há um mês. Antes que Carlos a
tivesse abandonado, simplesmente saindo de casa e desaparecendo,
havia um ano, Juanita tinha sido tola o suficiente para assinar
papéis junto com o marido. Ele comprara ternos, um carro usado,
uma televisão a cores, claro que levando tudo consigo quando se
foi. Jaunita, no entanto, ainda estava pagando as prestações que
pareciam intermináveis.
Teria que procurar o crediário, pensou, a fim de propor-lhes prestações
menores. Sem dúvida, seriam duros, como haviam sido antes,
mas teria que enfrentá-los outra vez.
No caminho para casa, Juanita segurava numa das mãos a mão de
Estela e, na outra, o desenho que estava fizera, cuidadosamente

enrolado. Dentro em pouco, no apartamento, jantariam e, a seguir,
como de hábito, brincariam juntas. Mas Juanita achava que seria
muito difícil sorrir esta noite.
Seu terror parecia crescer à medida que pensava pela primeira vez
na possibilidade de perder o emprego. E havia grande possibilidade
de perdê-lo. Sabia também que seria difícil encontrar emprego em
outra parte. Nenhum outro banco a admitiria e qualquer outro
empregador procuraria saber onde trabalhara antes. Sabedor da sua
demissão, da perda dp dinheiro, não a aceitaria.


E sem emprego, que poderia fazer? Como manter Estela?
Num impulso, Juanita abraçou a filha, apertando-a contra si.
E rezou para que no dia seguinte alguém acreditasse nela, alguém
reconhecesse a verdade.


Alguém, alguém.

Mas quem?

9


Ainda no expediente da tarde, ao retornar da reunião com Nolan
Wainwright, Alex pôs-se a andar de um lado para outro em seu
escritório, tentando colocar as coisas nos devidos lugares, situar os
acontecimentos recentes em sua perspectiva real. A revelação feita
no dia anterior por Ben Rosselli levava-o a refleiir bastante sobre a
situação dela resultante, no que se referia ao Banco. Nos próximos
meses, muita coisa iria ocorrer em sua vida pessoal.
Caminhar de um lado para outro. 12 passos para um lado 12 para
outro, já era um hábito antigo. Enquanto assim se movimentava,
parou uma ou duas vezes, voltando a examinar os cartões de
crédito Keycharge falsificados que o chefe da Segurança lhe


confiara. O crédito e os cartões de crédito eram uma parte de suas
preocupações; não apenas os cartões falsificados, mas também os
legítimos.
Espalhados em cima de sua mesa havia uma série de projetos de
anúncios, realizados pela Agência de Propaganda Austin, com a
finalidade de estimular os possuidores de cartões de crédito
Keycharge a fazerem maior uso de seus créditos e dos respectivos
cartões.
Um dos anúncios dizia:
POR QUE SE PREOCUPAR COM DINHEIRO? USE SEU CARTÃO
DE CRÉDITO KEYCHARGE.

E
DEIXE QUE NÓS NOS PREOCUPEMOS POR VOCÊ!
Outro anúncio dizia:


AS CONTAS NÃO PARECEM TÃO PESADAS
QUANDO VOCÊ DIZ
'PONHA NA MINHA CONTA NO KEYCHARGE!"
Um terceiro anúncio:
POR QUE ESPERAR?
VOCÊ PODE REALIZAR HOJE SEU SONHO
DE AMANHÃ! USE SEU CARTÃO DE CRÉDITO KEYCHARGE —
AGORA!


Havia mais cerca de meia dúzia de textos, no gênero.
Alex Vandervoort não estava de acordo com tais anúncios. A propaganda,
já aprovada pela divisão Keycharge do Banco lhe fora
enviada apenas para seu simples conhecimento. O entendimento
fora feito pela diretoria há várias semanas como meio de aumentar a
rentabilidade do Keycharge. Como os demais cartões de crédito,
Keycharge tinha que arcar com os prejuízos nos primeiros anos de
lançamento.
Mas Alex pensava:



— Teria a diretoria realmente pretendido, de fato. fazer uma campanha
promocional assim tão agressiva?
Afinal, juntou os projetos dos anúncios e guardou-os na pasta em
que lhe haviam sido trazidos. À noite, em casa, reconsideraria a
questão e
ouviria uma outra opinião que sabia seria ponderável: a de Margot.
Margot.
Os pensamentos de Alex, no momento, misturavam as coisas: Margot
e a declaração de Ben Rosselli na véspera. Tudo lhe trazia a lembrança
da fragilidade da vida; a brevidade do tempo que restava; o
inevitável fim. Tinha ficado comovido e entristecido por Ben; mas.
sem o querer, Ben levara-o a se perguntar uma vez mais: deveria
ele, Alex, recomeçar uma vida nova com Margot? Ou deveria
esperar? Mas esperar o quê?
Célia?
Também já formulara esta pergunta uma centena de vezes. Alex
olhava para o outro lado da cidade onde sabia que Célia se
encontrava. Começou a pensar como estaria ela. Havia uma
maneira muito simples de saber. Voltou à sua mesa e discou um
número que sabia de cor. Uma voz feminina respondeu:
— Centro de Terapia. Alex identificou-se e disse:
— Gostaria de falar com o Dr. McCartney.
Após um ou dois minutos uma voz masculina, firme, perguntou:
— É você, Alex?
— Sim, estou no escritório. E de repente tive vontade de saber como
está minha esposa.
— É incrível a coincidência: pretendia telefonar para você hoje e
sugerir que viesse visitá-la.
— A última vez que conversamos você disse que eu não deveria vêla.
O psiquiatra corrigiu-o com delicadeza:

— Disse-lhe que as visitas era desaconselháveis durante algum
tempo. Suas primeiras visitas, você se lembra, pareceram perturbar
demasiado sua mulher em vez de ajudá-la.
— De fato, lembro-me. — Alex hesitou, mas depois perguntou: —
Alguma alteração?
— Sim, há uma alteração. Estimaria que fosse para melhor. Tantas
alterações já tinham ocorrido que Alex já não se surpreendia.
— Que espécie de alteração?
— Ela está piorando a cada dia. Sua fuga da realidade é quase total.
Por isso, creio que uma visita sua talvez lhe faça algum bem. — O
psiquiatra corrigiu-se. — Pelo menos não lhe faria mal.
— Está bem. Passo aí à tardinha.
— A qualquer hora, Alex; e não deixe de me procurar quando vier.
Como sabe, as horas de visita não são preestabelecidas aqui e as
regras são mínimas.
— Sim, eu sei.
A ausência de formalidade, pensou Alex enquanto desligava o telefone,
fora uma das razões pelas quais escolhera o Centro de Terapia
quando teve que enfrentar o desespero de uma decisão sobre Célia,
há cerca de quatro anos. A atmosfera era deliberadamente não-
profissional: as enfermeiras não usavam uniformes, os pacientes
andavam em liberdade e eram encorajados a tomar suas próprias
decisões. Salvo raras exceções, amigos e familiares eram bem-vindos
a qualquer hora. Até o nome "Centro de Terapia" havia sido
escolhido de propósito, para fugir do terrível "hospital de doenças
mentais". Outra razão fora o fato de o Dr. TimothyMcCartney,
jovem brilhante e inovador, chefiar o grupo de especialistas que
alcançara curas em casos de doenças mentais onde os tratamentos
convencionais haviam malogrado.
O Centro era pequeno. O número de pacientes jamais ultrapassava
de 150 e, em comparação, o quadro de funcionários era numeroso.
De certo modo, assemelhava-se a uma escola com pequenas classes
onde os estudantes recebiam uma atenção pessoal que não

receberiam em nenhum outro lugar. O edifício moderno e seus
espaçosos e belos jardins eram tão agradáveis à vista quanto o
dinheiro e a imaginação poderiam conseguir.
Tratava-se de uma clínica particular, caríssima, mas Alex estava determinado,
acontecesse o que acontecesse, a dar a Célia o melhor
tratamento possível. Era, pensava ele, o mínimo que podia fazer.
O resto da tarde ocupou-se com os assuntos do Banco. Pouco depois
das seis deixou a sede do FMA, dando ao motorista o endereço do
Centro de Terapia e, no trajeto, leu os jornais vespertinos. A
limusine brigava com o tráfego.
Ter à sua disposição um veículo desse tipo, com motorista, de propriedade
do Banco, a qualquer hora, era prerrogativa da função de
vice-presidente executivo e Alex gostava disso.
O Centro de Terapia assemelhava-se externamente a uma grande
residência, sem qualquer indício de que se tratasse de um hospital.
Uma loura atraente, usando um vestido estampado, recebeu-o. Ele a
identificou como enfermeira apenas pela pequena insígnia que
trazia no ombro esquerdo. Esta era a única distinção feita entre
funcionários e pacientes.

— O doutor nos disse que o senhor estava a caminho, Sr. Vandervoort.
Vou levá-lo à presença de sua esposa.
Ele acompanhou-a pelo alegre corredor onde predominavam as
cores amarelo e verde. Em nichos nas paredes, lindos arranjos de
flores naturais.
— Pelo que compreendi — disse Alex — minha mulher não tem
passado muito bem.
— É, de fato.
A enfermeira dirigiu-lhe um olhar enviesado, no qual ele sentiu a
piedade. Piedade, pena, mas de quem? Pararam em frente a uma
porta.
— Sua esposa está no quarto, Sr. Vandervoort. Teve um dia péssimo.
Tente levar isto em consideração caso ela... — A enfermeira
não terminou a frase, apenas tocou-lhe o braço, de leve.

O Centro de Terapia punha os pacientes em quartos individuais ou
partilhados com outro, dependendo do efeito que a companhia
pudesse exercer.
Quando Célia foi admitida, partilhava um quarto com outra
paciente, mas não deu certo; agora tinha um alojamento individual.
Embora pequeno, seu quarto era aconchegante, agradável: poltrona,
mesa de jogo e estante para livros. Quadros impressionistas
enfeitavam as paredes.


— Sra. Vandervoort — disse a enfermeira suavemente — seu
marido está aqui para vê-la.
Nada indicava que a doente tivesse sequer ouvido, pois não fez nenhum
movimento, não deu nenhuma resposta; permaneceu estática
e muda.
Fazia um mês e meio desde que Alex a visitara pela última vez e
conquanto estivesse preparado para um agravamento da doença, o
aspecto de Célia gelou-lhe o sangue nas veias.
Ela estava sentada, se é que se podia definir assim, no divã, numa
postura enviesada, como se quisesse evitar a visão da porta. Tinha
os ombros caídos, a cabeça tombada, os braços cruzados na frente,
cada uma de suas mãos apertando o ombro oposto. O corpo
também estava como que curvado sobre si mesmo, e as pernas
dobradas com os joelhos juntos. Permanecia absolutamente imóvel.
Alex aproximou-se e tocou-lhe de leve em um dos ombros.
— Alô, Célia. Sou eu ... Alex. Estive pensando em você e resolvi
visitá-la.
Numa voz baixa, sem nenhuma entonação, ela respondeu — Sim. —
Mas não se mexeu.
Alex usou um pouco mais de força ao tocar-lhe o ombro:
— Você não vai se virar para olhar para mim? Então poderemos nos
sentar e bater um papinho.
Como única resposta ele percebeu que uma espécie de rigidez tomava
conta do corpo de Célia.

Sua pele, Alex viu, estava manchada e o belo cabeio, mal penteado.
Mesmo assim, sua beleza frágil, gentil, etérea, não havia de todo
desaparecido, apesar de tudo indicar que dentro em pouco já nada
mais restaria.

— Ela está nesta posição há muito tempo? — indagou à enfermeira.
— O dia todo de hoje, parte de ontem e outros dias mais. — E a
enfermeira acrescentou: — creio que se sente mais confortável nessa
posição, de modo que é melhor fazer de conta que não notou nada e
apenas sentar-se e conversar.
Alex concordou. Enquanto se dirigia para a poltrona, a enfermeira
saiu, fechando a porta atrás de si, sem barulho.
— Fui ao bale, na semana passada, Célia — disse Alex. — Levavam
Copélia Natália Makarova como primeira dançarina e Ivan Nagy no
papel de Franz. Estavam magníficos juntos e, claro, a música era
maravilhosa. Lembrei-me de quanto você gostava de Copélia.
Lembra-se daquela noite... nós éramos recém-casados, quando você
e eu...
Ele se recordava claramente de como Célia se vestia aquela noite:
um vestido longo, verde claro, de chiffon, com pequenas lantejoulas que
brilhavam à luz. Como de hábito, tinha uma beleza etérea, esguia e leve,
como se uma brisa pudesse levá-la embora. Estavam casados apenas há seis
meses e ela ainda se sentia acanhada quando conhecia seus amigos, de modo
que, às vezes, agarrava-se com força a seu braço. Sendo dez anos mais moça
do que ele, Alex não se incomodava; ao contrário, a timidez de Célia, de
início, fora uma das razões de sua paixão por ela. Sentia-se orgulhoso pela
confiança que inspirava. Só muito tempo depois, quando ela continuou
tímida, acanhada e insegura — sem razão, segundo lhe parecia — sua
impaciência começou a tomar corpo e, às vezes, transformava-se em raiva.
Como' havia compreendido pouco! Tragicamente pouco! Com um
mínimo de percepção teria compreendido que o background de Célia,
antes de se conhecerem, era completamente diferente do seu e que não lhe
dera a necessária estrutura para enfrentar uma vida social ativa, ou mesmo
a vida doméstica. Era tudo novo e desafiador para ela e, às vezes, de modo

alarmante. Filha única de uma família de posses modestas, freqüentara um
colégio de freiras sem ter, de fato, um convívio na vida escolar. Antes de
encontrar Alex, Célia nunca tivera qualquer tipo de responsabilidade e sua
experiência social era nula. O casamento aumentou seu nervosismo
natural; ao mesmo tempo suas tensões e dúvidas — como os psiquiatras
explicaram — foram crescendo até chegarem ao ponto de se transformarem
numa carga de culpa por ter falhado, fragmentando alguma coisa em sua
mente. Alex culpava-se. Mais tarde, ele admitiria que facilmente poderia
tê-la ajudado, que poderia ter-lhe dado conselhos, aliviado suas tensões,
oferecer-lhe um sentido de segurança. Mas, quando isto de fato importava,
quando realmente era necessário, nada lhe ofereceu. Estava sempre por
demais atarefado, além de ser muito ambicioso.

— ... por isso o espetáculo da semana passada, Célia, me fez sentir
saudades... de não estarmos nos vendo com freqüência, de não
estarmos juntos...
De fato Alex assistira Copélia com Margot, que tinha conhecido há ano e
meio, e que preenchia sua vida já vazia há tanto tempo. Margot, ou
qualquer outra pessoa, havia sido necessária a Alex — um homem de carne
e sangue — para que ele não se tornasse um doente mental, conforme às
vezes dizia a si mesmo. Ou seria isto uma espécie de autodefesa para
esconder seu sentimento de culpa?
De qualquer maneira, não era hora nem local para falar de Margot.

— Ah, Célia, há pouco tempo vi os Harringtons. Você se lembra de
John e Elise? Disseram-me que tinham ido à Escandinávia para ver
os pais dela.
— Sim — disse ela sem nenhuma entonação na voz.
A doente ainda não mudara de posição, mas por certo estava ouvindo;
por isto continuou a falar enquanto a outra metade da mente
indagava: como é que isso aconteceu? Por quê?
— Temos estado muito ocupados no Banco ultimamente, Célia. Uma
das razões, supunha ele, fora sua preocupação com o trabalho,
as longas horas durante as quais — enquanto seu casamento se deteriorava
— deixara Célia sozinha. E isto, percebia agora, quando ela mais precisava

dele. Ela aceitava essas ausências sem queixa e cada vez se tornava mais
reservada e tímida, enterrando-se nos livros ou cuidando sem parar de
plantas e de flores, observando-as crescer, embora às vezes — e sem razão
aparente — se tornasse animada, falando sem cessar, algumas vezes com
incoerência. Durante esses períodos, ela parecia ter uma energia
excepcional; em seguida, também sem motivo aparente, sua energia
desaparecia, deixando-a outra vez deprimida e introvertida. Enquanto isso,
minguava o relacionamento e a comunicabilidade entre ambos.

Foi nesse período — a simples lembrança do fato envergonhava
Alex — que ele sugeriu o divórcio. Célia pareceu chocada e ele
deixou que o assunto morresse, esperando que as coisas
melhorassem.
Mas não melhoraram.
Apenas muito tempo depois, quando lhe ocorreu que ela talvez precisasse
de uma ajuda psiquiátrica,e ele a procurou, a realidade da
doença de Célia tornou-sevpatente. Durante algum tempo a
angústia e a preocupação reativaram seu amor. Mas. mesmo então,
já era tarde demais.
Às vezes Alex se perguntava: talvez tivesse sempre sido tarde demais;
talvez nem mesmo uma compreensão maior, um pouco mais
de caridade, tivesse ajudado. Jamais saberia. Não poderia alimentar
a convicção de ter feito o melhor e. por isto. nunca vencera o
sentimento de culpa que o dominava.

— Parece que todo mundo só pensa em dinheiro... em gastá-lo, em
tomá-lo emprestado, em aplicá-lo. mas. enfim, creio que para isso é
que os Bancos foram criados. Ontem aconteceu uma coisa triste,
Célia: Ben Rosselli, nosso presidente, nos disse que está morrendo.
Ele convocou uma reunião e...
Alex continuou descrevendo a cena e as reações posteriores mas. de
repente, parou.
Célia começara a tremer; seu corpo movia-se para a frente e para
trás. Gemeu baixinho.

Será que a menção do Banco a perturbou? O Banco onde ele empregara
todas suas energias, aprofundando o abismo que se formara entre os dois?
Na época era outro, o Federal Reserve, mas nora ela todos os bancos eram
iguais. Ou teria sido a referência à morte de Ben Rosselli?
Ben morreria breve. Há quantos anos já havia Celia morrido? Talvez há
muitos.

Alex pensava: "no entanto, ela poderia facilmente sobreviver a Ben,
continuando neste estado para sempre".
De repente, ela assumiu a aparência de um animal!
A raiva dominou-o e ressurgiram a impaciência e a incompreensão
que haviam destruído seu casamento.


— Pelo amor de Deus, Célia, controle-se! Ela continuava a tremer e
a gemer.
Como a odiava! Célia sequer era humana e, no entanto, constituía
uma barreira entre ele e uma vida plena e normal...
Levantando-se, Alex apertou o botão da campainha na parede a fim
de chamar a enfermeira. A seguir dirigiu-se para a porta.
Voltou-se para olhar Célia — sua esposa, a quem uma vez amara;
Olhar no que se transformara; olhar para o abismo que se cavara
entre ambos e que não poderia ser ultrapassado. Alex parou e de
repente começou a chorar.
Chorava de pena, de tristeza, de culpa, e sua raiva momentânea
dissipou-se; as lágrimas lavaram-lhe todo o ódio. Voltou para o divã
e ajoelhado implorou:
— Célia, me desculpe! Oh, meu Deus! Por favor, me perdoe! Sentiu um
tocar suave no seu ombro e ouviu a voz da jovem enfermeira:
—Sr. Vandervoort, acho que devia partir agora.
—Água ou soda. Alex?
—Soda.
O Dr. McCartney apanhou e abriu uma garrafa da pequena
geladeira existente em seu consultório. Verteu um pouco no copo
que já continha uma generosa porção de uísque e acrescentou gelo.



Passou o copo a Alex, e pôs o resto da soda num outro copo, sem
uísque, para si mesmo.
Para um homem de seu tamanho — Tim McCartney media cerca de
l,80m de altura, com o tronco e ombros de um jogador de futebol e
mãos enormes — seus movimentos eram suaves ao extremo.
Embora ainda fosse jovem, com pouco mais de 30 anos, segundo
Alex pensava, suas maneiras e sua voz davam a impressão de serem
de um homem mais velho. O cabelo castanho, escovado para trás,
começava a embranquecer nas têmporas. Talvez, pensou Alex,
devido ao número de sessões como a de que acabara de participar.
Começou a tomar o uísque.
A sala atapetada, iluminada suavemente, tinha tons mais fracos que
as cores dos corredores e das outras peças. Prateleiras e estantes
estavam cheias de livros, em especial obras de Freud, Adler, Jung e
Rogers.
Alex ainda estava abalado do encontro com a mulher, mas, de certo
modo, o horror que sentia parecia irreal.
O médico sentou-se à sua mesa, olhando para Alex, que se encontrava
num sofá em frente.

— Antes de mais nada devo lhe dizer que o diagnóstico geral de sua
mulher em nada se alterou —esquizofrenia — tipo catatônico. Você
há de se lembrar que já discutimos isto antes.
— Lembro-me de tudo, sim.
Alex movimentou o gelo no copo e tomou mais um gole; o uísque
começava a reanimá-lo.
— Explique-me sobre a condição atual de Célia.
— Talvez você ache difícil entender ou mesmo aceitar, mas sua esposa,
apesar da aparência, é relativamente feliz.
— Sim — disse Alex. — De fato, acho difícil de acreditar. O
psiquiatra prosseguiu:
— A felicidade é relativa para todos nós. O que ela sente é uma
espécie de segurança; uma absoluta ausência de responsabilidade

ou de necessidade de relacionar-se com os outros. Pode abrigar-se
dentro de si mesma quando quer ou precisa. A postura física que
tem tomado ultimamente, e que você viu, é a clássica posição fetal.
Isto dá-lhe conforto, embora para seu próprio bem físico tentemos
dissuadi-la de assim permanecer.

— Confortável, ou não — disse Alex — o fato é que, depois de ter
tido o melhor tratamento possível durante quatro anos, a condição
de minha mulher está deteriorando. — Ele fitou o médico.
— Estou certo ou errado?
— Infelizmente, está certo.
— Você julga que exista uma possibilidade razoável de recuperação,
algum dia, de modo que ela possa levar uma vida normal, ou quase
normal?
— Na Medicina sempre existem possibilidades...
— O que eu disse foi uma possibilidade razoável.
O Dr. McCartney suspirou e moveu a cabeça negativamente.
— Obrigado pela resposta sincera. — Alex fez uma pausa e continuou:
— pelo que vejo, ela terá que ficar internada para o resto da
vida. Já não mais faz parte da raça humana; ignora e se desinteressa
por tudo que não seja ela própria.
— Você tem razão no que se refere a ficar internada para sempre —
disse o psiquiatra. — Mas está errado quanto ao resto. Sua mulher
não se desligou por completo do mundo, pelo menos ainda não;
ainda percebe alguma coisa do que se passa lá fora. Por exemplo:
sabe que tem um marido e já lhe falamos a seu respeito, mas acha
que você é inteiramente capaz de tomar conta de si mesmo sem a
ajuda dela.
— Ah! quer dizer, então, que ela se preocupa comigo?
— De um modo geral, não.
— Como se sentiria ela se viesse a saber que me divorciei e me casei
outra vez?
O Dr. McCartney hesitou, pensou um pouco, e respondeu:

— Isto significaria a perda do único contato que ainda tem com o
mundo. Poderia levá-la a um estado de demência total.
No silêncio que se seguiu Alex de repente cobriu o rosto com as
mãos; depois retirou-se. Com leve ironia, disse:
— Afinal, se alguém pede uma resposta franca tem que agüentá-la.
O psiquiatra concordou, com uma expressão séria.
— Pensei que era isto que você queria, Alex; ouvir a verdade. Não
teria sido tão franco com alguém mais. No entanto, devo acrescentar
que posso estar errado.
— Tim, o que pode um homem fazer numa situação como esta?
— Você está fazendo retórica ou fazendo uma pergunta?
— E uma pergunta. E você pode incluí-la em minha conta.
— Hoje não haverá conta. — O médico sorriu de maneira gentil. —
Você me pergunta o que pode um homem fazer numa situação
como a sua? Bem, para começar, procurar saber de tudo... como
acaba de fazer. Então, toma a decisão, baseado na qual agirá daí em
diante. Para tomar esta decisão terá de levar em conta tudo que é
bom para todos, incluindo ele próprio. Mas ainda precisará ter em
consideração dois fatores: o primeiro, se for um homem decente, é
que seus sentimentos de culpa são talvez exagerados, já que uma
consciência assaz desenvolvida tem por hábito punir-se com mais
severidade que o necessário; o outro é que poucas pessoas são
fadadas à santidade. Via de regra, nós simplesmente não nascemos
com as qualidades necessárias.
Alex perguntou:
— Você não pode ir mais além? Não pode ser mais específico? O Dr.
McCartney balançou a cabeça negativamente.
— Só você mesmo pode tomar uma decisão. Estes últimos passos
cada um de nós tem que dá-los sozinho.
O psiquiatra olhou o relógio e levantou-se da cadeira. Pouco depois
davam-se as mãos e se despediam.

Do lado de fora do Centro de Terapia o motorista e a limusine
aguardavam Alex. O interior do carro estava confortavelmente
aquecido.

10


— Sem dúvida — declarou Margot Bracken — trata-se de uma coleção
de mentiras e chicanas.
Olhava para baixo, as mãos na cintura fina, delgada, com a cabeça
pequena, resoluta, inclinada para a frente. Era fisicamente
provocante, Alex Vandervoort pensava, um "pão de garota", o rosto
bem traçado, queixo agressivo, lábios bem delineados, boca sensual.
Os olhos de Margot eram seu traço mais forte: grandes, verdes, com
cintilações de ouro, as pestanas espessas e longas. Neste momento
seu olhar brilhava de raiva e essa irritação tinha o poder de excitar
sexualmente Alex.
O objeto da censura de Margot eram os leiautes dos anúncios dos
cartões de crédito Keycharge que Alex trouxera do Banco e que, no
momento, estavam espalhados no tapete da sala de seu
apartamento. A presença e a vitalidade de Margot faziam um
contraste benéfico com a provação pela qual ele passara há algumas
horas.
Alex disse:

— Já calculava, Bracken. Tinha quase certeza de que você não gostaria
desses anúncios.
— Não gostaria, só? Detesto-os; desprezo-os.
— Por quê?

Ela jogou para trás os longos cabelos castanhos, num inconsciente
gesto familiar. Pouco antes, tirara os sapatos e agora estava de pé,
descalça.

— Olhe bem, olhe só isto aqui! — Ela apontou para o anúncio que
dizia: POR QUE ESPERAR? VOCÊ PODE COMPRAR HOJE O
SONHO DE AMANHÃ! — Isto, na minha opinião, é desonesto e
não passa de conversa fiada: a venda agressiva da dívida potencial,
planejada para fazer os ingênuos caírem na armadilha. O sonho de
amanhã, para qualquer pessoa, é, sem dúvida, caro; por isso é que é
um sonho. E ninguém pode comprá-lo, a menos que tenha dinheiro
suficiente agora, ou esteja certo de tê-lo breve.
— Você não acha que deveria caber às próprias pessoas o julgamento
do assunto?
— Não!... não o tipo de pessoa que será influenciada por essa propaganda
pervertida, nociva; essa propaganda que vocês estão
tentando usar para influenciar. As pessoas que acreditam ser
verdade o que lêem são pessoas simples, fáceis de persuadir. Eu sei.
Conheço um monte de gente assim, clientes do meu escritório, do
meu pobre escritório de advocacia que nada me rende.
— Talvez não sejam o tipo de pessoas que possuem cartão de crédito
Keycharge.
— Merda, Alex, você sabe que isso não é verdade! Toda espécie de
gente, hoje em dia, tem cartão de crédito porque vocês os levaram a
isso. Vocês só não chegaram ainda a distribuir cartões pelas
esquinas, e não ficaria nada surpreendida se começassem a fazê-lo,
em breve.
Alex sorriu. Divertia-o esses debates com ela.

— Direi a meu pessoal para pensar no assunto, Bracken.
— O que eu gostaria era que todo mundo pensasse nos vergonhosos
oito por cento que representam o juro que os cartões de crédito
cobram.
— Já discutimos tudo isto antes.

— Sim, já discutimos. Mas, até agora, não ouvi nenhuma explicação
que me satisfizesse.
Alex contemporizou:
— Talvez porque não tenha querido ouvir.
Às vezes essas discussões chegavam a irritá-lo, quando não se transformavam
em verdadeiras brigas.
— Já lhe disse que os cartões de crédito são úteis, que oferecem uma
série de vantagens. — Alex insistia. — Se você levar em
consideração todos os serviços que prestamos, nossa taxa de juros
não é tão alta.
— É excessiva como diabo, quando você está pagando.
— Ninguém tem que pagar, porque ninguém é obrigado a fazer empréstimos.
— Não precisa gritar comigo; não sou surda.
— Está bem!
Alex respirou fundo, disposto a não permitir que a discussão fosse
longe demais. Além disso, enquanto discutia os pontos de vista de
Margot que, tanto em economia, como em política, como em
qualquer outro assunto eram de esquerda, ele sentia que seu
próprio raciocínio se fortalecia ante as idéias dela. O trabalho de
Margot, por outro lado, proporcionava-lhe contatos que, a ele, não
eram diretamente acessíveis: os pobres e desprivilegiados da
cidade, que constituíam o maior número de clientes de sua banca.
— Aceita outro conhaque? — indagou ele.
— Sim, aceito.
Era quase meia-noite. A lareira, acesa antes, já estava quase apagada,
mas ainda aquecia a elegante sala do pequeno e suntuoso
apartamento de solteiro de Alex.
Hora e meia atrás, tinham jantado em casa, utilizando o serviço de
entrega do restaurante existente no primeiro andar do edifício. Um
excelente Bordeaux — escolha de Alex, Chateuu Gruaud Larose 66 —
acompanhara a refeição.

A não ser na área onde se espalhavam os anúncios do Keycharge, as
luzes da sala estavam apagadas. Quando acabou de servir o
conhaque. Alex voltou ao assunto:

— Se as pessoas pagassem suas contas dos cartões de crédito no
momento em que as recebessem, não haveria taxas de juro.
— Você quer dizer se elas pagassem de uma só vez.
— Exato.
— Mas quantas pessoas fazem isso? Na sua maioria, os usuários de
cartão de crédito não pagam apenas aquele necessário "saldo
mínimo" que os extratos apresentam?
— De fato, um grande número paga o mínimo, sim.
— E o resto fica como débito... e é exatamente isso que vocês banqueiros
querem que aconteça... Ou não é verdade?
Alex cedeu:
— Sim. é verdade. Mas os bancos, afinal de contas, têm que obter
lucro de alguma forma.
— Você não faz idéia de quantas noites passo em branco, sem dormir
— disse Margot com ironia — a me preocupar se os bancos
estão ou não ganhando o suficiente.
Alex riu e a moça continuou, desta vez em tom sério:
— Olha, Alex, centenas de pessoas que não deviam estão contraindo
débitos a longo prazo pelo simples uso do cartão de crédito.
Freqüentemente para comprar o trivial... ninharias... coisas de
drugstore, discos, ferramentas, livros, refeições e outras coisas
menores. E fazem tais despesas, em parte, por desconhecimento, e,
em parte, porque pequenas importâncias de crédito são tão fáceis de
conseguir! Esses pequenos créditos, essas pequenas importâncias,
que deveriam ser pagos à vista, vão-se somando e atingem débitos
vultuosos que dificultam a vida de pessoas imprudentes durante
muitos anos.
Alex fez girar seu copo de conhaque com ambas as mãos, para
aquecê-lo; tomou um gole e, levantando-se, pôs lenha na lareira. Em
seguida, discordou:



— Você está se preocupando demais; afinal, o problema não é tão
grande.
No entanto, tinha de admitir para si mesmo que muitos dos
argumentos de Margot faziam sentido. No lugar onde, antes, como
dizia uma velha canção, "os mineiros deviam suas almas ao
armazém da companhia", surgira uma nova espécie de devedor
crônico e ingênuo, hipotecando futuro e renda a um "banco amigo".
Uma das razões era que o cartão de crédito substituíra, em grande
escala, os pequenos empréstimos. Em lugar das pessoas serem
dissuadidas de fazer empréstimos excessivos, agora elas tomavam
suas próprias decisões quanto a empréstimos, muitas vezes de
maneira imprudente. Alguns observadores, Alex sabia, acreditavam
que o sistema havia degradado a moralidade americana.

Claro, conceder empréstimo através do cartão de crédito saía muito
mais barato para um banco. Do mesmo modo, um cliente com um
empréstimo pequeno, levantando dinheiro mediante esse sistema,
paga juros bastante mais elevados do que pagaria sobre um
empréstimo convencional. O total de juros bancários, na verdade,
atinge com freqüência até 24%, já que os comerciantes que aceitam
cartões de crédito também pagam ao banco uma taxa adicional que
oscila entre 2 e 6%.
Esses eram os motivos pelos quais bancos tais como o FMA contavam
com o sistema de cartão de crédito para aumentar seus lucros,
e contarão ainda mais no futuro. Por certo, os prejuízos iniciais eram
grandes e os banqueiros sabiam disso.
Mas estavam convencidos de que, dentro em breve, poriam mão na
"mina" e que essa mina viria a compensar quaisquer prejuízos nas
outras atividades de seus bancos.
Outro fato de que os banqueiros tinham conhecimento era que os
cartões de crédito constituíam uma necessidade para o sistema
eletrônico de transferência de fundos (EFTS: the electronic funds
transfer system) e que, dentro de uma década e meia, substituiriam a


atual avalanche de documentos e papéis bancários, tornando as
cadernetas e os talões de cheque ora em uso tão obsoletos quanto
uma carroça.

— Para mim chega — disse Margot. — Esse nosso papo está começando
a parecer reunião de acionistas. — Aproximou-se dele e
beijou-o na boca.
Como sempre, o calor da discussão anterior já o havia excitado um
pouco. Seu primeiro encontro com ela fora semelhante. Às vezes,
até parecia que, quanto mais zangados estivessem, maior se tornava
sua paixão física. Após um silêncio, ele murmurou:
— Dou por encerrada a assembléia dos acionistas.
— Bem... — Margot descontraiu-se e olhou-o de modo matreiro. —
Mas ainda há um assunto a tratar, querido: aqueles anúncios. Você
não vai deixar publicá-los daquela maneira, vai?
— Não — disse Alex. — Creio que não.
A propaganda Keycharge representava um grande lucro, e Alex
pretendia usar sua autoridade na votação do dia seguinte. Percebia
que, no fundo, já pretendia fazê-lo, de qualquer jeito. Margot apenas
confirmara sua própria opinião anterior.
A lenha que ele pusera na lareira ainda crepitava. Sentaram-se no
tapete em frente às chamas, gozando o calor e observando com
atenção as pequenas labaredas.

Margot encostou a cabeça no ombro de Alex e disse suavemente:


— Para um velho banqueiro quadrado, você até que não é dos piores.
Ele abraçou-a.


— Eu também a amo, Bracken.
— De verdade mesmo? Dá sua palavra de banqueiro?
— Juro por todas as minhas taxas.
— Então me ame, agora.
Ela começou a despir-se. Ele sussurrou divertido.
— Aqui mesmo?

— E, por que não? Alex suspirou feliz:
— E, de fato, por que não?
Pouco depois, sentia-se relaxado e alegre, eliminadas as angústias
do dia. E mais tarde ainda abraçaram-se, gozando o calor de seus
corpos e do fogo. Finalmente Margot falou:


— Já disse antes e repito: você é uma delícia de amante.
— É você não é tão ruim assim, Bracken — retrucou ele, indagando
a seguir: — Você vai ficar para dormir?
Com freqüência Margot Ficava para dormir, bem como Alex no
apartamento dela. Amanhã tenho, que estar no Tribunal muito
cedo.
A presença de Margot no Tribunal era freqüente e seu
conhecimento com Alex, ano e meio atrás, decorrera de uma causa
que ela patrocinara. Pouco antes desse rimeiro encontro, Margot
havia defendido meia dúzia de subversivos que tinham entrado em
conflito com a polícia durante um pequeno comício em que
pleiteavam anistia total para os desertores do Vietnã. Fizera uma
defesa brilhante, não apenas dos subversivos mas da causa que
postulavam. E venceu: todas as acusações foram retiradas no final
do julgamento.
Poucos dias depois, num coquetel dado por Edwina D'Orsey e seu
marido, Lewis, Margot estava cercada de admiradores e críticos.
Viera sozinha, bem como Alex, que já ouvira falar dela, embora só
depois viesse a saber que era prima de Edwina. Bebendo o excelente
Schrams-berg dos D'Orseys, ele ficou ouvindo a conversa durante
algum tempo e depois juntou-se aos críticos. Outros foram-se
aproximando e, afinal, o debate ficou a cargo dele e de Margot, que
se enfrentavam como gladiadores verbais.
A certa altura Margot perguntou:


— E quem diabo é você?
— Um simples americano que acredita ser imprescindível a disciplina
nas forças armadas.

— Mesmo numa guerra imoral como a do Vietnã?
— Não cabe a um soldado decidir sobre moralidade. Tem apenas
que obedecer a ordens. A alternativa é o caos.
— Seja lá quem for, você me dá impressão de nazista. Depois da
Segunda Guerra Mundial nós executamos alemães que
apresentavam esse argumento como defesa.
— A situação é inteiramente diferente.
— Não é nada diferente. Nos julgamentos de Nuremberg os Aliados
argumentavam que os alemães deviam ter ouvido sua própria consciência,
recusando-se a cumprir certas ordens. E isto, exatamente, o
que fazem os desertores do Vietnã.
— O exército americano não estava exterminando judeus.
— Não, apenas aldeões. Como em My Lai e em toda parte.
— Nenhuma guerra é limpa.
— Mas a do Vietnã é a mais suja de todas. A partir do Comandanteem-
Chefe até o último escalão. Eis a razão por que tantos jovens
americanos, com um pouco de coragem e por questões de consciência,
se recusam a participar dela.
— Mas não obterão anistia incondicional.
— Pois deveriam obter. No dia em que a decência vencer, irão obtêla.
Ainda discutiam com veemência quando Edwina interrompeu o debate
e apresentou-os um ao outro. Mais tarde voltaram a discutir, e
assim prosseguiram quando saíram da festa. No apartamento de
Margot, num dado momento, quase chegaram à agressão corporal,
mas de repente, deram-se conta de que o desejo, a atração física que
impelia um para o outro eclipsava tudo o mais e amaram-se da
maneira mais excitada e ardente, até que, exaustos, constataram que
algo de novo e vital acabava de acontecer na vida de ambos.
Mais tarde, Alex reexaminou seus pontos de vista, já um tanto
abalados. A seguir, como tantos moderados desiludidos, constatou
a tremenda falsidade do slogan de Nixon "Paz com Honra" e. afinal,


quando surgiu o escândalo de Watergate, constatou com clareza
que os detentores do poder ao decretarem — "anistia, nunca" —
eram culpados de uma vilania muito maior que a cometida pelos
desertores do Vietnã.

Após aquela primeira ocasião, em muitas outras, os argumentos de
Margot modificaram ou arejaram seu modo de pensar. Agora, no
pequeno apartamento de quarto e sala, Margot tirava uma camisola
da gaveta que Alex lhe destinara. Após vesti-la, ela apagou a luz.

Deitaram-se, permanecendo silenciosos por algum tempo, gozando

o conforto da companhia mútua no quarto escuro. Então Margot
disse:
— Você viu Célia hoje, não viu?
Surpreso, ele indagou:
— Como é que você soube?
— Está transparente em seu rosto; sei o quanto sofre. — E prosseguiu:
— quer falar sobre o assunto?
— Sim — disse ele — acho que sim.
— Você ainda se sente responsável, não é?
— Sim — respondeu Alex.
E contou a visita a Célia, a conversa que tivera com o Dr.
McCartney, bem como a opinião do médico sobre o provável efeito
negativo na doente caso ele se divorciasse e se casasse com outra.

Margot disse com firmeza:

— Então, você não deve divorciar-se dela:
— Se não o fizer — respondeu Alex — nada poderá haver de permanente
entre nós.
— Mas claro que pode! Já lhe disse há muito tempo que será permanente
enquanto nós mesmos o desejarmos. O casamento já não é
mais permanente. Quem, de fato, acredita em casamento, hoje em
dia. com exceção de uns poucos e velhos bispos?

— Eu acredito — disse Alex. — Bastante para desejá-lo para nós.
— Então, vamos ter um casamento... à minha maneira. Só que não
preciso de um documento legal dizendo que sou casada, porque
lido tanto com documentos legais que eles já não me impressionam.
Já lhe afirmei que viverei com você... com alegria e amor. Mas o que
jamais carregarei em minha consciência, nem quero que você
carregue na sua, é o peso da insanidade total de Célia.
— Sei, sei. Tudo que você diz faz sentido — mas não parecia falar
com convicção.
Margot prosseguiu com carinho:


— Sou mais feliz com o que temos agora do que fui em toda minha
vida. É você e não eu que quer ir além.
Alex suspirou e pouco depois estava dormindo. Quando se certificou
de que ele dormia profundamente, Margot levantou-se, vestiu-
se, beijou-o de leve, e foi-se embora.


11


Enquanto Alex Vandervoort dormiu sozinho apenas parte da noite,
Roscoe Heyward dormiria só a noite inteira. Mas por enquanto,
ainda não.
Heyward estava em sua casa de três andares, no subúrbio de Shaker
Heights, sentado na pequena sala decorada com sobriedade que lhe
servia de escritório. Espalhados sobre a secretária forrada de couro,
um monte de papéis.
Sua mulher, Beatrice, já subira para seu quarto, há quase duas
horas, passando a chave na porta como já o fazia há 12 anos — por
acordo mútuo — quando passaram a dormir em quartos separados.



O fato de Beatrice fechar a porta nunca ofendeu Heyward. Mesmo
antes de dormirem assim, a prática sexual entre eles já era muito
rara, chegando depois a cessar por completo.
Esse afastamento sexual, julgava Heyward quando pensava no assunto,
fora decisão de Beatrice. Mesmo nos primeiros anos de
casados, ela evidenciara sua repugnância espiritual em relação a
apalpadelas e gemidos, embora, às vezes, seu corpo os pedisse.
Mais cedo ou mais tarde, pensava ela, o espírito venceria essa
necessidade lamentável a acabaria por eliminá-la.

Em seus raros momentos de devaneio, ocorria a Heyward que o
nascimento de seu filho único, Élmer, refletia a impressão que
Beatrice tinha do método de concepção e nascimento: uma invasão
indesejável de seu corpo. Élmer, agora já chegando aos trinta,
contador juramentado, desaprovava quase tudo no mundo,
passando pela vida sem sequer roçá-la, como se tapasse o nariz para
evitar o mau cheiro. Até mesmo Roscoe Heyward, seu pai, às vezes
achava que ele exagerava um pouco.

Quanto ao próprio Heyward, para quem sexo não significava
muito, passava facilmente sem ele, em parte porque há 12 anos atrás
já estava num ponto em que pouco lhe importava ter ou não ter
sexo; e, em parte, porque sua ambição dentro do Banco tornara-se
sua razão de ser. Assim, como uma máquina sem uso, seu apetite
sexual minguou. Agora só servia para lembrá-lo, com certa tristeza,
uma parte de sua vida sobre a qual a cortina se fechara cedo demais.

Mas, por outro lado, Heyward admitia, Beatrice fora uma boa esposa.
Boa em sua vida. Descendia de uma família impecável de
Boston e, quando jovem, havia sido apresentada da maneira
apropriada no baile das debutantes. Nesse baile — o jovem Roscoe
de casaca e luvas brancas — é que foram formalmente
apresentados. Mais tarde encontraram-se em diversas
oportunidades, ela sempre acompanhada. Após um razoável período
de noivado, casaram-se dois anos depois, em cerimônia,


Heyward ainda relembrava com orgulho, à qual estivera presente a


melhor sociedade de Boston.
Naquela época, como ainda agora, Beatrice partilhava dos pontos
de vista de Roscoe a respeito da importância da posição social e da
respeitabilidade. De acordo com essas noções, ela pertencera por
muito tempo à sociedade Filhas da Revolução Americana e, agora,
era secretária-geral da National Recording. Roscoe orgulhava-se
disso e ficava encantado com o prestígio social que daí resultava.
Apenas uma coisa faltava a Beatrice e à sua ilustre família: dinheiro.
Neste momento, como de vezes anteriores, Roscoe Heyward
desejava ardentemente que sua esposa fosse uma herdeira.


O problema maior do casal era, e sempre fora, conseguir viver


dentro do seu salário.
Este ano, segundo os cálculos de Heyward acabava de fazer, as despesas
do casal excederiam bastante as entradas. Em abril próximo
ele teria que tomar dinheiro emprestado para pagar o imposto de
renda, como vinha fazendo há dois anos seguidos. E o mesmo teria
acontecido em muitos outros anos, caso não tivesse tido sorte em
seus investimentos.


Muita gente com ganhos inferiores acharia graça à simples idéia de
que um executivo vice-presidente ganhasse 65 000 dólares por ano e
nem assim tivesse uma vida fácil, ou, mesmo, não juntasse dinheiro.
Com os Heywards isso acontecia.


Para começar, o imposto de renda lhe levava mais de um terço do
que ganhava. Em seguida, vinham duas hipotecas sobre a casa que
exigiam um pagamento de 16 000 dólares anuais, e as taxas
municipais que chegavam a 2 500. Os 23 000 dólares que sobravam


— cerca de 450 dólares por semana — tinham que cobrir todas as
demais despesas, inclusive a manutenção da casa, seguros,
alimentação, roupas, um carro para Beatrice (o de Roscoe, com
motorista, era do Banco), uma cozinheira, donativos para caridade e

uma lista incrível de pequenos itens que, somados, resultavam num
total desagradavelmente elevado.
A casa, conforme Heyward às vezes pensava, era uma extravagância.
Sempre fora grande demais para as necessidades do casal
mesmo quando Élmer ali morava. Vandervoort, que tinha o mesmo
salário, era bem mais prático e morava num apartamento alugado.
Mas Beatrice, que adorava o prestígio que sua casa representava,
jamais ouviria sequer falar em alugar um apartamento, nem
tampouco Roscoe aceitaria esta ideia.
Conseqüentemente, eles tinham que economizar de alguma
maneira, processo este que Beatrice, às vezes, parecia ignorar, já que
pensava que tinha de ter dinheiro. Preocupar-se com isso constituía
lesa majestade. Sua atitude refletia-se de vários modos. As roupas
de cama e mesa, por exemplo, eram usadas apenas uma vez. Um
simples guardanapo, mesmo que ficasse limpo, não era usado a
segunda vez sem que antes fosse lavado; o mesmo ocorria com as
toalhas de banho. Com esse exagero, as contas de lavanderia eram
altíssimas. Ela dava intermináveis telefonemas interurbanos e quase
nunca se dignava apagar as luzes. Hoje, por exemplo, há poucos
minutos, Heyward fora à cozinha para tomar um copo de leite e,
embora Beatrice já tivesse subido há duas horas, todas as luzes do
andar de baixo estavam acesas. Com raiva, ele desligou-as.
Mas, apesar das atitudes e do modo de pensar de Beatrice, a
verdade é que certas coisas eles simplesmente não podiam fazer.
Como, por exemplo, viajar — aliás, os Heywards já há dois anos não
tiravam férias. No último verão Roscoe disse a seus colegas no
Banco que "estávamos pensando num cruzeiro pelo Mediterrâneo,
mas acabamos nos decidindo a ficar em casa; afinal, é do que mais
gostamos".
Outra realidade desconfortável é que não tinham virtualmente nenhuma
poupança, nenhum dinheiro junto — exceto umas poucas
ações do FMA que podiam ser negociadas, conquanto o produto da
venda não chegasse a ser suficiente para equilibrar o deficit do ano.


Hoje, Heyward tirava a única conclusão possível; mesmo depois de
levantar dinheiro, teriam que limitar as despesas da melhor maneira
possível e esperar que as coisas melhorassem.
E elas poderiam, de fato, melhorar, em seu mais amplo sentido, caso
ele se tornasse presidente do FMA.
No FMA, como na maioria dos bancos, a diferença entre o salário do
presidente e o dos vice-presidentes era incrível. Como presidente,
Ben Rosselli recebia por ano 130 000 dólares. Seu eventual sucessor
receberia a mesma importância.
E se esse sucessor fosse Roscoe Heyward, isto significaria que seu
salário atual dobraria. Mesmo levando em consideração que os
impostos seriam mais elevados, o que sobrasse eliminaria todo e
qualquer problema atual.
Deixando de lado os papéis, começou a sonhar com tal
possibilidade e com ela sonhou a noite toda.

12


Manhã de sexta-feira.
Edwina e Lewis D'Orsey tomam café, em seu apartamento de cobertura
que se eleva sobre o sofisticado Caymon Manor, num bairro
elegante a pouco mais de quilômetro e meio do centro da cidade.
São decorridos três dias após a dramática revelação de Ben Rosselli
sobre sua morte iminente, e dois dias desde a descoberta da perda
de dinheiro na matriz do FMA. Dos dois fatos, a perda do dinheiro

— neste exato momento — pesava de forma mais insuportável para
Edwina.

Desde quarta-feira à tarde, nada de novo havia sido descoberto. Durante
todo o dia anterior, com seu padrão de alta eficiência, dois
agentes especiais do FBI haviam interrogado detalhadamente os
membros do quadro de funcionário da agência, sem chegar a
nenhum resultado concreto. A funcionária diretamente envolvida,
Juanita Núnezj, ainda era o principal suspeito, mas continuava a se
dizer inocente e se recusava a se submeter ao teste do detetor de
mentiras.
Apesar de essa recusa aumentar a suspeita geral sobre sua culpa,
como havia dito um dos agentes do FBI para Edwina: "Suspeitamos,
e podemos suspeitar, da Sra. Núnez por todos os motivos, mas não
temos a mínima prova. Quanto ao dinheiro, se estiver escondido na
casa dela, precisamos ter uma evidência concreta para que
possamos obter um mandado de busca. E não temos evidência
alguma. Claro, não tiraremos os olhos de cima dela, embora este
não seja o tipo de caso no qual o FBI possa manter uma vigilância
absoluta".
Os agentes do FBI voltariam hoje ao Banco, mas parecia haver
pouca coisa que ainda pudessem conseguir.
O que o Banco podia fazer, e faria, seria despedir Juanita Núnez.
Edwina sabia que teria que demitir a moça hoje.
Mas isto seria um final insatisfatório, de certa forma frustrador.
Edwina voltou sua atenção para o desjejum: ovos mexidos e
bolinhos de trigo, trazidos há poucos minutos pela empregada.
Do outro lado da mesa, Lewis, escondido atrás do Wall Street Journal,
resmungava como de hábito contra a última loucura de
Washington, segundo a qual um Subsecretário do Tesouro havia
declarado, perante um comitê do Senado, que os Estados Unidos
jamais voltariam ao padrão-ouro. O secretário usou uma citação de
Keynes que descrevia o ouro como "essa relíquia amarela".
O ouro, dizia ele, estava acabado como meio de intercâmbio
internacional.

— Meu Deus! este morfético ignorante!

Olhando por cima dos óculos de aro de aço, Lewis D'Orsey atirou o
jornal ao chão onde se juntaria ao New York Times, ao Chicago
Tribune, e ao Financial Times de Londres, da véspera, jornais que
havia folheado. Sobre o Subsecretário de Tesouro, declarou:

— Mesmo cinco séculos depois que uma porcaria como ele
apodreça e vire poeira, o ouro ainda será ouro, e ainda será a mais
sólida base para dinheiro e valores no mundo inteiro. Com os
mentecaptos que temos no poder, não há esperança alguma,
absolutamente nenhuma.
Lewis pegou a xícara de café, levou-a aos lábios, depois limpou a
boca com um guardanapo de linho. Edwina tinha folheado o
Christian Science Monitor. Olhou para o marido, para seu rosto
magro e austero.
— Que pena! Não estaremos vivos daqui a cinco séculos para poder
ouvi-lo dizer ..."eu bem lhes disse".
Lewis era um homem pequeno, fino de corpo como uma vara
fazendo-o parecer frágil e quase faminto, embora não fosse nem
uma coisa nem outra. O rosto combinava com o corpo: magro,
quase cadavérico. Seus movimentos eram rápidos; a voz, quase
sempre, impaciente. Às vezes Lewis zombava de seu físico
inexpressivo. E batendo na testa dizia: o que a natureza não me deu
no físico compensou amplamente aqui". E era verdade. Mesmo
aqueles que o detestavam tinham que admitir que ele tinha uma
espantosa agilidade mental, em particular no que se referia a
dinheiro e finanças.
O seu mau humor no café da manhã já nem preocupava Edwina.
Ela sabia, após 14 anos de casamento, que nada tinha a ver com isso;
e também sabia que desta forma se preparava para a sessão da
manhã na máquina de escrever, onde esbravejaria como um
Jeremias zangado por motivos adequados. Isto era o que os seus
leitores, os leitores de seu boletim financeiro quinzenal, esperavam
dele.

O boletim, de preço elevado, contendo seus conselhos sobre investimentos,
dirigidos a uma lista exclusiva de assinantes
internacionais, representava para Lewis um meio de manter um
elevado padrão de vida e uma arma com a qual agredia governos,
presidentes, primeiros-ministros e vários políticos, quando um ato
fiscal, de qualquer um deles, o desagradava. E quase todos
desagradavam.
Muitos financistas sintonizados com as teorias modernas, incluindo
alguns do FMA„ abominavam o boletim ultraconservador,
independente e mordaz de Lewis D'Orsey. Mas a maior parte de
seus assinantes pensava de maneira diferente e o considerava como
uma combinação de Moisés e Midas, no meio de uma geração de
financistas idiotas.
E tinham razão, Edwina admitia. Se ganhar dinheiro fosse o objetivo
de alguém na vida, seguir o conselho de Lewis era um bom começo.
Ele assim o provara muitas vezes, com conselhos que haviam sido
amplamente compensadores para aqueles que os haviam seguido.
Ouro, era um bom exemplo. Muito antes que isto acontecesse, e
enquanto todo mundo zombava do assunto, Lewis D'Orsey
predisse uma dramática valorização do ouro no mercado livre. Ele
também lançou a idéia de comprar tanto quanto se pudesse de
ações das minas de ouro da África do Sul, naquela ocasião ainda
numa cotação baixa. Desde então, inúmeros assinantes do boletim
The D'Orsey Newsletter lhe haviam escrito para dizer que tinham se
tornado milionários pelo simples fato de terem seguido seu
conselho.
Com a mesma presciência ele havia previsto a série de desvalorizações
do dólar, e aconselhara a seus leitores que empregassem todo o
dinheiro que pudessem levantar em outras moedas, especialmente
em francos suíços e marcos alemães. Muitos o fizeram, obtendo
grandes lucros.
Na mais recente edição do The D'Orsey Newsletter ele escrevera:


"O dólar americano, moeda até pouco honesta e orgulhosa, está
moribundo, como a nação que representa. Financeiramente, a
América está chegando ao fim. Graças a medidas fiscais sem
sentido, mal concebidas por políticos incompetentes e corruptos que
apenas se importam consigo mesmos e com as próprias reeleições,
estamos vivendo em meio a um desastre financeiro que só tende a
piorar.
"Como nossos governantes são uns velhacos imbecis e a maior parte
do público dócil permanece vagamente indiferente, é chegada a
hora de cada um arranjar um salva-vidas! Que cada um (homem ou
mulher) cuide de si mesmo!
"Se você tem dólares, guarde apenas o suficiente para pagar o táxi,
alimentação e selos. Além do destinado a uma passagem aérea para
qualquer terra mais feliz que a nossa.
"Porque o investidor lúcido é aquele que está deixando os Estados
Unidos, morando no exterior e abandonando a nacionalidade norte-
americana. Oficialmente, o Código da Renda Interna, Seção 877, diz
que, se o cidadão norte-americano renuncia à sua cidadania para
evitar o imposto de renda, e a repartição competente pode prová-lo,
esse imposto continua o mesmo. Mas os que estão por dentro
conhecem certas maneiras legais de contornar a renda interna. (Ver
The D'Orsey Newsletter de julho do ano passado sobre o modo de se
tornar um cidadão ex-americano. Cópias deste número do boletim
podem ser adquiridas por 12 dólares ou 40 francos suíços, cada.)

"Razão para este conselho sobre a troca de cenário: o valor do dólar
americano continuará a diminuir, juntamente com a liberdade fiscal
dos americanos.
"E se você não puder deixar em pessoa o país, de qualquer forma
mande seu dinheiro para o exterior. Converta seus dólares
americanos enquanto pode (talvez não seja por muito tempo!) em
marcos alemães, francos suíços, schillings austríacos, libras
libanesas, florins holandeses, ou em qualquer outra coisa!


"E então deixe-os fora do alcance dos burocratas dos Estados
Unidos, num banco europeu, preferivelmente, suíço..."
Lewis D'Orsey fizera variações sobre esse mesmo tema durante vários
anos. Seu último boletim ainda continuava a repeti-lo e concluía
com conselhos específicos sobre determinados investimentos.
Naturalmente, todos eles eram em qualquer moeda que não a norte-
americana.
Ainda na mesa do café, Edwina continuava a ler o Monitor. Havia
um comentário sobre o projeto da Câmara propondo algumas
alterações na lei de impostos que reduziria as amortizações dos
imóveis. Isto poderia afetar os empréstimos hipotecários do Banco e
ela perguntou a Lewis se julgava possível que tal projeto se
convertesse em lei.
Ele respondeu com aspereza:

— Nenhuma. Mesmo que consiga passar na Câmara, jamais será
aprovado pelo Senado. Telefonei a respeito para alguns senadores,
ontem. Eles sequer estão levando a sério o assunto.
Lewis contava com um número extraordinário de amigos e
contatos, sendo esta uma das várias razões do seu sucesso.
Mantinha-se informado também a respeito de qualquer assunto
referente a impostos, aconselhando e orientando seus leitores sobre
situações que eles poderiam explorar em benefício próprio.
De sua parte, Lewis pagava por ano uma importância insignificante
de imposto de renda, nunca mais que poucas centenas de dólares.
Vangloriava-se muito disso, conquanto sua renda real tivesse sete
algarismos. Conseguia tal resultado utilizando-se de tudo que fosse
possível: investimentos em petróleo, imóveis, exploração de
madeira, agricultura, sociedades limitadas e obrigações livres de
impostos. Essas medidas lhe permitiam, gastar com largueza, viver
esplendidamente e — no papel — provar todos os anos uma perda
pessoal.
No entanto, todas essas práticas referentes a impostos eram absolutamente
legais. "Só um tolo esconde sua renda, ou trapaceia com os

impostos de um modo ou de outro", Edwina várias vezes ouvira
Lewis declarar: "Por que passar por este risco quando existem
tantos meios legítimos de escapar dos impostos quanto buracos em
um queijo suíço? Basta que o cidadão se dê ao trabalho de estudar e
compreender tais meios, que tenha habilidade para usá-los da
maneira correta".
Até agora, Lewis não tinha seguido o conselho que dava a seus
leitores, de viver fora dos Estados Unidos ou de trocar de cidadania.
No entanto, detestava Nova Iorque, onde já vivera e trabalhara.
Definia a cidade como "um covil de bandidos decadentes,
complacentes,, falidos, vivendo no solipsismo". "Também não
passava de ilusão" — assegurava Lewis — "acalentada e cultivada
pelos arrogantes nova-iorquinos, que os maiores cérebros ali se
encontravam. Não era verdade." Por isso ele preferia o Meio-Oeste,
para onde se mudara e onde conhecera Edwina, 15 anos atrás.

* Não obstante o exemplo do marido, no tocante a impostos,
Edwina seguia seus" próprios conhecimentos no assunto,
preenchendo ela mesma suji declaração individual e pagando muito
mais que Lewis, mesmo considerando ter renda bem mais modesta.
Mas era Lewis quem se encarregava das depesas do casal, referentes
ao apartamento de cobertura, empregados, duas Mercedes e outros
luxos que tais.
Edwina admitia para si mesma, com a máxima honestidade, que o
alto padrão em que viviam, e do qual gostava, fora um fator
decisivo para seu casamento com Lewis, bem como para sua
adaptação ao mesmo. E o arranjo, baseado na mútua independência
e nas carreiras paralelas, funcionava bem.
— Gostaria — disse Edwina — de que seu discernimento habitual
me ajudasse a descobrir onde está o dinheiro que desapareceu na
agência, quarta-feira.
Lewis interrompeu o desjejum que enfrentava como se os ovos fossem
seus inimigos.

— O dinheiro do banco ainda está sumido? Quer dizer que mais
uma vez os imponentes agentes do FBI nada descobriram?
— É, acho que a verdade é esta. — Edwina relatou o impasse a que
tinham chegado, e sua decisão de despedir a caixa ainda hoje.
— Após o quê, ninguém mais lhe dará emprego, segundo creio.
— Pelo menos em nenhum outro banco, estou certa.
— E ela tem uma filha, creio que você me disse.
— Infelizmente, sim.
Com secura, Lewis concluiu:
— Mais duas bocas para sobrecarregar a folha de pagamento já onerada
da Previdência Social.
— Oh, por favor! Economize todo este birchismo para seus leitores
texanos.
Lewis concedeu-lhe um de seus raros sorrisos:
— Desculpe. É que não estou acostumado a lhe dar conselhos. Não
é com freqüência que você precisa deles.
Tratava-se de um elogio, Edwina sabia. Uma das coisas que ela
apreciava em seu casamento era que Lewis não modificara sua
atitude: tratava-se como uma pessoa intelectualmente igual. E,
embora nunca o houvesse manifestado de modo direto, sabia que
ele tinha orgulho da sua situação no Banco, do seu status no FMA —
não muito comum, nem mesmo atualmente, para uma mulher — no
mundo masculino e sectário das finanças.
— É claro que não posso lhe dizer onde está o dinheiro —
respondeu Lewis. Silenciou um instante e depois acrescentou: —
Mas vou lhe dar um conselho que já me ajudou a resolver alguns
enigmas.
— Bem. diga lá.
— Aqui vai: desconfie sempre do óbvio.
Edwina sentiu-se desapontada. Esperara que o marido lhe desse
uma espécie de solução miraculosa. Em vez disso, Lewis saíra-se
com um velho lugar-comum.



Ela olhou para o relógio; era quase oito horas.

— Obrigada, querido; tenho de ir.
— Ah! Preciso lhe dizer — falou Lewis — que parto para a Europa
esta noite. Mas volto quarta-feira.
— Boa viagem.
Edwina deu-lhe um beijo e foi-se embora. Essa viagem súbita não a
surpreendia. Lewis mantinha escritórios em Zurique e Londres; sua
idas e vindas eram rotineiras.
Saiu do apartamento pelo elevador privativo que levava
diretamente à garagem interna.
A caminho do Banco, e apesar de ter aparentemente ignorado o conselho
de Lewis, as palavras desconfie sempre do óbvio martelavam na
cabeça.
A entrevista, durante a manhã, com os dois agentes do FBI foi breve
e inconcludente. Teve lugar na sala de conferências, onde, dois dias
antes, os homens do FBI haviam interrogado todo o quadro de
funcionários, com a presença de Edwina e de Nolan Wainwright.
Innes, chefe dos dois agentes, que falava com o sotaque estridente
da Nova Inglaterra, disse-lhes:
— Já fomos até onde podíamos em nossa investigação local. O caso
permanece em aberto e entraremos em contato com os senhores,
caso surjam novos fatos. Claro, se alguma coisa acontecer por aqui,
os senhores imediatamente nos informarão no FBI.
— Claro — disse Edwina.
— Ah! sim, há um item negativo: — ele consultou seu caderninho
de notas — o marido da moça... Carlos. Parece que alguém o viu
aqui no Banco no mesmo dia em que o dinheiro sumiu.
Wainwright disse:
— Miles Eastin; ele me informou e passei a informação a vocês.
— Sim, nós indagamos dele; admitiu que poderia estar enganado.
Bem; pesquisamos e ficamos sabendo que Carlos Núhez mora em
Phoenix, Arizona, onde trabalha como mecânico. Nossos agentes de

lá foram entrevistá-lo. Afirmam que ele trabalhou quarta-feira, bem
como os dias anteriores desta semana. Portanto, podemos eliminálo
como cúmplice.
Nolan Wainwright acompanhou os agentes até a porta; Edwina voltou
para sua mesa na plataforma. Ela relatara a perda do dinheiro,
conforme era de seu dever, a seu superior imediato na
administração da matriz e o fato chegou ao conhecimento de Alex
Vandervoort. No final do dia anterior, este telefonara emprestando-
lhe sua solidariedade e perguntando se poderia fazer alguma coisa
para ajudá-la. Ela agradeceu, mas disse que não, porque sabia que a
responsabilidade era unicamente sua.
Esta manhã tudo continuava na mesma.
Pouco antes do meio-dia, Edwina mandou que Tottenhoe determinasse
ao departamento de pessoal para encerrar, no final do
expediente, o trabalho de Juanita Núnez; que preparassem seu
termo de dispensa e o correspondente cheque, que devia ser
enviado para a agência central. O cheque, entregue por mensageiro,
estava em sua mesa quando Edwina voltou do almoço.
Sentindo-se pouco à vontade, hesitante, ela virava o cheque nas
mãos.
Entrementes, Juanita Núhez continuava a trabalhar, por decisão de
Edwina, na véspera, apesar das objeções macambúzias de
Tottenhoe, que declarou "quanto mais depressa nos livrarmos dela,
mais certeza teremos de que não haverá reincidência". Até Miles
Eastin, na qualidade de assistente de Operações, levantou as
sobrancelhas. Edwina ignorou a ambos.


Ela se perguntava por que, afinal, estaria se preocupando tanto,
quando, pela lógica, chegara o momento de pôr um ponto-fínal no
incidente e afastá-lo de sua mente.


Obviamente. A solução óbvia. E mais uma vez relembrou a máxima
de Lewis: desconfie sempre do óbvio.
Mas como? De que maneira?



Edwina disse para si mesma: "pense apenas mais uma vez;
recomece de novo".
Quais haviam sido as facetas óbvias do incidente? A primeira coisa
óbvia era que faltava o dinheiro. Quanto a isso, não havia lugar para
dúvidas. A segunda coisa óbvia é que a importância era de 6 000
dólares, confirmado por quatro pessoas: a própria Juanita,
Tottenhoe, Miles Eastin e até o caixa-chefe. Nenhuma dúvida.
A terceira faceta óbvia era a afirmação da Sra. Núnez de que, às
13h30min, ela sabia a importância exata do dinheiro que faltava,
após quase cinco horas de transações rápidas em seu guiché e antes
de haver conferido sua caixa. Todo mundo que sabia da perda,
Edwina inclusive, concordava que isto era obviamente impossível.
Desde o princípio, o conhecimento do montante exato por parte de
Juanita Núnez constituíra a pedra angular da crença geral de que
ela era uma ladra.
Conhecimento... conhecimento óbvio... obviamente impossível.
Mas, seria mesmo impossível?... Então veio-lhe uma idéia.
O relógio da parede marcava 14hl0min. Verificando que o chefe de
Operações estava em sua mesa, Edwina levantou-se:


— Sr. Tottenhoe, quer fazer o favor de me acompanhar?
Carrancudo como sempre, Tottenhoe seguiu-a. Ela percorreu o salão,
cumprimentando de passagem alguns clientes. Como de hábito,
a agência encontrava-se superlotada no final do expediente do
último dia antes do fim de semana. Juanita Núnez estava no ato de
receber um depósito.
Edwina dirigiu-se a ela:
— Sra. Núhez, quando acabar esta operação, por favor, dependure a
tabuleta Guiché fechado, e feche a sua caixa.
Juanita não respondeu, nem mesmo quando completou a transação,
ou quando pendurou a respectiva placa de metal, conforme as
instruções de Edwina. Quando se voltou para fechar a caixa,
Edwina pôde ver por que: a moça chorava em silêncio, as lágrimas
correndo pelo rosto.

A razão era fácil de adivinhar; ela já esperava ser despedida hoje e a
presença de Edwina confirmava isso. Edwina ignorou as lágrimas.

— Sr. Tottenhoe — disse ela — creio que a Sra. Núhez já está trabalhando
nesta caixa desde que abrimos esta manhã; estou certa?
Tottenhoe concordou:
— Sim, está.
A hora era quase a mesma da de quarta-feira, julgava Edwina, embora
a agência, hoje, estivesse ainda mais cheia. Ela apontou para a
caixa-gaveta:
— Sra. Núnez, a senhora tem repetido com insistência que pode
sempre saber a importância em dinheiro que tem em caixa. Por
acaso, poderia me dizer quanto tem agora?
A moça hesitou, mas concordou com a cabeça, ainda incapaz de
falar devido às lágrimas.
Edwina pegou um pedacinho de papel em cima do balcão e
entregou-o à Sra. Núhez.
— Escreva já a importância.
Mais uma vez Juanita hesitou: mas em seguida pegou um lápis e
rabiscou: 23 765 dólares.
Edwina passou o pedaço de papel a Tottenhoe e lhe disse:
— Por favor, acompanhe a Sra. Núhez e fique a seu lado enquanto
ela confere sua caixa do dia. Confira também você próprio o
resultado, e compare com esta importância.
Tottenhoe olhou para o pedacinho de papel de maneira céptica. 1—
Estou muito ocupado e se acompanhasse cada caixa ...
— Bem, mas esta você vai acompanhar — disse Edwina, e voltou à
sua mesa.
Três quartos de hora mais tarde, Tottenhoe voltou. Parecia nervoso.
Edwina podia ver que estava trêmulo. Trazia o pedaço de papel na
mão e o pôs sobre a mesa. Ao lado do montante escrito por Juanita
Núnez havia um sinal indicando que os números conferiam.

— Se eu mesmo não tivesse visto com meus próprios olhos — disse
o chefe de Operações — não teria acreditado. Por uma vez na vida
sua melancolia parecia ter-se evaporado, substituída pela surpresa.
— Você quer dizer que o número estava correto?
— Exatamente correto.
Edwina sentou-se, tensa, tentando pôr em ordem seus pensamentos.
De forma abrupta e dramática deu-se conta de que tudo em relação
à investigação mudara de aspecto. Até agora, todas as suposições se
baseavam na impossibilidade de a Sra. Núhez poder fazer o que
afirmava ter feito e que acabava de provar que podia fazer.
— Acabo de me lembrar de algo que aconteceu comigo há muitos
anos — disse Tottenhoe. — Certa vez conheci um funcionário de
uma pequena agência do Banco no norte do Estado — talvez há
mais de 20 anos — que tinha o dom, a aptidão especial de contar
dinheiro mentalmente. E lembro-me também de ouvir contar casos
semelhantes. É assim como se determinadas pessoas tivessem uma
máquina de calcular dentro da cabeça.
Edwina respondeu com aspereza:
— Gostaria que, quarta-feira, sua memória tivesse trabalhado melhor.
Quando Tottenhoe se retirou, ela começou a rascunhar
pensamentos que lhe vinham à cabeça.
Juanita Núhez ainda não estava livre, isenta, mas era possível dar-lhe


maior crédito. Talvez uma vítima inocente?
Se não fosse ela, então quem?
Alguém que conhece todo o funcionamento da agência; que de um modo ou
de outro pudesse esperar a oportunidade. Gente do quadro de funcionários?
Mas como?


"Como" era coisa para se pensar mais tarde. Antes, procuremos um
motivo, depois, então, a pessoa.

Motivo? Alguém que precise de dinheiro desesperadamente?


Ela repetiu: PRECISA DE DINHEIRO. E acrescentou: Examinar as
contas-correntes -pessoais, as cadernetas pessoais de todo o pessoal da
agência — ESTA NOITE!

Edwina começou a folhear às pressas a lista telefônica interna, procurando
a letra C. "Chefe do Serviço de Auditoria".

13


Às sextas-feiras, todas as agências do FMA tinham o expediente
prorrogado por três horas.
Nesta sexta-feira, as portas externas da agência central foram fechadas
por um guarda da segurança às 18 horas. Este mesmo guarda
abria e fechava as portas para deixar sair, um a um, os clientes
retardatários.
Exatamente às 18h5min, uma série de batidas rápidas e enérgicas na
porta de vidro chamou a atenção do guarda, que verificou tratar-se
e um jovem de sobretudo com uma pasta que, para atrair sua
atenção, batera no vidro com uma moeda enrolada num lenço.
Quando o guarda se aproximou, o homem mostrou-lhe suas
credenciais, através do vidro. O guarda reconheceu-as, abriu a porta
e o jovem entrou.
Ainda não tivera tempo de fechar a porta, quando surgiram, como
num passe de mágica, após este mais seis e. em seguida, mais outras
seis pessoas. Como uma verdadeira inundação, espalharam-se por
toda a entrada.
Um deles, mais velho que os demais, provando sua autoridade, declarou:


— Serviço de Auditoria da Matriz.
— Pois não, senhor — disse o guarda.

Como veterano no Banco, já passara por isto antes, e continuou a
conferir as credenciais apresentadas. Eram ao todo 20 pessoas,
quatro delas mulheres. Espalharam-se logo pelos diversos
departamentos do Banco. O que parecia chefiar o grupo dirigiu-se à
mesa de Edwina. Ao levantar-se para cumprimentá-lo, ela
observava aquele inopinado fluxo de auditores, sem ocultar sua
surpresa.

— Sr. Burnside, isto deve ser o que vocês chamam uma auditoria em
grande forma.
— De fato. Sra. D'Orsey.
Seu interlocutor tirou o sobretudo e pendurou-o num cabide. Por
toda a agência os funcionários reclamavam, aborrecidos e
melindrados! "Ora essa! Logo numa sexta-feira!..." "E eu que tinha
um jantar!... Quem disse que auditores são humanos?"
A maioria deles sabia o significado de uma auditoria: os caixas teriam
que recontar seu dinheiro antes de partirem e o cofre-forte
seria também reconferido; aos contadores seria solicitado que
ficassem até que seus livros fossem conferidos e comparados; os
mais graduados teriam muita sorte se conseguissem sair por volta
da meia-noite.
Os recém-chegados logo se apossaram dos livros-razão. A partir
deste momento, todo e qualquer cálculo estava sob controle.
Edwina disse:
— Quando pedi um exame das contas dos funcionários não
esperava exatamente isto.
Em geral, cada 18 meses ou até cada dois anos, realizava-se uma
auditoria de rotina. A de hoje era absolutamente inesperada, em
especial porque a agência havia passado por uma há apenas oito
meses antes.
— Cabe a nós decidir como. onde e quando devemos fazer uma auditoria.
Sra. D'Orsey.
Como sempre. Hal Burnside mantinha sua fria aparência de alheamento,
característica de todo auditor. Dentro de qualquer banco

importante, o departamento de auditoria é independente, uma
espécie de cão de guarda com autoridade e prerrogativas, mais ou
menos como a Inspetoria-Geral no Exército. Seus membros não se
intimidam ante postos e posições; até mesmo os mais graduados se
sujeitam a censuras sobre irregularidades que, acaso, um auditor
encontre — e sempre encontram alguma. Faz parte da profissão.

— Sei disso muito bem — disse Edwina. — Só estou admirada de
que pudesse providenciar tudo com tanta rapidez.
O chefe de auditoria sorriu, com um ar superior e sentenciou:


— Temos nossos métodos e meios.
O que ele não revelou foi que outra auditoria "surpresa" estava planejada
para este mesmo dia e hora, em outra agência do Banco.
Após o telefonema de Edwina, cancelou-se a primeira, os planos
foram revistos, e alguns auditores foram chamados a colaborar
nesta nova misssão.
Para eles, eram medidas normais. Fazia parte essencial da função do
auditor irromper, sem prévio aviso, em qualquer das agências de
um banco. Eram tomadas todas as precauções para manter o sigilo
da operação; qualquer membro da auditoria que o violasse via-se
em maus lençóis. Poucos o faziam, mesmo por distração.
Para a presente operação, o grupo de auditores reunira-se antes no
salão de um hotel do centro, cujo nome e endereço só lhes foi
revelado no último minuto. Foram informados de tudo, e suas
tarefas definidas. Então, em grupos de dois ou três, dirigiram-se à
agência central. Como de hábito, um dos auditores menos
categorizado batera na porta de vidro, pedindo para ser admitido.
Tão logo o fosse, os demais, como um regimento, entravam
também.
Agora, dentro do Banco, os membros da auditoria já ocupavam suas
posições-chave.
Um peculatário, bancário dos anos 70, que com muita habilidade
conseguira encobrir suas falcatruas durante 20 anos, comentou a
caminho da prisão:

— Os auditores costumavam ir e vir e durante 40 minutos ficaram
"olhando para ontem". Se eu tivesse metade desse tempo, poderia
fazer o que quisesse.
Mas com o departamento de auditoria do FMA, bem como outros
grandes bancos americanos, não era nada assim. Antes de cinco
minutos cada auditor já se encontrava na posição que lhe havia sido
destinada, observando tudo.
Resignados, os funcionários terminavam seus trabalhos e passavam
a cooperar com os auditores, quando necessário.
Uma vez iniciado, o processo prosseguia durante toda a semana e
parte da seguinte. Mas a parte mais crítica teria lugar nas próximas
horas.
— Sra. D'Orsey — disse Burnside. — À* senhora e eu vamos trabalhar
em conjunto. Primeiro examinaremos as contas-correntes. —
Abriu sua pasta sobre a mesa de Edwina.
Cerca de 20 horas, já uma grande parte do trabalho fora realizado, e
os funcionários iam-se retirando. Todos os caixas já haviam partido,
bem como muitos dos contadores. Todo o dinheiro fora contado e a
inspeção dos registros estava em andamento. Os auditores haviam
sido amáveis e, em alguns casos, bastante úteis, mostrando aqui e
ali pequenos enganos.
Entre o pessoal mais categorizado que ainda permanecia no Banco
estavam Edwina, Tottenhoe e Miles Eastin. Os dois homens
ocupavam-se em localizar os dados pedidos e respondiam a
perguntas. Tottenhoe já aparentava cansaço; mas o jovem Miles, que
atendia a todas as solicitações com seu habitual espírito de
colaboração, mostrava-se com tão boa aparência como quando
começara a auditoria. Fora ele quem providenciara sanduíches e
café para os auditores e os demais.
Um pequeno grupo se ocupava das cadernetas de poupança e das
contas-correntes e, de vez em quando, um deles trazia uma
anotação para o chefe do Serviço de Auditoria, deixando-a sobre a

mesa de Edwina. Ele examinava o papel e juntava-o a outros
documentos em sua pasta.
As 9h50min, recebeu uma anotação mais longa que as anteriores,
capeando certos documentos. Burnside estudou com cuidado esta
anotação e, então, disse:


— Acho que a Sra. D'Orsey e eu vamos fazer uma pausa. Vamos
cear e tomar café.
Poucos minutos depois, levava Edwina pela mesma porta onde os
auditores haviam entrado quase três horas atrás. Uma vez fora do
prédio, desculpou-se:
— Tive de fazer uma certa encenação, há pouco. Nossa ceia, se
houver, vai ter muito que esperar.
Edwina olhou-o interrogativamente, e ele acrescentou:
— Queria falar-lhe a sós, mas sem que ninguém percebesse.
Viraram à direita, andaram meio quarteirão, depois usaram uma
passagem para pedestres entre a Rosselli Plaza e a sede do Banco. A
noite estava fria e Edwina apertava o casaco contra o corpo,
pensando quão mais curto e menos frio teria sido o caminho do
túnel. Por que tanto mistério?
Alcançado o prédio da sede, Hal Burnside assinou o livro de
entrada e um guarda acompanhou-o no elevador até o décimo-
primeiro andar. Uma seta indicava "Departamento de Segurança".
Nolan Wainwright e os dois agentes do FBI os aguardavam.
Quase imediatamente juntou-se a eles mais um membro da
auditoria, que obviamente tinha seguido Edwina e Burnside.
Feitas as apresentações, Edwina reconheceu que o jovem, de nome
Gayne, que os seguira, era o niesmo que passara a Burnside as
últimas anotações e documentos. Os olhos de Gayne eram alegres,
vivos, embora os óculos de grau forte que usava lhe dessem uma
aparência austera.
Seguindo sugestões de Nolan Wainwright, transferiram-se para
uma sala de reuniões e sentaram-se em volta de uma mesa redonda.
Hal Burnside dirigiu-se aos agentes do FBI:

— Creio que encontramos alguma coisa que justifica tê-los
chamado a esta hora da noite.
Esta reunião, pensava Edwina, fora planejada com bastante antecedência.
E perguntou:
— Então, de fato, conseguiram descobrir alguma coisa?
— Infelizmente, muito mais do que qualquer um poderia desejar,
Sra. D'Orsey.
A um sinal de Burnside, seu assistente de auditoria, Gayne, começou
a espalhar os papéis sobre a mesa.
— Seguindo sua sugestão — disse Burnside num tom de conferencista
— foi feita uma inspeção em todas as contas-correntes e
cadernetas de poupança do pessoal empregado na agência central.
O que pretendíamos encontrar era alguma evidência de dificuldade
financeira pessoal. E encontramos.
Suas palavras soam como as de um professor solene, pensava Edwina'.
Mas continuou a ouvi-lo em silêncio.


— Talvez deva esclarecer — prosseguiu o auditor, dirigindo-se aos
homens do FBI — que a maioria dos bancários mantém suas contas
na agência em que trabalham. Por duas razões: uma, suas contas são
grátis, isto é, não lhes é cobrada taxa de serviço; a segunda razão —
e a mais importante — é que aos empregados é concedida uma taxa
de juros mais baixa nos empréstimos, em geral, um por cento abaixo
da taxa normal.
Innes, chefe dos agentes do FBI, concordou:
— Estamos a par de tudo.
— Então concordarão também que um funcionário que já utilizou
todo seu crédito, isto é, fez empréstimos até o limite máximo e,
depois, contrai dívidas em outras fontes, como, por exemplo, numa
financeira cujos juros são notoriamente elevados, encontra-se em
péssima situação. Tudo indica que temos no Banco um funcionário
nesta exata situação. — Dirigiu-se a seu assistente, Gayne, que lhe
passou vários cheques descontados.

— Como verão, estes cheques foram emitidos por três financeiras
diferentes. Aliás, já nos comunicamos por telefone com duas delas e,
apesar dos saques, as duas contas estão em atraso. Estamos quase
certo de que a outra financeira nos dará resposta idêntica.
Gayne interrompeu-o para esclarecer:

— Estes cheques referem-se apenas ao mês em curso. Amanhã
examinaremos os registros microfilmados referentes aos meses
anteriores.
— Mais um fato relevante — disse Burnside — é que a pessoa envolvida
não poderia de forma alguma cobrir tais empréstimos — e
apontou para os cheques descontados — com o produto de seu
salário, que sabemos qual é. Concluindo: durante as últimas horas
estivemos procurando uma prova de roubo dentro do Banco e,
afinal, a encontramos.
Mais uma vez Gayne exibiu documentos.
... prova de roubo dentro do Banco ... agora encontrada. Edwina já quase
não ouvia, com os olhos fixos na assinatura constante de cada um
dos cheques — uma assinatura tão familiar, que via todos os dias.
Sentia-se magoada, estarrecida.


A assinatura era de Miles Eastin, o jovem Miles, de quem ela gostava
tanto, que era tão eficiente como assistente de Operações, tão
incansável e solícito, até mesmo esta noite, e quem ela havia
decidido, exata-íente esta semana, promover quando Tottenhoe se
aposentasse.

O chefe do Serviço de Auditoria disse então:

— O que o nosso ladrão cretino tem feito é aproveitar-se das contas
não-movimentadas. Depois que descobrimos a primeira prova
disto, foi fácil encontrar as outras.
Ainda num pomposo tom professoral, ele definiu para os homens
do FBI o que era uma "conta não-movimentada": era uma conta-
corrente ou caderneta com pouco ou nenhum movimento. Todos os
bancos tinham clientes que, por várias razões, deixavam estas


contas ou cadernetas paradas durante longos períodos, às vezes,
durante anos, embora as importâncias em depósito fossem bem
grandes. Os juros, ainda que baixos, acumulavam-se às poupanças,
é verdade, e alguns clientes levavam isso em conta; outros havia —
incrível, mas verdadeiro — que simplesmente abandonavam suas
contas-correntes.

Quando uma conta-corrente ficava parada, sem retiradas nem depósitos,
os bancos deixavam de mandar aos respectivos clientes o
extrato mensal, passando a mandá-los apenas anualmente. Mesmo
assim, em certos casos, a correspondência era devolvida com a
anotação postal: "Mudou-se. Endereço ignorado."

Certas precauções eram tomadas para evitar o uso fraudulento dessas
contas não-movimentadas, continuou o chefe de auditoria. Seus
registros eram isolados; se acaso fosse feita alguma transação, ela
era examinada pelo assistente de Operações, que se certificava ser a
mesma, de fato, legítima. Em geral, tais precauções eram eficazes.
Como assistente de Operações, Miles Eastin tinha autoridade para
fazer o escrutínio e aprovar as transações das contas não-
movimentadas. Tinha autoridade para encobrir sua própria
desonestidade, ou seja, o fato de que ele próprio roubava dessas
contas.

— Eastin tem sido muito esperto, selecionando as contas com menores
possibilidades de lhe dar preocupações. Temos aqui uma série
de talões de retirada falsificados, embora não muito bem, que
possibilitavam a transferência dessas importâncias para uma conta-
fantasma, do próprio Eastin, sob um nome fictício. Há uma
semelhança evidente nas letras, o que um perito pode comprovar.
Um por um, todos os presentes examinaram os talões, comparando
a letra com a dos cheques que haviam examinado antes. Embora
disfarçada, a semelhança era patente.

O outro agente do FBI, Dalrymple, fazia anotações. A seguir,
dirigindo-se a todos, indagou:


— Qual a importância já levantada? Gayne respondeu:
— Até agora, cerca de 8 000 dólares; amanhã, no entanto, teremos
acesso a registros mais antigos através dos microfilmes e do
computador, que poderão indicar mais.
Burnside acrescentou:
— Já sabemos tanto a respeito do Eastin, que talvez ele próprio resolva
facilitar as coisas admitindo logo o resto. É uma reação
habitual, quase padronizada, sempre que pegamos o autor de um
peculato.
Ele está gozando tudo isto, pensava Edwina; está tendo um prazer
real. Sentia-se irracionalmente defendendo Eastin, e perguntou:
— Vocês têm alguma idéia de há quanto tempo isto vem acontecendo?
— Pelo que já conseguimos descobrir, creio que pelo menos há um
ano — respondeu Gayne.
Edwina dirigiu-se a Burnside:
— Quer dizer, então, que os senhores deixaram-se enganar na
última inspeção de rotina que fizeram. Não faz parte de seu
trabalho o exame das contas não-movimentadas?
Ela tocara na ferida. Burnside enrubesceu, mas teve de admitir, irritado:
Sim, faz parte; mas até nós somos enganados quando um ladrão
tem oportunidade de encobrir o próprio rastro.
— É claro! Embora tenha admitido, há pouco, que a semelhança das
letras era uma pista.
Burnside respondeu com azedume:
— Bem; MAS DESTA VEZ O PEGAMOS. Edwina retrucou:
— Pegaram porque eu os chamei.
Innes, o agente do FBI, quebrou o silêncio que se seguiu.
— Nada disso nos levou a coisa alguma no que se refere ao dinheiro
roubado quarta-feira.

— Exceto no que faz de Eastin o principal suspeito — disse Burnside,
que parecia aliviado em mudar de assunto. — Talvez ele
próprio venha a admitir esse roubo.
— Não, não o fará — falou Nolan Waiwright em tom irritado —
Aquele cretino é vivo demais. E além disso, por que o faria? Ainda
não descobrimos como ele agiu.
Até o momento, o chefe da Segurança do Banco pouco falara, conquanto
sua expressão se tornasse dura quando os auditores lhe
mostraram os papéis comprovadores da fraude. Edwina perguntava
a si mesma se Wainwright se lembrava de como, ambos, haviam
pressionado Juanita Núnez, descrendo dos seus protestos de
inocência. Mesmo agora, ela refletia, ainda havia a possibilidade de
a caixa e Eastin serem cúmplices, circunstância que, no entanto, lhe
parecia remota.
Hal Burnside preparou-se para sair, fechando sua pasta e disse:
— Retira-se a Auditoria para ceder lugar à Lei.
— Vamos precisar desses documentos e de uma declaração escrita
— esclareceu Innes.
— O Sr. Gayne ficará à sua disposição.
— Mais uma pergunta:
Os senhores acham que Eastin tem idéia de que foi descoberto?
— Duvido muito — disse Burnside após consultar seu assistente
com o olhar. — E acrescentou:
— Tenho certeza de que nem desconfia. Tivemos o máximo cuidado
para não mostrar o que estávamos procurando e, para despistar,
fizemos a ele diversas perguntas e pedidos que nada tinham a ver
com a realidade.
— Também estou de acordo — disse Edwina. — Lembrava-se com
tristeza de como Miles mostrara-se alegre e ativo antes que ela e
Burnside saíssem da Agência. Por que o fizera? Por que, meu Deus, por
quê?

— Deixemos as coisas como estão — disse Innes. — Iremos
interrogá-lo tão logo tenhamos terminado aqui, mas é preciso que
não seja alertado. Ele ainda está no Banco?
— Está — respondeu Edwina. — Ficará, pelo menos, até que voltemos
e, como de hábito, será dos últimos a sair.
Nolan Wainwright interrompeu-a, falando de modo estranhamente
áspero.
— Retifique essas instruções; conserve-o aqui o mais possível. Depois,
deixe-o ir para casa pensando que nada foi descoberto.
Os presentes olharam-no sem perceber, mas os agentes do FBI trocaram
um olhar com ele.
Innes hesitou; depois aquiesceu.
— Está bem; faça como quiser.
Poucos minutos após, Edwina e Burnside desciam pelo elevador.
Delicadamente, Innes dirigiu-se ao auditor presente:
— Antes de tomar seu depoimento, peço-lhe, se possível, que nos
deixe a sós por uns minutos.
— Claro — disse Gayne. — E saiu da sala.
— O que pretende você fazer? — indagou Innes a Wainwright.
O chefe da Segurança hesitou um pouco, lutando entre a
consciência e a decisão que acabava de tomar. A experiência lhes
ensinara que a evidência contra Eastin tinha certas falhas que
precisavam ser preenchidas. Mas, para isso, ele teria de ir de
encontro a seus princípios, ou seja, não se limitar aos ditames da lei.
Afinal, indagou ao agente do FBI:


— Tem certeza de que quer mesmo saber?
Os dois se entreolharam. Conheciam-se há muitos anos e
respeitavam-se mutuamente. Innes respondeu:
— Hoje em dia as coisas mudanam; já não podemos tomar certas
liberdades que tomávamos antes, para obter provas. Se vamos longe
demais, o feitiço vira contra o feiticeiro.

O agente fez uma pausa e prosseguiu:

— Diga o que acha que deve dizer.
A voz de Wainwright evidenciava sua tensão:
— Bem. temos o suficiente para prender Eastin por furto e por apropriação
indébita. Digamos que a importância roubada seja de 8 000
dólares, mais ou menos. Qual seria a sentença do júri?
— Como delinqüente primário, seria absolvido — respondeu Innes.
— Os jurados nunca se preocupam com a importância envolvida.
Sempre pensam que os bancos têm muito dinheiro e que estão
segurados contra tudo.
— Muito bem — disse Wainwright. — Mas se pudermos comprovar
que, quarta-feira, também roubou os 6 000 dólares, que quis pôr a
culpa na moça e que quase o conseguiu...
— Se você puder provar isso — disse Innes — bem, então qualquer
júri razoável o mandará diretamente para a cadeia. Mas você tem
essas provas?
— Não tenho, mas pretendo tê-las. Porque, para mim. já se transformou
numa causa pessoal mandar esse sacana para a cadeia.
— Sei o que está pensando — disse Innes. — Também eu gostaria de
vê-lo atrás das grades.
— Então faça o que sugeri: não lhe diga nada: dê-lhe até amanhã.
— Não sei; não sei se posso fazer isso.
Os três homens meditavam acerca de seus deveres e das afinidades
que os ligavam. Tinham, mais ou menos, idéia daquilo que
Wainwright pretendia fazer. Mas. até que ponto, até que limite os
fins justificavam os meios? Em outras palavras: até que ponto pode
ir, hoje. um representante da lei sem se prejudicar?
Mas os homens do FBI já se haviam engajado no caso e partilhavam
do ponto de vista e dos objetivos de Wainwright.



— Deixar que Eastin de nada desconfie até amanhã, é possível —
esclareceu o outro agente — mas não podemos dar-lhe
oportunidade de fugir: isto. sim, nos traria problemas.

— Além disso — disse Innes — também não quero derramamento
de sangue.
— Ele não fugirá, nem haverá sangue. Isto eu prometo — retrucou o
chefe da Segurança.
Innes consultou com o olhar seu colega e este deu de ombros.


— Então, está bem. Até amanhã. Mas lembre-se de uma coisa: esta
nossa conversa nunca existiu.
Em seguida, atravessou a sala e abriu a porta, dizendo: — Sr.
Gayne, o Sr. Wainwright está de saída; estamos prontos para ouvir
seu depoimento.
14


O nome completo, o endereço o número do telefone de Miles Eastin
constavam do fichário do Departamento de Segurança do Banco.
Nolan Wainwright anotou esses dados.

Conhecia o local: uma área residencial da classe média a cerca de
dois quilômetros e meio do centro da cidade. A informação dizia:
Apartamento 2G.

Ao deixar o prédio do FMA, o chefe de Segurança fez uma chamada
de um telefone público, existente na Rosselli Plaza, para a casa de
Miles. O telefone tocou em vão. Era o que esperava, pois Miles era
solteiro e Wainwright supunha que morasse sozinho.


Se alguém respondesse, ele teria dado uma desculpa, como "perdão,
foi engano" e modificaria seus planos. Mas já que ninguém
respondeu, entrou em seu carro, estacionado na garagem do Banco.
Antes abriu o porta-luvas do carro e dele retirou um pequeno estojo
de couro de cabra, que guardou num bolso interno do paletó. Pôs o
carro em marcha e atravessou a cidade.

Dirigiu-se para o endereço anotado, prestando atenção no trajeto.
Tratava-se de um prédio de três andares, construído há cerca de 40
anos, e que já necessitava de reforma. Nolan calculou que devia ter
uns 12 apartamentos. Não tinha porteiro. A porta da rua abria para
um vestíbulo que ostentava caixas de correspondência e botões de
campainha dos respectivos apartamentos. Ao fundo, uma sólida
porta, sem dúvida fechada. Era dez e meia da noite. O tráfego era
pequeno; os transeuntes raros. Nolan entrou.
Ao lado das caixas de correspondência havia três filas de botões das
campainhas e um interfone. Wainwright viu o nome Eastin e
apertou o botão correspondente. Como esperava, não houve
resposta.
Imaginando que 2G indicava o segundo andar, escolheu ao acaso,
outro botão com o prefixo 3G e pressionou-o. Uma voz de homem
fez-se ouvir, perguntando:

— Quem é?
O nome ao lado da campainha era Appleby.
— Western Union — disse Wainwright. — Telegrama para o Sr.
Appleby.
— Bem, traga-o.
Ouviu-se o toque de uma campainha e a porta interna abriu-se
automaticamente. Wainwright entrou e fechou-a.
Recusando o elevador, subiu pela escada ao lado, de dois em dois
degraus, até o segundo andar.
Enquanto subia, ele pensava na espantosa ingenuidade das pessoas
em geral. Desejava que Appleby, fosse quem fosse, não esperasse

muito tempo por seu telegrama. Mas, afinal, não sofreria nada mais
que uma pequena dúvida, um sentimento de frustração. Entretanto,
os moradores de apartamentos, em toda parte, apesar de alertados
com freqüência, continuavam a agir sempre da mesma maneira.
Claro, Appleby talvez se preocupasse, suspeitasse e, afinal,
chamasse a polícia. Mas Wainwright duvidava disso. De qualquer
forma, em poucos segundos já não faria grande diferença.
O apartamento 2G era ao fim do corredor do segundo andar e
Wainwright não teve grande dificuldade para abrir a porta, após
experimentar uma série de finas lâminas que trazia em seu estojo de
couro. Na quarta tentativa a porta abriu-se e ele entrou no
apartamento.
Ficou algum tempo parado, até que seus olhos se acostumassem
com a escuridão; depois dirigiu-se a uma janela e ergueu um pouco
a persiana. Encontrou um interruptor e acendeu a luz.
O apartamento era pequeno, para uso de uma só pessoa: apenas um
aposento dividido em áreas. Na parte destinada à sala
encontravam-se um sofá, uma poltrona, um televisor portátil, uma
pequena mesa para refeições. Separada por meia parede, a cama.
Portas corrediças e sanfo-nadas vedavam a pequena cozinha. A
seguir, abriu duas portas que davam respectivamente para um
banheiro e para um pequeno armário. O apartamento estava limpo
e arrumado. Algumas prateleiras de livros e gravuras emolduradas,
nas paredes, davam um toque pessoal.
Sem perda de tempo, Wainwright começou uma busca sistemática e
minuciosa.
Enquanto agia, procurava dominar-se; tentava não se atormentar
pela ilegalidade que estava praticando. Mas sem resultado, pois
sabia que seus atos representavam, na realidade, o oposto de todos
os padrões morais, a própria negação de sua crença na lei e na
ordem. Mas era impulsionado pela raiva, pelo reconhecimento do
seu fracasso, quatro dias atrás.


Lembrava-se com terrível clareza, mesmo agora, do apelo mudo nos
olhos da jovem porto-riquenha, quando a encontrara pela primeira
vez durante o interrogatório. Era um apelo que dizia de forma
evidente: Você e eu... você é preto e eu sou morena. Portanto, você,
entre todos, devia poder imaginar como me sinto só, em
desvantagem, e como preciso desesperadamente de ajuda e de
justiça. Mas embora reconhecendo o apelo, ele o desprezara com
aspereza.

Tal .lembrança, somada à humilhação que sentia por haver sido
enganado, logrado por Miles Eastin, fez com que Wainwright
tomasse a decisão de vencê-lo neste jogo, pouco lhe importando se a
lei estivesse sendo violada.
Então, da maneira metódica como fora treinado na polícia, prosseguiu
na busca, certo de que, se houvesse alguma evidência, ele a
encontraria.

Meia hora depois, constatou que restavam poucos lugares onde
qualquer Coisa pudesse estar escondida. Já havia examinado o
guarda-louça, gavetas, móveis, malas, o reverso dos quadros e
removido a parte posterior do televisor. Também folheara os livros,
observando que uma prateleira inteira era destinada ao que alguém
já lhe dissera ser a mania de Eastin: o estudo do dinheiro através do
tempo. Ao lado desses livros, uma pasta continha desenhos e
fotografias de moedas e notas antigas. Mas não havia traço de
qualquer coisa incriminadora. Finalmente, juntou os móveis todos
em um canto da sala e enrolou o tapete. Com a ajuda de uma
lanterna elétrica, estudou cada polegada do assoalho.

Sem esse foco de luz, nada teria notado; não teria percebido duas
linhas de colorido mais claro que indicavam onde a madeira fora
serrada. Com uma alavanca improvisada, levantou o pedaço do
assoalho correspondente aos cortes e sob ele encontrou um pequeno
livro-razão e maços de notas de 20 dólares. Retirou o dinheiro e o


livro e, com presteza, recolocou tudo em seus lugares, inclusive os


móveis.
Contou o dinheiro: o total era de 6.000 dólares. Passou os olhos pelas
anotações do livro-razão, chegando à conclusão de que se
tratava de um registro de apostas, e ficou espantado com o volume
das importâncias registradas.
Pôs o dinheiro e a caderneta sobre a mesa, calculando que teria
tempo para examinar esta última mais tarde.
Encontrar o dinheiro fora uma surpresa. Não tinha dúvidas de que
se tratava dos 6.000 dólares roubados do Banco, quarta-feira, mas
julgava que Eastin já os houvesse trocado, ou ocultado em qualquer
outro lugar. Sua experiência na polícia ensinara-lhe que os
criminosos costumam fazer coisas tolas, inesperadas; esta era uma
delas.


O que faltava saber era como Eastin roubara e trouxera o dinheiro
para casa.
Wainwright deu mais uma olhadela pelo apartamento, depois desligou
as luzes, sentou-se confortavelmente ao sofá, e esperou.


Na semi-escuridão do apartamento, iluminado apenas pelos
reflexos que vinham da rua através das persianas, seus
pensamentos sucediam-se. Mais uma vez pensou em Juanita Núnéz
e desejou encontrar um modo de pedir-lhe desculpas. Então
lembrou-se do relatório do FBI sobre seu marido, Carlos, que fora
localizado em Phoenix, e ocorreu-lhe que talvez essa informação
pudesse ser útil à moça.


Claro, a informação de Miles Eastin a respeito de ter visto Carlos
Núnéz no Banco quando o dinheiro fora roubado, tinha a intenção
de fazer Juanita ainda mais suspeita.
Aquele desprezível filho-da-màe! Que espécie de homem era ele,
primeiro para pôr a culpa na moça, e ainda tentar fortalecer essa
culpa? A raiva de Wainwright cresceu, mas tentou dominar-se para
que seus sentimentos não se tornassem demasiado fortes.



Era necessário que dominasse o rancor, cuja causa ele conhecia.
Devia-se a um incidente que há muito havia recalcado, mas que, às
vezes, forçava para vir ao plano de sua consciência. Mesmo sem
querer, começou a lembrar-se do fato.
Nolan Wainwright, agora próximo dos 50 anos de idade, nascera e
se criara nas favelas da cidade e, desde menino, se dera conta de
que todas as probabilidades lhe eram adversas. Cresceu com o
sentimento de que o simples fato de viver o dia-a-dia era um desafio
e que o crime — pequeno ou grande — constituía a norma à sua
volta. Durante a adolescência participara de uma gang do gueto,
para a qual qualquer atrito com a lei era prova de masculinidade.
Como outros, provenientes do mesmo ambiente miserável, algo o
impelia a se tornar alguém, a se fazer notar em qualquer sentido, a
fim de vencer seu ódio interior à obscuridade. Ele não tinha»nem
experiência nem uma norma para pesar as alternativas. Assim,
participar dos crimes de rua parecia ser a única, a inevitável trilha.
Tudo levava a crer que acabaria, como tantos de seu grupo, preso e
fichado.
Mas nada disso aconteceu, em parte devido ao puro acaso, em parte
devido a Bufflehead Kelly.
Bufflehead era um guarda da vizinhança, não muito inteligente,
preguiçoso, já maduro, porém amável, que havia aprendido que a
sobrevivência de um policial no gueto poderia ser mais longa se, de
maneira hábil e cuidadosa, estivesse sempre fora do local onde
ocorresse algum crime ou assalto, e agisse somente quando o
problema se apresentasse bem debaixo do seu nariz. Seus
superiores queixavam-se de ser o número de prisões que efetuava o
mais baixo do respectivo distrito policial mas, do ponto de vista de
Bufflehead, sua aposentadoria e pensão pesavam mais, e a cada ano
chegava mais perto delas.
No entanto, o adolescente Nolan Wainwright fez algo errado exatamente
debaixo do nariz de Bufflehead numa noite em que a gang do
gueto tentava assaltar um armazém, quando o policial de plantão


no local interveio e todos tiveram que fugir, exceto Wainwright que
tropeçou e veio cair bem aos pés de Bufflehead.
— Seu macaco estúpido e desajeitado — queixou-se o policial. —
Agora vamos ter que enfrentar toda espécie de burocracia e
tribunal, e você vai me dar um trabalho danado esta noite.
Kelly detestava a burocracia, detestava ter que depor no tribunal,
pois tudo isso significava trabalho extra, fora do horário de plantão.
Acabou desistindo. Em vez de prender e acusar Wainwright
limitou-se a levá-lo, na mesma noite, para o ginásio da polícia e,
segundo suas próprias palavras, "quebrou-lhe os ossos" num ringue
de box.
Nolan Wainwright, machucado, o olho bastante inchado, mas não
fichado, reagiu com ódio. Assim que pudesse quebraria a cara de
Buffle-head Kelly transformando-a numa pasta, objetivo esse que o
trouxe de volta ao ginásio da polícia — e a Bufflehead — para
treinar. Mais tarde Wainwright percebeu que apenas necessitava de
uma saída, de uma válvula de escape para a própria agressividade.
Aprendeu depressa. Quando chegou a hora em que poderia reduzir

o burro e preguiçoso policial a uma pasta, percebeu que não mais
desejava fazê-lo. Ao contrário, tornara-se amigo do velho, e ficara
emocionado ao constatar a amizade que nascera entre eles.
Durante um ano, ainda, Wainwright continuou a boxear, ficou na
escola e conseguiu manter-se fora de qualquer confusão. Certa
noite, Bufflehead, de plantão, mesmo sem querer, interrompeu o
assalto em uma mercearia. Sem dúvida, estava mais amedrontado
que os dois valentões metidos a assaltantes e por certo não teria se
precipitado, mesmo porque ambos os jovens estavam armados.
Como a investigação o comprovaria depois, Bufflehead nem sequer
tentou puxar seu revólver.
Mas um dos ladrões entrou em pânico e, antes de fugir, descarregou
toda sua munição na barriga dele.
O tiroteio atraiu logo uma multidão que se aglomerou em volta do
policial ferido. O jovem Nolan Wainwright estava presente.

Ele sempre se lembraria — como agora — do pobre, inofensivo e
preguiçoso Bufflehead, consciente, contorcendo-se, gemendo,
gritando em agonia enquanto o sangue de suas vísceras jorrava das
feridas mortais.
A ambulância demorou e, quando chegou,. Bufflehead já tinha morrido,
após atroz e rápida agonia.


O incidente deixou uma marca indelével no jovem, embora não
fosse exatamente a morte de Bufflehead que mais o afetasse. O que


o chocara e, acima de tudo, passaria a influenciá-lo doravante, fora
aquela perda inútil, sem sentido. O crime original, em si, já era tolo
e predestinado a falhar. E, ao falhar, causara uma trágica
devastação. Na mente de Wainwright apenas aquele pensamento
persistia. Era como se fosse uma catarse, pela qual ele visse
qualquer crime como igualmente negativo, destrutivo e, mais tarde,
como um perigo a ser evitado por todos os modos. Talvez, no
começo, existisse nele um certo puritanismo latente, profundo. Se
assim era, esse puritanismo acabou por chegar ao nível da
consciência.
Da juventude à maturidade ele foi evoluindo como um indivíduo
com padrões determinados, rígidos e, em conseqüência, foi-se
tornando cada vez mais solitário entre seus amigos, e acabou por
ser admitido na força policial. Mas era um policial eficiente, que
aprendeu e subiu na carreira com rapidez. Além disso, era
incorruptível, como certa vez Ben Rosselli e seus auxiliares tiveram
de constatar.
Mais tarde, no FM A, esses sentimentos íntegros e seu caráter incorruptível,
jogaram sempre a seu favor.
É possível que o chefe da Segurança tivesse cochilado, mas o ruído
de uma chave na porta alertou-o. O mostrador luminoso de seu
relógio indicava que passava pouco da meia-noite.


Uma sombra entrou e uma réstia de luz do corredor iluminou a
figura de Eastin. A porta fechou-se e ele percebeu que Eastin tateava
à procura do interruptor; a luz acendeu-se.
Eastin viu Wainwright. Sua surpresa foi extrema. Abria a boca e o
sangue fugiu-lhe das faces. Tentou falar, mas engasgou-se, as
palavras não vinham.

Wainwright levantou-se. Sua voz cortava como uma faca:

— Quanto você roubou hoje?
Antes que Eastin pudesse responder, Wainwright pegou-o pelas
lapelas do paletó e deu-lhe um murro que o jogou sobre o sofá.
Eastin tentou bancar o indignado, perguntando:
— Quem deixou você entrar? Que diabo está você...
Seus olhos deram com o dinheiro e o livro-razão em cima da mesa.
Ficou estarrecido.
— É isto mesmo — disse Wainwright com aspereza. Vim buscar o
dinheiro do Banco, ou o que restava dele. — Olhou para as notas. —
Sabemos que este é o que você roubou quarta-feira e, caso esteja
preocupado, tem toda razão, porque ainda sabemos muito mais.
Miles Eastin permanecia mudo, atônito. Começou a tremer, como se
fosse vítima de uma convulsão. Pôs a cabeça entre as mãos.
— Acabe com isto! — Wainwright aproximou-se dele, tirou-lhe as
mãos do rosto, levantando-lhe a cabeça apenas o suficiente para que
pudesse atingi-la com outro soco, mas lembrou-se da promessa que
fizera ao homem do FBI: nenhum sangue derramado.
Então, limitou-se a acrescentar:
— Você tem muito que contar, vá começando. Eastin implorou:
— Me dê um minuto para pensar.
— Nem um minuto!
A última coisa que o chefe da Segurança queria era dar tempo ao
outro para pensar. Tratava-se de um jovem muito inteligente e
poderia pensar, com acerto, que a melhor coisa seria ficar calado.

Wainwright sabia que, no momento, contava com duas vantagens:


uma, era ter apanhado Miles Eastin de surpresa; a outra, não estar
se restringindo à lei.
Se os membros do FBI estivessem presentes, teriam que informar a
Eastin quais seus direitos legais — o direito de não responder a
perguntas e o direito de ter um advogado a seu lado. Wainwright,
como não era mais policial, estava isento dessa obrigação.


O que, na realidade, ele queria era uma prova concreta, referente
aos 6.000 dólares roubados. Queria que ficasse comprovado ser
Eastin o autor do furto e, para tanto, precisava de uma confissão
assinada.
Sentou-se, fitando o jovem, tentando amedrontá-lo da maneira mais
direta.
Como Eastin se mantinha no mais absoluto silêncio, ele folheou o
pequeno livro-razão.


— Comecemos por aqui. — Seus dedos percorreram uma coluna
que indicava datas e importâncias. Ao lado de cada entrada havia
outros números, que pareciam codificados. — Isto são apostas, ou
não?
Eastin concordou com um leve aceno de cabeça e acrescentou: —
Trata-se de uma aposta de 250 dólares sobre um jogo de futebol
entre Texas e Notre Dame. Todas as probabilidades eram a favor do
Notre Dame, mas ganhou o Texas.
— E isto QUI? Outra-resposta,*num murmúrio:
— Mais um jogo de futebol; e mais uma perda.
— Continue! — Wainwright insistia, apontando, na página aberta,
cada uma das apostas.
As respostas vinham devagar. Algumas entradas referiam-se a jogos
de basquete. Pouquíssimas apostas estavam na coluna do lucro e,
claro, a das perdas era muito maior. A aposta mínima era sempre de
100 dólares; as mais altas chegavam a 300 dólares.
— Você apostava sozinho ou com um grupo?
— Com um grupo,
— E quem fazia parte desse grupo?

— Quatro rapazes, empregados como eu.
— Trabalham no Banco?
Eastin balançou a cabeça, negativamente:
— Não, trabalham em outros lugares.
— Diga-me, eles também perdiam?
— Vários deles. Mas tinham uma média melhor que a minha.
— Me dê o nome deles.
Nenhuma resposta. Wainwright não insistiu:
— Você não apostava nas corridas de cavalo. Por quê?
— Porque decidimos assim. Todo mundo sabe que as corridas de
cavalo são trapaceadas. Mas futebol e basquete não o são. Então,
resolvemos adotar um sistema: apostar só em jogos honestos.
Achávamos que, assim, poderíamos ganhar.
O total das perdas indicava como se haviam enganado.
— Você apostou com bookmakers? Um ou vários?
— Um.
— Como se chama?
Eastin manteve-se mudo, absolutamente mudo.
— E o resto do dinheiro que você tem roubado do Banco, onde está?
Eastin não sabia o que dizer, mas após um certo silêncio respondeu
de modo humilde.


— Foi-se.
— E talvez mais ainda?
O outro confirmou com um aceno.
— Bem, voltaremos a isto mais tarde. No momento, vamos falar
sobre este dinheiro. — Wainwright pegou os 6 000 dólares que se
encontravam sobre a mesa. — Isto você tirou na quarta-feira. Eu sei.
Mas, como?
Eastin deu de ombros e respondeu:
— Creio que você deve saber.
Wainwright disse com aspereza:
— Acho que você está agindo certo em não querer perder tempo.

— Quarta-feira última — disse Eastin — faltaram muitos funcionários,
devido a essa epidemia de gripe. Naquele dia substituí um
caixa.
— Sei disto. Vamos direto ao assunto e diga o que aconteceu.
— Quando o expediente começou, fui ao cofre para buscar minha
caixa... uma das que estavam sem uso, por falta de pessoal. Juanita
Nú-fiez estava lá e abriu a dela. Eu me encontrava a seu lado. Sem
que ela percebesse, prestei grande atenção para gravar a
combinação de sua caixa; tenho boa memória visual.
— E depois?
— Memorizei a combinação e logo que tive uma oportunidade
anotei-a.
Wainwright encaminhava o diálogo, trazia os fatos condenatórios
para que Miles Eastin falasse sobre os mesmos.
O cofre-forte da agência central era enorme; durante o expediente
um caixa especial trabalhava dentro de uma guarita, perto da porta
fechada por mil combinações controladas por mecanismo de
relojoaria. Este caixa encarregado do cofre-forte estava sempre em
atividade, conferindo moedas, dando pacotes de notas ou
recebendo-os. conferindo o que os caixas traziam ou levavam.
Ninguém podia passar por esse caixa sem ser visto, mas, uma vez
que o conseguisse, ninguém mais lhe prestava atenção.
Naquela manhã, embora, aparentasse sua costumeira jovialidade.
Eastin sentia-se desesperado pela falta de dinheiro. Apostara muito,
demasiado, nos bookmakers, durante a semana, e sabia que iam
pressioná-lo para pagar as dívidas acumuladas.
Wainwright o interrompeu:
— Você já tinha um empréstimo no Banco, como funcionário, gozando
das vantagens decorrentes; já devia também a financeiras; e
também a bookmakers. Estou certo?
— Certíssimo.
— E você ainda deve a mais alguém? Eastin concordou, com a
cabeça.

— Um agiota?
O jovem hesitou, depois aquiesceu:
— Exato.
— E o agiota está ameaçando você? Miles Eastin passou a língua
nos lábios.
— Está. E o bookmtiker também. Aliás, ambos continuam me perseguindo.
— Seus olhos fixaram-se no pequeno monte de notas que
perfaziam os 6 000 dólares.
O quebra-cabeça começava a fazer sentido; as peças encaixavam-se.
Wainwright apontou o dinheiro.
— Você prometeu pagar a eles esta quantia exata?
— Prometi.
— Quanto a cada um?
— 3 000 dólares.
— Quando?
— Amanhã. — Eastin aparentava extremo nervosismo e, de repente,
olhou para o relógio da parede e corrigiu: — Hoje!
Wainwright disse:
— Voltemos à quarta-feira passada. Então você ficou de posse da
combinação da caixa de Juanita Núnez. Quando foi que fez uso
desse conhecimento?
A medida que Miles Eastin revelava os detalhes, tudo parecia incrivelmente
simples. Depois de trabalhar durante a manhã, ele fizera
pausa para o almoço, na hora exata em que Juanita Núnèz também
o fez. Mas, antes de sair para o almoço, ambos empurraram suas
caixas, que eram dotadas de pequenas rodas, levando-as para o
cofre-forte, onde entraram juntos, lado a lado. E ambos fizeram as
combinações que fechavam suas respectivas caixas.
Ele voltou do almoço antes da moça e foi diretamente ao cofre-forte.
O caixa encarregado conferiu sua entrada e continuou a trabalhar.
Não havia ninguém lá dentro.

Eastin dirigiu-se logo à caixa de Juanita, abrindo-a conforme a combinação
que havia anotado. Levou apenas poucos segundos para
isso e para remover os três pacotes de notas que faziam o total de 6
000 dólares. Em seguida, ainda usando a combinação, fechou a
caixa. Distribuiu o dinheiro pelos bolsos internos do paletó, onde
não fizeram volume apreciável.
Feito isto, saiu com sua própria caixa, já conferida pelo caixa do
cofre-forte, e recomeçou a trabalhar.
Seguiu-se um silêncio; que Wainwright interrompeu. .

— Quer dizer que, enquanto todos estavam sendo interrogados na
quarta-feira à tarde, alguns até por você, e durante todo o tempo em
que você e eu estivemos conversando mais tarde, durante todo esse
tempo, o dinheiro estava em seu poder?
— Estava — disse Miles Eastin. A lembrança da facilidade do roubo,
trouxe-lhe um leve sorriso.
Wainwright percebeu o sorriso. Sem a menor hesitação e, com um
só movimento, esbofeteou Eastin em cheio, em ambas as faces.
Bateu com o dorso da mão num lado e com a palma no outro. A
dupla pancada foi tão forte que sua própria mão doeu. O rosto de
Miles Eastin ficou rubro. Encolheu-se no sofá e seus olhos
encheram-se de lágrimas.
O chefe da Segurança lhe disse:


— Isto é para que saiba que não vejo nada de engraçado no que
você fez ao Banco e à Sra. Núhez. Absolutamente nada. —
Wainwright acabara de perceber que Miles Eastin tinha horror à
violência física.
Olhou o relógio e viu que já era uma hora da manhã.
— Mais uma coisa, — disse Wainwright — preciso de uma declaração
sua, por escrito. De próprio punho e relatando tudo que acaba
de me dizer.
— Não! Não farei isso! — disse Eastin, num assomo de revolta.
Wainwright deu de ombros.

—Bem, neste caso não vejo mais razão para ficar aqui. — Pegou os 6
000 dólares e guardou-os no bolso.
—Você não pode fazer isto!
—Pode me dizer por quê? Tente impedir-me. Vou levar este dinheiro
ao Banco e depositá-lo, ainda esta noite... depósito noturno.
—Não! Veja bem! Você não pode provar — Miles hesitou. Lembrou-
se, tarde demais, que os números de série das notas não havia sido
anotada.
Nolan retrucou:


— Talvez eu possa provar que é o mesmo dinheiro, que são as mesmas
notas, roubadas na quarta-feira; talvez não possa. Você poderá
sempre acionar o Banco e obtê-las de volta.
Eastin implorou:
—Mas eu preciso desse dinheiro agora! Hoje!
—Ah, claro, para o bookmaker e também para o agiota. Ou para os
valentões que eles mandarão em seu encalço. Bem, você pode
explicar ou tentar explicar, que perdeu o dinheiro, embora duvide
que eles lhe dêem a mínima atenção. — O chefe da Segurança olhou
para Eastin pela primeira vez com ar irônico. — Você de fato se
encontra em grande dificuldade. Talvez o bookmaker e o agiota
venham juntos, e então lhe quebrarão, pelo menos, um braço e uma
perna. Estão sempre prontos para esse tipo de coisa. Ou você não
sabia?
Medo, terror, transpareciam nos olhos de Eastin:
— Sim, bem sei. Você tem que me ajudar! Por favor! Já na porta do
apartamento Wainwright disse friamente:
— Vou levar seu pedido em consideração. Depois que você tiver
escrito, à mão, a sua confissão.
O chefe de Segurança do Banco ditava para Eastin, enquanto este,
obedientemente, transcrevia.

Eu, Miles Broderick Eastin, faço esta declaração voluntariamente. Faço-a
de livre e espontânea vontade. Nenhuma coação foi usada, nenhuma
violência ou ameaça de violência...
Confesso que roubei do First Mercantile American Bank a soma de seis mil
dólares em dinheiro, cerca das 13 horas e 30 minutos, quarta-feira,
outubro...


Depois de roubá-la, ocultei-a, da seguinte maneira...


Quinze minutos antes, após a ameaça de Wainwright de se retirar,
Miles Eastin havia cedido por completo, intimidado e acovardado.
Enquanto Eastin continuava a escrever sua confissão, Wainwright
telefonou para a casa de Innes, o homem do FBI.

15


Na primeira semana de novembro, as condições físicas de Ben Rosselli
pioraram. Desde a revelação de sua doença, cerca de vinte dias
atrás, sentia-se enfraquecer, e as células cancerosas invadiam seu
corpo, fechando o cerco em torno do que lhe restava de vida.
Os que o tinham visitado em casa — incluindo Roscoe Heyward,
Alex Vandervoort, Edwina D'Orsey, Nolan Wainwright, e vários
diretores do Banco — sentiam-se chocados com a rapidez de sua
decadência física. E todos sabiam que lhe restava muito pouco
tempo de vida.
Lá pelo meio de novembro, durante uma violenta tempestade, com
ventos fortíssimos em toda a cidade, Ben Rosselli foi removido em
ambulância para um pavilhão particular do Hospital Mount
Adams, viagem curta que seria a última de sua vida. Já então vivia
sob a ação de sedativos. Seus momentos de lucidez e de coerência
tornavam-se cada dia mais raros.


Ben Rosselli já não tinha a menor atuação no FM A e um grupo de
diretores, reunidos em sigilo, deliberou que toda a diretoria devia
ser convocada para designar o sucessor do presidente.
Esta reunião ficou marcada para o dia 4 de dezembro.


Os diretores chegaram pouco depois das 10 horas da manhã.
Cumprimentaram-se cordialmente. Bem sucedidos homens de
negócio saudando seus pares.

No entanto, essa cordialidade era mais discreta que de hábito, devido
à morte iminente de Ben Rosselli, débilmente preso à vida,
num hospital que distava do Banco apenas dois quilômetros. Os
diretores presentes a esta reunião eram capitães de indústria, como

o próprio Ben o fora. Gente que sabia muito bem que qualquer
entrave no caminho dos negócios, que moviam a civilização, tinha
de ser removido. Pareciam pensar: A razão para as decisões que
tomaremos hoje é lamentável, mas o nosso dever solene para com o sistema
é andar para frente.
Passaram para a sala revestida de nogueira, repleta de quadros e fotografías,
onde a diretoria se reunia. As fotografias eram de
predecessores importantes em sua época, mas já mortos há muito
tempo.

Uma reunião de diretores de qualquer sociedade de alto gabarito
lembra um clube fechado. Fora três ou quatro executivos que são
também funcionários trabalhando em regime de tempo integral, a
diretoria compreende um grupo de importantes e proeminentes
homens de empresa — em geral diretores ou presidentes eles
próprios — de outras organizações, às vezes bem diversas.

Habitualmente esses outros diretores são convidados a integrar
uma diretoria pelas credenciais que possuem: empreendimentos em
algum setor, o prestígio da instituição que representam, ou um
vínculo estreito — quase sempre financeiro — com a empresa.


Entre os homens de negócio é considerado grande honra ser diretor
de uma companhia, e quanto mais prestígio esta tiver, maior a
glória. E por isto que certas pessoas colecionam títulos de diretor, da
mesma maneira que certas tribos selvagens colecionam cabeças. Os
diretores são tratados com uma deferência que lhes satisfaz o ego,
afora serem regiamente pagos.

A maioria das companhias paga a cada diretor entre um e dois mil
dólares por reunião a que compareçam e, via de regra, são
realizadas até dez reuniões por ano.

Digno de atenção, no que se refere a prestígio, é pertencer à
diretoria de um banco importante. Para que um homem de negócios
seja convidado a ocupar uma posição desse quilate são necessárias
muitas qualificações; quase equivale a ser condecorado pela Rainha
da Inglaterra. Dessa forma, a disputa é muito grande. O First
Mercantile American Bank, situando-se entre os 20 primeiros
Bancos do país, tinha uma diretoria adequadamente
impressionante.
Ou, pelo menos, seus diretores assim o pensavam.
Alex Vandervoort, estudando os demais colegas à medida que
tomavam seus lugares junto à longa mesa de reuniões, pensava
consigo mesmo que a percentagem de inúteis era bem grande.
Havia também certos conflitos de interesse, uma vez que alguns
diretores, ou suas companhias, eram os que mais empréstimos
faziam no Banco. E Vandervoort pensava que, entre seus objetivos a
longo prazo, caso viesse a ser escolhido para a presidência, estaria o
de tornar a diretoria do FMA bem mais representativa e bem menos
um clube fechado.
Mas seria ele o escolhido? Ou seria Heyward?
Ambos eram candidatos.
Logo a seguir exporiam seus pontos de vista. Jerome Patterton, vicepresidente
do Conselho da Diretoria, que presidiria a presente reunião,
dissera-lhe há dois dias:


— Você sabe tão bem quanto nós todos, que nossa escolha está entre
você e Roscoe. Ambos são excelentes; não vai ser fácil escolher. Por
favor, nos ajude. Diga-nos como se sente em relação ao FMA, do
modo que melhor lhe parecer.
Roscoe Heyward, Alex bem o sabia, deveria também ter recebido
apelo semelhante.
Heyward, com sua maneira típica, preparara um texto escrito. Sentado
defronte de Alex, relia esse texto, o rosto sério, os olhos
cinzentos atrás dos óculos sem aro, focalizando as palavras
datilografadas. Entre as habilidades de Heyward estava o intenso
poder de concentração, em especial no que se referia a números.
Como um dos seus colegas certa vez observara, "'Roscoe pode ler
uma declaração de lucros e perdas com a facilidade com que um
maestro conduz uma sinfonia — com sensibilidade para nuanças,
sentido cada nota, cada passagem incompleta, os crescendos e a
potencialidade que outros não perceberiam". Sem dúvida, os números
faziam parte do que quer que Heyward tivesse para dizer
hoje.
Alex ainda não resolvera se empregaria números ou não, em seus
próprios comentários. Se os usasse, teria que mencioná-los de
memória, pois não trouxera nenhuma anotação. Havia pensado
muito no assunto, na noite anterior, e afinal se decidira a falar de
improviso, deixando que seus pensamentos e palavras jorrassem
naturalmente.
Lembrava-se de que fora nessa mesma sala. há tão pouco tempo,
que Ben revelara: "Estou morrendo. Os médicos disseram que meus
dias estão contados". Tais palavras eram mais uma confirmação da
brevidade da vida; zombavam da ambição de todos — sua, de
Roscoe Heyward e de outros. '
Mas. fosse a ambição uma futilidade ou não, ele desejava muito chegar
á presidência do Banco. Desejava uma oportunidade — assim
como Ben fizera em seu tempo — de determinar os caminhos,
decidir a filosofia, julgar as prioridades e, através de uma soma de

decisões, deixar atrás de si uma contribuição válida. E não importa
se. considerado anos depois, o que ele conseguisse fazer fosse tido
como muito ou pouco importante; o prazer de fazê-lo. em si. era
gratificante. O prazer de executar, liderar, lutar e competir, aqui e
agora.
Do outro lado da mesa. mais à direita, o Honorável Harold Austin
sentara-se em sua cadeira de sempre. Usava um terno de Cerruti,
camisa e gravata elegantíssimas que o faziam parecer um modelo
das páginas do Pluyhoy. Segurava um vasto charuto. Alex
cumprimentou-o com um aceno de cabeça, correspondido da
mesma forma, ambos frios e distantes.
Uma semana atrás Austin procurara Alex reclamando contra seu
voto à propaganda preparada pela Agência Austin para o cartão de
crédito Keycharge.

— Esse programa de expansão de marketing já foi aprovado
pela diretoria — dissera Harold. — Acresce que os próprios chefes
de departamento do Keycharge já haviam concordado com a
campanha de anúncios, antes que chegasse às suas mãos. Estou em
dúvida, mas talvez leve sua atitude arbitrária ao conhecimento da
diretoria.
Alex foi áspero:
— Para começar, estou perfeitamente a par daquilo que os diretores
decidiram sobre esta campanha, já que me encontrava entre eles.
Não concordaram que a expansão do marketing incluísse uma
propaganda inconsistente, meio-verdade meio-tapeação, que
poderia desacreditar o Banco. Seu pessoal, tão criativo, pode fazer
algo melhor, Harold. E já o fizeram... já vi e já aprovei as versões
revistas. Quanto a ser arbitrário, tomei uma decisão para a qual
tinha a necessária autoridade, e o farei sempre que necessário.
Portanto, se você resolver levar o assunto ao conhecimento da
diretoria, esteja à vontade. Se quer minha opinião, eles não lhe
agradecerão por isto; mas provavelmente agradecerão a mim.

Harold Austin mostrara-se aborrecido, mas decidiu não levar o assunto
avante. Talvez porque a Agência de Propaganda Austin
ganharia o mesmo, de qualquer forma. Alex sabia que, com isto,
criara um antagonista, mas duvidava se, na decisão de hoje, isto
faria qualquer diferença, pois conhecia a preferência notória de
Austin por Roscoe, que por certo receberia seu apoio.
Alex podia contar com o extrovertido Leonard L. Kingswood, ativo
representante da Northam Steel, agora sentado perto da cabeceira
da mesa, conversando com seu vizinho. Fora ele quem lhe havia
telefonado, há várias semanas, para avisá-lo que Heyward estava
empenhado em assegurar o apoio dos diretores para sua
candidatura à presidência.

— Não digo que você deva fazer o mesmo, Alex; cabe-lhe decidir.
Mas sei que Roscoe pode ser bem sucedido; tem um modo
persuasivo, uma isca que muitos ainda engolem.
Ele tinha agradecido a informação, mas não imitou o exemplo de
Roscoe. A cabala pode ajudar em alguns casos, mas certas pessoas
reagem com hostilidade quando alguém tenta influenciá-las. Além
disso, sentia uma verdadeira aversão em fazer uma campanha a seu
próprio favor, com Ben ainda vivo.
No entanto, havia concordado com a necessidade da reunião de
hoje e com as decisões dela decorrentes.
O murmúrio das conversas parou. Os dois últimos a chegar
estavam se sentando. Jerome Patterton, na cabeceira da mesa. bateu
de leve com seu pequeno martelo e anunciou:
— Senhores, vai ter início a sessão.
Patterton, em geral uma figura apagada, considerado no Banco um
contemporizador, sentia-se importante em sua posição de hoje,
dirigindo os trabalhos. Já estava na casa dos 60 e a ponto de se
aposentar. Ligara-se ao FM A proveniente de outro banco menor
com o qual aquele se fundira. Desde então, suas responsabilidades
foram diminuindo e, hoje em dia, interessava-se pelo Banco quase
tanto quanto pelo golfe, que jogava com certos clientes. O esporte

tinha prioridade, tanto assim que todos os dias da semana Jerome
Patterton largava o escritório às 14h30min. O título de vicepresidente
da Assembléia dava-lhe muita honra.
Sua aparência era de um senhor rural. Quase careca, sua cabeça
tinha o formato de um ovo. Paradoxalmente, as sobrancelhas eram
espessas, largas, encimando olhos cinzentos e remelentos. A
aparência de fazendeiro rico combinava com o terno de tweed. Alex
era de opinião que Patterton era inteligente, mas que sua atividade
mental diminuíra, sendo usada nos últimos anos na capacidade
mínima, como um motor em ponto morto.
Jerome Patterton iniciou os trabalhos enaltecendo Ben Rosselli, e
logo após leu o último boletim do hospital informando que "suas
forças diminuíam e que começava a perder a consciência". Os
presentes balançaram a cabeça, em sinal de pesar.

— Mas a vida de nossa comunidade continua.
O vice-presidente mencionou as razões da assembléia, referindo-se
principalmente à necessidade da escolha do sucessor de Ben
Rosselli.
— A maioria dos senhores já tem conhecimento do que se vai
desenrolar aqui.
E logo anunciou que Roscoe Heyward e Alex Vandervoort se dirigiriam
à assembléia, retirando-se depois, enquanto suas candidaturas
eram avaliadas.
— Usaremos a velha ordem alfabética. — Jerome piscou para Vandervoort.
— Já paguei bem caro por meu nome começar com P.
Espero que o seu V não lhe tenha sido muito pesado.
— Nem sempre, Sr. Presidente — disse Alex. — Em algumas ocasiões
me deu o direito da última palavra.
— Com a palavra, Roscoe Heyward — disse Patterton.
— Obrigado, Sr. Presidente.
Heyward levantou-se, empurrou a cadeira para trás e examinou
com calma, um por um, os 19 presentes. Bebeu um gole de água, e
começou a falar, com sua voz precisa e inalterável.

— Senhores, já que esta é uma reunião particular e privada, que não
será transmitida à imprensa e nem mesmo aos acionistas, serei
franco, absolutamente franco, ao lhes dizer aquilo que considero
minha primeira e mais importante responsabilidade para com o
Banco e para com os senhores: a rentabilidade do First Mercantile
American Bank. — Repetiu, enfaticamente: — rentabilidade,
cavalheiros — nossa prioridade numero um.
Heyward lançou um olhar para seu texto.
— Permitam-me expor meu ponto de vista.
— Sou de opinião que muitas das decisões no Banco e nos negócios
em geral, vêm sofrendo, hoje em dia, a influência de questões
sociais e outras controvérsias atuais. Como banqueiro, considero
isto um erro. Peço que entendam que não desejo, de forma alguma,
menosprezar a importância da consciência social do indivíduo; a
minha própria, creio, é bastante apurada. Aceito também que cada
um de nós deva periodicamente reexaminar seus valores e tentar
adaptá-los à luz das novas idéias, além de oferecer sua contribuição
pessoal, sempre que possa. Mas, quando se trata de medidas e
políticas de uma empresa, o caso é inteiramente outro. Tais medidas
não devem sujeitar-se a qualquer espécie de mudança ou de
capricho social. Se assim fosse, se esse modo de pensar regulasse
nossas transações, ele tornar-se-ia um perigo e uma ameaça para a
livre empresa americana, afora o desastre que representaria para
este Banco, pois enfraqueceria sua força, retardaria seu
desenvolvimento e reduziria seus lucros. Resumindo: como outras
instituições, devemos desde logo nos desligar do cenário político-
social, ignorando-o, já que nossa responsabilidade restringe-se ao
cenário que se relaciona'com as finanças de nossos clientes.
O orador sorriu pela primeira vez, tentando atenuar a seriedade de
suas palavras.
— Concordo que se minhas palavras fossem ditas em público, seriam
impopulares e nada diplomáticas. Aliás, para ser sincero,
jamais as diria em público. Mas entre nós, aqui, onde se tornam as

decisões reais e se decide a respeito da política a adotar, confesso
que estou sendo absolutamente realista.
Vários diretores pareciam aprovar. Um, em especial, chegou a
inflamar-se e a bater com o punho na mesa. Outros, como, por
exemplo, Leonard Kingswood, nada deixaram transparecer.
Alex Vandervoort refletia: então Roscoe Heyward decidira-se por
uma confrontação direta, um choque total de pontos de vista. Tudo
que dissera até agora ia contra as convicções de Alex, assim como
contra as de Ben Rosselli, testemunhadas pela crescente liberalidade
do Banco nos últimos anos. Fora Ben que vinculara o FMA aos
negócios cívicos, da cidade e do Estado, incluindo projetos como o
Fórum East. Mas Alex não tinha ilusões. Uma parte substancial da
diretoria sentira-se constrangida e mesmo desgostosa com a política
de Ben. Tais diretores deviam estar gostando de ouvir as palavras
duras, estritamente comerciais de Heyward. A questão era: até que
ponto prevaleceria a parte da diretoria que seguia esta linha de
pensamento?
Alex estava de pleno acordo com uma das declarações do orador:

Esta é uma reunião privada e particular, onde se tomam as decisões reais e
se /esolve a política a adotar.

A palavra "reais" era bem adequada.
Posteriormente, os acionistas e o público receberiam uma versão
atenuada da política a ser seguida pelo Banco, através de relatórios
anuais publicados e de outros meios. Mas, aqui, atrás das portas
fechadas, aqui, sim, é que se decidiam as medidas reais. Por isto era
tão importante que um diretor de empresa fosse discreto.

— Existe um paralelo — continuou Heyward — entre o que acabo
de dizer e o que aconteceu com a igreja que freqüento, através da
qual faço algumas contribuições sociais, por conta própria. Por volta
de 1960, nossa igreja diversificava seu dinheiro, bem como seu
tempo e esforços entre várias causas sociais, inclusive a do negro.
Em parte, devido a pressões de fora; em parte, porque certos
membros da congregação achavam que era adequado. Sob vários

aspectos nossa igreja tornou-se uma espécie de agência de
assistência social. Há pouco tempo, no entanto, alguns de nós
retomamos o controle, e decidimos que esse ativismo não era, de
forma alguma, adequado a uma igreja e voltamos às bases do culto
religioso. Então desenvolvemos nossas cerimônias religiosas — pelo
que sei, função básica da Igreja — e estamos deixando por conta do
governo ao qual elas pertencem, as atividades sociais.
Alex imaginava se outros diretores achariam difícil aceitar, como
ele, que causas sociais nada tivessem a ver com a Igreja.

— Falei de rentabilidade como nosso objetivo principal — continuava
Roscoe Heyward. — Vários de vocês, estou certo, farão
objeção a este argumento. Dirão que ter como finalidade
predominante o lucro é um esforço estúpido, egoísta, feio e sem
nenhum valor social que o redima.
O orador sorriu de forma tolerante:
— Bem, como banqueiro discordo por completo. A procura do lucro
não é estupidez. E, no que concerne a este Banco ou a qualquer
outro,' o valor social da rentabilidade é muito elevado.
— Todos os bancos medem seus lucros em termos de ganho por
ação. Tais ganhos, que são do domínio público, são estudados com
cuidado pelos acionistas, depositantes, investidores, bem como pela
comunidade dos negócios, nos âmbitos nacional e internacional.
Uma elevação ou uma queda dos lucros de um banco são tomados
como sinal de sua força ou de sua fraqueza.
— Enquanto os ganhos são sólidos, a confiança no banco continua
elevada. Mas se alguns poucos grandes bancos apresentassem
queda nas cotações de suas ações, o que aconteceria? Inquietação
geral, crescendo depressa a um ponto de alarme, uma situação em
que os depositantes retirariam seus fundos e os acionistas seus
investimentos. Nessa hipótese, as ações dos bancos, tanto quanto
eles próprios, estariam em situação perigosa. Resumindo: surgiria
uma crise pública da maior gravidade.

Roscoe Heyward retirou os óculos e poliu-os com seu lenço de linho
branco.

— Que ninguém diga: tal não pode acontecer. Já aconteceu antes, na
depressão de 29, e hoje, com os bancos muito maiores, em maior
número também, o efeito seria, por comparação, catastrófico.
— É por isto que um banco como o nosso tem que estar vigilante
face a seu dever de ganhar dinheiro para si e para seus acionistas.
Mais uma vez ouviam-se murmúrios de aprovação. Heyward virou
outra página do seu texto.
— Como, na qualidade de organização bancária, alcançamos lucro
máximo? Antes lhes direi como não alcançamos. Não alcançamos
um lucro máximo quando nos envolvemos em projetos que, embora
admiráveis em sua intenção, não têm uma base financeira lógica, ou
envolvem fundos com baixas taxas de rendimento, a longo prazo.
Refiro-me, todos já perceberam, aos fundos reservados às
habitações de pequeno custo. Não deveríamos nunca, em caso
algum, colocar mais do que uma porção mínima dos fundos do
Banco em hipotecas de habitações de qualquer espécie, pois são
notórias sua pequena margem de lucro.
— Outra maneira pela qual não conseguimos lucro é fazendo concessões
e diminuindo os padrões e taxas dos empréstimos, como
por exemplo, no caso de empréstimos a certas minorias. Trata-se de
uma área na qual, hoje em dia, os bancos estão sujeitos a pressões
imensas a que temos que resistir, não por motivos raciais, mas pela
necessária astúcia comercial. Por Deus! Podemos fazer, vez por
outra, empréstimos a essas minorias, mas que seus termos e padrões
sejam tão estritos quanto os usados para qualquer outro pedido
similar, de qualquer outra fonte.
— Como Banco, não nos deixemos envolver indevidamente com assuntos
vagos do meio-ambiente. Não é nossa função julgar a
maneira pela qual os clientes conduzem seus negócios com relação à

ecologia; tudo o que pedimos é que eles estejam em boa situação
financeira.

— Resumindo, nós não obtemos lucro transformando-nos em zeladores
de nossos irmãos, ou seus juízes, ou seus carcereiros.
— Bem, vez por outra, podemos apoiar tais objetivos públicos com a
nossa voz: habitações de baixo custo, reabilitação cívica, melhoria
do meio-ambiente. energia, e outras questões que venham a ser
suscitadas. Afinal de contas este Banco tem a influência e o prestígio
que podemos empregar, sem perda financeira. Podemos mesmo
destinar para esses casos pequenas reservas, pois temos um
departamento de relações públicas que fará com que nossas
contribuições sejam conhecidas em toda parte... até — e ele sorriu —
exagerando-as um tanto, em certas ocasiões. Mas para uma
rentabilidade real temos que dirigir nossa principal investida em
outra direção.
Alex Vandervoort pensava: "seja qual for a crítica que se possa fazer
às declarações de Heyward, ninguém poderia mais tarde se queixar
de que ele não tivesse tornado os seus pontos de vista
suficientemente claros. De certa maneira fazia uma declaração
honesta. Mas não deixava de ser uma declaração cuidadosa, sagaz, e
cinicamente calculada".
Muitos líderes no ramo dos negócios e das finanças, incluindo uma
boa proporção dos diretores presentes na sala, irritavam-se com
certas restrições feitas à sua liberdade de ganhar dinheiro.
Ressentiam-se também da necessidade de serem circunspectos em
declarações públicas, para não provocarem críticas de grupos de
consumidores ou de outros setores. Era portanto uma espécie de
alívio ouvir suas próprias convicções interiores proferidas em alto e
bom som e de maneira inequívoca.
Claro, Roscoe Heyward levara isto em consideração. Também verificara,
Alex tinha certeza, o número de pessoas presentes,
calculando quem votaria a favor de quem, antes de se arriscar.


Mas Alex também fizera seus cálculos. Ele ainda acreditava que um
determinado grupo de diretores, bastante forte para fazer oscilar a
decisão, estaria a seu favor.

— Especificamente — declarou Heyward — este Banco deveria depender,
como por tradição sempre dependeu, de negócios
relacionados com a grande indústria americana. Com isto quero
referir-me àquela indústria com lucros elevados comprovados, os
quais, por sua vez, multiplicarão nossos próprios lucros.
— Em outras palavras, estou convencido de que o FMA tem, no
presente, uma proporção insuficiente de seus próprios fundos em
disponibilidade para grandes empréstimos à indústria, e acho que
devemos imediatamente providenciar um programa no sentido de
ampliar tais empréstimos.
Tratava-se de um assunto familiar, discutido no passado várias
vezes entre Roscoe Heyward. Alex Vandervoort a Ben Rosselli. Os
argumentos de Heyward não eram novos, embora fossem
apresentados de maneira convincente, com o apoio de números e
gráficos. Alex percebia que os diretores estavam impressionados.
Heyward falou por mais 30 minutos a favor da expansão do
empréstimo à indústria e contra compromissos comunitários.
Terminou, segundo suas próprias palavras, "com uma chamada à
razão".
— O que é mais necessário hoje em dia, em bancos, é uma liderança
pragmática. Uma liderança que não se deixe levar pela emoção ou
se impressionar pelo clamor público. Como banqueiros, devemos
insistir em dizer não sempre que nosso ponto de vista fiscal seja
negativo, e sim quando possamos antever lucro. Porém jamais
deveremos "comprar" uma popularidade fácil à custa dos acionistas.
Em vez disso, deveríamos emprestar nosso próprio dinheiro e o
dinheiro de nossos depositantes apenas na certeza do lucro maior e
do mais rápido retorno e se, como resultado desses critérios, formos
acoimados de "banqueiros arrogantes" pois que seja assim. Eu por
exemplo, terei orgulho desse epíteto.

Heyward sentou-se, em meio a aplausos.

— Sr. Presidente! — O homem do aço, Leonard Kingswood, levantou
a mão. — Tenho várias perguntas a fazer. Há alguns pontos dos
quais discordo e gostaria de falar sobre eles.
Do outro lado da mesa, Harold Austin argumentou:
— Para sua ciência, Sr. Presidente, eu não tenho nenhuma pergunta
a fazer e concordo totalmente com cada palavra dita até agora.
O riso irrompeu e uma voz nova, a de Philip Johannsen, presidente
da MidContinent Rubber, acrescentou:
— Estou com você, Harold. Acho que chegou a hora de sermos duros.
Alguém mais disse:
— Também eu.
— Cavalheiros, senhores: — Jerome Patterton bateu levemente com
o martelinho na mesa. — Apenas parte da nossa finalidade de hoje
foi atingida. E teremos tempo para discutir argumentos e fazer
perguntas mais tarde; quanto à concordância ou não-concordância,
sugiro que nos reservemos para a discussão final, depois de ouvir
tanto Roscoe quanto Alex, e após ambos terem-se retirado. Agora,
portanto, passemos a ouvir Alex Vandervoort.
— A maioria de vocês me conhece bem, como homerrTe como banqueiro
— começou Alex. Ficou em pé, encostado na mesa de modo
casual, com os ombros um pouco arqueados como sempre, olhando
ora para a direita ora para a esquerda para que pudesse ver todos os
presentes e estes o pudessem ver. Deixou que seu tom de voz e sua
maneira de falar mantivessem a simplicidade habitual.
— Vocês também sabem ou deveriam saber que, como banqueiro
sou duro... "arrogante", se alguém gosta de usar esta palavra. Uma
prova disto está na maneira como venho conduzindo as finanças do
FMA, sempre com lucro, nunca apresentando perdas. É lógico que
nos negócios de um banco, como em qualquer outro negócio, o
lucro vem da força do seu cacife. Isso se aplica também às pessoas
que trabalham com bancos.

— Contudo, fico contente que Roscoe tenha abordado o assunto da
rentabilidade, porque me dá a oportunidade de proclamar minha
própria crença nela. Assim como na liberdade, na democracia, no
amor e na maternidade.
Alguém riu. Alex retribuiu com um leve sorriso. Puxou a cadeira
para trás para ter um pouco mais de espaço e de liberdade de
movimentos.
— Outro aspecto da rentabilidade, aqui no FMA, é que ela deveria
ser radicalmente aperfeiçoada. Mais tarde falarei sobre este assunto.
No momento, gostaria de falar nas coisas em que acredito. Acredito
que a civilização, nesta década, esteja-se alterando de maneira mais
significativa e mais rápida do que em qualquer outra época, desde a
Revolução Industrial. Estamos vendo e participando de uma
revolução social de consciência e de comportamento.
— Muita gente não gosta desta revolução; eu pessoalmente gosto.
Mas gostando ou não, ela aí está; ela existe; e por certo não perecerá.
— A força motriz de tudo que vem acontecendo é a determinação
de uma maioria do povo de melhorar de vida, de evitar a espoliação
do meio-ambiente e de preservar o que nos foi legado em recursos
de quaisquer espécies. Por causa disto, novos padrões estão sendo
procurados na indústria e nos negócios em geral e, assim,"o nome
do jogo é "responsabilidade sócio-empresarial". Além disso, padrões
mais elevados de responsabilidade estão de fato sendo alcançados, e
sem perdas muito significativas de lucro.
Alex movia-se de maneira irrequieta no pequeno espaço que usava.
Pensou um pouco se deveria aceitar de frente um dos desafios de
Hey-ward e dicidiu que sim.
— Quanto ao assunto de responsabilidade e envolvimento, Roscoe
apresentou como exemplo o que aconteceu com ele mesmo, em sua
igreja. Disse que aqueles que haviam, segundo suas próprias
palavras, retomado o controle optaram a favor de uma política de nãoenvolvimento.
Bem, em minha opinião, Roscoe e seus colegas de

igreja estão andando para trás. E sua atitude não é boa, nem para o
Cristianismo, nem para o Banco.
Heyward levantou-se e protestou com aspereza.


— Este comentário é, por completo, pessoal e desagradável, além de
ser uma péssima interpretação do que eu disse.
Alex retrucou com calma:
— Não acredito que seja.
Harold Austin bateu com os dedos na mesa.
— Sr. Presidente, faço objeção aos comentários pessoais de Alex
Vandervoort.
— Roscoe não foi feliz ao citar o exemplo da igreja — argumentou
Alex. — Estou apenas comentando o que ele disse.
— Talvez seja melhor que não o faça. — A voz era de Philip Johannsen,
presidente da MidContinent Rubber, que se fez ouvir com
aspereza, num tom muito desagradável, do outro lado da mesa. —
Mesmo porque, se for assim, chegaremos a ponto de julgar ambos
pela companhia que os cerca, e neste ponto Roscoe e sua igreja
estariam à frente.
Alex enrubesceu:
— Posso perguntar exatamente o que isto significa?
Johannsen deu de ombros.
— Pelo que tenho ouvido falar, sua amiguinha, que preenche a ausência
de sua esposa, é ativista de esquerda. Talvez este seja o
motivo de você gostar de se engajar, de se envolver.
Jerome Patterton bateu com o martelinho, desta vez com força.
— Chega, cavalheiros. A Mesa exige que de agora em diante não se
façam mais referências deste tipo, não importa com respeito a quê.
Johannsen estava sorrindo. Apesar de tudo, ele tinha feito seu ponto
bem claro, tinha conseguido dizer o que queria.
Alex Vandervoort, agitado, pensava convictamente que sua vida
privada era assunto só seu, e teve vontade de dizê-lo; depois
mudou de idéia. Talvez em outra ocasião se tornasse necessário.

Mas não agora. Percebeu que cometera um grande erro ao fazer a
analogia da igreja de Heyward.

— Gostaria de voltar ao meu comentário inicial: Como é então que
nós, como banqueiros, podemos nos dar ao luxo de ignorar esta
mudança de cenário? Fazê-lo, é como ficar no meio de um vendaval
fingindo ignorar que o vento existe.
— Nem sequer no terreno financeiro, pragmático, poderemos optar.
Todos os que aqui se encontram sabem por experiência própria que
o sucesso em qualquer negócio jamais é alcançado se ignoramos as
mudanças, mas, isso sim, se nos antecipamos a elas e nos
adaptamos. Assim, empregaremos melhor o dinheiro sob nossa
custódia se formos sensíveis às mudanças de clima no que se refere
a investimentos, ouvindo, considerando e adaptando-nos.
Alex percebia que, a não ser pelo seu lapso no assunto da igreja
momentos antes, seu lance inicial, com sua ênfase prática, havia
merecido a atenção geral. Quase todos os membros da diretoria que
não faziam parte do Banco haviam tido experiências com legislações
que afetavam o controle da poluição, a proteção do consumidor, a
verdade na propaganda, o emprego de membros da minoria e os
direitos iguais para mulheres. Em várias ocasiões essas leis eram
postas em vigor contra a revoltada oposição das companhias
dirigidas por estes mesmos diretores. Mas, uma vez que as leis eram
cumpridas, estas mesmas companhias haviam aprendido a viver
segundo novos padrões e orgulhavam-se de apregoar sua
contribuição para o bem-estar público. Alguns, como Leonard
Kingswood, haviam concluído que a responsabilidade de uma empresa
era vantajosa para seu negócio, e advogavam essa causa.
— Existem 14 mil agências de bancos nos Estados Unidos —
disse Alex aos diretores do FM A — com enormes poderes fiscais
para fazerem empréstimos. Claro, quando os empréstimos são para
a indústria e o comércio, esse poder deve envolver uma
responsabilidade também de nossa parte! Claro, que entre os
critérios a serem considerados nos empréstimos sempre constarão

os padrões de conduta pública de nossos postulantes! Se uma
fábrica deve ser financiada, ela vai contribuir para a poluição?
Quando o novo produto vai ser lançado, é ele legítimo? Até que
ponto a propaganda de uma companhia é verdadeira? Entre as
companhias A e B, para uma das quais já temos recursos destinados
a empréstimo, qual delas tem o melhor índice de integração racial?
Alex inclinou-se um pouco para a frente, olhando um por um todos
os presentes em volta da mesa.

— É verdade que estas perguntas nem sempre são feitas, pelo
menos no presente. Mas começam a ser levadas em consideração
pela maioria dos bancos, como base para um negócio sólido. E é este
o exemplo que o FMA deveria seguir. Pois, assim como a liderança
em qualquer empresa pode significar grandes dividendos, assim
também a liderança num banco pode produzir resultados
compensadores.
— Igualmente importante: é melhor que tomemos esta atitude
agora, de nossa própria vontade, do que sermos obrigados, por
força da lei, a fazê-lo mais tarde.
Alex interrompeu-se, andou uns passos, depois voltou-se com rapidez:
— Agora eu lhes pergunto: em que outras áreas deveria este Banco
aceitar a responsabilidade empresarial?
— Creio, como Ben Rosselli, que deveríamos colaborar para melhorar
a vida da cidade e do Estado. E uma medida imediata seria a
melhoria através do financiamento de habitações de baixo custo,
compromisso aliás que esta diretoria já aceitou quando concordou
com os primeiros estágios do Fórum East. À medida que o tempo
for passando, acredito que nossa contribuição deva ser cada vez
maior.
Olhou em direção a Roscoe Heyward.


Claro, concordo em que hipotecas sobre casas não constituem uma
área muito lucrativa. Mas existem maneiras de conseguir esse envolvimento
essa colaboração, também com excelentes lucros.

— Um desses meios é através da expansão, em grande escala, do
nosso departamento de poupança.
— Tradicionalmente, os fundos para hipotecas são canalizados dos
depósitos de poupança, já que as hipotecas são um investimento a
longo prazo. A lucratividade, nós a obteremos com o volume —
muito superior às nossas poupanças no presente momento. Isto
poderemos atingir e, ao atingi-lo, estaremos obtendo três grandes
coisas: lucro, estabilidade fiscal, e uma contribuição social mais
ampla.
— Não faz muitos anos que os grandes bancos comerciais como o
nosso rejeitavam negócios com o consumidor, inclusive com as
pequenas poupanças, tidos como sem importância. Então, enquanto
nós cochilávamos, as associações de poupança e empréstimo
agarraram com inteligência esta oportunidade que desprezamos e
passaram à nossa frente, e de tal forma que são agora nossas
maiores competidoras. Mas, nas poupanças individuais, ainda
restam oportunidades gigantescas.
— É bem provável que dentro de uma década o negócio ao consumidor
exceda os depósitos comerciais em toda parte e se torne a
maior força financeira existente.
A poupança, Alex argumentava, era apenas uma das várias áreas
nas quais os juros do FMA poderiam ser compensadores ao
extremo.

Ainda irrequieto enquanto falava, ele foi analisando outros departamentos
do Banco e descrevendo as alterações que se propunha
fazer. Acrescentou que fizera um relatório a pedido de Ben, há
poucas semanas, antes que o presidente houvesse comunicado sua
morte iminente. Depois de tudo que se passou, pelo menos que


Alex soubesse, esse relatório permanecera sem ser lido,

desconhecido.
Recomendava que fossem abertas novas agências em áreas suburbanas
e em todo o Estado. Outra sugestão era uma revisão drástica de
toda a organização do FMA. Alex propunha-se usar os serviços de
uma firma consultora especializada para aconselhá-lo em quaisquer
mudanças que se tornassem necessárias e informou aos presentes
que "nossa eficiência está abaixo do que deveria ser. A maquinaria
começa a ranger".
Já perto do fim de sua exposição, voltou ao tema inicial:

— O relacionamento entre o Banco e a indústria deveria, é claro,
continuar a ser bem íntimo. Certo, os empréstimos à indústria e ao
comércio continuarão a ser os pilares de nossa atividade, mas não os
seus únicos pilares; não deveriam jamais ser a maioria esmagadora,
no que se refere a empréstimos. Nem nos deveríamos preocupar
tanto com o volume dos negócios a tal ponto que a importância das
contas pequenas, incluindo as contas das pessoas físicas,
representem para nós algo sem importância.
— O fundador deste Banco criou-o para que pudesse servir àqueles
cujos meios modestos não lhes facilitassem acesso a outros bancos,
àqueles a quem toda e qualquer ajuda fosse negada.
Inevitavelmente, tanto a finalidade do Banco como seu modo de
operar tornaram-se mais amplos através deste século, mas mesmo
assim nem o filho do seu fundador, nem seu neto jamais se
esqueceram deste preceito, jamais se esqueceram dessas raízes,
jamais ignoraram o conceito de que contas pequenas, multiplicadas,
podem representar a maior força entre todas.
— Ter como objetivo o crescimento imediato e maciço das pequenas
poupanças, para as quais peço a maior atenção desta Assembléia,
não só honrará essas raízes, mas também ampliará nossa força fiscal
e, no clima atual, resultará no bem-estar do público, e, por
consequência, do nosso.

Assim como haviam feito em relação a Heyward, os presentes
aplaudiram Alex Vandervoort quando este se sentou. Alguns desses
aplausos, Alex o sabia, eram apenas sinal de educação; mas talvez
metade dos diretores mostrasse um certo entusiasmo. Alex pensou
que a escolha entre Heyward e ele próprio não seria fácil.

— Obrigado, Alex. — Jerome Patterton olhou para todos que se
encontravam em volta da mesa. — Perguntas, cavalheiros?
Claro, muitas perguntas foram feitas durante cerca de meia hora,
após o que Roscoe Heyward e Alex Vandervoort saíram ambos da
sala.

Cada um voltou para seu próprio escritório a fim de aguardar a
decisão da assembléia.

Os diretores debatiam entre si tudo que se passara durante a
manhã, mas custavam a chegar a uma concordância plena.
Resolveram então que almoçariam juntos e que a seguir
continuariam as deliberações. Ainda não haviam acabado a refeição,
nem sequer chegado a um acordo, quando uma das garçonetes
acercou-se de Jerome Patterton, segurando uma pequena bandeja de
prata. Sobre ela, um pedaço de papel dobrado.

O vice-presidente, que dirigia os trabalhos da assembléia,
desdobrou o papel e leu. Após uma pausa, levantou-se e esperou
até que as conversas se transformaram em total silêncio.

— Cavalheiros! — A voz de Patterton estava trêmula. — Lamento
informar que o nosso querido presidente, Ben Rosselli, morreu há
poucos minutos.
Em seguida, por um entendimento mútuo e sem discussão, os
diretores interromperam a reunião e deixaram a resolução final para
outra oportunidade.

16


A morte de Ben Rosselli atraiu a atenção da imprensa internacional
e alguns jornalistas, pegando o clichê mais à mão, davam a
informação com títulos como "O Final de Uma Era".
Representasse ou não o final de uma era, a morte de Ben Rosselli
significava que o último dos maiores bancos americanos, cuja
imagem ainda era associada a um só homem, havia-se adaptado à
situação do século XX, com um comitê e uma administração
estranhos, pagos para controlá-lo. A decisão sobre quem tomaria a
frente desta administração teria de ser adiada até após os funerais
de Ben Rosselli, quando então a assembléia da diretoria do Banco
voltaria a reunir-se.
Os funerais realizaram-se na quarta-feira da segunda semana de dezembro.
Tanto o enterro em si quanto o velório e a missa de corpo presente
seguiam com rigor o rito católico, adequado a um benfeitor como
Ben Rosselli fora.
Durante dois dias o corpo esteve exposto à visitação pública na Catedral
de São Mateus, aliás muito adequadamente, uma vez que este
santo — antes chamado Levi, o coletor de impostos — é
considerado pelos banqueiros católicos como seu padroeiro. Cerca
de 2 000 pessoas, incluindo um representante do Presidente da
República, o Governador do Estado, embaixadores, líderes civis,
funcionários do Banco e almas mais humildes, fizeram fila ante o
catafalco.
Na manhã do enterro, um arcebispo, um bispo e um monsenhor
concelebraram a mais solene das missas, enquanto um coro de
belíssimas vozes entoava o Dies Irae e o responsório às orações.
Dentro da catedral, que estava repleta, uma área próxima ao altarmor
fora destinada aos parentes e amigos do defunto. A seguir,
estavam os diretores e funcionários do First Mercantile Bank.


Roscoe Heyward, vestido com sobriedade, de preto, encontrava-se
na primeira fila, acompanhada de sua robusta e arrogante mulher,
Beatrice, e do filho, Élmer. Heyward, embora pertencente à Igreja
Episcopal, estudara as corretas maneiras de proceder de um católico
nestas circunstâncias e ajoelhava-se com elegância antes de sentar,
bem como ao sair, mais tarde, entre as filas de bancos, formalidade
que poucos católicos praticavam. Os Heywards também conheciam
todo o ritual da missa em si, de modo que suas vozes dominavam
todas as outras a seu lado, que tudo desconheciam.
Alex Vandervoort, vestido de cinza-chumbo e sentado duas filas
após os Heywards, encontrava-se entre aqueles que ignoravam o
ritual. Agnóstico, sentia-se pouco à vontade; na realidade, sentia-se
sobrando numa solenidade como aquela. E pensava de que maneira
Ben, intrinsecamente uma alma simples, teria julgado uma
cerimônia tão pomposa.
Ao lado de Alex, Margot Bracken olhava em torno de si, com curiosidade.
De início, Margot decidira assistir à cerimônia com um
grupo de Fórum East, mas na noite anterior havia ficado no
apartamento dele até tarde, e este persuadira-a a acompanhá-lo. A
delegação do Fórum East — uma delegação bem grande —
encontrava-se em algum lugar, atrás deles, na igreja.
Ao lado de Margot estavam Edwine e Lewis D'Orsey; sendo que
este, com sua aparência esquálida, macilenta de sempre evidenciava
estar cansado de tudo. Talvez, pensava Alex, Lewis já estivesse
redigindo mentalmente a próxima edição de seu boletim de
investimentos. Os D'Orseys tinham ficado ao lado de Margot e Alex
— os quatro encontravam-se com frequência — não apenas porque
Edwina e Margot fossem primas, mas porque gostavam da
companhia uns dos outros.
Na fila à frente de Alex, estavam Jerome Patterton e a esposa.
Apesar de seu inteiro alheamento à liturgia, Alex deu-se conta de
que lágrimas chegavam a seus olhos quando o ataúde era levado
para fora da igreja. Seus sentimentos em relação a Ben — ele havia


chegado a esta conclusão durante os últimos dias — chegavam
próximo do amor. De certa forma, o velho Ben representava para ele
a figura de um pai; sua morte deixaria uma lacuna em sua vida que
jamais poderia ser preenchida.
Margot estendeu-lhe a mão e ele a segurou.
À medida que as pessoas se dirigiam à fila dos pêsames, Alex viu
Roscoe e Beatrice Heyward olharem em sua direção.
Cumprimentou-os com um aceno de cabeça e foi retribuído. O rosto
de Heyward havia-se tornado mais humano, como se houvesse uma
mútua compreensão a respeito de uma mesma dor, uma certa
solidariedade, e que o seu antagonismo — pelo menos neste
momento — houvesse sido posto de lado.
Fora da catedral o tráfego regular havia sido mudado, as mãos
invertidas, tudo alterado.
Nesta altura, o ataúde já se encontrava no carro fúnebre, inteiramente
coberto de flores. Já agora os parentes e os pessoal do Banco
entravam em suas limusines, sob a proteção e a direção da polícia.
Um motociclista à frente de um grupo de batedores abria o cortejo.
O dia estava cinzento e frio. Redemoinhos de vento faziam espirais
de poeira nas ruas. Lá no alto, as torres da catedral destacavam-se,
atraindo a atenção para toda a fachada imensa da igreja, encardida
pelo passar dos anos. A metereologia havia previsto neve, mas até
agora não caíra.
Enquanto Alex fazia sinal para seu carro, Lewis D'Orsey espiava
por cima de seus óculos de meias-lentes, para os operadores da TV
que, calados filmavam a fila dos pêsames. E comentou:

— Imagine só: se eu próprio acho isto tudo deprimente, e realmente
acho, os relatórios e a cobertura da imprensa farão com que as ações
do FMA caiam ainda mais amanhã.
Alex concordou, muito pouco à vontade. Tanto quanto Lewis, ele
sabia que as ações do FMA cotadas na Bolsa de Nova Iorque
haviam caído cinco pontos e meio desde que se divulgara a notícia
da doença de Ben. A morte do último dos Rosselli — um nome que

durante gerações foi sinônimo do Banco — trazia uma certa
incerteza sobre o desenrolar da administração futura, e isto
provocara a queda recente das ações. Agora, muito embora
ilógicamente, a publicidade em torno do funeral poderia fazer que
elas caíssem ainda mais.

— Mas subirão outra vez — disse Alex. — Os lucros são bons; na
realidade, nada foi alterado.
— Sim, sei disto tudo — concordou Lewis. — É exatamente por isto
que estou pronto a cobrir amanhã minha posição a descoberto.(*)
Edwina mostrou-se admirada:
— Você está jogando a descoberto?
— Claro. E aconselhei alguns clientes a fazer o mesmo; até agora o
lucro não é nada mau.
Edwina protestou:
— Lewis, você e eu sabemos que nós jamais discutimos qualquer
coisa confidencial; Mas outras pessoas não sabem. Devido à minha
ligação com o Banco você poderia ser acusado de estar
comercialmente bem informado, ou seja, de estar por dentro.
Alex discordou.
— Não, Edwina; neste caso, não. A doença de Ben era do conhecimento
público.
— Quando conseguirmos reformular, reformar o sistema capitalista
— disse Margot — vender a descoberto no mercado de ações será
uma das primeiras coisas a desaparecer.
Lewis perguntou:
— Por quê?
(*) — No Brasil existe compra a termo (pagamento futuro) de ações, mas não
existe venda a descoberto (venda de ações não possuídas). (N. do T.)


— Porque é totalmente negativo. Vender a descoberto é uma especulação
destruidora, dilaceradora, que exige, para tanto, que outra
pessoa perca. E demoníaca, maquiavélica, e não passa de uma
atitude degenerativa. Que não leva a nada.
— Como não? Dá um lucro bastante simpático: — Lewis sorria.
Discutira com Margot muitas vezes antes. Adorava seus
argumentos e as discussões que provocavam. — E não tem sidD
coisa fácil hoje em dia, pelo menos com os investimentos
americanos.
— Desculpe, querido, mas eu continuo a não gostar do que você
está fazendo com as ações do FMA — disse Edwina. — Afinal, é
uma coisa muito minha.
Lewis D'Orsey olhou para sua mulher de modo bastante sério.
— Está bem, minha querida, então assim que eu tenha feito a devida
cobertura das minhas vendas a descoberto, amanhã, nunca mais
negociarei com as ações do FMA.
Margot olhou em todas as direções, sem nada compreender.


— Você sabe muito bem que ele só está falando a verdade — disse
Alex.
Ele costumava pensar sobre o tipo de relacionamento existente entre
Edwina e o marido. Exteriormente eles pareciam discordar em tudo:
Edwina sempre elegante, atraente, cheia de si, segura de si; Lewis,
com sua aparência física inexpressiva, pouco comunicativo, a não
ser com os íntimos, conquanto essa quase timidez não
transparecesse em seu boletim financeiro. Mas o casamento parecia
funcionar bem e, entre si, eles mostravam o maior respeito e afeição
mútuos como provavam as últimas palavras de Lewis. Talvez,
pensava Alex, isto viesse a corroborar o conceito de que os opostos
se atraem; pelo jeito, eles não só se atraíam como tinham uma certa
tendência a permanecer casados.

O Cadillac de Alex, pertencente ao Banco, avançou em sua direção e
os quatro — Alex, Margot e os D'Orseys — entraram no carro.


— Desculpe insistir, e aliás me intrometer, mas teria sido uma promessa
mais civilizada — disse Margot — se Lewis concordasse em
não vender nada a descoberto.
— Alex — disse Lewis — pelo amor de Deus, o que pode você ter
em comum com esta dona socialista?
— Entendemo-nos na cama — disse Margot. — Ou você acha que
isto não é suficiente?
Alex disse:

— Gostaria de me casar em breve. Edwina acrescentou com calor:
— Então desejo que se casem logo.
Ela e Margot eram amigas íntimas desde a infância, apesar de seus
atritos ocasionais devido aos temperamentos diferentes e ao modo
de ver e sentir as coisas. Mas tinham algo em comum, que constituía
um traço marcante em sua família: eram fortes, trazendo consigo a
tradição de envolvimento, de engajamento na vida pública. Edwina
perguntou a Alex, suavemente:

— Alguma notícia sobre Célia? Ele fez que não com a cabeça:
— Nada mudou; se mudou, foi para pior.
Já estavam dentro do carro. O painel de vidro que separava o motorista
do banco traseiro estava levantado. Sentaram-se, enquanto o
cortejo movia-se vagarosamente, metro por metro.
Para Alex, a simples menção de Célia aguçou mais ainda a tristeza
do momento. Também o lembrou, trazendo-lhe um certo complexo
de culpa, de que deveria voltar a visitá-la em breve. Desde aquela
vez em que fora ao Centro de Terapia, no início de outubro, quando
saíra tão deprimido, só voltara uma vez, tendo encontrado a esposa
ainda mais ausente e introvertida, não dando o menor sinal de tê-lo
reconhecido. Limitara-se a chorar em silêncio durante todo o tempo
em que ele lá permaneceu. Durante vários dias ele ficou arrasado e
tomou verdadeiro pavor de repetir as visitas.


De lepente, veio-lhe à mente que Ben Rosselli, no caixão, estava em
muito melhor situação que Célia, pois deixara absolutamente de
viver. Se, pelo menos, Célia morresse...
Alex sufocou tal pensamento com vergonha.
E a situação permanecia a mesma entre ele e Margot, que
continuava contrário ao divórcio, pelo menos enquanto não ficasse
provado que isto não afetaria Célia. Margot parecia estar disposta a
continuar com a situação atual, indefinidamente. Mas Alex não se
sentia tão conformado.
Lewis dirigiu-se a Edwina:

— Ah! estava querendo lhe perguntar quais são as últimas sobre o
seu jovem assistente; o que foi apanhado com a boca na botija.
Como é o nome dele?
— Miles Eastin — respondeu Edwina. — Ele terá que enfrentar o
tribunal na próxima semana, e eu terei que testemunhar. É uma
situação que não aprecio nada mesmo.
— Pelo menos já se sabe onde está a culpa — disse Alex. — Ele
havia lido o relatório do chefe da Auditoria sobre o roubo; e
também sobre Nolan Wainwright. — E o que me diz da caixa,
aquela moça envolvida... Sra. Núnez? Vai bem?
— Parece que sim. Lamento tanto que tenha dado a Juanita tanta
tristeza, que a tenha feito sofrer tanto! E, como ficou provado,
injustamente.
Margot, que não participava da conversa, disse:
— Conheço uma Juanita Núhez. É uma moça muito bacana, que
mora no Fórum East. Acho que o marido a abandonou. Tem uma
filha.
— Não precisa dizer mais nada, é a mesma — disse Edwina. — Ah,
e é isto, agora me lembro, mora no Fórum East.
Embora Margot estivesse curiosa, algo lhe dizia que agora não era o
momento para fazer outras perguntas.
Entre todos sentados e em silêncio, Edwina tentava ordenar seus
pensamentos. Os dois acontecimentos recentes — a morte de Ben

Rosselli e a maneira idiota pela qual Miles Eastin havia estragado a
vida — tinham surgido demasiado próximos. E ambos os fatos
envolviam pessoas das quais ela gostava. Sentia-se muito triste por
isso.

Achava que devia preocupar-se muito mais com Ben, sentir muito
mais por Ben. Afinal, ela lhe devia tudo. Sua ascensão rápida no
Banco devera-se, é claro, a seus méritos; no entanto, Ben jamais teria
hesitado, como muitos patrões o fazem, em permitir que uma
mulher tivesse as mesmas oportunidades dos homens. Edwina
discordava daquela conversa fiada do Women's lib. Segundo seu
ponto de vista, as mulheres, no mundo dos negócios, eram
favorecidas devido a seu sexo, que lhes dava uma vantagem à qual
Edwina jamais recorrera ou de que jamais necessitara. Deixando
tudo isso de lado, durante os muitos anos em que conhecera Ben, a
presença dele era uma segurança, uma garantia de igualdade de
tratamento.

Como Alex, Edwina não conseguira dominar as lágrimas quando o
caixão, levando o corpo de Ben, passara por ela à saída da catedral.
Mas seus pensamentos, com insistência, voltavam-se para Miles.
Acreditava que ele era bastante jovem para reconstruir uma nova
vida. embora isto não fosse fácil. Nenhum banco, nem qualquer
outra pessoa o admitiria num cargo de confiança. Mas, apesar de
tudo de errado que ele fizera, Edwina desejava que não fosse
condenado à prisão.

Dirigindo-se a todos, Edwina disse:

— Sempre sinto uma espécie de sentimento de culpa quando falo
sobre coisas banais num enterro.
— Não vejo razão para tanto — disse Lewis. — Por mim, quando
morrer, gostaria de pensar que todos estavam falando, conversando
sobre alguma coisa sólida, alguma coisa válida, não apenas um
bate-papo fútil.

— Você se certificaria disso — Margot sugeriu — publicando uma
participação no The D'Orsey Newsletter. E cada pessoa que
carregasse seu caixão poderia distribuir os respectivos exemplares.
Os olhos de Lewis brilharam:
— Acho que é exatamente o que vou fazer!
Já agora o cortejo começara a se mover um pouco mais depressa. A
frente, dois batedores evitavam os congestionamentos de tráfego
nos cruzamentos. Os carros que os seguiam aumentavam a
velocidade, e momentos depois o cortejo distanciava-se da catedral
e percorria as ruas da cidade.
A neve prevista começou a cair.

— Gostei da idéia de Margot — disse Lewis. — Hum! Boletim de
Despedida, e agora já me ocorre até o cabeçalho: Enterre o dólar americano
comigo.' E tudo o que você pode fazer — ele está tão morto quanto eu.
Logo a seguir vou insistir na criação de uma nova espécie de moeda
para substituir o dólar: o U.S. D'Orsey. Baseado, é claro, no ouro.
Mais tarde, quando tudo isto houver acontecido, o resto do mundo
terá o bom senso de seguir meu exemplo.

— E então você se tornará um monumento à regressão — disse
Margot. — E qualquer retrato seu terá que ser sempre com a cabeça
virada para trás. Pelo seu padrão-ouro, um número ainda menor de
pessoas seriam então donas de toda a fortuna do mundo, e o resto
da humanidade ficaria mesmo com a bunda de fora. Lewis sorriu:
— Uma perspectiva de péssimo gosto, pelo menos, a última. Mas,
talvez até este preço não fosse caro demais para assegurar um
sistema monetário estável.
Alex, sentado num banco de abrir, à frente dos outros três, virou-se
de lado para melhor participar da conversa:
— Lewis, procuro ser objetivo e algumas vezes até acredito que seu
pessimismo sobre a situação do dólar e a situação do sistema
monetário faz sentido. Mas não posso participar do seu total
negativismo. Acredito que o dólar possa se recuperar. Recuso-me a
acreditar que as finanças em geral estejam caindo aos pedaços.

Margot exclamou:

— Oh, por favor! Edwina suspirou.
— Margot. você sabe que isso sempre acontece quando o provoca.
Então, por que insiste?
— Não, não! — disse Lewis. — Minha querida, gosto que me respeitem
e que levem minha opinião a sério. Não preciso, nem quero
tolerância.
Margot perguntou-lhe:
— Então, que quer você?
— Quero que aceitem a verdade de que a América se arruinou, arruinou
seu dinheiro e o sistema monetário internacional com
politicagem, ganância e dívida. Quero que vocês entendam que
falência é algo que pode acontecer às nações, assim como às pessoas
físicas e às empresas. Quero que compreendam que os Estados
Unidos estão perto da falência, porque — Deus é testemunha —
existem muitos precedentes históricos para mostrar como e por que
uma coisa assim acontece. Que o colapso das moedas não é coisa
nova. No nosso próprio século temos vários exemplos, todos
oriundos da mesma causa, ou seja, um governo que provocou o
cancro da inflação simplesmente por imprimir papel-moeda sem
que fosse lastreado por ouro ou por qualquer outro valor. Durante
os últimos quinze anos, os Estados Unidos têm feito exatamente
isto.
— Existem mais dólares em circulação do que deveria existir —
concordou Alex. — Ninguém, com o mínimo de bom senso,
duvidaria disto.
Lewis concordou:
— Os Estados Unidos também contraíram dívidas maiores do que
poderão jamais pagar; dívidas que estão se expandindo como uma
monstruosa bola de neve. Os governos da América têm gasto
bilhões de maneira desordenada, emprestado desordenadamente,
acumulado dívidas mais do que qualquer pessoa possa crer; então
passaram a usar mais e mais sua máquina de imprimir dinheiro,

para fazer mais papel-moeda e, em conseqüência, mais inflação. E
as pessoas, os indivíduos, os cidadãos, seguiram tal exemplo. —
Lewis apontou na direção do carro fúnebre à frente. — Banqueiros
como Ben Rosselli são exemplos, acumulando dívidas sobre dívidas.
Você também, Alex, com o seu cartão de crédito Keycharge e a
facilidade de gastar dinheiro. Quando é que as pessoas aprenderão
a lição de que não existe um débito fácil, assim como não existe o
alegado crédito fácil? Digo a vocês, chego até a afirmar, que a
América, como nação, e os americanos, como indivíduos, perderam
aquilo que de fato possuíam: saúde financeira.

— Margot, caso sinta curiosidade — disse Edwina — Lewis e eu
não discutimos muito assuntos financeiros ou bancários. Assim, ele
torna-se mais agradável e mais tranqüilo em casa.
Margot riu.
— Lewis, quando, há pouco, você falava, soava exatamente como
seu próprio boletim.
— Ou — disse Lewis — como o bater de asas numa sala vazia, sem
que ninguém escute.
De repente Edwina disse:
— Vai ser um enterro com neve. — Inclinou-se para a frente,
olhando através da janela para a neve que caía lá fora. As ruas
suburbanas pelas quais passavam estavam cobertas de neve recém-
caída, e o cortejo andou ainda mais devagar, à medida que o
motociclista da polícia, à frente, diminuía a marcha devido à neve.
O cemitério, pensava Alex, distava ainda mais ou menos dois quilômetros.
Lewis D'Orsey prosseguiu:
— Assim, para a massa do povo. toda a esperança se foi, o jogo do
dinheiro acabou! Poupanças, pensões e investimentos com juros
fixos estão se tornando desvalorizados. Neste momento, na
América, deveria estar ocorrendo o salve-se quem puder, cada um
procurando os seus próprios cintos de segurança, de salvação. Está
na hora de cada um se defender por si. E, no entanto, existem

maneiras de lucrar com a desgraça geral. Caso esteja interessada,
Margot, você saberá como, lendo meu último livro. Depressões e
Desastres: Como Ganhar Dinheiro com Eles. Para sua informação, está
vendendo muito bem.

— Se você não se incomoda — disse Margot — eu passo, nessa
rodada. A mim, isso se assemelha a alguém que quisesse
monopolizar vacinas durante uma epidemia de peste bubônica.
Alex voltara as costas aos demais e espiava pelo vidro da frente do
carro. Pensava que, às vezes, Lewis se tornava teatral e ia longe
demais. Habitualmente, porém, tudo que dizia fazia um certo
sentido e era baseado num raciocínio sólido. Hoje, por exemplo,
tudo que dissera era exato. Além disso, ele poderia estar certo a
respeito de uma tragédia monetária no futuro. E se tal acontecesse,
seria, de todas, a mais desastrosa tragédia da História.
E Lewis D'Orsey não estava só: muitas autoridades em finanças
pensavam do mesmo modo, conquanto se tornassem impopulares e
muita gente zombasse delas, talvez pelo simples fato de ninguém
querer acreditar no apocalipse, no juízo final — e muito menos os
banqueiros.
Mas, coincidência ou não, nos últimos tempos, os pensamentos de
Alex combinavam com os de Lewis. No mínimo, em dois casos: um,
a necessidade de maiores economias e poupanças — assunto sobre
o qual ele fora tão enfático, em especial quando se referiu às
economias e poupanças, em sua exposição à assembléia, uma
semana atrás. O outro: é que ele também se sentia pouco à vontade
sobre os débitos pessoais resultantes do crédito fácil que
proliferava, incluindo especialmente aqueles cartões plásticos.
Virou-se mais uma vez para trás olhando para Lewis:

— Supondo que eu acreditasse, como você acredita, que uma crise
está a caminho, e supondo ainda que eu fosse um cliente comum,
com depósitos em dólares, com que espécie de banco você
recomendaria que eu transacionasse?

Lewis respondeu sem a menor hesitação:

— Um grande banco. Quando chega uma crise, os bancos menores
são os primeiros a falir. Foi o que aconteceu nos anos 20, quando os
pequenos bancos estouravam como pipoca; e acontecerá outra vez
porque eles não têm dinheiro suficiente para sobreviver ao pânico, a
uma corrida geral. Aliás, esqueça tudo que se refere a seguro federal
de depósitos! O dinheiro disponível é menos de um por cento de
todos os depósitos bancários; não chega nem de longe a ser o
necessário para cobrir a falência de bancos, mesmo só numa parte
do país.
Lewis meditou demoradamente e continuou:


— Mas os pequenos bancos não serão os únicos a estourar da próxima
vez. Alguns dos grandes também estourarão; aqueles com
dinheiro demais, milhões demais, presos a empréstimos às grandes
indústrias; aqueles com uma proporção demasiado elevada de
depósitos internacionais — dinheiro que pode desaparecer da noite
para o dia; aqueles com pouca liquidez quando os depositantes
amedrontados quiserem retirar seu dinheiro. Portanto, se eu fosse
seu hipotético depositante, Alex, a primeira coisa que faria seria
estudar os balanços dos grandes bancos, e então escolher um cuja
proporção empréstimo-depósito fosse razoável, e também que
contasse com um bom número de depositantes locais.
— Bem, isto é bom — disse Edwina. — Pois acontece que o First
Mercantile American Bank preenche todos esses requisitos.
Alex concordou:
— Pelo menos no momento.
Mas o quadro _se alteraria, pensava Alex, se os planos de Roscoe
Heyward para empréstimos maciços à indústria fossem aprovados
pela diretoria.
Isto levou-o a pensar que os diretores do Banco se reuniriam mais
uma vez dentro de dois dias para prosseguir a assembléia
interrompida uma semana atrás.

Já agora o carro diminuíra a marcha e parara. Haviam chegado ao
cemitério. As portas dos outros carros se abriam, as pessoas saíam
levando guarda-chuvas e pesados casacos, protegendo-se contra o
frio e a neve que caía. O ataúde estava sendo retirado do carro
fúnebre. Logo cobriu-se de neve.
Margot segurou o braço de Alex e, com os D'Orseys, juntou-se aos
demais, na tranqüila procissão que seguia Ben Rosselli para o
túmulo.

17


Conforme previamente combinado, Roscoe Heyward e Alex Vandervoort
não compareceram à reunião seguinte da diretoria. Cada
um deles esperava em seu próprio escritório o resultado final.
E o resultado veio antes do meio-dia, duas horas depois de haver-se
iniciado a reunião. O vice-presidente encarregado de relações
públicas, Dick French, fora chamado para participar da reunião e a
ele caberia informar à imprensa quanto à escolha do novo
presidente do First Mercantile American Bank.

Ele já tinha preparado dois comunicados diferentes, acompanhados

das respectivas fotografias.
O primeiro dizia:
ROSCOE D. HEYWARD É O PRESIDENTE DO FIRST
MERCANTILE AMERICAN BANK
O outro dizia:
ALEX VANDERVOORT É O PRESIDENTE DO FIRST
MERCANTILE AMERICAN BANK


Os envelopes já estavam prontos e endereçados. Os mensageiros encarregados
da entrega permaneciam de plantão. Cópias da notícia
teriam prioridade, é claro, para as companhias de comunicação
telegráficas, as redações de jornais da cidade, a televisão e as
estações de rádio. Várias centenas seriam remetidas por via postal.
Heyward e Alex chegaram juntos à sala de reuniões. Sentaram-se
em seus respectivos lugares.
O vice-presidente encarregado de relações públicas encontrava-se
ao lado do presidente da assembléia, Jerome Patterton.
Coube ao diretor com a mais longa folha de serviços, S. Ex.a Harold
Austin, anunciar a decisão da assembléia. E a decisão foi anunciada:
Jerome Patterton, até o momento presidente da assembléia, fora
eleito presidente do FIRST MERCANTILE AMERICAN BANK, devendo
tomar posse no ato.
Esta escolha colheu desprevenido até o próprio Patterton, cuja expressão
era da mais absoluta surpresa.
Dick French resmungou baixinho:

— Merda!
Mais tarde, no mesmo dia, Jerome Patterton conversou, em separado,
com Heyward e Vandervoort.
— Estou servindo como uma espécie de papa interino — informou a
cada um deles. — A mim, o cargo não interessa, como você sabe. E
todos sabem, inclusive os diretores, que me restam apenas 13 meses
para a aposentadoria compulsória.
— Mas a diretoria se encontrava num beco sem saída no que se referia
a vocês dois, candidatos igualmente fortes, dificultando a
decisão. Então, resolveram que seria bom ter tempo bastante até que
decidissem de vez.
— Vocês estarão se perguntando sobre o que sucederá. Sei tanto
quanto vocês, pelo menos quanto ao futuro. No presente, pretendo
dar o máximo de mim, e preciso da ajuda de ambos. Sei que meu
pedido será atendido, porque será em benefício de ambos
— Fora disto, nada mais posso prometer.

18


Mesmo antes de serem lançadas as fundações do Fórum East, Margot
Bracken já se encontrava ativamente engajada no projeto. De
início, fora consultora legal de um grupo de cidadãos que faziam a
campanha para que o projeto fosse aprovado; depois, desempenhou

o mesmo papel representando uma associação de inquilinos. Tinha
também dado ajuda e conselhos legais a famílias que precisavam de
orientação jurídica — por um preço mínimo, ou mesmo grátis.
Margot fora diversas vezes ao Fórum East e, nessas idas e vindas,
conheceu muitos dos seus moradores, inclusive Juanita Nunez.
Três dias após o enterro de Rosselli — no sábado pela manhã —
Margot encontrou Juanita numa mercearia existente na galeria
daquele conjunto. O complexo Fórum East havia sido planejado
como uma comunidade homogênea, com acomodações
habitacionais de baixo custo: apartamentos atraentes, casas e
edifícios antigos restaurados. Havia de tudo: todos os tipos de
esporte, cinema, auditório, lojas e cafés. Os edifícios até agora
construídos eram interligados por três alamedas e por passarelas —
muitas dessas idéias adaptadas do Golden Gateway, de* São
Francisco, e do Barbican, de Londres. Outras partes do projeto ainda
estavam em construção, aguardando financiamento.

— Olá, Sra. Núhez — disse Margot. — Vamos tomar um cafezinho?
Num terraço perto da mercearia tomaram um café expresso e conversaram
sobre a própria Juanita e sua filha Estela que, esta manhã,
estava numa aula de balé proporcionada por um grupo da
comunidade, bem como sobre o progresso em geral do Fórum East.
Juanita e seu marido Carlos, encontravam-se entre os primeiros
ocupantes do local e moravam num pequeno apartamento num dos
edifícios antigos, restaurados e readaptados. Pouco após terem-se
mudado para lá, Carlos havia partido para endereço desconhecido.
Juanita ficara no apartamento.

Mas estava-se tornando difícil acomodar as coisas, ela tentava explicar.


— Todos aqui têm o mesmo problema. Cada mês, nosso dinheiro
compra menos. É a inflação! Onde vamos chegar?
De acordo cem Lewis D'Orsey, pensava Margot, terminaria em desastre
e anarquia. Guardou tal pensamento para si mesma, mas não
se esquecera da conversa que tivera, há três dias, com Lewis,
Edwina e Alex.
— Ouvi dizer — disse Margot — que você teve um problema qualquer
no banco onde trabalha.
O rosto de Juanita entristeceu-se. Por um momento pareceu que ela
ia chorar e Margot disse depressa:
— Desculpe. Talvez eu não devesse ter mencionado o assunto.
— Não, não! E só que, de repente, pensar nisso... bem, já acabou.
Mas, se a senhora quiser ouvir a verdade, eu lhe digo.
— Juanita, você devia sempre pensar que existe uma classe que
pode lhe ajudar: os advogados — disse Margot. — Mas uma coisa
também deve saber sobre nós: é que somos muito intrometidos.
Juanita sorriu; logo ficou séria e começou a descrever toda a história
dos 6 000 dólares desaparecidos; o pesadelo da suspeita e o
interrogatório que durou 48 horas. À medida que Margot escutava,
sua raiva, sempre à flor da pele, aumentava.
— O Banco não tinha direito algum de pressioná-la sem que você
houvesse recebido conselho legal. Por que não me chamou?
— Nem sequer me ocorreu — disse Juanita.
— É sempre assim. A maioria das pessoas inocentes nem se lembra
dos advogados. — Margot refletiu e acrescentou. — Edwina
D'Orsey é minha prima. Vou falar com ela sobre isto.
Juanita mostrou-se surpreendida.
— Eu não sabia. Mas, por favor não faça! Afinal, foi a Sra. D'Orsey
quem descobriu a verdade.

— Está bem — aquiesceu Margot — se você não quer. não falo. Mas
falarei com outra pessoa que você não conhece. E lembre-se disto: se
alguma vez tiver qualquer espécie de problema, sobre qualquer coisa,
não se esqueça de mim. Estarei sempre pronta a ajudá-la.
— Obrigada — disse Juanita. — Caso surja outro problema, contarei
com a Senhora. Juro que sim.
— Se o Banco tivesse chegado a despedir Juanita Núhez, — disse
Margot a Alex Vandervoort aquela noite — eu a teria aconselhado a
processá-lo e, claro, ganharia a causa — e uma boa soma para ela.
— Claro que poderia, e ganharia — concordou Alex. Estavam a caminho
de uma ceia e Alex dirigia o Volkswagen de Margot. —
Principalmente quando foi revelada a verdade sobre o roubo
efetuado pelo assistente de operações, Eastin... o que, sem dúvida,
viria a acontecer. Felizmente, o instinto feminino de Edwina
funcionou salvando-nos a todos.
— Você está sendo insolente — disse Margot. O tom de voz de Alex
mudou.
— De fato, falando sério, você tem razão; eu não deveria estar falando
assim. A verdade é que agimos de maneira miserável em
relação à Sra. Núnez, e todos sabem disso. Eu sei, porque li tudo a
respeito; Edwina sabe: Nolan Wainwright sabe. Por felicidade, no
final, nada de realmente grave aconteceu. A Sra. Núhez ainda tem
seu emprego, e o Banco aprendeu uma lição que lhe servirá no
futuro.
— Agora sim, você falou — disse Margot sorrindo.
E encerraram o assunto, o que não era comum, já que eles gostavam
tanto de discutir.

19


Foi na semana anterior ao Natal que Miles Eastin compareceu perante
a Corte Federal, acusado de cinco delitos. Quatro referiam-se
às transações fraudulentas no Banco, das quais ele se beneficiara e
que totalizavam 13 000 dólares. A quinta acusação referia-se aos 6
000 dólares roubados em dinheiro.
Presidindo a mesa encontrava-se o Meritíssimo Juiz Winslow
Underwood.
Tendo sido comprovado que o réu não tinha recursos, o júri
designou-lhe um defensor público, jovem sem experiência, que
sugeriu que ele se declarasse inocente de todas as acusações. Não
era o conselho indicado. Provavelmente um advogado mais
amadurecido teria aconselhado que se dissesse culpado, em vez de
tendo-se declarado inocente, ter que se defrontar com certos
detalhes — em especial a tentativa de incriminar Juanita Núhez —
que foram revelados na Corte. E nada foi omitido; tudo veio à luz.
Edwina D'Orsey foi chamada a testemunhar, assim como
Tottenhoe. Gayne, da Central de Auditoria e outros auditores.
Innes, Agente Especial do FBI, apresentou como prova contra Miles
Eastin sua confissão de culpa, assinada, referente ao roubo de
dinheiro, confissão essa feita no departamento local do FBI após a
que Nolan Wainwright dele extraíra.
Duas semanas antes do julgamento, o defensor público protestara
contra a anexação aos autos do processo da confissão obtida pelo
FBI. Seu requerimento foi indeferido.
O Juiz Underwood mencionou que. antes de Eastin ter feito tal confissão,
ele fora devidamente alertado, em presença de testemunhas,
acerca de seus direitos legais.
A primeira confissão obtida por Nolan Wainwright. cuja validade
poderia ter sido contestada, não foi levada em consideração, em
vista da outra feita ao FBI, e que não fez parte do processo.


A presença de Miles Eastin no tribunal deprimira Edwina
tremendamente. Ele estava pálido, desfigurado, com fundas
olheiras. Sua habitual alegria de viver parecia ter-se evaporado e.
contrastando com sua aparência sempre muito bem cuidada, tinha o
cabelo despenteado, a roupa amarrotada. Parecia ter envelhecido
desde a noite da auditoria no Banco.
O testemunho de Edwina foi curto e circunstancial. Enquanto era
interrogada com delicadeza pelo advogado de defesa, ela várias
vezes dirigiu o olhar para Miles, mas este mantinha a cabeça baixa,
como se recusasse encará-la.
Também foi testemunha, embora de modo relutante. Juanita Núhez.
Estava nervosa e o júri tinha dificuldades em ouvi-la. Por duas
vezes o juiz interferiu, pedindo-lhe que falasse um pouco mais alto.
Tais pedidos foram feitos com a maior gentileza, já que sua
inocência fora amplamente comprovada.
Juanita não demonstrou nenhum antagonismo em relação a Eastin;
respondeu a tudo breve e sucintamente e, várias vezes, o promotor
insistiu para que ela desenvolvesse mais o tema. Mas Juanita
parecia apenas querer acabar logo com aquela provação, e dar tudo
por encerrado.
O advogado da defesa levantou a mão e pediu a palavra para
questioná-la.
Logo após o testemunho de Juanita, o defensor, depois de uma consulta
em voz baixa com seu cliente, pediu licença para dirigir-se ao
júri. Foi-lhe concedida. Em seguida, o promotor, o juiz e o advogado
de defesa mantiveram uma conversa sussurrada, rápida, após o que
este pediu licença para que fosse alterada a alegação original de
Miles Eastin de "inocente" para "culpado". i->8

O Juiz Underwood. com seus modos patriarcais, olhou para ambos
os advogados e voltou a falar com eles em voz baixa, de modo que
os jurados não pudessem ouvir, e acrescentou em voz alta:


— Bem. Está concedida a alteração da alegação, se o acusado assim
o quer. Mas desde já vou dizendo que pouca diferença fará, no caso
presente.
Pedindo que os jurados deixassem a sala, o juiz passou a interrogar
o réu. Miles Eastin, e este confirmou que aceitaria a troca de sua
alegação inicial. A todas as perguntas que o juiz lhe fazia, Eastin
respondia:
— Sim, Excelência.
O juiz pediu que os jurados voltassem à sala e pouco depois foi suspensa
a sessão.
Mais tarde, após uma ardente defesa por parte do defensor público,
pedindo clemência, sempre fazendo questão de lembrar que seu
cliente não tinha ficha criminal anterior, Miles Eastin foi posto sob
custódia até a sentença final, que seria fixada na semana seguinte.
Nolan Wainwright, embora sem ser arrolado como testemunha, assistiu
a todas as sessões. No momento em que todos se retiravam da
sala, ele dirigiu-se a Juanita.


— Sra. Núhez, posso falar com a senhora, por poucos minutos? Ela
olhou-o com um misto de indiferença e de hostilidade, depois
disse que não com a cabeça.
— Tudo terminou. Agora vou trabalhar.
Quando estavam fora do edifício do tribunal, e apenas a alguns blocos
da agência central do FM A. ele insistiu:
— A senhora vai para o banco? Já? Ela assentiu.
— Por favor, gostaria de acompanhá-la. Juanita deu de ombros.
— Está bem, se o senhor faz questão.
Wainwright viu que Edwina D'Orsey. Tottenhoe e os dois membros
da auditoria, também a caminho do Banco, atravessavam a rua. De
propósito, atrasou-se um pouco, perdendo o sinal de tráfego, de
modo que os outros ficassem à sua frente.
— Olhe — disse Wainwright — para mim sempre foi difícil dizer
desculpe.


Juanita respondeu com aspereza:

— Então, para que se preocupar? De qualquer maneira, é apenas
uma palavra sem nenhum significado.
— Porque faço questão de dizê-la. E digo à Senhora: desculpe; perdão.
Perdão pelos aborrecimentos que lhe causei, ao não acreditar
que dizia a verdade desde o princípio e quando precisava de que
alguém a ajudasse.
— Bem, agora sente-se melhor? Já engoliu sua pequena aspirina? A
dor já passou?
— A Senhora não torna nada mais fácil.
Ela parou. Olhou-o e perguntou:
— O Senhor o fez? — Seu pequeno rosto estava levantado desafiador,
seus olhos escuros fixados nos dele. e pela primeira vez
Wainwright deu-se conta da força interior e da independência
daquela mulher. E. para sua própria surpresa, deu-se conta também
da intensa sexualidade que dela emanava.
— Não, não! E é por isso que agora quero ajudá-la. se consentir.
— Ajudar, em quê?
— Em conseguir a contribuição de seu marido para sua manutenção
e de sua filha.
Contou-lhe então que Carlos fora localizado pelo FBI e que trabalhava
em Phoenix. E acrescentou:
— Ele trabalha como mecânico e, claro, está ganhando algum dinheiro.
— Fico satisfeita por Carlos.
— O que eu queria dizer — disse Wainwright — é que a Senhora
devia consultar um dos advogados lá do Banco. Eu poderia
providenciar isto. Ele a orientaria sobre a ação que poderia intentar
contra seu marido e eu providenciaria para que nada lhe fosse
cobrado por esta assistência legal.
— E por que o senhor faria isto?
— Nós lhe devemos muito mais. Juanita respondeu rapidamente:
— Não.

Wainwright pensou que, talvez, ela não houvesse compreendido o
que ele queria dizer.

— Isto significaria — disse ele — que o tribunal obrigaria seu
marido a lhe dar uma pensão para ajudar na manutenção de sua
menina.
— E isto faria de Carlos um homem?
— Que diferença faz?
— Para mim, faz uma diferença enorme: não quero que ele seja forçado
a nada. Carlos sabe que estou aqui e que Estela está comigo: se
quisesse nos mandar dinheiro, mandaria. Si no, para quê? —
acrescentou Juanita.
Era como uma luta de esgrima contra sombras. E Nolan disse, já
desesperado:
—Jamais poderei compreendê-la.
Inesperadamente, Juanita sorriu:
—Não é necessário que me compreenda.
Andaram em silêncio o pouco que faltava para chegarem ao Banco,
ele remoendo sua frustração, pois desejava que ela tivesse mostrado
reconhecimento pela oferta que lhe fizera e, com isso, evidenciar
que confiava nele. Procurou penetrar, compreender o modo de
pensar da moça e sua noção de valores. Era evidente que Juanita
dava muita importância à sua independência. E Nolan imaginava
que ela, conseguindo manter-se sozinha, aceitava da vida o que esta
lhe trouxesse, felicidade ou infelicidade, bem-estar ou miséria,
esperanças elevadas ou anseios destruídos. De certa forma,
invejava-a. Por esta razão e também pela atração sexual que ela lhe
despertara, gostaria de conhecê-la melhor.
— Sra. Núhez — disse ele — gostaria de lhe pedir uma coisa.
— Sim.
— Caso lhe surja algum problema, qualquer problema, no qual eu
possa ajudá-la, peço que conte comigo.
Era a segunda oferta de ajuda que ela recebia nos últimos dias.
— Talvez.

Nisto — e por muito tempo — resumiu-se a conversa entre Wainwright
e Juanita. Ele sentia que fizera tudo que podia e tinha ainda
outras preocupações. Uma delas era um assunto que já tratara com
Alex Van-dervoort, dois meses atrás: providenciar um informante,
um alcagüete, numa tentativa de localizar a fonte dos cartões de
crédito falsificados, que continuavam a causar graves problemas ao
Keycharge.
Wainwright havia localizado um homem que cumprira pena. e que
conhecia apenas como Dick, disposto a aceitar qualquer risco, por
dinheiro. Tinham-se encontrado secretamente, com as maiores
precauções. Em breve se encontrariam de novo.
A grande esperança de Wainwright, agora, era levar à justiça os falsários
dos cartões de crédito, como tinha feito com Miles Eastin.
Na semana seguinte, quando Eastin compareceu mais uma vez perante
o juiz Underwood — desta vez para ouvir sua sentença —
Nolan Wainwright era o único representante do First Mercantile
American Bank no tribunal.
Na presença do réu, o juiz, com toda a calma, separava vários
papéis em sua mesa. Depois, olhou para o réu, de maneira bem fria..

— O Senhor tem alguma coisa a dizer?
— Não. Excelência.
Mal se podia ouvir a voz de Miles Eastin.
— Recebi um relatório do Oficial de Justiça encarregado do sursis —
o Juiz Underwood fez uma pausa enquanto procurava o respectivo
documento entre os demais papéis — no qual o Senhor reconheceu
por completo sua culpa, mas também convenceu-o de que está
genuinamente arrependido do que praticou.
O juiz articulara as palavras "genuinamente arrependido" de maneira
bem clara, que indicava que ele não era tão bobo, tão ingénuo,
para partilhar desta opinião. E prosseguiu:
—Acontece que seja seu arrependimento genuíno ou não, ele é não
somente inútil por ter vindo tarde demais, como também não pode,
em nada. atenuar sua tentativa desprezível de pôr a culpa de sua

conduta ilegal sobre uma pessoa inocente e insuspeita, uma jovem
mulher, em especial quando o Senhor, em sua posição de
funcionário graduado do banco, era responsável por ela, por ela que
acreditava no Senhor, como seu superior Conforme as provas, é
evidente que o Senhor teria persistido em sua telonia mesmo que
uma vítima inocente fosse acusada, considerada culpada, e enviada
para a cadeia em seu lugar. Felizmente, graças à vigilância de
outros, tal não ocorreu, mas não devido a qualquer arrependimento
de sua parte.
De onde se encontrava sentado, Nolan Wainwright via apenas parte
do rosto de Eastin, que se crispava. O Juiz Underwood mais uma
vez remexeu em seus papéis, depois levantou os olhos.

— Até agora, tenho lidado com o que considero a mais vil das várias
partes de sua conduta. Existe, também, a ofensa básica — sua
infidelidade ao Banco, como seu funcionário, não apenas em uma,
mas em cinco ocasiões diferentes. Digamos que um desses casos de
desonestidade pudesse ser considerado resultado de um impulso
irreprimível: mas, nos outros quatro casos constantes da acusação
os roubos foram executados após um estudo cuidadoso e prévio, e
executados com a mais viciosa esperteza.
— Um banco, como empreendimento comercial, tem o direito de
contar com a probidade daqueles que seleciona — como o Senhor
foi selecionado — para cargos de excepcional confiança. Porém, um
banco é mais que uma instituição comercial. É uma organização em
que o público confia. E. portanto, o público tem direito a proteger-se
contra aqueles que abusam dessa confiança: pessoas como o Senhor.
O juiz percorreu com o olhar os presentes. Em seguida, seu tom de
voz tornou-se mais formal.
— Se estivéssemos ante um simples caso comum, em vista da
ausência de ficha criminal, devido ao fato de o Senhor ser
delinqüente primário, eu teria sugerido o sursis, ou seja, suspensão
condicional da pena, conforme seu defensor, com tanta eloqüência,
sugeriu a semana passada. Mas não se trata de um caso comum.

Pelas razões que já mencionei, o seu é um caso excepcional.
Portanto, Miles Eastin, o Senhor irá para a cadeia, onde ficará tempo
bastante para refletir sobre as atitudes que acabaram por trazê-lo à
barra deste tribunal. A sentença deste júri é que o senhor permaneça
detido sob custódia do procurador público, por um período de dois
anos.
A um sinal de um funcionário, um guarda dirigiu-se a Miles Eastin.
Poucos minutos após a sentença, uma pequena conferência ocorreu
num cubículo fechado e sob as vistas de um agente, ao fundo da
sala do júri; um dos vários cubículos reservados aos prisioneiros
para que tivessem contato com seus conselheiros legais.

— A primeira coisa a ter em mente — disse o jovem advogado para
Miles Eastin — é que uma prisão de dois anos, de fato não significa
dois anos. Após haver cumprido um terço da sentença, o senhor
poderá pleitear liberdade condicional, dependendo do
comportamento que tiver. Isso representa um período de menos de
um ano.
Miles Eastin, sentido-se arrasado, miserável, como se tudo, aquilo
fosse um pesadelo e não a dura realidade, concordou com um aceno
de cabeça.
— O senhor pode, é claro, recorrer da sentença, è não precisa tomar
tal decisão agora. Mas digo-lhe francamente que não o aconselho a
isso.
— O senhor pode. é claro, recorrer da sentença, e não precisa tomar
tal decisão agora. Mas digo-lhe francamente que não o aconselho a
isso. Primeiro, porque não acredito que a decisão seja reformada;
segundo, porque já se tendo declarado culpado, a base para o
recurso é um tanto limitada. Ainda mais: até que seu requerimento
seja apreciado, talvez o senhor já tenha até acabado de cumprir a
sentença.
— O jogo acabou. Não vou recorrer.

— De qualquer modo, entrarei em contato com o Senhor, caso
venha a mudar de idéia. E desculpe se as coisas não ocorreram
como gostaríamos.
Eastin respondeu secamente:
— Sim.
— Foi, sem dúvida, sua confissão, claro, que nos prejudicou. Sem
ela, não creio que a promotoria pudesse ter provado sua culpa, pelo
menos no que se refere aos 6 000 dólares do roubo em dinheiro, que
pesou fortemente no espírito do juiz. Sei, claro, que o Senhor
assinou esta segunda confissão, a que fez perante o FBI, porque
julgava que a primeira era válida; portanto, pouca diferença faria
mais uma. Pois fez muita diferença. Na minha opinião, Nolan
Wainwright fez o Senhor cair numa armadilha.
O prisioneiro concordou.
— É isso mesmo, agora eu sei. O advogado consultou o relógio.
— Bem, tenho que ir. Marquei um encontro, barra-pesada para esta
noite. O senhor sabe como é.
O guarda abriu a grade para que ele saísse.
No dia seguinte, Miles Eastin foi transferido para uma prisão
federal fora do Estado.
No First Mercantile American Bank, quando as notícias sobre a sentença
de Miles Eastin chegaram ao conhecimento dos que se davam
com ele, alguns sentiram pena; outros achavam que bem o merecia.
Num aspecto, todos concordavam plenamente: nunca mais se
ouviria o nome de Miles Eastin outra vez no Banco.
Somente o tempo viria a provar o quanto esta opinião unânime era
errônea.

PARTE II


1


Como uma bolha de ar emergindo da água, o primeiro indício de
problema surgiu em meados de janeiro. Era apenas um item numa
coluna de mexericos, "Ear to the Ground" ("Ouvidos Colados ao
Chão") publicado na edição de domingo de um jornal local. O
colunista escrevera:
... Corre a boca pequena na cidade que grandes cortes de verbas
serão efetuados no Fórum East. Diz-se que o projeto conta com
enormes problemas financeiros. Mas, hoje em dia, quem não os
tem?... Alex Vandervoort só tomou conhecimento dessa notícia
segunda-feira pela manhã quando, juntamente com outros papéis, a
secretária pôs o jornal sobre sua mesa, com a nota assinalada em
vermelho.
Durante a tarde de segunda-feira Edwina D'Orsey telefonou para
perguntar a Alex se ele lera o mexerico e se sabia de qualquer coisa
a respeito. A preocupação dela era compreensível. Desde o início do
projeto Fórum East, coubera à agência central do Banco cuidar de
todos os empréstimos para a construção, de muitas das hipotecas,
bem como da tramitação de inúmeros documentos. Na etapa atual,

o projeto representava um fator importantíssimo para a agência.
— Se existe alguma coisa — insistia Edwina — quero saber.
— Pelo que sei, até agora nada mudou — falou Alex.
Em seguida ele pensou em telefonar para Jerome Patterton a fim de
informar-se, mas mudou de idéia. Fofocas sobre Fórum East não
eram novidade. O projeto provocara muita publicidade e, como era
inevitável, também muita informação errada.

Seria tolice, pensou Alex, incomodar o novo presidente do Banco
com trivialidades sem importância, principalmente porque
precisava do apoio de Patterton num assunto da maior importância:
a expansão, em grande escala, das atividades de poupança do FMA,
que estava em estudos para ser submetida à diretoria.
No entanto. Alex ficou um pouco mais preocupado, dias depois, ao
ler uma nota mais explícita, desta vez na coluna normal de notícias
do diário Times-Register.
A nota dizia:
Persiste a grande ansiedade sobre o futuro de Fórum East devido
aos rumores crescentes de que seu apoio financeiro será, em breve,
reduzido de maneira drástica ou mesmo cancelado.


O projeto Fórum East, que tem como objetivo a longo prazo uma
total reabilitação do núcleo central da cidade, tanto do ponto de
vista comercial como do residencial, foi subscrito por um consórcio
de interesses financeiros encabeçado pelo Firts Mercantile American
Bank.
Um porta-voz do mencionado Banco hoje, tomou conhecimento
desses rumores mas não fez nenhum comentário, limitando-se a
dizer: "Na hora devida faremos uma declaração".
Conforme o projeto Fórum East, algumas áreas residenciais do
centro da cidade já haviam sido modernizadas ou reconstruídas,
uma comunidade de habitações de baixo custo já estava ultimada.
Outra encontrava-se em execução. O plano, de dez anos, incluía
programas para melhoria de escolas, assistência a pequenos
negócios, facilidade de trabalho e emprego, assim como
oportunidades culturais e diversões. A construção, iniciada há dois
anos e meio, tem conseguido, por hora, manter-se dentro do
programa. Alex leu esta notícia em casa, durante o desjejum. Estava
só; Margot viajara há uma semana, no exercício de suas atividades
profissionais.
Ao chegar ao Banco, mandou chamar Dick French. Este, como vicepresidente
encarregado de relações públicas, corpulento, com seu



modo de falar abrupto, estava sempre bem informado pois já fora
editor financeiro e administrava seu departamento com grande
eficiência.

— Em primeiro lugar — perguntou-lhe Alex — quem foi o porta-
voz do Banco?
— Fui eu — disse French. — E lhe asseguro que não gostei de ter de
dizer que "na hora devida faremos uma declaração"... Mas o Sr.
Patterton recomendou-me que usasse tais palavras; insistiu mesmo
em que não dissesse mais nada.
— O que há de positivo na notícia?
— Diga-me você, Alex. Evidentemente, alguma coisa está acontecendo,
boa ou ruim, e quanto mais cedo conseguirmos acertar as
coisas, tanto melhor.
Alex sentiu-se dominado pela raiva.
— E você sabe me informar a razão pela qual eu não fui
consultado a respeito do assunto?
O chefe de relações públicas demonstrou surpresa.
— Pensei que tivesse sido consultado. Quando falei pelo telefone
com o Sr. Patterton, ontem, tenho certeza de que Roscoe estava lá;
pude ouvir a voz dele, e acreditei que você também estivesse
presente.
— Da próxima vez — disse Alex — não acredite nas aparências.
Liberou French e, em seguida, pediu à sua secretária que entrasse
em contato com a secretária de Jerome Patterton para marcar uma
entrevista com ele. Foi informado que o presidente ainda não
chegara, mas que estava a caminho. Verificando que já eram 11
horas da manhã, Alex resmungou com impaciência e voltou a
trabalhar no programa de expansão da poupança.
Pouco depois, dirigiu-se à suíte presidencial: duas salas de esquina,
cada uma com uma vista diferente da cidade. Desde que o novo
presidente tomara posse, a segunda dessas salas ficava,-em geral,
fechada, só tendo acesso a ela quem fosse convidado. As secretárias
diziam que Patterton a usava para praticar golfe sobre o tapete.

Era uma linda e agradável manhã de inverno e muito bonita a vista
através das janelas de Jerome Patterton. Sentado à sua secretária, ele
usava um terno leve, variando um pouco do tweed habitual. Um
jornal estava aberto exatamente na página com a notícia que
trouxera Alex até ali.
No sofá, achava-se Roscoe Heyward.
Os três se cumprimentaram.
Dirigindo-se a Alex, Patterton disse:


— Pedi que Roscoe ficasse porque já calculava qual seria o assunto.
— Pegou o jornal: — Você viu isto, claro.
— Sim, vi — disse Alex. — E chamei Dick French. Ele me informou
que você e Roscoe discutiram ontem as indagações da imprensa.
Então, minha primeira pergunta é: por que não fui informado?
Estou tão envolvido no projeto Fórum East quanto qualquer outra
pessoa.
— De fato, Alex, você deveria ter sido informado — Jerome Patterton
parecia embaraçado. — Mas a verdade é que ficamos meio
tontos quando os jornais começaram a telefonar, denotando que
alguma notícia havia transpirado daqui do Banco mesmo.
— Transpirado o quê?
Então foi Heyward quem respondeu:
— Transpirado a notícia de uma proposta que levarei ao conhecimento
do comitê de política financeira na próxima segunda-feira.
Vou sugerir uma redução dos atuais compromissos do Banco no
projeto Fórum East: uma redução de aproximadamente cinqüenta
por cento.
Em vista dos rumores, a confirmação não causou grande surpresa a
Alex. Mas ficou alarmado com o volume do corte. Dirigiu-se a
Patterton e indagou:
— Jerome, estarei certo ao supor que você é favorável a essa incrível
insensatez?
O rosto do presidente enrubesceu.

— Não está certo nem errado. Deixarei minha decisão para
segunda-feira; o que Roscoe tem feito até agora — ontem e hoje —
são sondagens, uma espécie de pesquisa de opiniões.
— Exato — Heyward confirmou. — Uma tática inteiramente legítima,
Alex. E, caso não concorde, permita que lhe lembre que, em
várias ocasiões, você levou suas próprias idéias a Ben, previamente,
idéias que depois apresentaria nas reuniões sobre política
monetária.
— Se fiz isso — disse Alex — é que com certeza minhas idéias tinham
mais sentido que esta.
— Bem, trata-se de sua opinião, somente sua.
— Não apenas minha; estou certo de que outros pensarão como eu.
— Pois minha opinião é que podemos fazer um uso
substancialmente melhor do dinheiro do Banco. — Olhou na
direção de Patterton. — Aliás. Jerome, os rumores que andam
circulando por aí poderiam até nos ser úteis caso a proposta de
corte seja aceita. Pelo menos a decisão não virá de modo abrupto.
— Se pensa desta maneira — disse Alex — talvez tenha sido você
quem deixou transpirar os rumores.
— Garanto-lhe que não fui eu.
— Então como explicá-los? Heyward
deu de ombros:
— Coincidência, suponho.
Alex raciocinava: teria sido coincidência? Ou alguém ligado a
Roscoe Heyward teria lançado um balão de ensaio? Sim. Poderia
perfeitamente ter sido Harold Austin, que. como chefe de uma
agência de propaganda, mantinha contato com toda a imprensa.
Mas parecia pouco provável que alguém viesse a saber ao certo.
Jerome Patterton levantou as mãos.
— Peço que deixem todos os seus argumentos para segunda-feira.
Então os discutiremos um por um.

— E tolice tentarmos nos enganar — insistia Alex Vandervoort. — O
que estamos decidindo hoje é até a que ponto o lucro é razoável e
até que ponto ele é excessivo.
Roscoe Heyward sorriu.
— Com franqueza, Alex, jamais considerei qualquer lucro como excessivo.
— Nem eu tampouco — disse Tom Straughan. — No entanto reconheço
que um lucro excepcionalmente elevado é muitas vezes
indiscreto: pode provocar aborrecimentos. Torna-se conhecido e
passível de crítica. No final do ano financeiro, temos que publicá-lo.
— O que vem a ser mais uma razão — acrescentou Alex — para
mantermos um equilíbrio entre o lucro obtido e a prestação de
serviços.
— A meu ver, o lucro, em si, é uma prestação de serviço aos acionistas
— disse Heyward. — E é para esta espécie de serviço que dou
prioridade.
O comitê de política bancária do FMA estava reunido na sala de
conferência. Era composto por quatro membros, reunia-se
quinzenalmente às segundas-feiras, sob a presidência de Roscoe
Heyward. Os outros membros eram Alex Vandervoort e mais dois
vice-presidentes — Straughan e Orville Young.
Tinha por objetivo decidir a respeito das várias modalidades de
aplicação dos fundos do Banco. Suas principais decisões eram
encaminhadas à diretoria para ratificação. Mas era raro que esta
alterasse qualquer coisa recomendada pelo comitê.
Os montantes dos recursos discutidos no comitê poucas vezes eram
inferiores a dezena de milhão.
O presidente do Banco comparecia, ex-officio, às reuniões mais importantes,
embora só tivesse o voto de Minerva. Jerome Patterton
achava-se presente hoje, mas ainda não havia participado dos
debates.
Estava em discussão a proposta de Roscoe Heyward para um corte
drástico no financiamento ao Fórum East.

Dentro dos poucos meses, caso aquele empreendimento
prosseguisse conforme o programado, novos empréstimos para
construção e novas hipotecas seriam necessárias. A parte a ser
financiada pelo FM A era de 50 milhões de dólares. Heyward
propunha reduzir esta importância à metade.
Ele já declarara:

— Esclareceremos aos interessados que não estamos optando por
uma retirada do Fórum East, e que não pretendemos fazê-lo.
Daremos uma explicação simples. Ou seja: que devido a outros
compromissos resolvemos reajustar a saída dos nossos fundos. O
projeto não será interrompido: apenas prosseguirá mais devagar do
que o anteriormente planejado.
Alex protestou:
— O projeto já está se desenvolvendo de maneira mais lenta do que
foi planejado de início. Retardá-lo ainda mais é a pior coisa que se
podia fazet, em qualquer sentido.
— Mas o que me preocupa não é a pior coisa que possa acontecer
aos outros, mas a melhor coisa que possa acontecer ao Banco —
disse Heyward.
A observação fora quase insolente. Talvez porque, pensava Alex,
Heyward confiasse em que a decisão viesse a ser a que ele desejava.
Alex tinha certeza de que Tom Straughan estaria a seu lado, contra
Heyward. Straughan era o economista-chefe do Banco —jovem,
estudioso, com uma sólida noção de economia e finanças — a quem
ele havia pessoalmente promovido, passando por cima da opinião
de outros.

Mas Orville Young, tesoureiro do Banco, era homem de confiança
de Heyward e sem dúvida votaria contra Alex.
No FMA. como em qualquer outro grande banco, o poder, em si,
poucas vezes refletia-se pelos gráficos. O poder real, verdadeiro,
escoava-se por desvios, linhas paralelas, dependendo da lealdade
de umas pessoas para com outras, de tal modo que quem não



optasse por um ou por outro lado era apagado e tragado pelas
areias movediças.
A luta pelo poder entre Alex Vandervoort e Roscoe Heyward já era
bem conhecida. Devido a ela, vários executivos do Banco já haviam
tomado partido, aderindo a um ou ao outro, jogando com o futuro,
e sempre torcendo pela vitória de sua facção. A linha divisória era
nítida, mesmo no comité.
Alex argumentou:


— Nosso lucro do ano passado foi de 13 por cento. E um lucro excelente
para qualquer negócio, como todos sabemos. Para o ano em
curso esperamos um lucro ainda melhor: um retorno de 15 por
cento nos investimentos, talvez até 16. Então, por que lutar para
conseguir mais?
O tesoureiro. Orville Young, perguntou:

— E por que não?
— Já esclareci este ponto — respondeu imediatamente Straughan.
— Trata-se de uma imprevidência.
— Não nos esqueçamos — disse Alex — de que nos meios bancários
não é difícil obter grandes lucros. Qualquer banco que não tenha
lucro é dirigido por simplórios. De várias formas, os dados, as
cartas, estão a nosso favor. Contamos com oportunidades, com
nossa experiência, e com leis razoáveis do nosso sistema bancário.
Estas, segundo julgo, são o que mais importa. Mas as leis nem
sempre serão razoáveis... podem mudar, se continuamos abusando
da situação e fugindo à nossas responsabilidades para com a
comunidade.
— Não sei de que modo estaremos fugindo às nossas responsabilidades
para com a comunidade se continuamos a apoiar o projeto do
Fórum East — disse Roscoe Heyward. — Mesmo depois da redução
proposta, ainda estaremos dando uma ajuda substancial.
Alex retrucou:

— Substancial uma ova! Seria uma ajuda mínima, como sempre foi
mínima a contribuição social dos bancos americanos. Os registros
deste Banco, ou de qualquer outro, comprovam como é mínima a
nossa contribuição, no que se refere a habitações de baixo custo. Por
que nos enganarmos? Durante gerações, os bancos ignoraram os
problemas públicos. Mesmo agora, fazemos sempre o mínimo
daquilo que podíamos fazer.
Straughan consultou umas notas manuscritas.
— Pretendia mencionar o assunto de hipotecas, Roscoe. Mas depois
do que Alex disse, gostaria de salientar que apenas 25 por cento dos
nossos depósitos de poupança estão atualmente empregados em
empréstimos hipotecários. E muito pouco. Poderíamos aumentá-los
para 50 por cento dos depósitos, sem sequer alterar nossa posição
de liquidez; e creio que deveríamos fazê-lo.
— Concordo inteiramente — disse Alex. — Os gerentes de nossas
agências estão implorando por dinheiro de hipotecas. O retorno do
investimento é bom. Sabemos, por experiência, que o risco
hipotecário é insignificante.
O jovem Orville Young retrucou:
— Mas o dinheiro fica preso por muito tempo; dinheiro sobre o qual
poderíamos conseguir taxas substancialmente mais elevadas em
outros investimentos.
Com impaciência, Alex bateu com a mão na mesa.
— Vez por outra temos uma obrigação pública de nos cingirmos a
taxas menos altas. É isto que quero tornar claro; é por isto que me
oponho a que aumentemos nosso campo de manobras à custa do
Fórum East.
— E há mais uma razão — acrescentou Tom Straughan. — Alex a
mencionou: legislação. O próprio Congresso já está preocupado
com o assunto. Muitos parlamentares gostariam de ver em vigor
uma legislação semelhante à lei mexicana, que exige uma
percentagem fixa dos depósitos bancários para ser aplicada no
financiamento de habitações de baixo custo.

Heyward interrompeu:

— Jamais o permitiríamos. Os bancos têm uma grande influência
em Washington.
O economista-chefe não concordou:


— Eu não penso assim.
_ Tom — disse Roscoe Heyward. — Vou lhe prometer uma coisa.
Daqui a um ano voltaremos a estudar a situação das hipotecas;
talvez, então, façamos o que você pretende; talvez voltemos a nos
dedicar ao Fórum East. Mas não este ano; este ano quero apresentar
um lucro colossal. — Olhou na direção do presidente do Banco e
acrescentou: — Jerome também o quer.
Pela primeira vez, Alex deu-se conta, com nitidez, da estratégia de
Heyward. Um ano de lucro excepcional para o Banco tornaria seu
presidente, Jerome Patterton, perante os acionistas e os diretores,
um verdadeiro herói.Patterton tinha à sua frente apenas um ano de
reinado, ao final de uma carreira modesta. Mas iria aposentar-se
com toda glória, ao som de clarins. E ele era humano. Portanto,
tornava-se compreensível que a idéia lhe agradasse.
O que viria a seguir era fácil de prever: grato, Patterton lançaria
Heyward como seu substituto. E, face ao extraordinário lucro
obtido, teria toda a probabilidade de ver sua sugestão vitoriosa.
O plano de Heyward era engenhoso. Alex achava difícil que as coisas
não viessem a correr conforme Heyward planejara.
— Existe ainda um fato que não mencionei — disse este último —
nem mesmo para você, Jerome, e que poderia influir decisivamente
em nossa decisão de hoje.
Ansiosos, os demais aguardavam tal revelação.
— Tenho grande esperança, na verdade com excelentes probabilidades,
que em breve possamos ter vultosas e sólidas transações com a
Supranational Corporation. Esta é mais uma das razões pela qual
não quero assumir compromissos com mais ninguém.

— Mas, sem dúvida, é uma grande notícia — exclamou Orville
Young.
Até mesmo Straughan, que até o momento discordara de Heyward,
reagiu favoravelmente.
A Supranational — ou SuNatCo, como era identificada por seu
logotipo, uma abreviatura familiar em todo o mundo — era uma
gigantesca multinacional, mais ou menos como a General Motors
das comunicações globais. Além disso, a SuNatCo possuía ou
controlava dezenas de outras companhias vinculadas ou não às suas
principais finalidades. Exercia prodigiosa influência junto a
governos de todos os tipos, desde democracias até ditaduras; era
tida como o maior complexo comercial na História. Os
observadores, às vezes, diziam que ela detinha em suas mãos mais
poder do que a maioria dos Estados soberanos nos quais operava.
Até agora a SuNatCo restringira suas atividades bancárias, nos Estados
Unidos, a três grandes bancos: Bank of América, First
National City e Chase Manhattan. A possibilidade de juntar-se a
este trio elevaria de modo extraordinário o status do First Mercantile
American Bank.
— Sob todos os aspectos, trata-se de uma possibilidade surpreendente
e estimulante. Roscoe — disse Patterton.
— Espero poder dar maiores detalhes na próxima reunião do
comitê de política monetária — acrescentou Heyward. — Tudo
indica que a Supranational irá propor que lhe abramos uma linha
de crédito substancial. Foi então que Tom Straughan lembrou:
— Mas ainda necessitamos um voto com referência ao Fórum East.
— E verdade, precisamos mesmo — disse Heyward.
Mas ele sorria confiante, satisfeito com a reação à sua declaração,
sentindo-se seguro quanto ao encaminhamento da decisão relativa
ao assunto.
De fato, os votos agrupavam-se em dois e dois, ou seja, Alex Vandervoort
e Tom Straughan eram contra a redução dos
financiamentos; Roscoe Heyward e Orville Young, a favor.

Todos olharam para Jerome Patterton que daria o voto de Minerva.
O presidente do Banco hesitou apenas um instante e declarou:

— Alex, desta vez estou com Roscoe.
2


_ Ficar aqui sentado com pena de si mesmo não vai ajudá-lo em
nada — declarou Margot. — O que precisamos é levantar nossos
traseiros das cadeiras e iniciar alguma espécie de ação.

— Que tal, por exemplo, botar uma bomba num banco? — alguém
perguntou.
— Nada disso! Tenho amigos em vários deles e em especial, naquele
a que vocês se referem. Além disso, dinamitar bancos é contra a lei.
— E quem é que disse que temos que nos manter dentro da lei?
— Eu digo — Margot respondeu. — E se alguém aqui pensa de maneira
diferente é melhor ir embora para casa e esquecer o assunto.
O escritório de advocacia de Margot Bracken, nesta noite de quarta-
feira, havia-se transformado na sede de um comitê executivo da
Associação de Inquilinos do Fórum East. A associação era um dos
muitos grupos do centro da cidade aos quais ela dava assistência
legal e que utilizavam seu escritório para reuniões, em geral nada
pagando por isso.

O escritório era bastante simples, realmente modesto: duas salas,
que outrora pertenceram a um mercearia, com as antigas prateleiras
transformadas em estantes de livros de Direito. O desaparelhado
mobiliário compreendia peças e pequenas coisas que ela fora
comprando a preço baixo.

Do lado oposto a seu escritório, duas outras mercearias, que
também haviam encerrado suas atividades, estavam em via de ser


alugadas. Com sorte e iniciativa, a onda de reabilitação do Fórum
East poderia absorver por completo toda aquela área. Até agora tal
não havia acontecido.
Foram os acontecimentos relativos ao Fórum East que motivaram a
reunião no escritório de Margot.
Na antevéspera, em declaração pública, o First Mercantile American
Bank transformara em realidade o que até então não passara de
boato. Os financiamentos dos projetos futuros de Fórum East
haviam sido reduzidos pela metade, decisão essa que entrava em
vigor imediatamente.
A declaração do Banco era vasada em termos burocráticos e em frases
eufemísticas tais como "falta temporária de fundos a serem
empregados a longo prazo" e "reconsideração periódica que será
dada ao assunto". Mas nada disso era levado a sério e todo mundo,
dentro e fora do Banco, sabia exatamente o que esta declaração
significava: o chamado bilhete azul.
A presente reunião era para examinar o problema e ver se alguma
coisa ainda poderia ser feita.
A palavra "inquilino" no nome da associação era uma designação
por demais sucinta. De fato, grande parte dos membros eram
inquilinos do Fórum East; outros o eram apenas em potencial.
Como, por exemplo, Deacon Euphrates, um metalúrgico de gênio
violento que há pouco dissera:

— Muitos de nós esperávamos chegar a inquilinos, mas isso não
será possível se o dinheiro parar de vir.
Margot sabia que ele, a mulher e cinco filhos moravam num apartamento
mínimo, parte de um prédio infestado de ratos que já deveria
ter sido demolido há muitos anos. Ela tentara, sem resultados,
conseguir-lhes outro tipo de moradia. Deacon Euphrates vivia da
esperança de que algum dia pudesse levar a família para uma das
novas unidades habitacionais do Fórum East, mas seu nome estava
apenas na metade de uma longa lista de candidatos. Com o

retardamento do projeto de construção, tal mudança iria retardar-se
ainda mais.
A declaração do First Mercantile American Bank fora um choque
também para Margot. Tinha certeza de que Alex resistira ao
máximo e que qualquer proposta de corte nos financiamentos do
Fórum East não teria sua aprovação; mas, obviamente, ele não fora
consultado. Por isto, nada lhe perguntara. E também por outra
razão: quanto menos Alejusou-besse a respeito de certos planos que
ferviam em sua mente, melhor para ambos.

— Pelo que vejo — disse Seth Orinda, um dos membros do comitê
— seja o que for que façamos, legal ou ilegal, não há maneira, na
verdade nenhuma maneira, de conseguir sugar o mínimo que seja
de dinheiro desses bancos.
Ele era um professor de escola superior, negro, já residente no Fórum
East. Mas possuía um sentido cívico muito apurado e
preocupava-se muitíssimo com os milhares de candidatos a
moradia naquele conjunto. Margot contava muito com a ajuda dele.
— Não tenha tanta certeza, Seth — respondeu Margot. — Os bancos
também têm sua parte fraca. E uma vez descoberta qual seja, se lhe
enfiamos uma farpa num lugar bem macio, coisas incríveis podem
acontecer.
— Que espécie de farpa? — perguntou Orinda. — Um desfile? Uma
demonstração? Uma greve?
— Não — disse Margot. — Vamos esquecer toda espécie de manifestação.
Isso já é coisa velha, obsoleta. Ninguém mais se
impressiona com demonstrações convencionais desse tipo. Não
passam de um aborrecimento e não levam a coisa alguma.
Margot estudou o grupo que a olhava no escritório superlotado e
esfumaçado. Eram cerca de doze pessoas, brancos e pretos, de todos
os tipos, tamanhos e comportamentos. Alguns se empoleiravam em
raquíticas cadeiras e em caixas, outros sentavam-se no chão.
— Prestem bem atenção: eu disse que precisávamos agir, e existe
uma espécie de ação que julgo eficaz.

— Miss Bracken — Uma pequena figura lá no fundo da sala
levantou-se: era Juanita Núhez, que, ao entrar, fora cumprimentada
por Margot.
— Sim, Sra. Núhez?
— Quero colaborar. Mas sabe que trabalho para o First Mercantile
American Bank. Talvez fosse mais conveniente que eu não ouvisse o
que vai dizer a partir de agora aos outros...
Margot respondeu:
— De fato, acho que não; eu mesma deveria ter pensado nisso, em
lugar de deixá-la embaraçada.
Ouvia-se um murmúrio geral de compreensão, em meio do qual
Juanita dirigiu-se à porta de saída.
— O que a senhora ouviu até agora — disse Deacon Euphrates —
constitui segredo, não?
Juanita concordou, e Margot disse rapidamente:
— Podemos confiar na Sra. Núhez. Gostaria que seus patrões conhecessem
tanto sobre ética quanto ela.
Quando a reunião se reiniciou, Margot olhou para todos os presentes,
um por um. Sua postura era característica; as mãos na cintura,
de forma agressiva. Um instante atrás havia jogado os longos
cabelos para trás, gesto que prenunciava ação, como o abrir da
cortina de um palco. A medida que falava, o interesse dos presentes
aumentava. Ouviram-se um ou dois risos; a certa altura, Seth
Orinda ria alto e, no fim, todos riam à vontade.
— Puxa, que idéia — disse Deacon. .
— Incrivelmente esperta — disse alguém.
Margot ressaltou:
— Para tornar esse esquema atuante, para que tudo funcione, precisamos
de muita gente: pelo menos mil pessoas de início e mais
ainda, à medida que for necessário.
Alguém perguntou:


— E durante quanto tempo precisaremos deles?

— Faremos nossos planos baseados no período de uma semana;
uma semana bancária, isto é, cinco dias. Se, nesse período, o
resultado não for suficiente, faremos uma prorrogação e
ampliaremos nosso campo de operações. Mas, francamente, não
creio que isto venha a ser necessário. Mais uma coisa: todas as
pessoas envolvidas devem ser alertadas com cuidado.
— Pode contar comigo para ajudá-la — declarou Seth Orinda. A
seguir ouviu-se em coro:
— Eu também.
A voz de Deacon Euphrates erguia-se acima das demais:
— Eu bem mereço um tempinho extra. Por Deus! Saberei como usálo.
Com uma semana sem trabalhar, conseguirei muitos adeptos.
— Ótimo! — disse Margot. E acrescentou com sua maneira decidida
de falar: — Precisaremos de um plano básico; ficará pronto amanhã
à noite. Vocês poderão começar a recrutar gente desde já. E não
esqueçam, o segredo é muito importante.
Meia hora depois a reunião tinha acabado. Os membros do comitê
estavam muito mais alegres e otimistas que antes.
A pedido de Margot, Seth Orinda não saiu com os demais.


— Seth — disse ela — preciso de sua ajuda, de modo muito
especial.
— A senhora sabe que pode contar comigo naquilo que eu puder,
Sra. Bracken.
— Preste atenção. Quando, de fato, a ação tiver início, você sabe que
sempre fico à frente de tudo.
— Claro que sei.
— Mas, desta vez, Seth, quero ficar longe; fora de qualquer alcance.
Também não quero ver meu nome envolvido, quando os jornais,
TVs e rádios começarem a fazer suas coberturas. Se isso acontecesse,
poderia prejudicar dois íntimos amigos meus, sobre os quais já lhe
falei. E quero evitar de todos os modos que tal aconteça.
Orinda concordou:

— Comigo, não há problema.
— O que realmente estou querendo lhe pedir — insistiu Margot — é
que, desta vez, você e os demais tomem a frente da ação. Ficarei por
trás da cena, claro. Mas caso seja necessário, vocês podem me
chamar, embora eu julgue que não venha a ser preciso.
— Bobagem — disse Seth Orinda. — Como é que poderíamos
chamá-la, quando nenhum de nós jamais ouviu sequer seu nome?
Na noite de sábado, dois dias após a reunião, Margot e Alex jantaram
com uns amigos e depois foram para o apartamento dela, num
bairro menos elegante de que o da rica suíte de Alex. Era também
muito menor, mas Margot tornara-o agradável, com peças preciosas
que fora adquirindo a preços modestos, no correr dos anos. Alex
gostava de estar ali.
O apartamento era um absoluto contraste do escritório de Margot.
— Senti falta de você, Bracken — disse Alex. Tinha vestido o pijama
e o robe, que sempre deixava lá; esticava-se numa bergère estilo
Rainha Ana, enquanto ela, sentada no tapete, encostava a cabeça em
seus joelhos. Os dedos de Alex acariciavam-lhe os cabelos e, às
vezes, desciam a outros pontos de seu busto. Suave e gradualmente
a sensualidade começava a surgir entre eles e ambos sentiam-se
felizes. Margot suspirava, satisfeita; logo iriam para a cama. Mas
ainda assim, com aquele desejo mútuo crescendo, Alex sentia um
prazer esquisito em impor-se uma certa demora.
Já fazia uma semana e meia que tinham estado juntos pela última
vez; seus horários estiveram desencontrados durante todo este
tempo, mantendo-os separados.
— Querido, vamos ter que recuperar esses dias perdidos, — disse
Margot.
Alex calava-se; depois falou:
— Sabe? Fiquei a noite toda esperando que você fosse cair em cima
de mim a respeito do caso do Fórum East. Mas não disse ainda uma
palavra.

Margot inclinou a cabeça ainda mais para trás, olhando-o e perguntou
inocentemente:

— E por que haveria eu de cair em cima de você. querido? O corte
do dinheiro do banco, tenho certeza, não foi idéia sua. Ou foi?
— Você sabe tão bem quanto eu que não foi.
— Claro que sei; claro que sempre soube. Como tenho também absoluta
certeza de que você se opôs a isto.
— É verdade, discordei. — E acrescentou com amargura: — Não
adiantou nada.
— Mas você tentou. É tudo que se pode desejar. Alex olhou-a
desconfiado.
— Esta atitude não parece sua, querida.
— Não se parece comigo, por quê?
— Você é uma lutadora. E isto é uma das coisas que eu mais amo
em você. Você não desiste, não cede, não aceita a derrota com
resignação.
— Talvez porque algumas derrotas sejam tão definitivas. Em tais
casos não há nada a fazer.
Alex exclamou:
— Não, Bracken, você está me escondendo alguma coisa! Eu sei.
Agora, me diga o que é.
Margot pensou, pensou, depois disse devagar:
— Não estou admitindo nada. Mas mesmo que fosse verdade,
acho que seria melhor se você não soubesse certas coisas. Não
desejo, de forma nenhuma, criar-lhe embaraços, Alex.
Ele sorriu de maneira apaixonada.
— Agora, sim. afinal você me disse alguma coisa. Está bem; se não
quer que eu indague, saberei calar. Só lhe peço que, faça o que fizer,
aja dentro da lei.
O gênio de Margot exaltou-se.
— O advogado aqui sou eu! Eu é que posso decidir o que é legal e o
que não é legal.

— Mas, até mesmo advogados espertos costumam errar.
— Não, querido, não desta vez. — Ela fez menção de argumentar
mais um pouco, depois mudou de atitude. Sua voz tornou-se mais
suave. — Bem sabe que sempre trabalho dentro da lei. E até sabe
porquê.
— De fato, sei sim — disse Alex.
Mais uma vez ele estendeu-se no sofá e voltou a passar os dedos
pelos cabelos de Margot.
Certa vez ela lhe contara, após já se terem conhecido bastante, sua
maneira de pensar, resultante de fatos envolvendo tragédia e morte
ocorridas há muitos anos atrás.
Quando ainda na Faculdade de Direito, Margot havia-se juntado,
como tantos outros naquela ocasião, à turma do ativismo e do
protesto. Era, então, o período de maior envolvimento da América
no Vietnã e das mais azedas, mais acirradas divisões da nação. Era o
começo, também, de alterações, de mudanças; uma rebelião própria
da juventude contra as leis mais antigas e o establishment; uma época
em que novos e militantes advogados se sentiam envolvidos, e para
os quais Ralph Nader representava um símbolo.
Já antes, no curso preparatório e, depois, na faculdade, Margot
havia partilhado seus pontos de vista de vanguarda, seu ativismo e
até ela própria com um colega — que Alex só ouvira ser chamado
por Gregory — e eles passaram a viver juntos, como também era
costume.
Durante muitos meses ocorreram confrontos entre a administração
e os estudantes e uma das piores começou com a presença, no
campus, de recrutas do Exército e da Marinha. A maioria dos
estudantes, incluindo Gregory e Margot, queria que os recrutas
fossem dispensados. As autoridades da escola, como era de esperar,
pensavam de modo absolutamente oposto.
Em protesto, estudantes militantes ocuparam o edifício da administração,
fazendo verdadeiras barricadas. Gregory e Margot, no maior
entusiasmo, encontravam-se entre estes.

Foi tentada uma solução conciliatória, mas falhou. Não porque os
estudantes apresentassem "exigências não negociáveis". Após dois
dias. a administração convocou a polícia estadual, mais tarde
suplementada pela Guarda Nacional. Tomaram de assalto o
edifício, já cercado. Durante a luta. houve disparos e algumas
cabeças foram quebradas. Por milagre, os tiros não atingiram
ninguém. Mas infelizmente, uma das cabeças quebradas — a de
Gregory — sofreu uma hemorragia cerebral que lhe ocasionou a
morte, poucas horas mais tarde.
Para satisfazer a indignação do público, o policial amedrontado, jovem
e sem experiência que havia dado o golpe mortal, foi detido e
levado à barra do tribunal. As acusações contra ele, no entanto,
foram retiradas.

Margot, dentro de todo seu desespero e estado de choque com a
morte de Gregory, era bastante objetiva para entender a libertação
do guarda. Seu conhecimento de lei ajudou-a a acalmar-se e a
avaliar e codificar suas próprias convicções. Era, na verdade, um
processo mental que vinha-se retardando por força das
circunstâncias e do envolvimento emocional.
Nenhum dos pontos de vista de Margot, políticos ou sociais, sofreu
qualquer modificação, naquela época, nem depois. Mas ela deu-se
conta de que aqueles estudantes recusavam aos outros as liberdades
que exigiam para si mesmos e que tentavam defender. Também
eles, os estudantes, em sua paixão, haviam transgredido a lei, ou
seja, o conjunto de sistemas a que dedicavam seus estudos e,
pressupõe-se, suas próprias vidas.
Ela não se demorou a dar mais um passo na direção certa desse raciocínio,
ao compreender que teriam alcançado o que almejavam, e
talvez muito mais, se tivessem se restringido aos limites legais.
Como Margot confessou a Alex na única vez em que falaram sobre
esta parte do seu passado, tais ocorrências tornaram-se, para ela,


um exemplo, um guia, o verdadeiro princípio em que passou a
basear seu ativismo daí por diante.
Ainda encostada confortavelmente em Alex, ela perguntou:


— E como vão as coisas no Banco?
— Há dias em que me sinto como Sísifo. Você se lembra dele?
— Não foi o grego que tentava empurrar uma pedra morro acima?
Lembro-me bem: cada vez que chegava perto do topo a pedra
escorregava e tudo começava outra vez.
— E o próprio. Ele deveria ter sido um executivo de banco tentando
fazer mudanças. Vou lhe dizer uma coisa sobre nós banqueiros,
Bracken.
— Diga.
— Conseguimos vencer, apesar de nossa falta de imaginação e de
previsão.
— Posso mencionar isto, na íntegra, dando a origem?
— Se você o fizer, jurarei que não fui eu quem disse. — Ele sorriu.
— Mas, entre nós dois, só nós dois, o meio bancário reage contra
qualquer mudança social, e nunca pensa que isso venha a acontecer;
jamais se antecipa à realidade. Todos os problemas que nos afetam
agora — meio-ambiente, ecologia, energia, minorias — estiveram a
nosso lado durante muito tempo. O que aconteceu nestas áreas, até
nos atingir, poderia ter sido previsto. E então nós banqueiros
poderíamos ter sido os líderes. No entanto, estamos sempre
seguindo, andando para a frente somente quando temos que fazêlo,
ou seja, quando somos empurrados.
— Então, por que continuar a ser banqueiro?
— Porque é importante. Na realidade o que fazemos vale a pena e,
quer andemos para a frente voluntariamente, quer não, somos
profissionais. Como tal cumprimos uma tarefa necessária. O sistema
monetário tornou-se uma coisa tão imensa, tão complicada e
complexa que somente os bancos podem cuidar dele.
— Então a maior necessidade para vocês é um empurrãozinho de vez
em quando. Estou certa?

Ele olhou-a com intensidade, com uma curiosidade inquieta.

— Tenho a impressão de que você está bolando alguma coisa nesta
sua convulsionada e complicada cabecinha.
— Não vou admitir nada.
— Seja o que for, espero que não tenha nada a ver com o uso dos
toaletes pagos.
— Por Deus, não!
E ambos caíram na gargalhada lembrando-se do que se passara um
ano atrás. Fora uma das maiores vitórias das constantes lutas de
Margot e provocara muitos comentários.
O caso ocorrera com a comissão do aeroporto local que, naquela
época, pagava às suas centenas de faxineiros salários muito abaixo
do normal. O sindicato dos trabalhadores era corrupto, tinha uma
espécie de "ação entre amigos" como contrato com a comissão e
nada fizera para ajudar. Em desespero, um grupo de empregados
do aeroporto procurou a ajuda de Margot, que já começava a gozar
de boa reputação em assuntos trabalhistas.
Ela procurou a comissão, que limitou-se a ignorá-la. Então, decidiu
que teria que chamar a atenção pública e resolveu que a obteria
levando ao ridículo o aeroporto e seus administradores. Na
preparação de seu esquema, contando com a colaboração de outros
simpatizantes da causa, que, em outras oportunidades, haviam-na
ajudado, fez um estudo inteligente do imenso e superfreqüentado
aeroporto, durante as noites de maior número de vôos.
Verificou que era um fato comum, sempre que havia vôos tardios à
noite, os "corujões", quando eram servidos bebida e jantar, que tão
logo os passageiros desembarcavam, dirigiam-se, em massa, para os
toaletes do aeroporto, usando-os intensamente, o que obriga a uma
limpeza e conservação no mesmo ritmo e durante várias horas.
Na sexta-feira seguinte, à noite, quando o tráfego aéreo era o mais
intenso, várias centenas de voluntários, em especial gente da limpeza
e faxineiros fora do plantão, chegaram ao aeroporto, sob a



direção de Margot. Desde quando chegaram até quando saíram,
muitas horas depois, todos mantiveram-se quietos, ordeiros e
cumpridores da lei.
Seu único objetivo era utilizar, continuamente, todos os toaletes
públicos do aeroporto. E o fizeram. Margot e seus auxiliares haviam
preparado um plano detalhado e os voluntários, ao chegarem, se
dirigiam logo para os locais predeterminados, onde pagavam dez
centavos e se sentavam, distraindo-se com o que quer que
houvessem levado: jornais, revistas, rádios portáteis e alguns até
fazendo suas refeições. Algumas mulheres trouxeram trabalhos
manuais, croché, qualquer tipo de costura. Realmente, era o máximo
em matéria de protesto legal.
Nos toaletes dos homens, formavam-se filas enormes em frente aos
mictórios, movendo-se bem devagar. Se acaso chegasse um homem
que não fizesse parte do esquema para. de fato, urinar, só o
conseguiria depois de uma hora. Poucos, é claro, agüentavam
esperar tanto tempo.
Um outro contingente do pessoal explicava tranqüilamente, a quem
quer que quisesse escutar, o que ocorria e o porquê.
Aquele setor de serviços do aeroporto desorganizou-se por completo,
com centenas de passageiros nervosos, zangados, aflitos,
reclamando, na maior excitação, contra as companhias aéreas, que,
por seu turno, queixavam-se à administração do aeroporto. Esta,
por seu lado, sentia-se frustrada e impotente para tomar qualquer
atitude. Outras pessoas, não envolvidas na causa ou sem
necessidade de utilizar os mictórios, riam-se às gargalhadas. Mas,
na verdade, ninguém ficou indiferente.
Representantes de todos os meios de comunicação, que haviam recebido
um aviso de Margot, compareceram em massa. Os repórteres
lutavam entre si para dar as notícias em primeira mão; as agências
telegráficas difundiam essas notícias em âmbito nacional e
internacional e elas acabavam por ser estampadas em jornais tão


diferentes quanto o Izvestia, o Johannesburg Star, e o Time, de
Londres. No dia seguinte, em conseqüência,
O mundo inteiro morria de rir.
Nos relatórios oficiais referentes ao fato, o nome de Margot Bracken
figurava com destaque. Havia sutis indicações de que as coisas não
parariam aí.
Como Margot imaginara, o ridículo é uma das maiores armas de
qualquer arsenal. Durante o fim de semana a comissão do aeroporto
concordou em realizar entendimentos com os faxineiros e demais
encarregados da limpeza, relativos à melhoria de salários. O
resultado foi um imediato aumento geral. Ela obteve ainda outra
vitória: a direção corrupta do sindicato perdeu as eleições, e outra
mais honesta subiu.
Margot encostou-se mais em Alex e disse de maneira muito doce:

— Que espécie de cabeça você disse que eu tinha?
— Convulsionada e complicada.
— E isto é ruim ou bom?
— Para mim, é bom. Refrescante. E, na maior parte das vezes, gosto
das causas que você defende.
— Mas, não sempre?
— Não, na verdade, nem sempre.
— Eu sei, querido, que muitas vezes as coisas que faço criam antagonismos.
Muitas coisas. Digamos que o antagonismo fosse a
respeito de alguma coisa na qual você não acreditasse, ou
simplesmente não gostasse? Que nossos nomes fossem ligados
numa hora em que, digamos, você não queria que fossem
associados, o meu e o seu?
— Eu aprenderia a viver com isto. Depois, acho que tenho direito a
uma vida particular, privada, tanto quanto você.
— Eu, ou qualquer outra mulher — disse Margot. — Mas, às vezes,
fico pensando se você realmente poderia viver enfrentando uma
coisa dessas. Quero dizer, se nós vivêssemos, de fato, juntos. Alex,

você bem sabe que eu jamais mudarei. Meu querido, você tem que
entender isto. Nunca cederei minha independência, nunca deixarei
de ser eu mesma e nunca deixarei de tomar minhas próprias
iniciativas.
De repente, Alex lembrou-se de Célia, que jamais tomara qualquer
iniciativa, e pensou o quanto sempre desejara que ela tivesse uma
personalidade própria. E, com o remorso de sempre, lembrou-se
que ela havia piorado. Mas, por intermédio de Célia, ele aprendera
que nenhum homem é o seu todo completo, a menos que a mulher
que ame seja livre, e saiba como usar essa liberdade, utilizando-a na
realização de si mesma.
Alex tirou as mãos dos ombros de Margot, que há pouco segurava.
Em seguida voltou a tocá-la. Através da fina camisola de seda.
podia sentir seu calor, a suavidade de sua pele. Disse gentilmente:

— O que mais amo em você é a sua maneira de ser. E assim que
quero que seja sempre. Se você mudar, eu arranjo outra advogada
para acioná-la por quebra de amor.
Continuou a acariciá-la de leve e foi descendo as mãos pelo seu
corpo. Ouviu que Margot respirava mais depressa até que, virando-
se para ele, indagou com urgência na voz:

— Afinal de contas, o que é que estamos esperando?
— Só Deus sabe — disse Alex. — Vamos correndo para a cama.
3



O espetáculo que Cliff Castleman viu pareceu-lhe tão estranho que
ele indagou a Edwina.

— Sra. D'Orsey, por acaso já olhou pela janela?
— Não — disse Edwina. Ela estava concentrada na correspondência
da manhã. — Por quê? Alguma novidade?
Eram 8h55min da manhã de uma quarta-feira.


— Bem, pensei que talvez pudesse interessá-la — disse
Castleman. — Há uma fila enorme, como nunca vi, do lado de fora,
antes do Banco abrir.
Muitos outros funcionários já olhavam pelas janelas. Havia um
murmúrio de conversa entre os funcionários, coisa pouco comum a
esta hora do dia e que evidenciava uma espécie de preocupação.
Afastando-se de sua mesa, Edwina dirigiu-se a uma grande janela
de vidro, que dava para a rua. O que viu encheu-a de surpresa.
Uma longa fila. constituída por quatro ou cinco pessoas lado a lado,
estendia-se da porta principal do Banco até o final do edifício, e daí
até onde a vista alcançava, dando a impressão de que todos
esperavam a abertura do expediente.
Ela não podia acreditar.


— Mas. que diabo ...?
— Um dos funcionários foi lá fora agora mesmo — informou
Castleman. — Diz que a fila vai até a metade da Rosselli Plaza e que
aumenta a cada momento.
— Alguém perguntou o que eles querem?
— Sim, um dos guardas de segurança. A resposta foi que vieram
abrir contas.
— Mas isto é ridículo! Toda essa gente? Até onde posso ver, calculo
que sejam cerca de trezentas pessoas. Jamais tivemos um número
tão grande de contas abertas num só dia.
Cliff retrucou:
— Estou apenas repetindo o que me disseram.

Tottenhoe, encarregado de operações, juntou-se a eles na janela,
com o proverbial mau humor estampado no rosto.
— Já notifiquei à Central de Segurança — informou a Edwina. —
Disseram que podem mandar mais guardas e que Wainwright vem
até aqui. Também já avisaram à polícia local.
Ela comentou:


— Mas não há o menor indício de qualquer confusão; parece gente
pacífica.
Tratava-se de um grupo bastante heterogêneo, ela podia ver. Cerca
de dois terços eram mulheres, e a grande maioria era de pretos.
Algumas das mulheres levavam crianças. Entre os homens, alguns
usavam macacões, dando a impressão de estar saindo do trabalho
ou a caminho dele. Outros traziam roupas comuns, e poucos
estavam bem vestidos.
Na fila, as pessoas conversavam entre si, algumas até animadamente,
mas não parecia haver conflitos. Algumas pessoas, sentindo-
se observadas, até sorriam para os funcionários do Banco.
— Olhe só! — E Cliff Castleman apontou para uma equipe de televisão
com a câmara bem à frente. Enquanto Edwina e os outros
observavam, as máquinas de filmagem começaram a rodar.
— Pacíficos ou não — disse Cliff — deve haver um motivo atrás
disso tudo; um motivo para que tanta gente tenha vindo aqui no
mesmo dia.
O sexto sentido de Edwina mais uma vez entrou em ação.
— Garanto que tem a ver com o Fórum East — disse ela. — Aposto
que o assunto é o Fórum East.
Vários funcionários haviam-se aproximado deles e estavam escutando.
Tottenhoe disse:
— Acho que deveríamos retardar nosso horário de abrir a agência
até que chegasse reforço da guarda.
Todos os olhares dirigiram-se para o relógio de parede que marcava
um minuto para as nove.

— Não — disse Edwina. Ela procurou falar bem alto para que todos
pudessem ouvir. — Abriremos exatamente na hora, como todos os
dias. E que todos voltem a seus trabalhos, por favor.
Tottenhoe retirou-se; Edwina voltou à sua mesa, sobre a plataforma.
Dali podia observar as portas principais serem abertas e entrarem os
primeiros clientes. Os que se encontravam à frente da fila paravam
de vez em quando na entrada, olhavam com curiosidade, depois
andavam depressa para a frente à medida que os outros os
empurravam. Em poucos segundos a área central destinada ao
público ficou congestionada. A agência, habitualmente tranqüila,
tornara-se uma babel. Edwina viu um negro corpulento acenar com
algumas notas de dólar e declarar em voz alta:
— Quero pôr meu dinheiro neste banco. Um guarda de segurança
informou-o:
— Naquela direção, para as novas contas.
O guarda apontou para uma mesa onde uma jovem funcionária
esperava. Ela parecia nervosa. O homenzarrão dirigiu-se a ela,
sorriu gentilmente, e sentou-se. Imediatamente, um monte de gente
começou a formar fila atrás dele, esperando a vez.
Ao que tudo indicava, todos tinham vindo para abrir contas.
Edwina podia ver o homem, exibindo as notas, dirigir-se à moça.
Sua voz fazia-se ouvir apesar do burburinho: — Não tenho pressa.
Quero que me explique certos detalhes.
Imediatamente, dois outros funcionários dirigiram-se para outras
mesas também destinadas à abertura de contas. Com a mesma
rapidez, longas filas formaram-se junto a elas.
De hábito, três funcionários eram suficientes para o atendimento de
novas contas, mas evidentemente hoje não seria assim. Edwina
podia ver Tottenhoe do outro lado: chamou-o pelo interfone e disse-
lhe:
— Ponha mais funcionários para atendimento aos clientes novos e
coloque quantas pessoas conseguir para ajudá-los.

Mesmo chegando os ouvidos perto do interfone, era difícil ouvir a
resposta de Tottenhoe devido ao vozerio. Tottenhoe resmungou em
resposta:

— A senhora bem pode perceber que não temos a menor chance de
atender toda esta gente hoje; não importa quantos consigamos
atender, ficaremos completamente paralisados nos demais setores.
— Algo me diz que e exatamente isso que eles têm em mente. Por
favor, me ajude a processar estas contas o mais rapidamente
possível.
Mas na realidade Edwina sabia que por mais eficiente que fossem,
os funcionários não conseguiriam abrir uma conta em menos de dez
a 15 minutos. Era sempre assim; a burocracia exigia esse tempo.
Primeiro, o novo cliente tinha que completar um formulário com os
dados referentes à sua residência, emprego, previdência social e
assuntos familiares. Tinha que apor sua assinatura e comprovar sua
identidade. Depois disso, o funcionário levava todos esses
documentos a outro funcionário mais graduado, para sua
aprovação e rubrica. Afinal, era emitida uma caderneta ou um talão
de cheques avulso.

Assim, o máximo de contas novas que um funcionário poderia abrir
em uma hora era de cinco. Portanto, os três funcionários atualmente
encarregados do assunto cobririam um total de noventa num dia
normal de trabalho, se conseguissem agir com a maior rapidez, o
que não parecia o caso.

Nem que seu número fosse triplicado, conseguiriam cerca de 250
contas abertas num só dia, e já agora, nos poucos minutos desde a
abertura do expediente, pelo menos quatrocentas pessoas ali se
encontravam, enquanto que, do lado de fora. a fila crescia.

Além do mais, o burburinho transformara-se em um verdadeiro vozerio.



Outro problema era a massa de gente que, chegando ao saguão,
impedia o acesso dos outros clientes até os caixas. Edwina podia ver
muitos deles olhando do lado de fora, preocupados.

Dentro do Banco, alguns dos recém-chegados conversavam com os.
caixas, impossibilitados de trabalhar devido à confusão.
Dois assistentes da gerência haviam ido à área central tentando controlar
aquele mundo de gente e fazer espaço suficiente em frente aos
guichês. Mas não estavam conseguindo muito.

No entanto, não havia nenhum indício de hostilidade. Todos os que
se encontravam no saguão superlotado respondiam polidamente e
com um sorriso aos apelos dos funcionários. Edwina tinha a
impressão de que todos haviam sido ensinados e treinados a se
comportarem da melhor maneira possível.
Ela decidiu que era a hora de interferir.
Deixou sua plataforma e com dificuldade abriu caminho através da
verdadeira multidão, em direção à porta principal. Fez sinal para
dois guardas de segurança que forçaram o caminho em direção a
ela, com os cotovelos, e disse:

— Chega de gente aqui dentro do Banco. Agora, segurem o resto do
pessoal lá fora, deixando entrar apenas alguns poucos, à medida
que os outros forem saindo. Com exceção, é claro, de nossos
fregueses habituais, que podem entrar quando quiserem.
O mais velho dos guardas chegou a cabeça bem perto da de
Edwina, para fazer-se ouvir:


— Não será fácil, Sra. D'Orsey, porque alguns fregueses eu reconheceria,
mas outros não; muitos eu não conheço.
— E mais uma coisa — disse o outro — Quando qualquer pessoa
chega, os que estão esperando lá fora gritam logo; para o fim da fila!
Acho que se nós abrirmos exceções poderemos provocar um
verdadeiro motim.
Edwina assegurou-lhe:
— Não haverá nenhum motim. Faça apenas o que for possível.

Ao regressar, ela falou com vários dos futuros clientes que aguardavam
na fila. A conversa geral tornava-se difícil ser ouvida, mas
insistiu, elevando o tom de voz.

— Eu sou a gerente. Alguém quer. por favor, me dizer por que vieram
todos aqui hoje?
— Estamos querendo abrir contas — disse uma mulher com uma
criança ao colo. E sorria. — Não há nada de errado com isto, há?
Outra voz disse:
— Vocês põem anúncios no jornal dizendo que nenhuma importância
é pequena demais para abrir uma conta; pelo menos é o que
dizem os anúncios.
— É verdade — disse Edwina. — E o Banco orgulha-se disso. Mas
tem que haver uma razão especial para que todos venham juntos,
no mesmo dia.
— É que somos todos do Fórum East — disse uma voz cavernosa de
homem.
Uma voz mais jovem acrescentou.


— Ou queremos ser.
— Mas mesmo isto não explica ... — começou Edwina, mas foi interrompida.
— Talvez eu possa explicar melhor. Senhora.
Um homem de meia-idade, preto, de aparência distinta, dirigiu-se a
ela, forçando a fila.
— Pois então, por favor, explique.
No mesmo instante Edwina sentiu que alguém estava atrás dela,
virou-se e viu que era Nolan Wainwright. E na porta principal
muitos outros guardas de segurança haviam chegado e ajudavam os
dois já de plantão. Ela olhou interrogativamente para o chefe de
Segurança e disse:
— Continue. Está indo bem. O homem olhou-a e disse:
— Bom dia. minha Senhora. Eu não sabia que havia mulheres como
gerente de banco.

— Pois existe — disse Edwina. — E cada vez mais e mais mulheres
estão conseguindo boas posições. Espero que o senhor acredite na
igualdade entre o homem e a mulher. Senhor ...?
— Orinda. Seth Orinda. minha Senhora. Claro que acredito. Acredito
nisso e também em muitas outras coisas.
— E é uma destas outras coisas em que o senhor acredita que o
trouxe aqui hoje?
— De certo modo. diria que sim.
— Exatamente de que modo?
— Acho que já sabe que todos nós somos do Fórum East. Edwina
concordou:
— Já me disseram.
O porta-voz do grupo, bem vestido, media as palavras cuidadosamente.
Sentia-se que elas haviam sido bem pensadas. Apesar do
vozerio, as pessoas foram-se chegando para melhor ouvir a
conversa.
— O que estamos fazendo poderia ser chamado um ato de esperança.
E Orinda continuou:
— O Banco declarou que não tem dinheiro suficiente para continuar
a auxiliar a construção do Fórum East. De qualquer maneira, cortou
o financiamento pela metade, e alguns de nós acreditam que a outra
metade será também eliminada em breve, isto é. se ninguém fizer
nada. nem tomar nenhuma atitude.
Edwina interrompeu com aspereza:
— E tomar atitude, pelo que vejo, em sua opinião, quer dizer levar
esta agência à paralisação.
A medida que falava, Edwina percebia que vários dos presentes
portavam cadernos e lápis: eram repórteres que chegavam.
Isto significava que alguém tinha informado à imprensa, com
antecedência, o que era corroborado pela presença do pessoal da
TV, lá fora. Edwina começou a pensar quem poderia ter feito isto.
Seth Orinda continuou:

— O que estamos fazendo, minha Senhora, é trazer todo nosso dinheirinho
de gente pobre para ajudar seu banco nesta hora de
dificuldade.
— Sim — ouviu-se outra voz dizer. — E a senhora não acha que isto
é um gesto de solidariedade, de boa vizinhança?
Imediatamente Nolan Wainwright respondeu:
— Mas isto é ridículo! O Banco não está enfrentando qualquer dificuldade.
— Se não se encontra em dificuldade, então por que fizeram isto
com o Fórum East? — perguntou uma voz de mulher.
— A posição do Banco foi transmitida de maneira claríssima, ao público,
em sua declaração — disse Edwina. — É apenas uma questão
de prioridade. Além do mais, o Banco já declarou que pretende
restabelecer o financiamento total no futuro.
Até para si mesma aquelas palavras soavam falsas. Evidentemente,
todo mundo pensava da mesma maneira, porque o sorriso foi geral.
Esta foi a primeira prova de antagonismo. O homem de aparência
distinta, Seth Orinda, virou-se com rapidez, acenando com a mão
para que calassem. Todos obedeceram.
— Julgue o Banco como julgou — disse ele a Edwina — o fato é que
nós apenas viemos abrir contas, depositar algum dinheiro. — E isto
é o que eu queria definir como um ato de esperança. Pensamos que
quando nos vissem, a todos nós, e sentissem a maneira como
pensamos, como estávamos e estamos sofrendo, talvez mudassem
de idéia.
— E se não o fizermos?
— Então acho que continuaremos a recrutar mais e mais gente e
conseguir que eles depositem mais e mais dinheiro, sempre pouco,
já que somos todos pobres. Mas estou certo de que posso contar
com a ajuda de muitas outras pessoas. Temos um monte de boas
almas vindo aqui hoje, e amanhã, e no dia seguinte. Então, no fim-
de-semana, todo mundo já saberá de nossa causa e outros se
juntarão a nós, e não apenas os do Fórum East, a seguir. Claro,

apenas para abrir uma pequena conta. Para ajudar este pobre Banco;
por nenhum outro motivo.
Outras vozes fizeram-se ouvir dizendo:


— Claro, claro, mais gente ainda... não temos muito dinheiro, mas
somos em grande número... uns pedindo aos outros para que
venham também ajudar.
— Claro — disse Orinda, com uma expressão inocente — algumas
das pessoas que estão depositando dinheiro hoje talvez tenham que
retirá-lo amanhã, ou no dia seguinte, ou na semana seguinte.
Porque muitos de nós não pode deixar o dinheirinho parado por
tanto tempo. Mas, tão logo possamos, voltaremos para depositá-lo
outra vez. — Seus olhos brilhavam maquiavelicamente. —
Pretendemos mantê-los bem ocupados.
— Sim — disse Edwina. — Já começo a compreender a pretensão de
vocês.
Um dos repórteres, uma loura esbelta, perguntou:
— Sr. Orinda, quanto, em conjunto, estão depositando?
— Não muito. A maioria veio com apenas cinco dólares, a importância
mínima que o Banco aceita, não é? — Olhou para Edwina,
que concordou com a cabeça.
Alguns bancos, como era do conhecimento geral, exigiam um mínimo
de 50 dólares para uma conta-corrente. Outros não
estabeleciam mínimo, aceitavam qualquer importância. O First
Mercantile American Bank, numa tentativa de estimular os
pequenos depósitos, havia-se decidido por um mínimo de 5 dólares.
E, uma vez a conta aberta, podia-se sacar imediatamente quase o
total, pois qualquer saldo de crédito era suficiente para mantê-la.
Seth Orinda e outros sabiam disso, e se propunham a congestionar a
agência central do Banco com transações de retiradas e depósitos.
Edwina raciocinou: eles vão acabar conseguindo o que querem.
E no entanto nada havia de ilegal ou comprovadamente obstrucionista
no que estavam fazendo.

Apesar de suas responsabilidades e de seu aborrecimento com tudo
que estava acontecendo. Edwina sentiu-se tentada a sorrir, embora
não soubesse bem por quê. Olhou mais uma vez para Nolan
Wainwright, que deu de ombros e disse tranqüilamente:

— Enquanto não houver um distúrbio evidente não há nada que
possamos fazer, exceto tentar controlar o movimento das pessoas
aqui dentro e lá fora.
O chefe de Segurança dirigiu-se a Orinda e disse de modo firme:
— Contamos com vocês todos para que nos ajudem a manter esta
agência dentro da mais perfeita ordem, interna e externamente. Os
guardas lhes dirão quantas pessoas podem entrar, de cada vez.
Orinda concordou com alegria.
— Sem dúvida. Senhor, meus amigos e eu faremos todo o possível
para ajudar. A nós também não interessa nenhum distúrbio. Mas.
em contrapartida, esperamos que sejam justos.
— O que significa isso?
— Nós que estamos aqui dentro — disse Orinda — e os que se encontram
lá fora, somos clientes como qualquer outro que venha à
agência. E enquanto aguardamos com paciência nossa vez,
esperamos que não abram exceções, isto é, que o Banco não dê um
tratamento especial a outros clientes que chegarem depois,
deixando-os passar à nossa frente. 0 que quero dizer é que, se
alguém chegar — não importa quem seja — tem que entrar no fim
da fila.
— Assim o faremos.
— E nós também. Senhor; porque se agirem de modo diferente, será
um caso evidente de discriminação. E então podem estar certos de
que ouvirão nosso protesto.
Os repórteres, Edwina percebeu, anotavam tudo.
Ela procurou passagem através da multidão, em direção às três mesas
que atendiam as contas novas, já suplementadas por mais duas.
enquanto mais duas outras mesas estavam sendo providenciadas.

Verificou que em uma das mesas extras trabalhava Juanita Núhez.
Edwina olhou-a e sorriram uma para a outra. De repente ela se
lembrou que a Sra. Núfiez morava no Fórum East. Teria ela sabido
com antecedência desta invasão? Depois, pensou: seja lá como for,
não faria diferença.
Dois funcionários menos categorizados da agência supervisionavam
a atividade dos encarregados das contas novas, e percebiam que,
apesar da boa vontade e o esforço deles, todo o demais trabalho do
Banco, hoje, teria de ser adiado.
O preto corpulento, que fora dos primeiros a chegar, dirigiu-se a
Edwina. A funcionária que o atendera, já agora calma, disse:


— Este é o Sr. Euphrates; acaba de abrir uma conta. E o
homem completou:
— Deacon Euphrates. Pelo menos é assim que a maior parte das
pessoas me chamam.
Edwina apertou a mão que ele lhe estendera.
— Bem-vindo ao First Mercantile American Bank, Sr. Euphrates.
— Obrigado, a Senhora é de fato gentil. De fato, todos são tão gentis
aqui que acho que" talvez eu ponha mais um pouquinho de dinheiro
em minha conta. — Olhou o troco, as moedas que tinha na
mão, escolheu um quarto de dólar e duas moedas de dez centavos, e
dirigiu-se ao caixa.
Edwina perguntou à moça que se encarregara do Sr. Euphrates:
— Qual foi o depósito inicial dele?
— Cinco dólares.
— Muito bem. Continue trabalhando, tão depressa quanto possível.
— Tentarei fazê-lo, Sra. D'Orsey, mas somente este senhor me tomou
muito tempo porque me fez uma serie de perguntas sobre
retiradas e taxas de juros. Ele trazia consigo um papel com tudo
escrito.
— Você guardou esse papel?
— Não.

— Provavelmente outros trarão também um papel igual. Veja se
consegue agarrar um e traga-o para mim.
Isto poderia vir a ser uma pista, pensava Edwina, sobre quem teria
planejado e executado tão hábil invasão. Ela não acreditava que
qualquer das pessoas com quem falara até agora fosse o
organizador.

Surgira algo mais: a tentativa de inundar o Banco não se limitaria
somente à abertura de novas contas. Aqueles que já haviam aberto
suas contas estavam formando novas filas nos guichês dos caixas,
depositando ou retirando pequenas importâncias com uma
morosidade proposital, sempre fazendo perguntas e tentando
atrapalhar, com conversas, o serviço dos caixas.
Os clientes regulares não apenas encontravam dificuldade em
entrar no edifício mas, uma vez lá dentro, essas dificuldades
aumentavam.
Edwina informou a Nolan Wainwright sobre a listas de perguntas e
sobre a instrução que dera à moça para que tentasse conseguir uma
delas.

O chefe de Segurança concordou.

— Também eu gostaria de pegar uma. Uma das secretárias dirigiu-
se a Wainwright:
— Chamada telefônica para o Senhor.
Ele dirigiu-se ao telefone e Edwina ouviu-o dizer:
— É uma demonstração de protesto, mesmo que não seja no
sentido legal. Mas é pacífica e poderíamos nos prejudicar se
tomássemos decisões apressadas. A última coisa que queremos é
um confronto.
Edwina sentia-se confortada em ter Wainwright a seu lado. Ele lhe
transmitia uma certa tranqüilidade. Quando este desligou o
telefone, Edwina perguntou-lhe:

— Alguém mencionou chamar a polícia local?

— A polícia esteve aqui assim que cheguei; mandei-a de volta. Virão
tão depressa quanto precisarmos; mas espero que não seja
necessário. — Falou outra vez pelo telefone e, em seguida, dirigiu-se
à matriz do FM A. E acrescentou:
— O fato já chegou ao conhecimento de altos escalões; estão em
pânico.
— Uma coisa que eles poderiam tentar era restabelecer os fundos do
Fórum East.
Pela primeira vez desde sua chegada, um leve sorriso iluminou a fisionomia
de Wainwright.
— Também gostaria de ver isto. Mas não desta maneira e, no que
concerne ao dinheiro do Banco, as pressões exteriores não alterarão
em nada.
Edwina ia dizer "sei lá", mas mudou de idéia e calou-se.
Enquanto observavam, a multidão que monopolizava a área central
da agência parecia continuar inalterável, dando a impressão de que
o número de pessoas em nada diminuíra; e o barulho, o vozerio era
mais alto que antes.
Do lado de fora, a tda crescia.
Eram exatamente 9h45min.
4


Também às 9h45min da manhã, a três quadras da matriz do First
Mer-cantile American Bank. Margot Bracken estava operando num
posto de comando, dentro do seu Volkswagem estacionado de
modo a não chamar atenção.
Ela pretendera manter-se fora da execução do plano, mas não conseguira
controlar-se. Como um cavalo de guerra que bate com as


patas no chão ao cheiro de batalha, sua resolução tinha primeiro
enfraquecido e depois se dissolvido.
No entanto, persistia sua preocupação, no sentido de vir a trazer
embaraços a Alex ou a Edwina. Esta a razão de não se encontrar na
linha de frente, na Rosselli Plaza.
Se ela aparecesse seria imediatamente identificada pelos jornalistas,
de cuja presença tinha conhecimento, uma vez que fora ela própria
quem alertara a imprensa, a televisão e o rádio.
Assim, de vez em quando, mensageiros vinham discretamente
trazer-lhe notícias sobre o desenvolvimento da ação, e voltavam
com instruções.
Desde quinta-feira à noite Margot dedicara-se exclusivamente às
proezas a serem postas em prática.
Na sexta-feira, enquanto trabalhava no plano básico, Seth, Deacon e
vários membros do comitê recrutavam ajuda no Fórum East e
outros lugares próximos. Esclareciam o que devia ser feito apenas
em termos gerais, sendo que a adesão fora esmagadora. Quase
todas as pessoas com quem falavam queriam tomar parte na ação e
também conheciam outras que poderiam aderir.
Ao fim do domingo, quando reviram as listas de adesão, já
contavam com 1 500 pessoas. 1 500 nomes dos que haviam aderido
à causa. E muitos outros viriam depois. De acordo com o plano de
Margot, seria possível manter este ritmo de ação pelo menos por
uma semana, ou talvez mais, se a chama do entusiasmo pudesse ser
mantida.
Entre os homens que tinham empregos regulares e que haviam aderido
como voluntários, alguns como Deacon Euphrates, tinham o
direito a férias e disseram que não sabiam como usá-las, pois não
podiam gastar dinheiro. Esta era uma maneira de usarem suas
férias. Outros limitavam-se a dizer que faltariam ao trabalho,
sempre que necessário. Infelizmente, muitos dos voluntários
estavam desempregados, e este número havia aumentado


recentemente devido à redução da mão-de-obra, naquele período
do ano.
As mulheres predominavam; em parte porque dispunham de mais
tempo durante o dia, mas também, e neste caso muito mais que os
homens, o Fórum East tornara-se para elas uma esperança, um
objetivo.
Margot sabia disso, através das informações dos jornais e do
próprio trabalho que realizava.
As informações que recebia em seu Volkswagen, eram bastante satisfatórias.
Margot tinha insistido para que, durante todo o tempo, e em
especial durante os contatos diretos com os funcionários do Banco,
todos os moradores do Fórum East fossem amáveis, corteses e
ostensivamente cooperadores. Por isso, haviam escolhido a frase
"Ato de Esperança", criada por Margot, como sendo a imagem
defendida por um grupo de indivíduos interessados, apesar de seus
recursos limitados, em "ajudar" o FMA, que se encontrava em
"dificuldade".
Margot tinha a impressão, com sua sagacidade manhosa de sempre,
de que qualquer referência a dificuldades no First Mercantile
American Bank tocaria um nervo sensibilíssimo.
E, embora não houvesse qualquer sigilo quanto à relação entre os
depositantes e o Fórum East, de modo algum seriam feitas ameaças
como, por exemplo, a de que acabariam levando o Banco a sua total
paralisação, se este deixasse, de fato, de financiar o projeto.
Conforme Margot dissera a Seth Orinda e aos outros:

— Deixemos que o próprio Banco chegue a esta conclusão.
Ela, como sempre, preocupara-se com tudo, nos menores detalhes,
inclusive redigindo as perguntas a serem feitas pelos depositantes
enquanto abriam suas contas. Havia centenas de perguntas
legítimas que poderiam ser feitas por qualquer pessoa que abrisse
conta num banco, embora a maioria delas não as fizesse. O fim

desejado era tornar o serviço tão moroso que praticamente chegasse
a ficar parado.
Seth Orinda agiria na qualidade de porta-voz, se surgisse oportunidade.
O plano de Margot precisava ser ensaiado, mas Orinda
aprendia depressa.
Deacon Euphrates recebera a incumbência de ser dos primeiros a
chegar para encabeçar a Fila e o primeiro a abrir uma conta.
E foi Deacon — ninguém sabia ao certo se "Deacon" (1) era de fato
seu nome ou um título de alguma das religiões excêntricas que
existiam na área — quem chefiou o trabalho de alertar os
voluntários a respeito de onde e quando ir. tendo trabalhado com
um verdadeiro exército de recrutas.
De início, tratando-se de uma quarta-feira pela manhã, era essencial
que o comparecimento ao banco fosse em massa, a fim de criar uma
impressão de força. Mas, claro, alguns voluntários tinham que ser
liberados periodicamente. Outros, que não haviam ainda aparecido,
mantinham-se na reserva para uso no dia seguinte ou nos outros
dias.
Para chegar a isso, para que tudo realmente funcionasse, um
sistema heterogêneo de comunicações, tipo colcha de retalhos, fora
estabelecido com o emprego em larga escala de telefones públicos,
dos quais se encarregavam os auxiliares voluntários que ficavam
pelas ruas. E tudo estava correndo da melhor forma possível,
consideradas as dificuldades e o improviso desse sistema de
comunicações.
Todas as informações eram levadas com freqüência a Margot, instalada
no banco traseiro do seu Volkswagem. Incluíam o número de
pessoas na fila, o tempo gasto para abrir cada conta, o número de
novas contas já abertas, etc. Fora-lhe relatado também o ambiente
no Banco, com uma verdadeira multidão apertada como sardinhas
em lata, bem como as conversas entre Seth Orinda e funcionários.

(1) Diácono (N.T.)

Margot fez seus cálculos e deu instruções ao último mensageiro, um
rapaz jovem que esperava ao lado do carro:

— Diga a Deacon para não convocar mais nenhum voluntário, por
enquanto; creio que já temos o suficiente para o resto do dia. Diga-
lhe que libere uma parte das pessoas que estão na fila externa, mas
nunca mais de 50 de cada vez, dizendo-lhes que voltem munidos de
lanches. Quanto a isso, é preciso que todo mundo seja muito
cuidadoso e que não deixe nenhum traço de sujeira na Rosselli
Plaza; e que não levem para dentro do banco nenhuma espécie de
comida ou de bebida.
Ao mencionar os lanches, veio-lhe à lembrança o problema do dinheiro,
com que se defrontara no início da semana.
Segunda-feira, os relatórios trazidos por Deacon Euphrates tornavam
claro que muitos dos voluntários não tinham sequer cinco
dólares, o mínimo exigido para a abertura de uma conta no First
Mercantile American Bank. A Associação de Inquilinos de Fórum
East virtualmente não tinha fundos. Durante alguns minutos ela
teve a impressão de que todo o esquema iria a pique.
Então, teve uma idéia e deu um simples telefonema. Era para o Sindicato
— o Sindicato Americano de Empregados, Caixeiros e
Trabalhadores — que representava os faxineiros e o pessoal de
limpeza do aeroporto e ao qual ela tanto ajudara um ano atrás.
Margot perguntou se o Sindicato poderia fazer um empréstimo,
apenas o suficiente para que os voluntários pudessem depositar
cinco dólares, àqueles que não dispunham dessa quantia. Os
dirigentes do Sindicato reuniram-se às pressas e a decisão foi
favorável.

Terça-feira, os empregados do Sindicato ajudaram Deacon
Euphrates e Seth Orinda a distribuir o dinheiro do empréstimo.
Todos sabiam que parte dele jamais seria paga e que alguns dos
cinco dólares individuais seriam gastos na própria terça-feira à
noite, sendo seu objetivo original esquecido ou ignorado. Mas
acreditavam que a maioria do dinheiro seria empregado conforme o


planejado. Pelo que podia ver do carro, e conforme as notícias que


lhe traziam, Margot sentiu que tudo corria bem.
O próprio Sindicato providenciara o suprimento de um lanche.
Margot suspeitou de um certo interesse por parte do Sindicato, mas
concluiu que isto em nada afetaria o objetivo do Fórum East,
portanto não fez restrições à oferta.


Ela voltou a dar instruções ao mais recente mensageiro:


— Devemos manter a fila até que o Banco feche, às três da tarde.
Era possível, pensava Margot, que os meios de comunicação fizessem
alguma coisa na hora de encerramento do expediente para o
público como, por exemplo, fotografar ou filmar o acontecimento de
hoje, comprovando sua força e impacto.
Os planos para o dia seguinte poderiam ser coordenados ainda esta
noite, por mais tarde que fosse. Em sua maior parte, pensava ela,
seria uma repetição do que acontecera hoje.
Felizmente o tempo colaborava com um céu claro e sem chuvas e as
previsões para os dias seguintes eram igualmente boas.


— Continue insistindo para que todos — disse Margot a outro mensageiro
— continuem amáveis, corteses. Mesmo que o pessoal do
Banco se torne duro. impaciente, a única coisa a fazer é sorrir.
Às I lh45min da manhã. Seth veio em pessoa. Sorria amplamente e
trazia a edição extra de um jornal vespertino.
— Oba! — disse Margot quando viu a primeira página.
Os acontecimentos do Banco tomavam conta de todo o espaço. Ela
conseguira chamar a atenção, muitíssimo mais do que havia
esperado. A manchete dizia:
MORADORES DO FÓRUM EAST IMOBILIZAM
BANCO

E logo abaixo:

First Mercantile American Bank em dificuldade?
Muitos vieram "ajudar"


com seus pequenos depósitos Havia várias fotografias e um artigo de
fundo ocupando duas colunas da primeira página do jornal.

— Meu Deus! — suspirou Margot. — Como o FMA vai odiar isto! E.
de fato. odiou.
Pouco depois do meio-dia. improvisou-se uma reunião no 36.°
andar, na suíte presidencial do FMA.
Jerome Patterton e Roscoe Heyward dela participaram, ambos de
cara fechada. Alex Vandervoort juntou-se a eles. Também ele estava
sério, embora à medida que a discussão se desenrolava, desse a
impressão de se sentir menos interessado que os outros. Mas de vez
em quando parecia brilhar em seus olhos uma espécie de centelha,
como se o assunto o divertisse. A quarta pessoa presente era Tom
Straughan, o jovem e estudioso economista-chefe do Banco. O
quinto, Dick French, vice-presidente encarregado de relações
públicas.

French, com a testa franzida, entrou mastigando um charuto
apagado e carregando um monte de jornais da tarde, que jogou em
cima da mesa, onde se juntaram a outros que lá já se encontravam.

Jerome Patterton, sentado atrás de sua mesa, abriu um dos jornais.
Quando leu as palavras: First Mercantile American Bank em dificuldade?",
exclamou no auge do nervosismo:


— Mas que mentira imunda e nojenta! Este jornal tem que ser processado!
— Mas não há nada a processar — disse French com a sua habitual
franqueza. — O jornal não declarou isto como um fato. Pôs uma
interrogação no final da frase e, de qualquer maneira, está
transcrevendo outra fonte. Ademais, a declaração original não foi
maMciosa.
E fez uni gesto como que para encerrar o assunto, com as mãos às
costas e o charuto projetado como um torpedo.
Patterton enrubesceu de raiva.



— Mas claro que é maliciosa — disse Roscoe Heyward, que se mantivera
em silêncio junto à janela e que agora voltara e se dirigia aos
demais. — A manobra inteira é maliciosa, tendenciosa mesmo.
Qualquer idiota pode ver isto.
French suspirou:
— Está bem, mas deixe que eu termine. Quem quer que esteja por
trás disto é eficiente, tanto no que se refere à lei, quanto a relações
públicas. A manobra, como você disse, foi habilmente estruturada
de modo a parecer amável e cooperadora em relação ao Banco.
Claro que sabemos que não é nem uma coisa nem outra. Mas jamais
poderemos prová-lo. E sugiro que não percamos mais tempo com
essa conversa idiota.
Desdobrou um dos jornais, abriu a primeira página e disse:
— Uma das razões pelas quais eu ganho um salário principesco é
porque sou especialista em tudo que se refere a noticiário e meios de
comunicação. Neste exato momento minha experiência me diz que
esta mesma notícia, escrita e apresentada de maneira honesta, quer
nós gostemos ou não, está sendo transmitida para todo o país,
através de todos os meios de comunicação, e que a matéria inteira
será usada. Por quê? Porque qualquer luta tipo Davi e Golias
desperta interesse humano.
Tom Straughan, sentado ao lado de Vandervoort, disse com brandura:
— Confirmo em parte: o assunto já foi mencionado no serviço de
notícia de Dow Jones, e imediatamente nossas ações caíram mais
um ponto.
— Outra coisa — prosseguiu Dick French ignorando a interrupção:
— podemos nos preparar para enfrentar o noticiário da televisão,
hoje à noite. Muita coisa será dita pelas estações locais. Minha
impressão é que o assunto será transmitido em cadeia pelas três
maiores emissoras. E ainda digo mais: se algum comentarista

resistir ao apelo, ao forte apelo da frase Banco em dificuldade estou
pronto a engolir o tubo da minha televisão.
Heyward disse friamente:


— Você já acabou?
— Não. Gostaria de dizer que se eu dirigisse a verba de relações
públicas do ano inteiro numa só uma direção, isto é, para tentar fazer
com que o Banco fosse mal visto, não teria conseguido um trabalho
tão bem feito quanto o que vocês já fizeram.
Dick French tinha uma teoria toda pessoal. Julgava que fazia parte
de seu trabalho de relações públicas estar sempre preparado, todos
os dias, para executar suas tarefas. Se seus conhecimentos e
experiência exigiam que dissesse a seus superiores fatos
desagradáveis que prefeririam desconhecer, ele o fazia de maneira
mais rude, e o resto que se danasse. A franqueza fazia parte de seu
trabalho: — era uma manobra para ganhar atenção. Ceder, ou obter
favores através do silêncio ou da omissão, seria falhar em suas
responsabilidades.
Algumas circunstâncias exigiam que fosse mais franco que outras:
hoje era o dia de uma delas.
Franzindo a testa, enraivecido, Roscoe Heyward perguntou:
— Acaso já sabemos quem são os organizadores?
— Não especificamente — disse French. — Nolan Wainwr-ight me
disse que está trabalhando no assunto. Mas isso não faz muita
diferença.
— E se você está interessado nas últimas novidades da agência central,
saídas do forno — interrompeu Tom Straughan — vim de lá,
atravessando o túnel. A agência continua repleta de gente, isto é. de
protes-tadores. Fora estes, ninguém consegue entrar no banco para
fazer qualquer transação normal.
— Eles não são protestadores — corrigiu-o Dick French. — E preciso
que sejamos claros a esse respeito, já que estamos analisando o assunto.
Não exibem uma só tabuleta ou frase, exceto talvez Ato de
Esperança. São apenas clientes e é este o nosso problema.

— Bem — disse Jerome Patterton —já que você sabe tanto sobre o
assunto o que sugere?
French deu de ombros.
— Vocês é que puxaram o tapete de baixo do Fórum East; a
tarefa de vocês, agora, é colocá-lo de volta.
O rosto de Roscoe Heyward endureceu.
Patterton dirigiu-se a Vandervoort:


— Alex, o que pensa de você?
Você conhece meu modo de pensar a respeito — respondeu este.
Falava pela primeira vez. — Fui contra o corte da verba. E ainda
sou. Com sarcasmo, Heyward disse:
— Então você, por certo, está encantado com esse acontecimento.
Acredito mesmo que cederia facilmente, e de bom grado, a esses
palhaços e a essa intimidação.
— Não, não me sinto absolutamente encantado. — Os olhos de Alex
brilharam de raiva. — Sinto-me embaraçado e ofendido ao ver o
Banco na posição em que foi colocado, pois o que está acontecendo
poderia ter sido previsto, isto é, que haveria alguma espécie de
oposição. Mas, no momento, o importante é resolver a presente
situação da maneira mais acertada.
Heyward então disse:
— Então você, na verdade, cederia à intimidação. Exatamente como
eu quis dizer.
— Ceder ou não ceder é irrelevante — respondeu Alex friamente. —
A questão verdadeira é: estávamos certos ou errados quando
reduzimos o financiamento ao Fórum East? Se estávamos errados,
deveríamos admitir uma revisão do assunto e ter a coragem
suficiente para reconhecer nosso erro.
Jerome Patterton observou:


— Revisão ou não revisão, se mudarmos nossa atitude agora, todos
nós pareceremos uns ridículos idiotas.

— Jerome — retrucou Alex — em primeiro lugar, não acredito nisto;
não penso que seríamos ridicularizados. Em segundo lugar, que
importância teria?
Dick French interrompeu:


— Bem, o resultado financeiro do assunto não faz parte da minha
responsabilidade. Mas digo-lhes uma coisa: se nos
decidíssemos,agora, a alterar, a rever nossa política a respeito do
Fórum East, creio que, muito ao contrário, conseguiremos nos
recuperar. Em vez de sermos ridicularizados faríamos um bonito
papel.
Heyward dirigiu-se com azedume a Alex:


— Se, nesse caso, a coragem é um fator importante, eu diria que
você está completo privado dela. De qualquer coragem. Porque o
que está fazendo é recusar-se a enfrentar a ralé.
Alex respondeu com impaciência:
— Deixe de falar como um xerife do Oeste, Roscoe. Às vezes, não
mudar uma decisão errada é apenas prova de pura teimosia, da
mais insólita obstinação. Apenas isso. Além do mais, aquele pessoal
que está na agência absolutamente não é o que você chama de ralé.
Todos os comentários e artigos de todas as fontes foram claros a
esse respeito.
Heyward, manifestando suas suspeitas, disse:
— Você parece ter uma afinidade especial com eles. Saberá, acaso,
de alguma coisa que nós desconhecemos?
— Não.
— Tanto faz, Alex, não gosto da idéia de ceder humildemente —
ruminou Jerome Patterton.
Tom Straughan procurava acompanhar a discussão. Afinal, decidiu-
se e declarou:
— Eu fui contra o corte da verba do Fórum East, como todo
mundo sabe. Mas não me agrada a idéia de ser empurrado de um
lado para outro por gente estranha.

Alex suspirou:

— Se todos vocês pensam assim, é melhor aceitarem a idéia de que a
agência central não nos será de muito uso nos próximos dias.
— Aquela turba canalha não pode continuar a fazer o que está fazendo
durante muito tempo — declarou Heyward. — Acredito que
se nos mantivermos à altura, recusando-nos a ser blefados, a
manobra terá malogrado amanhã.
— Pois eu — disse Alex — acredito que ela prosseguirá até a semana
que vem.
No final, ambos erraram. Na ausência de qualquer atitude compreensiva
por parte do Banco, a verdadeira inundação humana da
agência central por parte dos apoiadores do Fórum East continuou
durante quinta e sexta-feira. Até o último minuto da sexta-feira, à
tarde.

A agência não fazia qualquer outro tipo de operação. O trabalho em
todos os setores estagnou-se. E como Dick French previra, a atenção
de toda a nação encontrava-se no Banco.

Muitos achavam o assunto engraçado, mas os investidores não
achavam nenhuma graça e na Bolsa de Valores de Nova Iorque,
naquela sexta-feira, as ações do FM A fecharam dois pontos abaixo.
Enquanto isso, Margot Bracken, Seth Orinda. Deacon Euphra-tes e
outros continuavam fazendo planos e recrutando gente.
Na segunda-feira pela manhã o Banco capitulou.
A imprensa foi chamada às pressas às dez da manhã para que pick
French levasse ao conhecimento do público que o financiamento
total do Fórum East seria restabelecido imediatamente. Em nome do
Banco, French fez votos de que todos os moradores daquele
conjunto, bem como seus amigos, que haviam aberto suas contas no
Banco nos últimos dias, permanecessem bons clientes.
Muitas razões convincentes levaram a essa capitulação. Uma delas
foi que, antes de abrir suas portas segunda-feira pela manhã, a fila
externa e na Rosselli Plaza era ainda mais extensa que nos dias


anteriores. Estava claro que aquelas pessoas continuavam dispostas
a prosseguir na; manobra da semana anterior.
Outra razão, e esta mais desconcertante, é que uma segunda fila semelhante
tivera início em outra agência do FMA, no subúrbio de
Indian Hill. Isto não era de todo inesperado. A extensão da
atividade do pessoal do Fórum East a outras agências do FMA fora
prevista pelos jornais de domingo. Quando a fila em frente à
agência de Indian Hill começou a se formar, seu gerente telefonou
alarmado para o escritório central, pedindo ajuda.
Mas um outro importante fato influiu na decisão do Banco.
Durante o fim de semana, o Sindicato que tinha emprestado o dinheiro
para o comitê dos inquilinos do Fórum East, e até fornecera
lanches grátis — a American Federation of Clerks, Cashiers<fe
Office Wor-kers — anunciou publicamente seu envolvimento no
caso e pediu o apoio de outras entidades congêneres. Um porta-voz
do Sindicato qualificou o FMA como "uma gigantesca e egoísta
máquina de lucros, posta a funcionar para enriquecer mais ainda os
ricos às custas dos pobres".

E acrescentou que, em breve, teria início uma campanha para sindicalizar
os bancários.
Com isto, o Sindicato conseguira, de fato, abalar o FMA.
Os bancos, todos eles, temiam, odiavam mesmo, os sindicatos. Seus
líderes e executivos viam estas organizações como uma cobra
poderia ver um mangusto. O que os banqueiros temiam, caso os
sindicatos se fortalecessem, era uma grande perda de sua liberdade
financeira. Às vezes este medo, este temor era irracional, mas o fato
é que existia.
Embora os sindicatos tivessem tentado várias vezes, poucos tinham
conseguido sequer abrir um caminho até os bancários. Uma vez
após outra, os banqueiros habilmente conseguiam vencer os
organizadores sindicais, e pretendiam continuar a fazê-lo sempre.
Se a situação do Fórum East servisse de alavanca para um sindicato,


ipso facto, esta alavanca teria que ser removida. Jerome Patterton, em
seu escritório, bem cedo, movendo-se com uma rapidez fora do
comum, tomou a decisão final autorizando o restabelecimento do
financiamento ao Fórum East, e aprovou a declaração do Banco, que
Dick French apressou-se em divulgar.
A seguir, para acalmar os nervos, Patterton cortou todas as comunicações
e resolveu praticar um pouco de golfe no tapete do seu
escritório.
Naquela mesma manhã, numa sessão informal do comitê de política
monetária, foi registrado o restabelecimento da verba do Fórum
East, embora Roscoe Heyward resmungasse:

— Com esta rendição, acabamos de criar um precedente que lamentaremos
no futuro.
Alex Vandervoort manteve-se silencioso.
Quando a declaração do FMA foi divulgada, lida para os ativistas
do Fórum East em ambas as agências do Banco, até palmas e vivas
se fizeram ouvir, após o que os grupos reunidos foram-se
dispersando em silêncio. Em meia hora o trabalho voltava ao
normal. 170

O assunto poderia ter-se encerrado ali, a não ser por uma
informação confidencial que, afinal, acabaria mesmo por ser
divulgada. Estava incluída em um jornal, dois dias mais tarde,
naquela mesma coluna, Ear to the Ground. ("Com os Ouvidos
Colados ao Chão") que, em primeira mão, muito antes iniciara o
noticiário sobre o FM A e o Fórum East.
Talvez você esteja imaginando quem poderia estar por trás do
pessoal do Fórum East que esta semana fez com que o poderoso e
orgulhoso First Mercantile American Bank finalmente cedesse. O
Sombra sabe. Trata-se da advogada feminista Margot Bracken. que
se dedica aos direitos civis. Foi ela a inspiradora e autora do
incidente no aeroporto e de outras batalhas a favor dos humildes e
espoliados. Desta vez, embora o plano fosse todo seu, a Sra. Bracken


manteve sua atividade no mais absoluto sigilo. Enquanto outros, em
seu lugar, tomavam a frente, ela mantinha-se fora da vista, evitando
a imprensa, sua aliada normal. Você está curioso em saber por quê?
Pois vou satisfazer sua curiosidade! O grande e bom amiguinho de
Margot. frequentemente visto com ela pela cidade, é o
badaladíssimo banqueiro Alexander Vandervoort, vice-presidente
executivo do First American Bank. Se você fosse Margot e tivesse
esse tipo de relacionamento com um vice-presidente do Banco,
também não se manteria no anonimato, à distância?
Apenas uma coisa desconhecemos: será que Alex sabia e aprovava
aquela pressão contra seu próprio Banco?

5


_ Por Deus — disse Margot — torno a dizer que lamento muito!

— Eu também lamento o que aconteceu.
— Gostaria de arrancar a pele desse colunista. A única coisa que não
mencionou é que sou prima de Edwina.
— Muita gente desconhece este fato — disse Alex — até no próprio
Banco. De qualquer maneira amantes tornam qualquer notícia
muito mais quente do que primos.
Era quase meia-noite; eles estavam no apartamento de Alex, em seu
primeiro encontro desde a invasão da agência central do FMA. O
tópico no Ear to the Ground fora publicado no dia anterior.
Margot acabara de chegar, após haver representado no tribunal noturno
um alcoólatra, cujo hábito era assaltar qualquer pessoa que
surgisse à sua frente quando estava bêbado, o que fazia dele uma
das poucas fontes certas de renda do escritório de Margot.

— O redator do jornal cumpriu sua missão de divulgar — disse
Alex.
— Aliás, era de esperar que seu nome acabasse por aparecer. Margot
disse contritamente:
— Tentei impedir isso. Apenas poucas pessoas sabiam o que eu estava
fazendo e era assim que eu queria que tudo ficasse.
Alex negou com a cabeça.
— Não seria possível. Nolan Wainwright, hoje cedo, me disse exatamente:
"a travessura toda leva a Margot Bracken". Ele começou a
interrogar as pessoas e, como você sabe. já foi agente policial.
Alguém teria acabado por dar com a língua nos dentes, se o
noticiário não fosse publicado antes.
— Mas não era necessário envolver seu nome.
— Quer saber a verdade — e Alex sorriu — até que gostei de ser
chamado de banqueiro badalado.
Mas o sorriso era falso e ele sentia que Margot o percebia. Na verdade,
aquele comentário na coluna do jornal o tinha deprimido
terrivelmente. E sentia-se ainda deprimido, embora tivesse ficado
satisfeito quando Margot telefonara para dizer que iria vê-lo.
Alex indagou:


— Você falou com Edwina hoje?
— Telefonei para ela; não pareceu estar preocupada. Acho que nos
acostumamos uma com a outra. Além do mais. está satisfeita pelo
fato do Fórum East ter entrado outra vez nos trilhos. Você também
deve estar satisfeito com isso.
— Você sempre conheceu meus sentimentos a esse respeito. Mas
isso não quer dizer que aprove todos os seus métodos, Bracken.
O tom de suas palavras foi mais áspero do que desejara. A reação de
Margot foi imediata.
— Mas não havia nada de duvidoso no que eu fiz, ou no que o pessoal
fez. O que é bem mais do que se pode dizer a favor do seu
maldito banco.

Ele levantou as mãos, pondo-se na defensiva.

— Não vamos discutir. Não esta noite.
— Então não diga coisas como esta.
— Está bem; não direi.
A zanga momentânea já se dissipara. Margot indagou:
— Diga-me... quando tudo isso começou, você não teve a menor
idéia de que eu pudesse estar envolvida?
— Claro que tive! Em parte porque a conheço muito bem e em parte
porque recebeu calmamente demais a notícia sobre o corte de verba
do Fórum East. Esperava que você nos fizesse em pedacinhos — a
mim e ao FMA.
— Tornei as coisas muito difíceis para vocês... enquanto ocorria
aquela confusão toda no Banco?
Ele respondeu com franqueza:
— Tornou, sim. Eu não sabia se devia dizer aos outros o que suspeitava,
ou se devia ficar calado. Como trazer seu nome à baila não
traria nenhuma diferença ao que estava acontecendo, silenciei. O
tempo mostrou que foi uma atitude errada.
— Quer dizer que agora talvez os outros pensem que você já sabia
da verdade?
— Pelo menos, Roscoe; talvez Jerome. Quanto aos outros, não tenho
certeza.
Fez-se um certo silêncio antes que Margot perguntasse:
— E isto lhe importa muito? Tem importância extraordinária para
você?
Pela primeira vez, desde que se conheceram, a voz de Margot parecia
ansiosa. E seu rosto também traía preocupação. Alex deu de
ombros, decidido a tranqülizá-la.
— Não muito; creio que não muito. Não se preocupe; sobreviverei.
Mas, na realidade, importava muito. Era importantíssimo em
relação

ao FM A, apesar do que ele acabara de dizer. O incidente fora
duplamente inoportuno, dado o momento em que ocorrera.
Alex sabia que a maior parte dos diretores do Banco lera o comentário
mencionando seu nome bem como a pergunta: Será que Alex
sabia e aprovava aquela pressão contra seu próprio Banco? E se acaso
algum dos diretores não tivesse lido a notícia, Heyward — que não
ocultava mais a sua posição — providenciaria para que todos
tomassem conhecimento dela.
Pela manha, Alex fora diretamente à sala de Jerome Patterton, tão
logo aquele chegou, às dez da manhã. Mas Heyward, cuja sala
ficava mais perto, já estava presente.

— Entre Alex — disse Patterton. — Podemos conversar, os três.
— Antes de qualquer coisa, Jerome, quero ser o primeiro a mencionar
um certo assunto. Você já viu isto? — E Alex mostrou-lhe um
recorte do noticiário Ear to the Ground da véspera.
Sem esperar a resposta, indagou:


— Por acaso você pensa que alguém no Banco não o leu? Patterton
suspirou.
— Sim. Alex, tomei conhecimento de tudo e gostaria de tê-lo ignorado.
Mais de uma dúzia de pessoas já chamou minha atenção para
esse noticiário, e sem dúvida muitas outras ainda o farão.
De maneira firme Alex disse:


— Então você tem direito de saber que a notícia não passa de uma
brincadeira de mau gosto, e nada mais. Dou-lhe minha palavra de
que nada sabia com antecedência; estava tão informado quanto
vocês.
— Mas muita gente — comentou Roscoe Heyward — pode pensar
que. com as suas relações (e ele carregou de ironia a palavra relações
esse desconhecimento do assunto soa falso.
— Toda e qualquer explicação que estou dando — disse Alex — é
dirigida a Jerome.
Mas Heyward negava-se a ser posto de lado.



— Quando a reputação do Banco é humilhada perante o público, o
assunto diz respeito a todos nós. E no que se refere ao que chama de
explicação, será que realmente espera que alguém acredite que
durante quarta, quinta, sexta-feira, todo o fim-de-semana e até
segunda-feira você não tinha a mínima idéia de que sua amiguinha
estava envolvida no assunto?
Patterton então perguntou:
— Alex, o que me diz sobre isto?
Alex enrubesceu. Desde a véspera sentia-se ressentido com o fato de
Margot tê-lo colocado naquela posição absurda.
Tão calmamente quanto pode, explicou a Patterton que, de fato, na
semana passada chegara a suspeitar do envolvimento de Margot,
mas que julgara inútil e sem interesse para o caso discutir tal
possibilidade com os demais. Acrescentou que não via a moça há
mais de uma semana.
— Nolan Wainwraight também suspeitara a mesma coisa — acrescentou
Alex. — Ele me disse hoje cedo. Mas calou-se, pois não lhe
pareceu correto divulgar uma simples impressão, uma vaga
suspeita, até que, afinal, a informação foi publicada.
— Talvez alguém possa acreditar em você, Alex — disse Roscoe
Heyward. Seu rosto e seu tom de voz davam a entender: não eu.
— Calma, calma, Roscoe! — disse Patterton tentando contemporizar.
— Está bem, Alex, aceito sua explicação. E espero que, no
futuro, possa usar sua influência para que a Sra. Bracken aponte sua
artilharia em outra direção.
Heyward acrescentou:
— Ou. melhor ainda, não chegue a usá-la.
Ignorando o último comentário, Alex respondeu com um leve sorriso:
— Pode ter certeza que o farei.
— Obrigado.
Alex julgava que esta seria a última palavra do presidente sobre o
assunto e que o relacionamento entre ambos voltaria ao normal,

pelo menos na aparência. Quanto ao que pudesse se passar em seu
íntimo, ele já não tinha tanta certeza. Provavelmente na mente de
Patterton e dos outros — incluindo alguns membros da diretoria —
a lealdade de Alex para com o Banco seria, para sempre, posta em
xeque. No mínimo, fariam certas reservas quanto à sua discrição em
relação a Margot.
De qualquer maneira, tais dúvidas e reservas estariam no pensamento
dos diretores quando se aproximasse a aposentadoria de
Patterton, no fim do ano, época em que a assembléia se reuniria
para discutir o assunto da nova presidência do Banco. E embora os
diretores fossem ótimas pessoas em certos aspectos, em outros,
eomo Alex bem sabia, podiam ser mesquinhos e preconceituosos.
Por quê? Por que tudo isso tinha que acontecer agora?
Alex foi-se tornando mais triste à medida que Margot o olhava com
os olhos inquiridores e a expressão ansiosa e incerta.

Mais seriamente do que antes, Margot disse:

— Eu lhe causei um bocado de problemas, não? Um bocado mesmo,
creio. Portanto, vamos parar de fingir.
Alex ia tentar tranqüilizá-la mais uma vez, mas de repente mudou
de idéia, sabendo que havia chegado para eles a hora do jogo-daverdade.
— É preciso que lhe diga mais uma coisa — continuou Margot —
nós já tínhamos falado sobre isso, sabendo o que poderia acontecer
e imaginando se poderíamos continuar a ser a espécie de gente que
somos, independente um do outro e, ainda assim, vivermos juntos.
— Eu me lembro — respondeu Alex.
— O que não esperávamos era que tudo isso, se ocorresse, viesse a
ocorrer tão depressa — disse ela.
Alex aproximou-se como já o fizera tantas vezes antes, porém Margot
afastou-o e sacudiu a cabeça.
— Não: vamos encerrar este assunto de uma vez.
Sem qualquer aviso, pensava Alex, e sem que qualquer um deles o
desejasse, suas relações chegavam a uma crise.

— Acontecerá outra vez, Alex. É tolice tentar nos enganarmos. Oh!
talvez não com o Banco. Mas com coisas semelhantes ou
relacionadas a ele. Quero ter certeza de que, quando isso tornar a
acontecer, saberemos enfrentar juntos qualquer problema. E não
apenas desta vez, na esperança de que seja a última.
Alex sabia que aquelas palavras expressavam a verdade. A própria
vida de Margot era uma vida de contestações e muitas outras
viriam. Algumas, alheias a seus interesses; outras, não.
Também era verdade que já haviam falado sobre isso tudo antes —
há uma semana e meia atrás. Porém, então, a conversa fora em
termos abstratos, e as hipóteses eram menos graves que os
acontecimentos dá última semana.
— O que poderíamos fazer — disse Margot — é acabar com tudo
agora, enquanto vivemos bem. Sem mágoas nem ressentimentos de
parte a parte; apenas uma conclusão sensata. Se fizermos isto, se
pararmos de nos ver e de sermos vistos juntos, todo mundo virá a
saber. As notícias voam. E embora nosso rompimento não chegasse
a apagar o que houve com você no Banco, talvez tornasse as coisas
mais fáceis no futuro.
Também isto era verdade, Alex o sabia. Sentiu uma forte tentação
de aceitar a oferta, de exorcizar, rápida e honestamente, uma
complicação em sua vida, uma complicação que se tornaria cada
vez maior e nunca menor, à medida que os anos passassem. Mais
uma vez se perguntou por que os problemas, as pressões, vêm
sempre juntos: a piora do estado de
Célia, a morte de Ben Rosselli, sua luta no Banco, o tormento
imerecido de hoje. Afinal, Margot. com uma escolha, uma opção...
Por quê?
Relembrou então um fato de que tomara conhecimento quando, há
muitos anos. estivera em Vancouver, no Canadá. Uma moça jogara-
se do 24.° andar do hotel, tendo, antes, rabiscado com batom no
vidro da janela: por quê, oh! por quê? Alex nunca a vira nem viera a
saber quais teriam sido os problemas que ela julgava insolúveis.


Mas estava hospedado no mesmo andar em que ocorrera a tragédia
e o assistente da gerência, um jovem muito falador, mostrara-lhe o
vidro rabiscado de batom. Jamais conseguira esquecer aquele infeliz
acontecimento.
Por quê, oh! por quê? Temos sempre que optar? Por que a vida nos
força a isso? Por que ele se casara com Célia? Por que ela
enlouquecera? Por que ele ainda evitava a catarse do divórcio? Por
que Margot tinha que ser ativista? Por que teria ele que considerar a
hipótese de perder Margot agora? Até a que ponto ele teria que
ceder para chegar a presidente do FMA?

Certamente, não até este ponto!
Alex fez um tremendo esforço e deixou as tristezas de lado. Aos
diabos com tudo! Ele não cederia, jamais, sua liberdade pessoal, sua
independência, fosse pelo FMA, fosse pelos diretores, ou mesmo
por sua ambição pessoal. Jamais desistiria de Margot!

— O que mais importa no momento — perguntou a ela — é saber se
você quer que tudo acabe, como disse há pouco... como uma
conclusão sensata?
Através das lágrimas, Margot conseguiu dizer:
— Claro que não.
— Então, Bracken, saiba que eu também não quero. E não vou querer
nunca. Foi bom que tudo isto acontecesse, para provar que nos
tornamos mais fortes ainda. De agora em diante nenhum de nós
terá que provar qualquer coisa para o outro.
Desta vez, quando ele se aproximou, ela não o evitou.

6


— Roscoe, meu caro — disse o ilustre Harold Austin ao telefone, em
voz agradável e alegre — Estive falando com Big George: ele nos
convidou, a você e a mim, para jogar golfe nas Bahamas na próxima
sexta-feira.
Roscoe Heyward ficou sem saber o que dizer. Nesta tarde de sábado,
estivera trabalhando em casa. Para atender ao telefone,
interrompera o exame dos relatórios financeiros que. no momento,
encontravam-se espalhados, com outros papéis, até pelo chão da
sala.
— Não sei se poderei ir para tão longe. Não seria possível fazermos
uma conferência em Nova Iorque?
— Claro que sim. Só que estaríamos sendo estúpidos e tolos, porque
Big George sempre preferiu Nassau. Porque ele gosta de fazer
negócios num campo de golfe — nesse tipo de negócio sobre o qual
decide em pessoa.
Desnecessário seria dizer quem era "'Big George", como era conhecido
na indústria, nos meios bancários e na vida pública.
G.G. Quartermain. diretor e chefe executivo da Supranational Corporation,
SuNatCo, além de ser presidente de todo o conglomerado,
era um homem que possuía mais poder que muitos estadistas, e
sabia usá-lo como um rei. Seus interesses e influências estendiam-se
por todo o mundo, bem como os da companhia que dirigia. Dentro
da SuNatCo ou fora dela, era ou admirado ou odiado, mas sempre
cortejado e sempre temido.
E havia razões. Oito anos antes — numa época em que SuNatCo
não tinha o poderio de agora — Quartermain fora escolhido para
dirigir a empresa que, então, passava por uma fase crítica. Nestes
oito anos ele a transformara em um conglomerado espetacular,
aumentando seu capital três vezes e quadruplicando os dividendos.
Os acionistas que Big George enriquecera adoravam-no e davam-
lhe inteira liberdade de ação. E verdade que certas cassandras

profetizavam que seu império era de papelão. Mas os relatórios
financeiros da SuNatCo e de suas inúmeras subsidiárias, que
Roscoe Heyward estudava quando Harold lhe telefonou, provavam
com segurança o contrário.
Heyward encontrara-se com Big George por duas vezes, A primeira,
de passagem, no meio de uma multidão, a segunda, em
Washington, na suíte do hotel, juntamente com Harold Austin.
Aquele encontro fora combinado entre Harold e Quartermain para
que os três conversassem a respeito das possíveis transações entre a
SuNatCo e o FMA. Heyward não tinha uma idéia exata a respeito
do assunto, pois os dois já haviam começado a conversa muito antes
que ele chegasse, no entanto sabia que, de alguma maneira,
envolvia até o próprio governo.
A Agência Austin era responsável pela propaganda nacional da
Hepplewhite Distillers, uma grande subsidiária da SuNatCo, mas as
relações entre ele. Heyward. e Quartermain pouco passavam do
plano comercial.
Big George estava de excelente humor e. ao ser apresentado a Heyward,
disse-lhe:

— Harold se diz diretor de um pequeno banco e acha que vocês
gostariam de se beneficiar da SuNatCo. Bem. qualquer dia
cuidaremos do assunto.
O presidente da Supranational tocou de leve o ombro de Heyward e
passaram a falar de outras coisas.
Este contato com G. G. Quartermain é que levara Heyward, em
meados de janeiro, dois meses atrás, a informar ao comitê de
política monetária do FM A que havia possibilidade de negócios
com a SuNatCo. Mais tarde, julgou que talvez se tivesse
precipitado; mas. agora, parecia que a probabilidade surgira outra
vez.
— Bem, talvez eu pudesse sair quinta-feira, por um ou dois dias —
respondeu Heyward.


— Assim é que eu gosto — retrucou Harold. — Qualquer outro
plano seu não poderia, de modo nenhum, ser mais importante para
o Banco que isto. Ah! Ia me esquecendo de dizer que Big George vai
mandar seu avião particular para nos buscar.
Heyward alegrou-se.
— E mesmo? E o avião terá bastante autonomia de vôo?
— É apenas um 707. Achei que você gostaria de saber. — Harold
Austin riu. — Bem, sairemos quinta-feira ao meio-dia, passaremos
todo o dia de sexta-feira nas Bahamas, regressando sábado. Por falar
nisso, o que achou você dos relatórios financeiros da SuNatCo?
— Estava estudando esses relatórios. O paciente parece saudável. —
E Heyward olhou para o monte de papéis espalhados.
— Se você o diz, para mim é o suficiente — concluiu Austin.
Quando recolocou o telefone no gancho, Heyward deu-se ao luxo
de sorrir. A viagem iminente, seu objetivo, e o fato de estar viajando
para as Bahamas num avião particular, seriam um tópico agradável
para mencionar, en passant, nas conversas da semana seguinte. Além
do mais, se houvesse algum resultado positivo, sua posição na
diretoria melhoraria. E isto merecia um cuidado especial, face à
interinidade de Jerome Patterton na presidência do FMA.
Também o satisfazia poder voltar sábado, pois não perderia o culto
em sua igreja, onde todos os domingos lia solenemente um trecho
da Bíblia.
Heyward lembrou-se que o sermão do dia seguinte versaria sobre
um tópico muito importante, a respeito do qual ele, como de hábito,
já meditara. Pegando de sua alentada Bíblia, aberta numa página
determinada, leu um versículo do Provérbio que era seu favorito: A
virtude exalta uma nação; mas o pecado é uma desgraça para qualquer
povo.
Para Roscoe Heyward, a excursão às Bahamas constituía novidade.
Estava habituado a viver bem. Como a maior parte dos banqueiros,
mantinha relações sociais com clientes e outras pessoas do meio
financeiro que sabiam gastar dinheiro com largueza, alguns até de


maneira ostensiva, em busca de conforto e de diversões
principescas. Quase sempre invejava essa liberalidade fora de seu
alcance.
Mas G. G. Quartermain punha todos no chinelo. O 707 a jato, identificado
por um grande "Q" na fuselagem, desceu no aeroporto
internacional exatamente na hora prevista. Taxiou até o terminal
especial, onde Harold e Heyward deixaram a limusine que os
trouxera da cidade, subindo logo para bordo, pela porta da cauda.

Na saleta de entrada, que mais parecia a miniatura de um saguão de
hotel, quatro pessoas os cumprimentaram — um homem de meia-
idade, grisalho e com um misto de autoridade e deferência que logo

o rotulava como mordomo, e três moças.
— Bem-vindos a bordo, cavalheiros — disse o mordomo. Heyward
acenou com a cabeça, mas nem notou o homem, pois sua
atenção se dirigia às mulheres, belíssimas moças de vinte e poucos
anos que sorriam para eles da maneira mais convidativa possível.
Ele teve a impressão nítida de que a organização Quartermain tinha
reunido as mais bonitas comissárias de bordo da TWA, da United e
da American, e então selecionado estas três, como as mais belas.
Uma das moças era loura cor de mel, a outra tinha os cabelos
escuros, e a terceira era ruiva. Tinham pernas longas, bem feitas,
belos corpos, saudavelmente queimados de sol; suas peles
bronzeadas faziam um belo contraste com os uniformes bege claro,
os mais sumários possível.
O uniforme do mordomo era do mesmo tecido e da mesma cor do
das moças. Todos os quatro uniformes tinham a letra "Q" no bolso
esquerdo do casaco.
— Boa tarde, Sr. Heyward — disse a moça de cabelos vermelhos.
Sua voz era agradavelmente modulada, num tom quase diríamos
sedutor. E prosseguiu: — meu nome é Avril; por favor, venha
comigo; vou levá-lo à sua sala.
Heyward seguiu-a, surpreso com a referência feita a uma sala, enquanto
Harold era atendido pela loura.

A elegante Avril guiou-o por um corredor que se estendia por todo
um lado do avião e para o qual abriam-se várias portas.

— O Sr. Quartermain está tomando uma sauna e massagem; mais
tarde irá reunir-se com os senhores no salão — informou a moça.
— Uma sauna? Aqui, no avião?
— Isto mesmo. Temos sauna e banho turco instalados, ao fundo. O
Sr. Quartermain insiste em ter uma sauna ou um banho turco onde
quer que vá. e o seu próprio massagista sempre o acompanha. —
Avril acrescentou com um sorriso estonteante: — Se o Senhor quiser
tomar banho turco, sauna ou massagem, teremos bastante tempo
durante a viagem; estarei às suas ordens.
— Obrigado.
A moça parou ao lado de uma porta.
— Eis sua sala. Sr. Heyward.
A medida que ela falava, o avião moveu-se um tanto bruscamente
levando Heyward a cambalear.
— Cuidado! — Avril estendeu os braços, segurando-o. Por um momento
estiveram muito juntos um do outro. Ele sentiu o apoio dos
seus dedos finos e compridos, com longas unhas pintadas cor de
bronze: também sentiu seu perfume.
Ela não tirou logo as mãos de seus braços.
— Acho melhor prender o cinto de segurança. O comandante dá
sempre uma partida muito rápida, pois o Sr. Quartermain não gosta
de se demorar nos aeroportos.
Heyward teve uma rápida visão do pequeno e suntuoso salão para
o qual a moça o levara. Sentou-se, então, confortavelmente numa
pequenti poltrona enquanto os dedos que ele já conhecia apertavam
o cinto em volta de sua cintura. Percebia que aqueles dedos o
tocavam de propósito. A sensação não lhe era, em absoluto,
desagradável.
O avião começou a taxiar com maior rapidez e Avril disse:

— Se não se incomoda, farei companhia ao Senhor, até que estejamos
no ar.
Sentou-se a seu lado e também atou o cinto em volta de si mesma.
— Não, não me importo, é um prazer — disse Heyward. Prestando
atenção, ele começou a observar os detalhes. O salão ou
cabina, como jamais vira num avião antes, tinha sido desenhado
para proporcionar aproveitamento o mais eficiente e o mais luxuoso
possível do espaço disponível. Três das paredes eram forradas de
madeira ostentando um "Q" folheado a ouro. A quarta parede era
quase toda de espelhos que criavam a ilusão de a peça ser muito
mais ampla do que era na realidade. Encostada à parede da
esquerda, estava uma mesa-secretária com todos os equipamentos,
até mesmo um telefone e um telex. Perto, um pequeno bar sortido
com uma variadíssima edição de minigarrafas. Embutida na parede
de espelhos encontrava-se uma tela de televisão com jogo de
controles remotos, acionáveis de ambos os lados da poltrona.
Heyward viu uma porte, tipo biombo, à sua frente, que presumiu
levar às instalações sanitárias.
— O senhor gostaria de assistir à decolagem? — peiguntou Avril,
Sem esperar pela resposta, ela acionou os controles da televisão que
estavam a seu lado e a imagem, clara e colorida, surgiu. Era
evidente que havia uma câmara no nariz do avião e, na tela, ele
podia ver que este movia-se em direção a uma cabeceira da pista.
Com rapidez, o avião levantou vôo e Heyward sentiu-se como que
pairando no ar, não apenas pelo que via na televisão, mas por tudo
que o cercava. Quando a tela só mostrava céu e nuvens, Avril
desligou o aparelho.
—Os canais regulares da TV estão à sua disposição — disse ela. —
Poderá obter todas as informações, a cotação Dow Jones, AP, UPI
ou Telex. Basta que peça o contato ao comissário de vôo; que lhe
dará qualquer resposta.
Heyward, respondeu, afetando naturalidade:

— É incrível! Com franqueza, isto ultrapassa um pouco minha experiência
normal, até hoje.
— Eu sei. Dá esta impressão à maioria das pessoas, mas também é
impressionante a rapidez com que todos se adaptam. Avril olhou-o
mais uma vez com aquele olhar firme e aquele sorriso estonteante.
— Temos mais quatro destas cabinas privadas; qualquer delas, num
momento,se transforma numa sala de dormir. Basta apertar os
botões certos. Estou pronta a mostrá-los, quando quiser.
Ele recusou com a cabeça.


— No momento, não me parece necessário.
— Como quiser, Sr. Heyward. Avril soltou o cinto e levantou-se.
— Se o Senhor quiser falar com o Sr. Austin, ele está na cabina ao
lado. O salão principal, digamos, a sala de estar, fica logo a seguir.
Depois, temos a sala de jantar, e os escritórios; ao fundo, o
apartamento particular do Sr. Quartermain.
— Obrigado pela lição de geografia.
Hèyward tirou os óculo sem aro e o lenço para limpá-los.
— Por favor, permita-me!
Com gentil decisão, Avril tirou-lhe os óculos das mãos e poliu-os
com um lenço de seda, recolocando-os em seu rosto. Mais uma vez
os dedos da moça o tocaram, agora à altura das orelhas. Heyward
sentiu que devia protestar, mas não o fez...
— Minha única missão nesta viagem, Sr. Heyward, é cuidar para
que o senhor se sinta absolutamente à vontade e tenha tudo que
desejar.
Era imaginação sua, ou teria ela posto uma ênfase sutil nas palavras
tudo que desejar? Heyward preferia estar errado, pois, em caso
contrário, a situação seria bastante difícil e chocante.
Antes de sair, a esbelta e gloriosa ruiva disse:
— Se me quiser para qualquer coisa, basta acionar o botão n°. 7.
Heyward respondeu titubeante:
— Obrigado, jovem, creio que não será necessário. Avril pareceu
não ter ouvido e acrescentou:

— No trajeto para as Bahamas faremos um pouso rápido em Washington,
pois o vice-presidente vai juntar-se a nós.
— O vice-presidente da Supranational?
Desta vez os olhos de Avril pareciam zombeteiros.
—Oh, não! O vice-presidente dos Estados Unidos da América do
Norte.
Cerca de 15 minutos depois, Big George perguntou a Heyward:
— Por Deus! O que é isso que você está bebendo? Leite materno?
— É limonada, de que eu gosto muito — Heyward olhava seu copo,
inspecionando o líquido insípido.
O Presidente da Supranational encolheu os ombros maciços.
— Bem, cada viciado com o seu veneno. As moças estão cuidando
de vocês dois?
— De minha parte, nenhuma queixa — disse Harold Austin, o
ilustre, sorrindo.
Como os demais, ele se reclinava confortavelmente numa poltrona
na sala do 707, com a belíssima loura, Rhetta, sentada no tapete a
seus pés.
Avril disse docemente:
— Estamos fazendo o possível.
De pé. atrás da cadeira de Heyward, acariciava-lhe de leve as costas.
Ele sentiu os dedos dela tocarem-lhe a nuca. hesitarem e prosseguirem.
Momentos antes. G. G. Quartermain havia entrado na sala de estar,
envolto num roupão felpudo e vermelho, com o inevitável "Q"
bordado em tamanho grande. Como um senador romano, era
servido por acólitos: um homem forte e silencioso com roupas
brancas de ginástica, evidenciando ser o massagista e por outra
comissária, também uniformizada, com os traços fisionômicos
delicadamente japoneses. Ambos assessoraram a entrada de Big
George até que ele se instalasse numa cadeira que mais parecia um
trono. que. por certo, lhe era destinada. Então uma terceira figura, o
mordomo, como num passe de mágica, fez surgir um martíni



geladíssimo que colocou na mão de G. G. Quartermain. já estendida
à espera do copo.
Mais ainda que nas ocasiões anteriores em que se haviam encontrado,
pensava Heyward. a alcunha '"Big George" era exata em
todos os aspectos. Fisicamente, seu anfitrião parecia uma montanha
de homem: pelo menos 1.84m de altura, exibindo o tronco, braços e
dorso de um gigantesco ferreiro. A cabeça, porém, era bem menor
que o normal. No rosto harmonioso, avultavam os olhos grandes,
sombrios, argutos, e os lábios grossos, bem delineados. Em tudo ele
lembrava um sargento dos fuzileiros-navais. habituado a mandar.
Só que suas ordens eram sobre assuntos muitíssimo mais
importantes. Era evidente que sua jovialidade superficial podia ser
facilmente substituída por descontentamento e agressividade.
Esse conjunto não lhe dava uma aparência de vulgaridade. Sob o
roupão, os músculos se salientavam evidenciando a inexistência de
adiposidade ou de flacidez. O estômago e a barriga eram planos,
musculados. Heyward observava ainda que o próprio rosto de Big
George não mostrava sinais de envelhecimento, exibindo o queixo
maciço, sem papada.
Seu dinamismo em relação à empresa e até mesmo seu apetite eram
motivo de comentários diários na parte financeira da imprensa. E
seu estilo de vida, no avião de 12 milhões de dólares, era
desconcertantemente nababesco.
O massagista e o mordomo desapareceram em silêncio, sendo
substituídos por um novo personagem, o chefe de cozinha, um
homem esguio como um lápis, em suas roupas brancas, imaculadas,
com o gorro característico, altíssimo, quase tocando o teto do avião.
Heyward perguntou-se quantos empregados haveria a bordo. Mais
tarde, soube que eram 16.
O chefe aproximou-se reverentemente de Big George, mostrando-
lhe uma pasta de couro com a letra "Q" pirografada. Mas este não
tomou conhecimento de sua presença.


— O que acontece, é que seu Banco anda enfrentando uns tantos
problemas — disse ele a Heyward. — E aquele caso de protesto? Já
foi tudo resolvido? Vocês estão sólidos?
— Sempre estivemos e continuamos sólidos — respondeu
Heyward.
— Isto sequer chegou a ser problema.
— Mas o mercado não pensou assim.
— E desde quando o mercado de ações é um barómetro apurado
seja lá do que for?
Big George sorriu, depois dirigiu-se à pequenina aeromoça
japonesa:
— Moonbeam. me traga a última cotação do FMA.
— Sim Sr. Q — disse a moça. E saiu.
Big George, dirigindo-se aos demais, esclareceu:
— Ela ainda não conseguiu que sua língua, acostumada ao japonês,
pronuncie Quartermain. Por isto. me chama de Sr. Q. — E
acrescentou sorrindo: — Quanto ao resto, sabe fazer, seja o que for,
na perfeição.
Rapidamente Roscoe Heyward disse:
— Os relatórios de que tomou conhecimento, relativos ao nosso
Banco, se referiam a um incidente tolo, ao qual foi dada uma
importância exagerada. Ocorreu por ocasião da troca da nossa
direção.
— É, mas vocês não se mantiveram firmes — insistiu Big George.
Deixaram que esses agitadores de rua ganhassem a causa.
Afrouxaram as calças, cederam.
— Um tanto. Para falar com franqueza, esclareço que não gostei da
decisão; fui mesmo contra ela.
— Enfrentá-los! Temos que levar esses filhos da mãe, de uma maneira
ou de outra, ao fundo do poço! Jamais ceder!
— O presidente da Supranational acabou o martíni e imediatamente
o mordomo, surgindo não se sabe de onde, substituiu o copo vazio
por outro cheio, que encaixou na mão de Big George, já estendida

para isto. A bebida estava na temperatura exata, evidenciada pelo
embaciamento do gelo no lado externo do copo.
O chefe de cozinha permanecia parado, esperando; Quartermain
continuava a ignorá-lo e a doutrinar:


— Tínhamos uma fábrica perto de Dênver. De repente começaram a
surgir problemas com os trabalhadores. Pedidos de aumento
exagerados. No começo deste ano o sindicato provocou uma greve,
a última de muitas. E eu disse ao pessoal, isto é, ao pessoal da
subsidiária que administrava a fábrica: avise a esses filhos da puta
que fecharemos a fábrica. Ninguém acreditou. Enquanto isso
fizemos estudos, planejamos mil coisas. Despachamos máquinas e
moldes para uma de nossas companhias. Esta se encarregou de
tudo. E fechamos a fábrica de Dênver. De um minuto para outro,
não havia mais a fábrica, nem empregos, nem folha de pagamento.
Logo, todos eles, operários, sindicato, a cidade de Dênver, o
governo do Estado, todos enfim, ajoelharam-se à minha frente ]
Hidndo que reabrisse a fábrica.
Ele olhou para o martíni e acrescentou com magnanimidade:
— Bem, talvez venhamos a reabri-la. Mas, então, será outra espécie
de fábrica, em outras bases, segundo meus termos. É o que eu digo:
a gente não pode se abaixar.
— Fico contente por você, George! — disse S. Exa. Harold Austin. —
Precisamos de mais gente que tome esta espécie de atitude. O
problema em nosso Banco, no entanto, é inteiramente diferente. De
certa forma, estamos ainda numa situação interina, decorrente, você
bem sabe. da morte de Ben Rosselli. Mas "a próxima primavera
muitos de nós, diretores, esperamos ver Roscoe Heyward segurar
firme no leme.
— Assim é que eu gosto! Isto é que é falar. Não gosto de lidar com
gente que não está por cima. Aqueles com os quais transaciono têm
que estar seguros, certos de poder tomar decisões, e também de
fazer com que essas decisões prevaleçam.

— Posso assegurar-lhe, George, que quaisquer decisões a que cheguemos,
serão bem recebidas pelo Banco — disse Heyward.
Toda aquela conversa levou Heyward a concluir que seu anfitrião,
de modo maquiavélico, os havia transformado, a ele e a Austin, em
pleiteantes, exatamente o oposto do papel que os banqueiros estão
habituados a desempenhar. Mas a verdade era que qualquer
empréstimo à Su-pranational não traria preocupações e capitalizaria
um enorme prestígio para o FM A. Era preciso também levar em
consideração que a operação em vista poderia ser precursora de
outras, por parte de terceiros, já que a Surjranational Corporation
era sempre um exemplo a seguir.
Big George atendeu, afinal, ao chefe de cozinha:
— Bem, e então?
O lápis vestido de branco, imobilizou-se e, a seguir, curvou-se para
seu patrão mostrando a pasta de couro que segurava há tanto
tempo.
— Trata-se do menu de almoço, Senhor; para sua aprovação.
Big George não fez nenhuma tentativa de segurar a pasta, mas leu o
cardápio e, a certa altura, parou com o dedo.
— Troque esta salada Waldorf por uma salada Caeser.
— Sim, Senhor.
— E quanto à sobremesa, nada de glacé martinique. Quero um
soufflé grand marnier.
— Certamente, Senhor.
Com um gesto Big George mandou-o embora. Mas quando o chefe
se retirava, Big George perguntou:
— E quando eu pedir um bife, como é exatamente que eu o quero?
— Senhor! — e o chefe implorava com as mãos e o rosto — já lhe
pedi desculpas duas vezes pelo incidente de ontem à noite!
— Não se preocupe com isso. Mas responda à pergunta: como é que
eu gosto de bife?

Com o seu sotaque francês e o meneio de ombros igualmente francês,
repetindo a lição que já havia aprendido e reaprendido, o chefe
respondeu:

— Sem chegar a ser bem passado, um pouco mais do que ao ponto.
— Pois lembre-se sempre disto. O chefe
exclamou em desespero:
— Como poderia esquecê-lo, Senhor? De crista baixa, retirou-se.
— Outra coisa que considero muito importante — informou Big
George para seus hóspedes — é não deixar que as pessoas consigam
nada da gente. Pago a este veado uma fortuna para que saiba
exatamente como gosto de minha comida. Ontem à noite ele se
enganou, não muito, mas o suficiente para que eu lhe estourasse as
entranhas, de modo que da próxima vez ele se lembrará; jamais se
esquecerá. — E dirigindo-se a Mo-onbeam, que regressava com um
pedaço de papel na mão, perguntou: — qual é a cotação?
Ela leu bem alto no seu inglês com sotaque.
— FMA sendo vendida no momento a 45 e três quartos.
— Como todos podem ver, subimos mais um ponto — disse Roscoe
Heyward.
— Mas ainda não atingimos o ponto em que estávamos antes que
Rosselli houvesse abotoado o paletó — disse Big George. E sorria.
— Mas não faz mal, quando voarem as notícias de que vocês vão
ajudar a financiar a Supranational, suas ações só podem subir.
De fato, isto poderia acontecer, pensava Heyward. Nesse estranho
mundo das finanças e das ações, coisas inexplicáveis ocorriam.
Talvez ' não parecesse importante que alguém emprestasse dinheiro
a alguém — mas o mercado de ações poderia julgá-lo
importantíssimo.
No entanto, o que mais importava é que Big George tinha agora
positivamente declarado que alguma espécie de transação seria
realizada entreb First Mercantile American Bank e a SuNatCo. Sem
dúvida, acertariam os detalhes durante os próximos dois dias.

Heyward sentia-se excitado ao extremo com as possibilidades que
se descortinavam.
O jato começava a diminuir a velocidade.
Avril disse:


— Oh! Washington!
Ela e as outras moças começaram a apertar os cintos de segurança
dos passageiros, com seus dedos leves e macios.
O tempo de permanência do jato em Washington foi ainda mais
curto que o da parada anterior. A impressão era de que, com
passageiros VIP, de 14 quilates, tudo se tornava mais fácil, e que
existiam prioridades para que o avião descesse, taxiasse e partisse.
Assim, em menos de 20 minutos já haviam tomado altitude outra
vez, a caminho das Bahamas.
O vice-presidente já estava instalado por sua morena, Krista, que
cuidava dele com exclusividade, coisa que ele evidentemente
aprovava.
Os homens do serviço secreto, responsáveis pela sua segurança,
encontravam-se acomodados mais para o fundo do avião.
Pouco depois, Big George Quartermain, envergando uma elegante
roupa de seda pura bege, guiava os hóspedes até a sala de refeições
ricamente decorada e onde predominavam as cores azul-rei e prata.
Lá, os quatro homens, sentados em volta de uma mesa de carvalho
com candelabro de cristal, e tendo Moonbeam, Avril, Rhetta e Krista
postadas atrás de cada um deles, almoçaram, em grande estilo,
iguarias que os melhores restaurantes do mundo teriam dificuldade
em igualar.
Heyward, enquanto degustava os vários pratos, não partilhava dos
vinhos, nem do conhaque de 30 anos servido no final. Mas não
deixara de observar que os copos de conhaque, pesados, com barra
de ouro, em vez de trazerem o tradicional e decorativo "N" de
Napoleão, ostentavam um
"Q".


7


O sol brilhava num céu azul sem mácula, sobre o verde do campo
de golfe do Fordly Cay Club, nas Bahamas. O luxuoso clube estava
entre a meia dúzia dos mais selecionados do mundo.
Ao longo do campo, uma praia de areia branca, imaculada, cercada
de palmeiras, deserta, estendia-se como se fosse um pedaço do
paraíso. Um mar translúcido, cor de turquesa, batia na areia em
pequenas marolas. Cerca de 500 metros da areia, uma série de
arrecifes de coral completava o encanto da paisagem.
Próximo, o mais elaborado e exótico arranjo de plantas — hibiscos,
buganvílias, bicos-de-papagaio, jasmins — competiam no colorido
desafiador de suas flores. O ar claro, fresco, trazia uma brisa
agradável, com um vago perfume de jasmim.

— Pensando bem, acho que isso é o mais perto que alguém pode
chegar do paraíso, mesmo um político — disse o Vice-Presidente
dos Estados Unidos da América do Norte.
— Minha idéia de paraíso — disse S. Exa. Harold Austin — não
incluiria slicing. Deve haver uma maneira melhor de se praticar este
jogo.
Os quatro estavam jogando em dupla — Big George e Roscoe Heyward
contra Harold Austin e o Vice-Presidente.
— O que você deveria fazer. Harold — disse o Vice-Presidente, Byron
Stonebridge — seria reingressar no Congresso, e então chegar à
sua meta. Atingida esta, não teria mais nada a fazer senão jogar
golfe: teria todo o tempo livre que desejasse e melhoraria seu jogo.
Trata-se de um fato histórico conhecido universalmente: quase
todos os vice-presidentes da última metade do século deixaram seus
cargos jogando golfe bem melhor do que quando deles tomaram
posse.
Como se para confirmar suas próprias palavras, momentos depois
ele deu sua terceira tacada, um lindo ferro oito, reto para a bandeira.

Magro e ágil, Stonebridge tinha movimentos rápidos. Naquele dia
estava jogando de maneira espetacular. Começara a vida como
fazendeiro, ou melhor, filho de fazendeiro, e trabalhara durante
longo tempo na pequena propriedade da família. Graças a isso,
mantivera no correr dos anos o corpo musculoso e vigoroso.
Naquele momento, sua bola rolou até a uns 30 centímetros do
buraco.

— Nada mau — disse Big George. — Pelo que vejo, Washington de
fato não o mantém demasiadamente ocupado, hein, By?
— Bem, acho que não tenho do que me queixar. No mês passado
estudei um resumo dos recortes sobre administração. E transpira na
Casa Branca que talvez eu venha a ter oportunidade de baixar por lá
muito em breve.
Os outros riram entre si, duvidando um pouco. Não era segredo algum,
para ninguém, que Stonebridge, ex-governador de Estado, exlíder
da minoria do Senado, estava impaciente, irrequieto em seu
atual papel. Antes das eleições que o levaram à vice-presidência, o
candidato à Presidência tinha declarado que seu vice-presidente
teria, depois de Water-gate, um posto significativo, bastante
importante e ativo no governo. A era Watergate-Nixon-Agnew
acabara. Mas, como sempre, depois que tomam posse os presidentes
esquecem as promessas.
Heyward e Quartermain se esforçavam no campo verde do golfe,
depois esperavam a vez de Stonebridge e durante todo o tempo
riam, brincavam e até mesmo jogavam.
Os quatro homens juntos faziam um grupo bem eclético. G. G.
Quartermain, sobressaindo ao lado dos demais, vestia imaculada e
dispendiosamente slacks irrepreensíveis, cardigan Lacoste e sapatos
azuis Foot-Joys. Usava ainda um quepe com o emblema do grã-fino
Fordly Cay Club, elegantíssimo.
O vice-presidente vestia-se de maneira tradicional: slacks de malha
dupla, blusa de cor suave e sapatos de golfe em preto e branco. O
contraste dramático era dado por Harold Austin, vestido


absolutamente à vontade em rosa vivo e mostarda. Roscoe
Heyward trajava à maneira clássica: calças cinza-chumbo, camisa
branca de mangas curtas e sapatos leves, pretos. Até mesmo num
campo de golfe Roscoe conseguia manter sua indefectível aparência
de banqueiro.

Fizeram tremendo progresso depois do primeiro tee. Big George e
Heyward partilhavam de um carrinho de golfe, elétrico.
Stonebridge e S. Exa. Harold Austin ocupavam outro. Mais seis
carrinhos elétricos haviam sido requisitados pelo serviço secreto de
segurança do Vice-Presidente, cujos integrantes o acompanhavam
por toda parte, de um lado para outro, como o esquadrão de um
destróier.

— Se você tivesse livre escolha, By, nas livre escolha mesmo para
estabelecer as prioridades do governo, quais seriam elas? —
perguntou Roscoe Heyward.
Ontem, Heyward havia-se dirigido a Stonebridge de maneira
formal como "Senhor Vice-Presidente", mas este lhe dissera:
— Esqueça todas as formalidades; me cansam demais. Logo perceberá
que respondo muito melhor quando me chamam de By.
Heyward, que adorava dirigir-se às pessoas importantes pelos prenomes,
sentiu-se verdadeiramente encantado. Stonebridge
respondeu:


— Se eu tivesse livre escolha, me concentraria no aspecto econômico;
tentaria restaurar a sanidade fiscal, trazendo o país a uma
economia mais equilibrada.
G. G. Quartermain, que ouvia atento, disse:
— Alguns poucos bravos tentaram o que você quer, By. Todos falharam.
E creio que você chegou muito tarde.
— Tarde sim, George, mas não tarde demais.
— Debateremos este assunto depois das nove. No momento minha
primeira prioridade é dar um jeito nesta bola.

Desde que o jogo começara, Quartermain tinha-se mantido muito
mais calmo que os outros, mas mesmo assim sentia-se que estava
tenso. Seu handicap era abaixo de três, e ele sempre jogava para
ganhar. Ganhar ou empatar dava-lhe tanto prazer (era o que ele
dizia) quanto adquirir uma nova companhia para a Supranational.
Heyward jogava com muita competência e com sua atuação, se não
era espetacular, pelo menos não fazia má figura.

Enquanto os quatro se dirigiam em seus carrinhos para o sexto tee,
Big George disse:

— Roscoe, ponha seus olhos de banqueiro nos escores desses dois.
Não é coisa comum a um político ou a um homem de propaganda
serem absolutamente cuidadosos em tais assuntos.
— Meu status exige que eu ganhe — disse o Vice-Presidente. — Seja
lá como for.
— Não se preocupe, estou anotando os pontos. — Roscoe Heyward
tocou na testa. — Está tudo aqui dentro. No número um, George e
By fizeram quatro, Harold seis, e eu tive um bogey. Todos nós
fizemos par nos dois, exceto By com aquele incrível birdie. Claro,
Harold e eu também tivemos net birds lá. Todos ficamos quites, com
exceção de Harold; porque ele conseguiu seis. No quarto buraco
tivemos sorte. Quatro para George e eu, cinco para By, sete para
Harold. E, claro, o último buraco foi um verdadeiro desastre para
Harold, mas então seu parceiro conseguiu outro birdie. Somando
tudo, no que se refere a esta partida, estamos absolutamente quites.
Byron Stonebridge olhou para ele.
— Não é possível! Não admito.
— Você me entendeu mal quanto àquele primeiro buraco — disse
Harold. — Eu fiz um cinco não um seis.
Heyward disse de maneira firme:
— Não. Harold. Lembre-se, você fez o que pôde, bateu a madeira
antes do green, deu um chip longo e dois putts.

— Ele tem razão — confirmou Stonebridge. — Lembro-me muito
bem.
— Bolas, Roscoe, você afinal é amigo de quem? — resmungou Harold
Austin.
— Amigo meu, graças a Deus! — disse Big George. E passou o braço
por sobre os ombros de Heyward. — Estou começando a gostar de
você, Roscoe, em especial do seu handicap! — Diminuindo o tom de
voz, Big George perguntou a Heyward: — Correu tudo bem ontem
à noite?
— Da maneira mais satisfatória, obrigado. Gostei da viagem, da
noite, e dormi maravilhosamente bem.
Ele não dormira bem, para início de conversa. Durante a noite da
véspera, na mansão das Bahamas de G. G. Quartermain tornara-se
evidente que Avril, a esguia e linda ruiva, estava a sua disposição,
em todos os sentidos. Isto tornou-se claro tanto por insinuação dos
outros quanto pela proximidade cada vez maior da moça durante o
dia e à noite. Ela não perdera uma só oportunidade de chegar-se a
Heyward, de modo que às vezes seus cabelos macios roçavam-lhe o
rosto e, ao menor pretexto, chegava mesmo a encostar-se nele. E,
conquanto ele não a encorajasse, também não se opusera a essas
intimidades.
Era também claro que a maravilhosa Krista estava à disposição de
Byron Stonebridge e a linda loura Rhetta à disposição de Harold
Austin.
A esquisita e bela japonesa Moonbeam encontrava-se sempre ao
lado de G. G. Quartermain.
A mansão de Quartermain nas Bahamas, uma da meia dúzia de
propriedades da diretoria da Supranational em vários países,
localizava-se em Prospero Ridge, acima de Nassau, com vista
panorâmica para a cidade e o mar. A casa localizava-se num terreno
cercado de altos muros de pedra. O quarto de Heyward ficava no
segundo andar, para onde Avril o levara à chegada, com a maior
gentileza. Dali, através das árvores, ele lobrigava a mansão do

vizinho mais próximo, o primeiro-ministro, cuja intimidade era
sempre protegida pela polícia local.
No final do dia eles começaram a beber ao lado da piscina cercada
de colunas. Seguiu-se o jantar, servido no terraço, ao ar livre, à luz
de velas. Desta vez as moças, que haviam trocado de roupa,
estavam vestidas de maneira mais sofisticadas e sentaram-se com os
homens à mesa. Garçons de luvas brancas andavam de um lado
para o outro, enquanto dois músicos davam o necessário toque
romântico. Tudo corria bem; a companhia e a conversa.
Após o jantar, o Vice-Presidente Stonebridge e Krista resolveram
ficar na casa; os outros resolveram entrar nos três Rolls Royces (que
já os esperavam desde o aeroporto de Nassau) e dirigiram-se ao
cassino de Paradise Island. Lá, Big George jogou alto, e dava a
impressão de estar ganhando. Austin jogava de maneira comedida,
e Roscoe Heyward, é claro, não jogava. Ele não aprovava o jogo,
mas estava interessadíssimo nas explicações de Avril sobre o chemin
de fer, a roleta e o blackjack, tudo novo para ele. Devido ao murmúrio
das conversas, Avril aproveitava a oportunidade para manter o
rosto bem perto do dele enquanto falava e. como antes no avião,
Heyward não achava a sensação nada desagradável.
Mas. de repente, de maneira desconcertante, seu corpo começou a
tomar maior conhecimento da presença de Avril, de tal modo que
idéias e sentimentos que considerava repreensíveis avolumavam-se
dentro dele, embora, honestamente, procurasse bani-los do
pensamento.
Sentia que Avril se divertia ao perceber aquela luta que ele não conseguia
evitar. Finalmente, ao levá-lo até a porta do seu quarto, às
duas da manhã, foi com o maior dos esforços, mesmo porque ela se
mostrava muito dócil, que ele não a convidou para entrar.
Antes de se despedir, Avril disse sorrindo:

— Ao lado de sua cama existe um interfone. Se houver qualquer coisa
que queira, aperte o botão número sete e.logo estarei aqui. — Desta

vez não havia dúvida do que qualquer coisa significava. E o número
sete, parece, era o número de código referente a Avril.
Sem que Heyward soubesse explicar por que, sua voz se tornara
mais rouca e sua língua parecia maior que a boca. Foi com
dificuldade que murmurou:

— Obrigado; boa noite.
Mas, ao entrar no quarto, seu conflito íntimo recomeçou. Ao tirar a
roupa, seus pensamentos voltavam-se para Avril e percebeu com
lástima que seu próprio corpo minava sua força de vontade, coisa
que há muito tempo não lhe acontecia assim espontaneamente.
Então, ajoelhou-se e rezou para que Deus o protegesse contra o pecado
e o livrasse da tentação. Parece que. após um certo tempo, suas
orações foram atendidas, o corpo foi-se distendendo e, mais tarde,
ele dormia.
Agora, enquanto se dirigiam para a linha do buraco seis, Big George
disse-lhe:


— Olha aqui companheiro, talvez hoje à noite, se você quiser, eu
possa lhe mandar Moonbeam. Um homem realmente não pode
imaginar as coisas que ela sabe fazer.
Heyward sentiu-se corar. Mas decidiu ser firme.
— George, estou adorando sua companhia e gostaria de manter sua
amizade. Mas preciso lhe dizer que em certas áreas nossas idéias
divergem.
Big George perguntou:
— Exatamente em que áreas?
— Eu queria dizer, nas áreas relativas à moral.
Big George pensou um pouco e seu rosto enrijeceu. Afinal, perguntou:
— Moral... o que vem a ser isto? — Parou o seu carrinho exatamente
quando Harold se preparava para sair da banca de areia à sua
esquerda. — Bem, Roscoe, faça como quiser. Apenas me participe,
caso mude de idéia.

Apesar da firmeza de sua resolução, durante as duas horas
seguintes Heyward se deu conta de que seu pensamento não se
dirigia a mais nada senão à frágil e sedutora garota japonesa.
No final de nove buracos, lanai, Big George voltou a argumentar
com Byron Stonebridge.
— O governo dos Estados Unidos, assim como outros governos —
declarou ele — estão sendo dirigidos por aqueies que não sabem ou
não querem saber os princípios da Economia. Esta é a razão, a única
razão pela qual estamos enfrentando uma espiral inflacionária, com

o sistema monetário universal caindo aos pedaços. Por isso, tudo o
que se refere às finanças só tende a piorar.
— Concordo com você até certo ponto — disse Stonebridge. — Da
maneira como o Congresso está gastando dinheiro, qualquer pessoa
pensaria que a fonte é inexaurível. Nós supostamente temos pessoas
esclarecidas, na Câmara e no Senado, que supõem que, para cada
dólar que entre, pode-se emitir quatro ou cinco.
Com impaciência, Big George disse:
— Isso qualquer homem de negócios sabe. Todos têm conhecimento
disso há uma geração. Mas a questão atual não é saber se a
economia americana entrará em colapso, mas quando.
— Não estou de fato convencido de que ela tenha que entrar em
colapso. Acho que ainda poderíamos evitá-lo.
— Poderíamos, mas não evitaremos. O socialismo, que está ganhando
dinheiro em quantidades que não temos nem jamais
teremos, possui raízes profundas demais. Então chega o ponto em
que o governo perde o crédito. Alguns tolos pensam que isto jamais
acontecerá: mas não estou entre eles.
O Vice-Presidente suspirou:
— Claro que. em público, eu repudiaria a verdade que você acaba
de dizer. Mas aqui, cá entre nós, em particular, de fato não posso.
— O que vai acontecer a seguir — disse Big George — é fácil de
predizer. É mais ou menos o que aconteceu com o Chile. Muita
gente pensa que o Chile é algo muito diferente e remoto. É um

modelo, em pequena escala, dos Estados Unidos da América, do
Canadá e da Inglaterra.

S. Exa. Harold Austin aventurou:
— Concordo com você no que se refere à seqüência. Primeiro uma
democracia sólida, reconhecida pelo mundo inteiro, e eficiente.
Depois o socialismo, sutil de início, mas aumentando sua força aos
poucos. Dinheiro desperdiçado de maneira desbragada até que
nada reste. Depois disto, a ruína financeira, a anarquia, e finalmente
uma ditadura.
— Com franqueza, não acredito que cheguemos a tal ponto — disse
Byron Stonebridge.
— Não precisaríamos chegar a tanto — disse Big George. — Não, se
alguns de nós, com inteligência e poder, conseguirmos prever e
planejar. Então, quando o colapso financeiro chegar aos Estados
Unidos, teremos dois braços fortes que nos evitarão a anarquia total.
Um estará representado pelos grandes negócios. Por grandes
negócios quero me referir à série de companhias multinacionais,
como a minha, com grandes bancos como o seu e outros. Roscoe.
que poderiam reger o país financeiramente, exercendo uma
disciplina fiscal. Nós estaríamos em estado de solvência devido a
uma operação internacional: então teríamos posto todos nossos
recursos próprios onde a inflação não conseguiria engoli-los. O
outro braço forte seriam os militares e a polícia. Em conjunto com os
grandes negócios manteriam a ordem necessária. O Vice-Presidente
disse secamente:
— Em outras palavras: um estado policial. Mas você poderia encontrar
oposição.
Big George deu de ombros.
— Talvez alguma; mas não muita. O povo acaba aceitando o inevitável.
Em especial quando a democracia, a assim chamada
democracia, caiu aos pedaços, o sistema monetário falhou, e o poder
aquisitivo individual chegou a zero. Além disso, os americanos não

acreditam em instituições democráticas; não mais. Vocês, políticos,
as minaram.
Roscoe Heyward mantivera-se calado, apenas ouvindo. Depois,
disse:


— O que você está prevendo. George, é uma extensão do atual
complexo militar-industrial a ponto de convertê-lo num governo de
elite.
— Exatamente! Um complexo industrial-militar, prefiro dizer dessa
maneira, está-se tornando cada vez mais forte à medida que a
economia americana enfraquece. E nós temos organização. Meio
fraca, ainda, mas que se vai fortalecendo.
— Eisenhower foi o primeiro a reconhecer a estrutura militar-
industrial — disse Heyward.
— E a alertar todos contra ela — acrescentou Byron Stonebridge.
— De fato — concordou Big George. — E outros idiotas como ele!
Pelo amor de Deus, vocês não acham que Ike. pelo menos ele,
deveria ter compreendido a força que isto podia representar?
O Vice-Presidente tomou um gole do seu Plater's Punch.
— Isto, claro, é aqui entre nós. Mas eu também acho, também concordo.
— E eu diria que você seria a pessoa que poderia estar a nosso lado
— assegurou Big George.
Harold Austin perguntou:
— Quanto tempo, George, você acredita que ainda nos resta?
— Bem, os próprios técnicos dizem que nos restam oito a nove anos.
Já então, será inevitável o absoluto colapso do sistema monetário.
— O que me agrada, a mim, como banqueiro — disse Roscoe Heyward
— é a idéia da existência, afinal, de disciplina, em matéria de
finanças e de governo.
Ao que G. G. Quartermain, assinando a nota das bebidas,
respondeu:
— E nós todos a teremos. Isto eu lhes prometo.
Dirigiram-se ao décimo tee.

Big George, dirigindo-se ao Vice-Presidente disse:
—By você está jogando muito bem: aproveite a oportunidade.
Ponha a bola no tee e então vamos ver. pelo menos no golfe, alguma
disciplina e alguma economia. Você está apenas um número acima e
ainda temos nove buracos para cobrir.
Big George e Roscoe Heyward esperavam enquanto Harold Austin
estudava sua posição em relação ao décimo quarto buraco. Após
apuradas pesquisas, um homem do serviço secreto localizara sua
bola escondida numa touceira de hibiscos. Big George acalmara-se
bastante desde que ele e Heyward haviam avançado mais dois
buracos, estando agora um à frente. De repente, o assunto que
Heyward aguardava desde o começo da viagem surgiu. E surgiu
como que por acaso.

— Então o seu Banco gostaria de fazer negócios com a Supranational?
— Bem, foi uma possibilidade que abordamos — Heyward tentava
ser tão casual quanto Big George.
— Estou estendendo as comunicações estrangeiras das propriedades
da Supranational, adquirindo o controle de companhias de
comunicações, telefônicas ou de rádio, companhias menores.
Algumas, de propriedade do governo, outras, de particulares.
Claro, estamos agindo em sigilo, pagando aos políticos quando
necessário. Desta maneira evitamos um estardalhaço nacional. A
Supranational conta com uma tecnologia avançada, um serviço
eficiente, com os quais os pequenos países simplesmente não
podem arcar, e ainda contamos com um acoplamento de padronização
global. Para nós, esperamos um grande lucro. Em mais
três anos teremos todo o controle, através de nossas subsidiárias, de
cerca de 45 por cento dos acoplamentos de comunicação, em todo o
mundo. Ninguém jamais chegará perto de nós. É importante para a
própria América; será vital uma espécie de vinculação industrial-
militar sobre a qual falamos há pouco.

— Posso bem ver a extensão do que você quer dizer — concordou
Heyward.
— De seu Banco nós vamos querer uma linha de crédito de 50 milhões
de dólares. Evidentemente, preferencial.
— Sem dúvida. O que pudéssemos conseguir seria preferencial.
Heyward já sabia que qualquer empréstimo à Supranational seria
dentro da melhor taxa de juros do Banco. Em matéria bancária, era
axiomático: os clientes mais ricos pagavam sempre os menores
juros; os maiores eram sempre pagos pelos mais pobres.
— O que teríamos que rever — disse ele — seria a nossa limitação
legal, como Banco, segundo a lei federal.
— Limite legal, uma ova! Bem sabe que há maneiras de contorná-lo,
métodos que são usados todos os dias, você sabe tão bem quanto
eu.
— Concordo, estou inteiramente a par dessas técnicas — disse
Heyward.
Ambos se referiam, embora de modo velado, mas bastante claro
para ambos, ao fato de que a lei proibia a qualquer banco emprestar
mais que dez por cento do seu capital e de seus excedentes pagos, a
um único devedor. O propósito era uma certa proteção contra uma
falência bancária e também contra perdas, no que se referia aos
depositantes. No caso do First Mercantile American Bank, um
empréstimo de 50 milhões de dólares à Supranational excederia este
limite de modo substancial.
— A maneira de contornar essa regulamentação — disse Big George
— é vocês dividirem o empréstimo entre nossas companhias
subsidiárias. Nós então o redistribuiremos onde e quando
necessário.
Roscoe Heyward anuiu:
— Poderia ser feito dessa maneira.
Ele tinha pleno conhecimento de que a proposta violava, em si, o
espírito da lei, embora tecnicamente a respeitasse. Também sabia
que as palavras de Big George espelhavam a verdade: tais métodos

eram empregados todos os dias pelos maiores e mais influentes

bancos.
No entanto, mesmo com esse problema contornado, o volume do
compromisso proposto o assustava um pouco. Tinha pensado em
cerca de 20 ou 25 milhões de dólares, de início. Talvez com este
montante aumentando à medida que o relacionamento entre a
Supranational e o Banco se desenvolvesse.
Como se estivesse lendo seu pensamento, Big George disse:

— Eu, por mim, nunca lido com pequenas importâncias. Se 50 milhões
de dólares é mais do que vocês podem transacionar sem
problemas, esqueçamos toda a conversa. Eu me transfiro para o
Chase.
O negócio importante, pelo qual Heyward tinha vindo até ali para
conseguir, de repente pareceu estar-lhe fugindo das mãos. Ele
retrucou com ênfase:
— Não, não! Não é demasiado; de forma nenhuma! Mentalmente
passou em revista outros compromissos do FMA.
Ninguém os conhecia melhor que ele. Claro, os 50 milhões para a
Su-natCo poderiam ser manejados. Mas isso requereria uma
mudança interna. Significaria, na prática, cortar os empréstimos
menores e as hipotecas, mas ainda isto ele podia controlar. Porque,
evidentemente, um simples empréstimo, embora grande, para um
cliente como a Supranational seria muitíssimo mais lucrativo que
uma lista de empréstimos pequenos, cujo processo era custoso,
inclusive o reembolso.
— Pretendo recomendar, com todo meu empenho, que esta linha de
crédito seja aceita pela diretoria, pela assembléia e pelo conselho —
disse Heyward com firmeza — e tenho certeza de que todos
concordarão.
Seu companheiro de golfe limitou-se a dizer:
— Ótimo.

— Claro, minha posição ficaria mais forte se eu pudesse informar
aos diretores que teríamos um representante do Banco no Conselho
da Supranational.
Big George dirigiu o carrinho de golfe em direção à bola, estudando
sua posição e depois respondeu:
— Isto é coisa que a gente podia providenciar. Eu estava esperando
que o seu Departamento de Custódia quisesse investir maciçamente
em nossas ações. Acho que é o momento de uma aquisição nova
empurrar a cotação para cima.
Sentindo sua confiança aumentar, Heyward disse:
— O assunto poderia ser mais aprofundado, em conjunto com outros.
Evidentemente a Supranational passará a ter uma conta
bastante ativa conosco agora e, claro, existe sempre a questão de um
equilíbrio estável, compensador...
O que eles estavam fazendo, Heyward sabia, era aquele ritual da
dança banqueiro-cliente. O que, na prática, simbolizava um fato,
uma evidência da vida bancária: o "toma-lá, dá-cá".
G. G. Quartermain disse então:
— Por favor não me dê pormenores. O homem que cuida das
minhas finanças, Inchbeck, chegará hoje, e voltará de avião amanhã.
Você e ele poderão discutir os detalhes.
E assim, rapidamente, esta breve e sucinta sessão de negócios deu-
se por encerrada.
Já nesta altura o jogo excêntrico de Harold parecia enervar seu parceiro.
E Byron Stonebridge disse, queixando-se:
— Você está me dando dores de cabeça. — Em seguida acrescentou:
— Dane-se, Harold, você é quase tão contagioso quanto varíola.
Qualquer pessoa que seja seu parceiro deve ser vacinado.
E fosse qual fosse a razão, os balanceios, os lances e o equilíbrio do
Vice-Presidente começaram a perder a classe.
Uma vez que Austin não melhorara suas tacadas, mesmo com a repreensão,
Roscoe continuava à frente. Isso favoreceu a G. G.

Quartermain e ele conseguiu cerca de 270 jardas na saída do buraco
18 e então tentou fazer o birdie.
Big George sentia-se alegre pela vitória e passava a mão pelos ombros
de Byron Stonebridge.


— Tenho impressão de que, agora, meu crédito em Washington está
melhor do que antes.
Chegando ao vestiário, onde cada um tinha seu armário, Harold
Austin e Stonebridge pagaram, cada um, 100 dólares a G. G.
Quartermain, conforme aposta que haviam feito antes da partida.
Heyward discordara, e, portanto, nada teve que pagar.
Mas foi o próprio Big George que disse, com sua maneira generosa:
— Gostei da sua maneira de jogar, sócio. — E dirigiu-se aos outros.
Acho que Roscoe devia ganhar uma espécie de prêmio. Que acham
vocês?
Como ambos, claro, aquiesceram, Big George, batendo em seu próprio
joelho, disse:


— Já sei como recompensá-lo! Um lugar no conselho da Supranational.
Heyward, o que você me diz disto como prêmio?
Heyward sorriu:
— Claro, você está brincando.
Por um instante, o presidente da SuNatCo ficçu sério.
— Jamais brinco em assuntos da Supranational.
Foi então que Heyward deu-se conta de que esta era a maneira de
Big George confirmar a conversa que haviam mantido.
Certamente, se ele aceitasse, isto significaria a aceitação de outros
compromissos, de outras obrigações...
Mas Heyward hesitou apenas por poucos segundos.
— Se você de fato está falando sério, ficaria encantado em aceitar.
— Será anunciado na próxima semana.
A oferta fora tão rápida e tão surpreendente que Heyward ainda
tinha dificuldade em acreditar. Ele esperava que qualquer outro do
First Mercantile American Bank pudesse vir a ser convidado a
participar da assembléia da diretoria da Supranational. Mas ser ele

próprio o escolhido, e por G. G. Quartermain em pessoa, era a honra
das honras. O conselho da SuNatCo, como estava formado agora,
fazia parte do Who's Who dos negócios, dos meios bancários e dos
meios financeiros.
Como se estivesse lendo em sua mente, Big George riu-se.


— Entre outras coisas, você vai ter que manter um olho vivo no que
se refere ao dinheiro do seu próprio Banco.
Heyward sentiu que Harold o olhava de maneira inquisitiva.
Quando Heyward fez que sim com a cabeça, o rosto de seu
companheiro, diretor do FM A, brilhou de alegria.
8


A segunda noite na mansão de G. G. Quartermain foi muito diferente
da primeira. Era como se as oito pessoas presentes, os homens
e as moças, partilhassem de uma natural intimidade que faltara na
noite anterior. Roscoe Heyward, consciente dessa diferença, julgava
saber os motivos.
A intuição lhe dizia que Rhetta passara a noite anterior com Harold
Austin e Krista com Byron Stonebridge. Mas ele esperava que os
dois não acreditassem que o mesmo tivesse acontecido com ele e
Avril. Tinha certeza de que seu anfitrião sabia que não. Os
comentários que fizera pela manhã assim o indicavam,
provavelmente porque Big George mantinha-se informado sobre
tudo que ocorria em sua casa.
Mas, sem dúvida, a reunião da noite — mais uma vez em volta da
piscina, no terraço, à hora do jantar — fora muito interessante, em
especial para ele próprio. Assim, Heyward permitiu-se ser natural,
sem sarcasmo, como um alegre integrante do grupo.


Aliás, ele estava gozando, de fato, das atenções contínuas, ininterruptas
de Avril, que não mostrava nenhum sinal de ressentimento
por ter sido rejeitada na noite anterior. Uma vez que ele havia
provado a si mesmo que podia resistir à sedução da moça, não via
razão para negar-se a companhia agradável de Avril, agora.
Existiam ainda mais dois motivos para sua euforia: a perspectiva
dos negócios entre a Supranational e o First Mercantile American
Bank e o troféu inesperado, estonteante, do cargo que ocuparia na
assembléia da SuNatCo. Ele não tinha dúvidas de que ambos os
fatos muito aumentariam seu prestígio no Banco. Sua ascensão à
presidência parecia tornar-se cada vez mais próxima.
Pouco antes, tivera uma reunião rápida com o tesoureiro da
Supranational, Stanley Inchbeck, que tinha chegado, conforme Big
George anunciara. Inchbeck era um alvoroçado careca novaiorquino
e tanto ele quanto Heyward conseguiram acertar os
detalhes do empréstimo da SuNatCo a serem ultimados no vôo de
volta. Afora esta rápida reunião com Heyward, Inchbeck
praticamente passara o tempo todo a sós com G. G. Quartermain.
Talvez ele estivesse em alguma parte da casa, mas não apareceu
para o aperitivo ou para o jantar.
E de sua janela, Roscoe, que não perdia tempo, pôde observar que

G. G. Quartermain e Byron Stonebridge passeavam pelo gramado
durante muito tempo, quase uma hora, numa conversa séria. Claro,
eles estavam longe demais para que qualquer coisa que dissessem
pudesse ser ouvida, mas tudo indicava que Big George falava de
maneira persuasiva com o Vice-Presidente, sendo interrompido às
vezes, com perguntas. Heyward de repente se lembrou do
comentário da manhã, no campo de golfe, a respeito de "um balanço
de crédito equilibrado em Washington". Procurava calcular quais
dos múltiplos interesses da Supranational estariam sendo
discutidos. Mas concluiu que jamais poderia saber.

Agora, após o jantar ao ar livre, Big George tornara-se outra vez o
perfeito anfitrião. Balançando o copo de conhaque, que trazia o
brazão "Q", ele disse:

— Hoje não faremos excursões; teremos uma festa só nossa, aqui
mesmo.
O mordomo, os garçons e os músicos já haviam se retirado discretamente.
Rhetta e Avril, que tinham bebido bastante champanha,
exclamaram:
— Uma festa aqui!
By Stonebridge elevou a voz para indagar:
— Que espécie de festa?
— Uma festa barra pesada! — disse Krista, tentando fingir que bebera
além da conta. — Não, não é bem isto; quero dizer, é uma festa
na piscina! Eu quero nadar!
Stonebridge desafiou-a:
— E o que a impede?
— Nada, By, querido! Absolutamente nada!
E com uma série de movimentos rápidos Krista deixou de lado sua
taça de champanha, chutou os sapatos, desapertou e deixou cair ao
chão seu longo e lindo vestido verde. Despiu também a anágua, que
não tinha mais nada por baixo.
Nua, sorrindo, o corpo perfeito, busto firme e longos cabelos pretos,
ela parecia ter saído de uma tela de Renoir. E assim Krista andou,
com a maior dignidade, saindo do terraço e descendo passo a passo
em direção à piscina iluminada, onde mergulhou. Nadou até a outra
borda, depois voltou e chamou as outras:
— Está divino! Venham!
— Por Deus! — disse Stonebridge. — Acho que também vou participar.
Tirou a camisa, as calças e sapatos, e tão nu quanto Krista,
desceu os degraus e mergulhou. Moonbeam, com aquele fugidio
sorriso japonês, e Rhetta, já estavam se despindo.

— Esperem! — disse Harold Austin — Também vou com vocês.
Roscoe Heyward, que estava observando Krista com um misto de
choque e fascinação, percebeu que Avril estava bem a seu lado. Ela
pediu-lhe:
— Rossie, docinho, abra meu zíper. E virou-se de costas.
Com a sua falta de jeito, ele tentou abrir o fecho, ainda sentado na
cadeira.
— Levante-se, seu bobo — disse Avril sorrindo. E quando ele se
levantou, com a cabeça inclinada, ela aproximou-se ainda mais e
Heyward pôde sentir todo seu calor e sua fragrância.
— Como é, já acabou?
Ele enfrentava uma tremenda dificuldade em concentrar-se no
fecho.
— Não, acho que estou...
Habilmente, Avril tentou alcançar o ziper existente na parte anterior
do vestido.
— Aqui, agora me ajude.
Ele tentou ajudar, mas a moça acabou por abrir sozinha o fecho até
embaixo. Com um meneio de ombros, o vestido caiu-lhe aos pés.
Ela sacudiu o cabelo vermelho, num gesto que Heyward já conhecia
bem.
— Agora, o que você está esperando? Desabotoe meu sutiã.
As mãos dele tremiam; seus olhos corriam por todo aquele corpo,
enquanto tentava fazer o que a moça pedira. O sutiã caiu, mas não
suas mãos.
Com um movimento rápido, gracioso. Avril rodou em torno de si
mesma. Inclinou-se para Heyward e beijou-lhes os lábios. Sem que
soubesse como, suas mãos seguravam os bicos dos seios da moça e
seus dedos que pareciam ter vida própria, fechavam-se em concha.
Ondas elétricas, sensuais, passaram através dele.
— Hum — suspirou Avril. — Gostoso. Você vem nadar comigo? Ele
sacudiu a cabeça.
— Então nos veremos mais tarde.

Ela se afastou, andando como uma deusa grega em sua nudez, e
juntou-se aos outros cinco que já pulavam e brincavam na piscina.

G. G. Quartermain permanecera sentado numa cadeira afastada da
mesa de jantar. Bebericava seu conhaque.
Olhando com malícia para Heyward ele disse:
— Também não sou muito dado à natação. Embora, vez por outra,
se a gente tem certeza de estar entre amigos, é bom para um homem
deixai-se largar um pouco.
— Também acho e, por certo, me sinto entre amigos.
Heyward afundou-se em sua cadeira, retirou os óculos e começou a
poli-los. Agora, já estava senhor de si. Aquele instante de fraqueza
já passara. E ele continuou:
— O problema é que, às vezes, a gente passa um pouco da conta.
Mas se a gente consegue manter o controle é o que importa.
Big George bocejou com sono.
Enquanto eles conversavam, os demais, já fora da água,
enxugavam-se uns aos outros e vestiam roupões que haviam sido
postos precisamente ao lado da piscina.
Cerca de duas horas mais tarde, como fizera na noite anterior, Avril
acompanhou Roscoe Heyward até a porta de seu quarto. Ainda no
andar de baixo, ele resolvera insistir para que a moça não o
acompanhasse. Depois mudou de idéia, confiante em sua força de
vontade e certo de que, agora, jamais cederia a qualquer impulso
erótico. Sentiu-se até seguro o bastante para dizer em tom de
brincadeira:
— Boa noite, menina. E, antes que você repita, sei que seu número
no interfone é sete, mas posso lhe assegurar que não vou precisar de
nada.
Avril, com um sorriso enigmático, olhara-o e fora-se embora. A seguir,
ele trancou a porta do quarto, cantarolando alegremente
enquanto se preparava para dormir.

Mas, na cama, o sono fugiu-lhe. Ficou acordado quase uma hora,
cobrindo-se e descobrindo-se, sentindo a suavidade da roupa de
cama. Através da janela aberta, podia ouvir o suave zumbido dos
insetos e. ao longe, o som das ondas na praia.
Apesar de suas melhores intenções, seu pensamento era apenas um:
Avril:


Avril... como ele vira e tocara... linda, bela, nua e desejável. Instintivamente
ele moveu os dedos, como que para livrar-se da sensação
daqueles seios firmes, cheios.


E seu corpo reagia... tornava-se túrgido, zombando de sua
pretendida virtude.
Em vão procurava desviar o pensamento para outras direções:
negócios do Banco, empréstimo à Supranational, o cargo que G. G.
Quartermain lhe dera... Mas Avril ali estava em sua memória, cada
vez mais insistente. Era impossível eclipsá-la. Lembrava-se das
pernas longas, das coxas, dos lábios, do sorriso macio, de seu calor e
de seu perfume... e de sua disponibilidade.
Levantou-se e começou a andar pelo quarto, tentando dirigir as
emoções para qualquer outro ponto, a fim de gastá-las.
Chegando-se à janela, viu a beleza da Lua. Envolvia o jardim, a
praia e o próprio mar numa luz etérea. Ao observar toda esta
beleza, veio-lhe à lembrança uma frase há muito tempo esquecida:


A noite foi feita para o amor... à luz da lua.

Recomeçou a andar de um lado para outro, depois voltou à janela e
lá ficou, a olhar a beleza do luar.
Mais de uma vez dirigiu-se à mesinha de cabeceira onde estava o
interfone: mais de uma vez sua resolução e inflexibilidade
conseguiram vencer.
Mas, à terceira vez, não mais resistiu. Pegou o interfone, num misto
de angústia, autopunição, tremenda excitação, divina expectativa.
Com decisão e firmeza, pressionou o botão número sete.



9


Jamais qualquer experiência ou mesmo a imaginação de Miles
Eastin. antes que entrasse na Penitenciária Drummonburg. o tinha
preparado para o inferno que se chama prisão.
Havia-se passado seis meses desde que fora julgado culpado de
estelionato e peculato e há quatro meses terminara seu julgamento e
começara sua sentença.
Em raros momentos, quando sua objetividade conseguia prevalecer
sobre sua miséria física e sua angústia mental, ele chegava a
raciocinar. E pensava que. se a sociedade pretendia impor uma
vingança selvagem, bárbara, sobre qualquer pessoa, a ele. por
exemplo, o êxito ia além de qualquer espectativa e somente poderia
ser suportado por quem tivesse passado pelo purgatório de uma
prisão. E se a finalidade era uma punição tal, pensava Miles. se de
fato a finalidade era extrair de um ser todo e qualquer instinto
humano para torná-lo um animal, com os mais baixos instintos,
então o sistema da prisão era, sem dúvida, a maneira de alcançá-la.
O que a prisão jamais conseguiria, pensava Miles Eastin, seria transformar
um homem em um integrante da sociedade melhor do que
antes de entrar ali. Qualquer que fosse a sentença, estar na prisão só
conseguiria degradar e piorar o cidadão. Poderia apenas aumentar
seu ódio ao "sistema" que o levara até lá; e só poderia reduzir a
possibilidade de ele se tornar, algum dia, um cidadão útil, um
cidadão obediente às leis. E quanto maior a sentença, menor a
possibilidade de qualquer salvação moral.
Assim, mais que tudo, era o próprio tempo que promovia a erosão e
eventualmente destruía qualquer potencial de melhora que um
prisioneiro tentasse alcançar.
Mesmo que o indivíduo se agarrasse a alguns fragmentos de valores
morais, como um náufrago se agarra a um salva-vidas, era apenas
porque havia alguma força dentro dele, e não porque a prisão
houvesse cooperado para isto.


Miles fazia força para se agarrar ao que quer que fosse, tentando
manter alguma semelhança com o que fora antes, tentando não se
tornar de todo brutalizado, insensível, desesperado,
irremediavelmente amargurado. E era tão fácil incidir nesses erros!
A maior parte dos prisioneiros o fazia. Eram pessoas que, ou
haviam sido brutalizadas antes de haver entrado e se tornado piores
ali, ou que a permanência na prisão havia deteriorado; o tempo e a
desumanidade fria de uma coletividade que se mantinha lá fora.
distante, indiferente a todos os horrores que eram perpetrados e a
todas decências que eram negligenciadas — em nome da sociedade

— atrás daquelas paredes.
Miles só conseguia pensar em uma coisa. Fora sentenciado a dois
anos. Isto tornava-o apto à liberdade condicional, dentro de quatro
meses.
Recusava-se a considerar a possibilidade de não receber esse
indulto: era dura demais para enfrentar. Não acreditava que
pudesse atravessar dois anos de cadeia sem dela sair totalmente,
irreparavelmente corrompido.
Aguenta firme! dizia a si mesmo todos os dias e todas as noites.
Aguenta firme e espera, com todas as tuas forças, a liberdade
condicional.
No início, após ter sido preso e detido e enquanto aguardava o julgamento,
a idéia de ficar preso numa gaiola quase o levara à
loucura. Ele lembrava-se de ter lido que poucas vezes se dá o
devido valor à liberdade, a não ser quando ela não mais está ao
nosso alcance. E a verdade é que ninguém é capaz de imaginar o
que significa a simples liberdade de movimentos — o entrar e sair
de uma sala por uma porta — até que isto lhe seja totalmente
negado.
Mas, comparado às condições nesta penitenciária, o período de préjulgamento
fora um verdadeiro luxo.

Sua cela em Drummonburg media l,80m X 2,40m e fazia parte de
uma série de quatro que formavam um "X". Quando a prisão foi
construída, fazia mais de meio século, cada cela era destinada a um
prisioneiro. Hoje. devido ao superpovoamento das prisões, a
maioria delas, inclusive a de Miles, abrigava quatro prisioneiros. Na
maior parte dos dias, eles ficavam encerrados nesse minúsculo
espaço durante 18 das 24 horas do dia.
Pouco depois de sua chegada à prisão, e devido a uma confusão em
outra cela, tinham ficado encerrados 17 dias consecutivos; até a
comida lhes era levada na cela. Após a primeira semana, os gritos
de desespero de presos em estado de demência tornaram quase
impossível continuar com aquela agonia.
A cela na qual Miles Eastin foi instalado tinha quatro beliches
presos às paredes, uma pia e apenas uma privada, sem assento, a
ser utilizada pelos quatro. A água que passava pela velha e corroída
tubulação era pouca, não aquecida e, na pia, apenas caía em gotas.
Pelo mesmo motivo, a descarga do vaso sanitário não tinha força
bastante. Se já era horrível ficar confinado numa cela tão pequena,
com quatro homens defecando na mais absoluta falta de discrição,
pior ainda era ter que aguentar o fedor, enquanto se esperava que a
água fosse suficiente para dar a descarga.
O papel higiênico e o sabão, usados em comum pelos quatro, nunca
eram suficientes.
Um rápido banho de chuveiro era-lhes permitido apenas uma vez
por semana. Entre essas chuveiradas, os corpos tornavam-se mal
cheirosos, o que aumentava ainda mais a miséria dos prisioneiros.
Foi durante um desses banhos de chuveiro, lá pela segunda semana
na prisão, que Miles foi violentado. As demais experiências amargas
por que passara tornaram-se insignificantes ante aquela.
Tão logo chegou, percebeu que outros prisioneiros sentiam-se atraídos
sexualmente por ele. Sua boa aparência e juventude, acabou por
verificar, agravavam a situação. Quando ia para o refeitório ou na
hora dos exercícios, os presos mais agressivos davam sempre um


jeito de se roçarem nele. Alguns chegavam mesmo a acariciá-lo.
Outros, a distância, passavam os dedos pelos lábios e lhe
mandavam beijos. Certa vez, contorcendo-se, conseguira evitar o
contato físico de um, ignorou o outro, mas quando percebeu que
ambos se tornavam insistentes, seu nervosismo, seu medo,
aumentaram. Estava claro que os companheiros, nem mesmo os de
sua cela, não o ajudariam. E deu-se conta de que os guardas
olhavam para outro lado quando percebiam que alguma coisa do
gênero se passava. Até se divertiam com isso.
Embora a população que superlotava a penitenciária fosse, na maioria,
preta, brancos e pretos, na mesma proporção, tentavam agarrálo.
Foi na sala de banhos, uma velha estrutura térrea para onde os prisioneiros
marchavam em grupos de 50, escoltados por guardas, que
Miles sofreu a primeira humilhação. Os prisioneiros se despiam,
deixando as roupas numa cesta de metal, depois andavam nus e
arrepiados de frio através do edifício sem aquecimento. Ficavam
embaixo dos chuveiros, esperando que um guarda abrisse a água. O
guarda da sala de banho ficava acima deles, sobre uma plataforma,
e o controle dos chuveiros e da temperatura da água dependia de
seu mero capricho. Se os prisioneiros andassem devagar ou lhe
parecessem barulhentos, o guarda deixava cair uma pancada de
água gelada, provocando gritos de raiva e protestos, enquanto os
prisioneiros pulavam como loucos, tentando escapar, o que não
conseguiam, devido à estrutura da casa de banho. Outras vezes, o
guarda deixava cair uma pancada de água quase escaldante.
Certa manhã, quando um grupo desses 50, que incluía Miles, saía
dos chuveiros e outros 50, já despidos, esperavam para entrar, ele
viu-se cercado de perto por vários homens. Rapidamente seus
braços foram imobilizados por meia dúzia de mãos e foi empurrado
para a frente. Uma voz atrás dele lhe dizia:

— Ande logo, dê esse rabo, belezinha. Não temos muito tempo.
E os outros caíam na gargalhada.

Miles olhou para cima, para a plataforma onde se encontrava o
guarda. Tentando chamar sua atenção gritou:

— Por favor, senhor, senhor.
O guarda, olhando em outra direção, fingia nada ouvir.
E Miles sentiu o primeiro soco nas costelas e uma voz que lhe dizia:
— Cala a boca!
Mais uma vez ele gritou de dor e de medo, e mais uma vez foi
atingido com outro soco. O ar lhe fugia dos pulmões; uma dor
causticante tomava conta de todo seu corpo. Seus braços eram
forçados com selvage-ria. Cambaleante, soluçando, foi empurrado
para a frente.
O guarda parecia nada ver. Miles soube depois que ele fora pago
para isto. Como os quardas eram incrivelmente mal remunerados, o
suborno na prisão constituía um verdadeiro meio de subsistência.
Perto da saída dos chuveiros, outros homens começavam a se vestir
ao lado de uma portinha entreaberta. Miles foi empurrado para ali.
Ainda pôde perceber que os corpos eram de pretos e de brancos.
Atrás dele, a porta fechou-se. Dava para um quartinho onde se
guardavam vassouras e esfregões nas prateleiras. No meio, havia
uma pequena mesa. Miles foi jogado contra ela e sua boca e nariz
foram fortemente atingidos pelo tampo. Sentia os dentes abalados.
Seus olhos encheram-se de lágrimas, o nariz começou a sangrar.
Embora tivesse os pés no chão, suas pernas foram separadas, abertas,
com toda a força. Lutou desesperadamente, no maior
sofrimento e angústia, tentando esquivar-se às mãos que o
imobilizavam.
— Fique quietinho, meu querido.
Miles ouvia aquela voz e sentia-se arrepiar. Um minuto depois ele
gritava de dor, desgosto e horror. O preso que lhe segurava a cabeça
pelos cabelos, de vez em quando levantava-a e deixava-a cair contra
a mesa gritando:
— Cala a boca!
Agora a dor vinha em ondas, dominando-o por completo.

— Ele não é adorável? — Ouvia aquela voz como se estivesse à
distância e o seu eco fosse um pesadelo.
Finalmente o penetraram. Antes que seu corpo conseguisse sentir
um certo alívio, outro tomou o lugar do primeiro. Apesar de saber
as consequências, ele gritou forte. E mais uma vez bateram-lhe a
cabeça de encontro à mesa.
Durante os minutos seguintes repetiu-se a monstruosidade, e Miles
sentia que ia perdendo a consciência. Reagia menos, à medida que a
força o deixava. Mas a agonia física se intensificava — a sensação de
membranas queimando, a dor abrasante de mil nervos destroçados.
A consciência, agora, abandonara-o por completo; logo após voltou
a si. Ouviu um guarda tocar o apito de chamada. Era o sinal para
que corressem e se vestissem, reunindo-se do lado de fora. Ele ainda
sentia mãos que tateavam seu corpo. Uma porta abriu-se. Os que se
encontravam no quartinho correram.
Sangrando, quase inconsciente, Miles cambaleou, cheio de dores
lancinantes.
— Ei você! — O guarda gritou da plataforma. — Vá andando com
esse rabo, seu veado cretino!
Aos tropeções, mal sabendo o que fazia, Miles dirigiu-se à cesta
onde estavam suas roupas e tentou vestir-se. Quase todos do seu
grupo já estavam do lado de fora. Outros 50, que se banhavam,
breve estariam ao seu lado, para também se vestirem.
O guarda gritou asperamente pela segunda vez:
— Ei, bicha! Ande depressa!
Enfiando os pés nas calças, Miles mais uma vez cambaleou e teria
caído no chão se não fosse um robusto braço que o amparou.
— Calma, garoto, calma — disse uma voz profunda. — Deixe comigo,
eu ajudo. — E a mão amiga o amparava enquanto ele tentava
vestir as calças.
O guarda fez soar o apito mais uma vez.
— Seu negro, será que você não me escuta? Você e esse veado saiam
já daqui, ou anoto seus nomes no relatório.

— Sim senhor, sim senhor, chefe; já estamos indo. Vamos embora,
garoto.
Mesmo zonzo, Miles percebeu que o homem a seu lado era preto e
gigantesco. Mais tarde, veio a saber que se chamava Karl e que cumpria
uma sentença de prisão perpétua por assassinato. Suspeitou
que o negro teria participado da curra, mas nunca perguntou, e não
chegou a saber.
O que Miles soube depois foi que aquele gigante, apesar de seu tamanho
e de sua grosseria, tinha uma maneira suave de falar e uma
delicadeza quase feminina.
Saindo da sala de banho, ajudado por Karl, ele encaminhou-se cambaleando
para a saída.
Logo percebeu que alguns sorriam, enquanto outros zombavam
dele abertamente. Um cuspiu quando ele passou.
De volta à cela, conseguiu suportar o resto do dia. Durante as refeições
não pôde engolir e, mesmo para caminhar, precisou da ajuda
de Karl. Seus três companheiros de cela o ignoraram como se fosse
um leproso. Movendo-se com extrema dificuldade devido à dor e ao
desalento, debateu-se tentando dormir, ficou acordado durante
horas sentindo o cheiro das fezes, dormiu um pouco e acordou mais
uma vez. Com o chegar da aurora e o barulho nas celas, mais uma
vez o medo apossou-se dele. Quando será que farão isto comigo
outra vez? E sabia que seria em breve.
Durante o período do "exercício" — duas horas em que a maior
parte dos encarcerados andava de um lado para outro, sem objetivo


— Karl aproximou-se e disse:
— Como se sente, garoto? Miles
olhou-o e respondeu:
— Péssimo, péssimo. — E acrescentou: — Obrigado pelo que você
fez por mim.
Sabia que sem o auxílio do negro ele teria sido denunciado como
pederasta pelo guarda, o que representaria punição severa —

talvez, na solitária — além de constar de sua ficha, dificultando
assim sua futura liberdade condicional.

— Deixa pra lá, garoto. Mas numa coisa você tem que pensar. Uma
vez só, como ontem, não vai satisfazer esse pessoal todo. Agora
estão como cachorros atrás de uma cadela no cio. Vão lhe pegar
outra vez e não demora muito.
— E que posso eu fazer? — A confirmação do que previra, fez com
que Miles tremesse e que sua voz se tornasse quase inaudível. O
outro o observava.
— Do que você precisa, garoto, é de um protetor. Um garanhão que
tome conta de você. Gostaria que fosse eu?
— Por quê?
— Para começar porque gosto de você. Temos que tornar claro para
todos que você é o meu amante. Uma vez que saibam que nós temos
um caso, ninguém mais vai lhe pôr a mão. Sabem que, se o fizerem,
terão que me enfrentar.
Mesmo já sabendo a resposta, Miles indagou:
— E o que é que você quer em troca?
— Sua bundinha macia, querido. — O gigante fechou os olhos, num
devaneio. — Seu corpo é sob medida para mim. É o que quero; a
qualquer hora que sinta vontade. Do lugar, tratarei eu.
Eastin tinha a impressão que ia vomitar.
— Então, garoto, está de acordo?
Como já se havia perguntado muitas vezes, Miles pensou em maior
desespero: Seja qual for o crime que cometeu, um ser humano merece
isto?
E no entanto ele estava lá, e aprendera que a prisão era uma coisa
humilhante, selvagem e injusta. Um lugar onde, após sua chegada,
um homem ficava impedido de fazer uso de todo e qualquer direito
humano. Com amargura, ele indagou:

— Tenho outra escolha?

— Já que você foi tão claro, a resposta é não. — Karl fez uma pausa
e depois disse com impaciência: — Como é? Temos ou não temos
um caso?
Miles respondeu, sentindo-se miserável:
— Acho que sim.
Satisfeito, Karl passou um braço possessivo em volta de seus
ombros e Miles, tremendo por dentro, esforçou-se para não fugir ao
abraço.
— Tenho que providenciar para que você se mude para mais perto
de mim, meu querido. Para minha cela. Para ficar bem junto do meu
beliche. — A cela de Karl era na outra perna do "X", oposto à de
Miles; e o gigante passou a língua pelos lábios. — E isto aí. — E sua
mão enorme acariciava o outro.
Karl perguntou:
— Você tem dinheiro?
— Não. — Miles sabia que se tivesse dinheiro, tudo seria mais fácil.
Os prisioneiros que contavam com recursos financeiros, sofriam
menos que os sem dinheiro.
— Eu também não — disse Karl. — Vamos ter que dar um jeito.
Miles deu-se conta de que começava a aceitar o nojento papel de
"namorada". Mas já sabia como as coisas corriam na prisão:
enquanto se submetesse a Karl, estava a salvo.
Os fatos mostraram que ele estava certo.
Não houve mais nenhum ataque, ninguém tentou boliná-lo e
ninguém mais lhe atirou beijos. Karl era conhecido pela força de
seus punhos. Constava até que, há cerca de um ano, matara com as
próprias mãos outro preso, embora o crime não tivesse sido
comprovado.
Miles acabou-por ser transferido, não apenas para a ala de Karl, mas
para sua própria cela. Claro, esta transferência custou algum
dinheiro. De que modo Karl, que nada possuía, o teria obtido?
Em resposta à sua pergunta, o negro sorriu e disse:

— Os caras da Máfia entraram com o dinheiro. Parece que gostam
de você, garoto.
— Gostam de mim?
Como os demais, Miles sabia da existência de um grupo da Máfia
que era também conhecido como a "Colônia Italiana". Era uma série
de celas que abrigavam os cabeças do crime organizado e que, lá
fora, tinham contatos e influências que os tornavam respeitados e
temidos até mesmo, assim constava, pelo diretor da prisão. Em
Drummonburg, seus privilégios eram tradicionais.
Tais privilégios incluíam atividades para distração, uma certa liberdade
de movimentos e comida de melhor qualidade,
contrabandeada pelos próprios guardas, ou desviada do
departamento de suprimentos. Os integrantes da turma da Máfia,
dizia-se. comiam deliciosos bifes e outras iguarias preparadas em
grelhas proibidas nas. para eles, sempre acessíveis. Também
contavam com confortos evpeciais. tais como televisão e lâmpadas
de raio ultravioleta. Miles já ouvira falar muito da Máfia, mas não
tinha nenhum contato com a turma, nem mesmo sabia quem a
integrava.
— Eles disseram que você é um cara de confiança — contou-lhe
Karl.
Parte do mistério foi explicado quando poucos dias mais tarde La-
Rocca, um prisioneiro com cara de fuinha, passou ao lado de Miles
no pátio da prisão. Ele não era propriamente da turma da Máfia,
porém mantinha contatos com seus elementos e agia como uma
espécie de pombo-correio deles.
Ele cumprimentou primeiro Karl. passando um recibo claro dos
direitos, digamos assim, de propriedade do negro sobre Miles, e
depois disse a este:
— Tenho um recado para você de Ominsky, o Russo.
Miles ficou surpreso e pouco à vontade. Igor (o Russo) Ominsky era
o agiota a quem ele devia dinheiro — e continuava devendo — num

total de 15 000 dólares. E ele sabia também que essa dívida e os
juros decorrentes continuavam em vigor.
Foram as ameaças de Ominsky que levaram Miles a roubar os 6 000
dólares do Banco, o que levou à descoberta de seus roubos
anteriores.

— Ominsky sabe que você não deu com a língua nos dentes — disse
LaRocca. — Ele gostou da maneira como você se conduziu e o
considera um cara legal.
Na verdade, durante todo o interrogatório anterior a seu
julgamento. Miles nunca delatou o bookmaker ou o agiota, a quem
tanto temia antes de ser preso. Sabia que nada ganharia dando seus
nomes, e talvez tivesse muito a perder. Além disso, não fora muito
pressionado a esse respeito, nem pelo chefe da Segurança do Banco
nem pelo FBI.
— E como você soube calar a boca, Ominsky diz que do momento
que você entrou aqui ele parou de contar o tempo.
Miles entendeu que o que LaRocca queria dizer: os juros sobre a
dívida não estavam sendo contados, a partir do dia em que ele
entrara na prisão. Sabia o bastante a respeito de agiotas para
reconhecer que se tratava de uma concessão extraordinária. O
recado também explicava como a turma da Máfia, pelos contatos lá
fora, viera a saber de sua existência.
— Agradeça por mim ao Sr. Ominsky — disse Miles.
Não tinha a menor idéia de como pagar a importância total quando
deixasse a prisão, nem mesmo se ganharia o suficiente para se
manter, uma vez em liberdade.
Como se lesse seus pensamentos, LaRocca acrescentou:
— Alguém vai entrar em contato com você antes que seja solto.
Talvez se possa dar um jeito na sua vida. — E com um aceno para
Karl. afastou-se.
Nas semanas que se seguiram, Miles passou a conhecer melhor o
fuinha LaRocca. que procurava sempre sua companhia, assim como
a de Karl, no pátio da prisão. O que parecia fascinar LaRocca e



outros detentos era o profundo conhecimento de Miles sobre a
história do dinheiro. De certa forma, aquilo que constituíra um certo
interesse e que, depois, se tornara mania, trouxe a Miles uma
espécie de respeito de parte dos demais, como sempre acontece
quando um criminoso apenas violento encontra um outro que é
inteligente. Segundo o sistema reinante, um estelionatário ou um
falsário tem muito mais valor social na prisão que um simples
ladrão ou assassino.
O que mais intrigava LaRocca, era quando Miles descrevia falsificações
maciças, efetuadas por governos, de dinheiro de outros
países.

— Estas sim. foram as maiores falsificações jamais feitas no mundo
— dizia Miles para uma audiência diária de meia dúzia de
participantes.
E descrevia como. certa vez, o governo inglês falsificou os assignals
franceses, numa tentativa de minar a Revolução Francesa. No
entanto, o mesmo crime cometido por uma pessoa era punido com a
forca, penalidade que continuou a prevalecer na Inglaterra até 1821.
A Revolução Americana começou com a falsificação oficial de
cédulas inglesas. Mas a maior de todas as falsificações, pelo menos
em sua opinião, dizia Miles, foi durante a Segui da Guerra Mundial
quando a Alemanha falsificou 140 milhões de libras esterlinas e
uma importância até hoje desconhecida de dólares americanos, tudo
da melhor qualidade. Os ingleses também falsificaram dinheiro
alemão, no que foram imitados, segundo rumores, pela maior parte
dos outros aliados.
— Puxa vida, quem diria! — exclamou LaRocca. — E estes são os
filhos da puta que prendem a gente aqui. Aposto que até agora
mesmo eles continuam a fazer a mesma coisa.
LaRocca sentia-se orgulhoso do prestígio que lhe trazia a amizade
de Miles, uma pessoa tão entendida em dinheiro. E deu-lhe a
entender que o pessoal da Máfia já fora informado dessa
capacidade.

— Eu e minha turma cuidaremos de você quando sair, — disse La-
Rocca certo dia, confirmando a promessa anterior. Miles já sabia
que ele e LaRocca sairiam da prisão na mesma ocasião.
Para Miles. falar de dinheiro, contar as coisas que sabia a esse
respeito, era uma espécie de distração mental, que o ajudava a
sufocar, por meia hora que fosse, todo o horror de sua vida atual.
Sabia que era um alívio ter o agiota congelado os juros de sua
dívida. No entanto, nem discorrer sobre dinheiro, nem tentar pensar
em outras coisas era suficiente para fazê-lo esquecer a baixeza, a
falta de dignidade de sua situação atual. Foi quando começou
seriamente a considerar y hipótese do suicídio.
Sentia-se enojado com a intimidade que era obrigado a manter com
Karl. Uma espécie de auto-repugnância. O gigante lhe dissera: "Sua
bandinha branca e linda, garotão; seu corpo só para mim. E a qualquer hora
que eu queira. Depois desse acordo, gozava desse direito com apetite
verdadeiramente insaciável.
No início. Miles tentava anestesiar a própria mente, consolando-se
de que isto era melhor que uma curra, o que de fato era. inclusive
devido à gentileza instintiva de Karl. Mas mesmo assim ele
continuava enojado de si mesmo.
Mas o que passou a acontecer foi ainda pior.
Até para si mesmo, Miles achava difícil aceitar o fato: ele estava
começando a gostar das suas relações sexuais com Karl. E começava
também a considerar seu protetor com uma nova espécie de
sentimento... afeição? Sim ... Amor? Não! Pelo menos até agora, não
conseguia chegar a admitir tanto.
Mas não podia fugir à realidade, nem negar-se às novas sugestões
de Karl, que transformavam, às vezes, seu papel de homossexual
passivo em outro mais ativo.
E após cada ato as dúvidas o apavoravam. Teria ele deixado de ser
homem, macho? Antes, o provara muitas vezes, mas agora não
tinha certeza de mais nada. Tinha-se pervertido em definitivo?
Conseguiria depois disso tudo voltar a ser um homem normal,

deixando de lado o gozo que começava a sentir aqui e agora? E, se
não o conseguisse, seria possível viver ainda? Valeria a pena? Miles
se questionava e duvidava.
O desespero apoderou-se dele e a idéia do suicídio cresceu: seria
um remédio, uma panaceia, uma liberdade, um fim para tudo.
Embora difícil naquela prisão superlotada, ainda assim era possível

o suicídio por enforcamento. Por cinco vezes, desde sua chegada,
ele ouvira gritos de "enforcamento!", em geral à noite. E os guardas
corriam pela prisão, xingando, forçando portas, quebrando celas, na
tentativa de salvar o suicida. Em três dessas ocasiões, apesar de
tudo, os guardas chegaram tarde demais e foram recebidos com
gritos roucos e gargalhadas de parte de outros prisioneiros. Como
um suicídio constituía um transtorno, a patrulha noturna era
dobrada, mas essa medida durava pouco.
Miles conhecia o processo. Molharia um lençol ou cobertor para que
não se rompesse (com urina seria mais fácil e ninguém notaria);
depois o prenderia num gancho a ser alcançado subindo no beliche
superior. Tudo no maior silêncio, enquanto os companheiros de cela
estivessem dormindo...
No entanto, uma coisa, uma única coisa o impediu de levar avante
seus planos.
Miles queria, ao sair da prisão, pedir perdão a Juanita Núhez pelo
mal que lhe causara.
O arrependimento que ele aparentava durante seu julgamento
tornara-se agora genuíno. Sentia um terrível remorso por haver
roubado o First Mercantile American Bank. onde era tratado com
todo o respeito, tendo retribuído com falsidade e furto. E ficava
pensando como lhe fora possível sufocar sua consciência ao fazê-lo.
As vezes, tinha a impressão de que fora vítima de uma espécie de
febre. As apostas, os programas sociais, os jogos, os gastos além de
suas posses, a loucura de tomar dinheiro de agiotas e. o afinal, o
roubo — davam-lhe a impressão de que enlouquecera e de que
agira como tal.

Havia perdido o contato com a realidade e. como se delirasse pelo
efeito de uma febre, sua mente se destorcera a ponto de até a
decência e os valores morais desaparecerem.
De que outra forma. Miles indagava-se milhares de vezes, poderia
ele ter-se tornado tão desprezível, capaz de tanta baixeza, para pôr a
culpa em Juanita Núhez?
No julgamento, tão grande era a sua vergonha, que nem pudera erguer
os olhos para ela.
Agora, seis meses passados, seus remorsos em relação ao Banco tinham
menos importância. Traíra o FM A. mas na prisão estava
pagando seu débito da maneira mais completa. E Deus meu! Como
estou pagando!

Mas nem mesmo Drummonburg e todo seu honor poderiam saldar

o que devia a Juanita. Nada seria bastante. Por isto. só por isto,
tinha de sair da prisão para lhe pedir perdão.
E. para tal. precisava estar vivo, e cumprir a sentença até o fim.
10


— Fala do First Mercantile American Bank — disse rapidamente o
operador, pelo telefone, que ele prendia entre a orelha esquerda e o
ombro, a fim de manter as mãos livres. — Preciso de seis milhões de
dólares até amanhã. Qual a sua taxa?
Do outro lado da costa, na Califórnia, a voz de um operador financeiro
do gigantesco Bank of America respondeu:
— Treze e cinco centavos.
— Está muito alto — disse o homem do FMA.
— Mas é isso aí.

O operador de dinheiro do FMA hesitou, pensando se outro banco
teria taxa maior ou menor. Por força do hábito, tentou interpretar o
zum-zum das vozes à sua volta no Centro de Operações Financeiras
no FMA — um núcleo nervoso protegido pelo Serviço de
Segurança, no escritório central do FMA, de cuja existência poucos
sabiam e que apenas alguns privilegiados tinham visitado. Era em
locais como este que se geravam os lucros dos grandes bancos,
quando não ocorria exatamente o contrário.
Eles tinham necessidade de manter somas específicas de dinheiro a
fim de atender a eventuais procuras, mas nenhum banco queria ter
dinheiro parado, fosse muito ou mesmo pouco. Os operadores
financeiros dos bancos esforçavam-se em manter as importâncias
equilibradas.

— Um momento, por favor — falou o operador do FMA para São
Francisco. Apertou um botão que desligava provisoriamente aquela
ligação, e apertou outro botão.
Logo alguém respondeu:
— Manufacturers Hanover Trust, Nova Iorque.
— Preciso de seis milhões de dólares até amanhã. Qual a sua taxa?
— Treze e três quartos.
Isto significava que na costa Este a taxa estava subindo.
— Obrigado. — O operador do FMA desligou Nova Iorque e, religando
São Francisco, disse:
— OK. podemos fazer negócio.
— Seis milhões vendidos a treze e cinco oitavos — disse o Bank of
America.
— Certo.
Toda a transação levara nada mais que 20 segundos. Esta fora apenas
uma das centenas de transações diárias realizadas entre bancos
rivais, numa luta de nervos e de extrema habilidade, sempre de
importâncias vultosas. Os operadores financeiros eram sempre
homens jovens, na casa dos trinta, vivos e ambiciosos, de rápido
raciocínio, e que mantinham a tranqüilidade mesmo sob a maior

tensão. No entanto, como uma ficha que acusasse sucesso no setor
de operações financeiras pudesse contribuir decisivamente para o
futuro da carreira de um jovem, e. por outro lado, erros acabassem
com qualquer futuro, a tensão era constante, embora não
demonstrada. Em conseqüência, três anos era considerado o limite
máximo para tal espécie de trabalho. Depois deste prazo, a tensão
começava a transparecer.
Neste momento, em São Francisco e no First Mercantile American
Bank, a última transação estava sendo registrada, alimentada a um
computador, e então transmitida para o Federal Reserve System. No
"Fed" (como eles chamavam o Federal Reserve System), durante as
próximas 24 horas, as receitas do Bank of America seriam debitadas
em seis milhões de dólares, enquanto as receitas do FMA seriam
creditadas na mesma importância. O FMA pagaria ao Bank of
America pelo uso do dinheiro durante esse curto período.
Em todo o país realizavam-se operações semelhantes entre os
bancos.
Era uma quarta-feira, meados de abril.
Alex Vandervoort. visitando o Centro de Operações Financeiras,
parte de seu domínio no Banco, cumprimentou o operador que
estava sentado numa plataforma, cercado de assistentes que faziam
a necessária triagem nas informações, movimentando papéis e a
burocracia necessária. O jovem, já tratando de outra transação,
devolveu-lhe o cumprimento com um aceno e um sorriso.
Em toda a sala. do tamanho de um auditório e em tudo semelhante
ao centro de controle de um aeroporto de grande movimento,
encontravam-se outros operadores lidando com títulos e
debêntures, cercados de auxiliares, contadores, secretárias. Todos
dedicavam-se à tarefa de desdobrar o dinheiro do Banco:
emprestando, pedindo emprestado, investindo, vendendo,
reinvestindo.
Por trás dos operadores, meia dúzia de supervisores financeiros trabalhavam
em suas grandes secretárias.


Tanto os operadores quanto os supervisores ficavam de frente para
um placar colossal, que dava cotações, taxas de juros e outras
informações, com os dados constantemente alterados por controle
remoto.
Um operador de títulos sentado à sua mesa, não muito longe de
onde Alex se encontrava, levantou-se e declarou em voz alta:

— A Ford e a United Auto Workers acabam de anunciar um contrato
de dois anos.
Vários outros operadores dirigiram-se aos telefones. Tratava-se de
uma rotina: o primeiro que obtivesse qualquer novidade relativa à
indústria ou à política, devido ao seu imediato efeito nas cotações,
logo a comunicava aos demais.
Segundos depois, uma luz verde acima do placar começou a piscar
e foi substituída por outra, brilhante, cor de âmbar. Era um sinal
para que os operadores não tomassem compromisso algum, pois
novas cotações, resultantes desse novo contrato na indústria
automobilística, seriam dadas em seguida. Uma cintilante luz
vermelha, usada raramente, era um aviso de mudança catastrófica.
E, no entanto, o Centro de Operações, a cujo funcionamento Alex
assistia, continuava a ser um centro rotativo.
As leis federais exigiam que os bancos tivessem 17,5 por cento de
seus depósitos em dinheiro. As penalidades, quando esta exigência
era descumprida, eram muito severas. Por outro lado, não
interessava aos bancos manter grandes depósitos, mesmo por um só
dia. Por isso, faziam um registro contínuo de todas as entradas e
saídas de numerário. O Departamento Central de Caixa dava a
maior atenção a essa fluidez, como um médico à pulsação de um
paciente. Se os depósitos, dentro de um sistema bancário do porte
do First Mercantile American Bank, fossem menores que o previsto,
o Banco, através do seu operador financeiro, logo tomava
emprestado fundos extra de outros bancos, e vice-versa.
A posição de um banco mudava de hora para hora, de tal modo
que, sendo credor na parte da manhã, poderia ser devedor ao meio

dia e outra vez credor antes de encerrar seu expediente. Assim, um
grande banco podia transacionar mais de um bilhão de dólares em
um só dia.
Duas outras coisas podiam ser ditas, e muitas vezes o eram, sobre
esse sistema. Em primeiro lugar, os bancos davam muito maior
atenção aos próprios lucros que aos lucros de seus clientes; em
segundo lugar, sempre conseguiam um jeitinho de ganhar mais
para si mesmos do que davam a ganhar a seus depositantes.
A presença de Alex Vandervoort no Centro de Operações Financeiras
devia-se, em parte, porque ele gostava de estar sempre a par da
fluidez, da circulação do dinheiro, e também para discutir os
acontecimentos ocorridos no Banco nas semanas anteriores, que o
haviam desagradado.
No momento, achava-se ao lado de Tom Straughan. vice-presidente
categorizado e membro do Comitê de Política Monetária do FMA.
Straughan entrara no Centro de Operações com Alex. Fora ele
quem, em janeiro, se opusera ao corte dos fundos do Fórum East,
mas que, agora, concordara com o empréstimo à Supranational
Corporation.
Este empréstimo era a matéria sobre a qual os dois conversavam.
— Você está se preocupando demais. Alex — insistiu Straughan. —
Além da situação não envolver nenhum risco, a SuNatCo será um
bom negócio para nós. Estou seguro disso.
Impaciente, Alex respondeu:

— Não existe situação sem fiscos. É uma hipótese nula. Ainda assim,
estou menos preocupado com a Supranational do que com as
torneiras que teremos que fechar por todos os lados.
Ambos sabiam quais "torneiras" eram. Um memorando contendo
propostas apresentadas por Roscoe Heyward e aprovado pelo
Presidente do Banco, Jerome Patterton, havia circulado entre os
membros do Comitê de Política Monetária, poucos dias antes. Para
tornar possível a linha de crédito de 50 milhões de dólares à
Supranational, ele propusera que se fizesse um corte drástico nos

pequenos empréstimos, hipotecas sobre imóveis e financiamentos
de bônus municipais.

— Se, de fato, o empréstimo à Supranational se realizar e tivermos
que efetuar tais cortes — argumentou Tom Straughan — serão
apenas temporários. Em três meses, talvez menos, nossos fundos
poderão retornar às antigas aplicações.
— Pode ser que você acredite nisso. Tom, mas eu não.
A conversa com o jovem Straughan deprimia ainda mais Alex, já
bastante pessimista.
As propostas de Heyward e Patterton conflitavam com todas as
convicções de Alex, bem como com sua intuição em matéria
financeira. Ele acreditava ser um erro canalizar os fundos do Banco
de forma tão substancial em direção a um só empréstimo industrial,
às expensas da prestação de serviços ao público, conquanto um
financiamento à indústria pudesse ser muito mais lucrativo. Mas,
mesmo do ponto de vista estritamente comercial, a extensão do
compromisso do Banco para com o Supranational através das suas
subsidiárias trazia-lhe sérias inquietações.
Além disso, ele bem sabia que estava sozinho. Toda a gerência administrativa
deslumbrava-se ante a nova operação a ser feita com a
Supranational. Roscoe Heyward fora congratuladíssimo por havê-lo
obtido. Mas Alex continuava a sentir-se desconfortável, mesmo não
sabendo dizer porquê. É certo que a Supranational parecia ser
financeiramente sólida; seus balanços mostravam que esse
conglomerado gigante irradiava ótima saúde fiscal. E. em matéria
de prestígio, a SuNatCo podia comparar-se a companhias como
General Motors, IBM, Exxon*, Du Pont e U. S. Steel.
Talvez, pensava Alex, as dúvidas e a depressão que sentia fossem
resultado do decréscimo de süa influência no Banco. E isso era
evidente, em especial nas últimas semanas.

* Nova denominação da Esso. (N.T.)

Por seu lado, Roscoe Heyward subia cada vez mais. Patterton era
seu confidente e tornara-se mais íntimo dele. após o tremendo
sucesso do fim de semana de Heyward nas Bahamas, com George
Quartermain. As restrições de Alex a esse respeito, ele bem o sabia,
eram consideradas inconsistentes.
Sabia também que estava perdendo a influência pessoal junto a
Straughan e a outros que. antes, considerava como jogando em seu
time.

— Você tem que admitir — disse Straughan — que a transação com
a Supranational é perfeita. Sabe que Roscoe conseguiu que eles
concordassem com um saldo médio de dez por cento?
O saldo médio ou em conta, era uma espécie de arranjo a que chegavam
os bancos e os tomadores de dinheiro, depois de muita
argumentação. Um banco insistia em que uma parcela determinada
de qualquer empréstimo fosse mantida em conta-corrente, sem
nenhum lucro para o depositante, mas para uso ou investimento do
próprio banco. Assim sendo, o credor não tinha o uso total de seu
empréstimo, tornando a taxa real de juros muito mais elevada do
que podia parecer. No caso da Supranational, conforme Tom
Straughan mencionara, cinco milhões de dólares seriam mantidos
na conta-corrente da SuNatCo. com granche vantagem para o FMA.
— Mas creio que você já se deu conta do reverso da transação —
disse Alex de maneira dura.
Tom Straughan parecer, se sentir pouco à vontade.
— Bem. disseram-me que existe um trato. Não creio que merecesse
a definição de reverso.
— Bolas! Mas não é outra coisa; é exatamente isto.
Ambos sabiam que a SuNatCo insistira, e Roscoe concordara, que o
Departamento de Administração de Carteiras investisse
maciçamente na compra de ações ordinárias da Supranational.
— Bem, se eles fizeram esse trato, nada temos de preto no branco.

— Claro que não. Ninguém seria tão tolo assim. — Alex olhou firme
para Straughan. — Você tem acesso aos números. Pois, então, me
diga quanto já se comprou até agora?
Straughan hesitou, depois andou até a mesa de um dos supervisores
do Centro de Operações. Voltou com uma anotação rabiscada a
lápis.
— Até hoje. 97 000 ações. — Straughan acrescentou: — A última
cotação foi a 52.
Alex imediatamente retrucou:
— O pessoal da Supranational deve estar batendo palmas. Nossa
compra, só a nossa, elevou sua cotação em cinco dólares por ação —
ele calculava mentalmente. — Quer dizer que, na última semana,
entregamos quase cinco milhões de dólares do dinheiro de clientes,
sob nossa administração, à Supranational. Por quê?
— Porque é um negócio excelente, um investimento seguro. —
Straughan tentou parecer tranquilo, acrescentando: — Mas faremos
grandes lucros para as viúvas, órfãos e fundações educacionais, cujo
dinheiro administramos.


— Ou, pelo contrário, acabaremos com ele, ao mesmo tempo que
abusamos do nosso direito de custódia. O que sabemos nós sobre a
SuNatCo, Tom, qualquer um de nós, que não soubéssemos há duas
semanas? Por que, até esta semana, nuncaon. í: * Departamento de
Administração de Carteiras comprara sequer uma só ação C/A
Supranational?
O jovem ficou silencioso; depois disse, pondo-se na defensiva:
— Acho que Roscoe julga que, como vai participar da diretoria da
Supranational, poderá observar a Companhia mais de perto.
— Tom, você me decepciona. Você nunca foi desonesto consigo
mesmo, em especial quando sabe as razões reais tão bem como eu.
— Straughan enrubesceu, mas Alex persistiu: — Você, por acaso,
tem idéia do escândalo se o SEC tomasse conhecimento disto?
Porque o que existe é um conflito de interesses, um abuso da lei que
limita os empréstimos; o uso de fundos em custódia para beneficiar

nossos próprios negócios. Não tenho a menor dúvida da existência
de um acordo para que na próxima reunião anual do Banco haja um
acordo para que se vote sobre as ações da Supranational.
Straughan retrucou asperamente:


— Se for assim, não seria a primeira vez, nem mesmo aqui.
— Infelizmente é verdade; mas em nada atenua a gravidade do assunto.
A questão de ética do Departamento de Administração de Carteiras
era um assunto velho. Os bancos mantinham uma verdadeira
barreira, que até chamavam às vezes de Muralha da China, entre
seus próprios interesses comerciais e os investimentos feitos com o
dinheiro em custódia.
Quando um banco tinha bilhões de dólares de fundos de clientes
sob sua administração para investir era inevitável que os usassem
em seu próprio favor. As companhias nas quais o banco investia
maciçamente correspondiam fazendo uso do banco de modo
recíproco. «^mbém era freqüente serem elas pressionadas no
sentido de admitir um diretor do banco em suas diretorias. Se não
atendessem a essa espécie de reciprocidade, outros investimentos
substituiriam o seu e em conseqüência suas ações eram logo
liquidadas.
Da mesma maneira agiam as corretoras que contavam com um departamento
de custódia volumoso, comprando e vendendo.
Também delas se esperava que mantivessem grandes saldos
bancários, o que habitualmente faziam. Caso contrário, o cobiçado
negócio das corretoras tomava o'-tra direção.
A ^sar da propaganda feita pelos serviços de relações públicas dos
bancos, os interesses dos clientes nos departamentos de
administração de carteiras, incluindo as proverbiais viúvas e órfãos,
muitas vezes mantinham uma posição secundária em relação aos
interesses particulares do banco. Era uma das razões pela qual os
resultados apresentados pelo mencionado departamento fossem,
em geral, tão insignificantes.

Alex bem sabia que a situação Supranational-FMA não era única,
mas mesmo assim não conseguia conformar-se.

— Alex, quero que saiba que, na reunião de amanhã do Comitê de
Política Monetária, apoiarei o empréstimo à Supranational — disse
Tom Straughan com franqueza.
— Lamento muito ouvir isto.
Mas a notícia não o surpreendia. Alex começou a calcular quanto
tempo lhe faltaria para ficar só e isolado por completo, até que sua
própria posição no Banco se tornasse insustentável. Talvez dentro
em breve.
Após a mencionada reunião do dia seguinte, na qual as propostas
referentes à Supranational por certo seriam aprovadas por maioria,
toda a diretoria se reuniria na quarta-feira seguinte, ainda para
tratar de assuntos referentes à Supranational. Em ambas as
reuniões. Alex tinha certeza de que ele seria a única voz dissidente.
Andou mais um pouco pelo superatarefado Centro de Operações
Financeiras, todo dedicado à riqueza e ao lucro, imutável em
princípio desde os antigos templos de dinheiro da babilônia e da
Grécia. Alex não julgava que dinheiro, comércio e lucro, em si,
fossem coisas sem valor. Tanto assim que se dedicava a elas. Mas
não cegamente; mantinha suas reservas, inclusive morais, seus
escrúpulos quanto à distribuição razoável da riqueza e quanto à
ética bancária. Entretanto, bem sabia que, quando havia a
perspectiva de um lucro excepcional, e isto era historicamente
comprovado, as pessoas com qualquer espécie de reservas morais
eram postas de lado.
Quem poderia, por si só, opor-se às forças dos grandes negócios e
das grandes finanças, representadas no caso presente pela
Supranational e uma maioria do FMA?
Ninguém, concluiu o desanimado Alex Vandervoort. Ninguém
poderia enfrentá-las!

11


A reunião dos diretores do FMA, na terceira semana de abril, ficou
memorável sob vários aspectos.
Eram os seguintes os principais itens da política do Banco a serem
discutidos: linha de crédito à Supranational; proposta de expansão
das atividades de poupança e abertura de várias agências nos
subúrbios.
Mesmo antes de haver começado a reunião, sentia-se no ar a atmosfera
que prevaleceria. Heyward mostrava-se à vontade e jovial
como nunca o fora e envergava um terno leve, cinza, elegante e
novo. Chegou com antecedência e foi cumprimentado pelos demais
diretores, à medida que chegavam. Pelas saudações cordiais,
tornava-se claro que a maioria deles não só já tivera conhecimento
do acordo com a Supranational através dos boatos do meio
financeiro, mas que também estavam por completo a favor.

— Parabéns. Roscoe. você conseguiu fazer com que o Banco se ligasse
a um dos maiores grupos financeiros do país. Com isso, você
se tornou mais forte, parabéns! — disse Philip Johannsen,
presidente da MidContinent Rubber.
Exultante. Heyward respondeu:
—Obrigado pelo seu apoio, Phil. Quero dizer-lhe que tenho outros
objetivos em mente.
— Sem dúvida você conseguirá alcançá-los, não tenha receio.
Um diretor carrancudo, do norte do Estado, Floyd LeBerre, presidente
da General Cable and Switchgear Corporation, entrou na sala.
Anteriormente LeBerre não manifestara cordialidade especial para
com Heyward, mas hoje cumprimentou-o com entusiasmo.
— Fiquei radiante ao saber que você participará da diretoria da Supranational,
Roscoe. — E em tom mais baixo, acrescentou: — Minha
divisão de vendas vai entrar numa concorrência da SuNatCo.
Gostaria de conversar com você sobre nossos planos.

— Vamos marcar um dia da semana que vem — concordou Heyward
alegremente. — Pode ter certeza de que ajudarei em tudo que
puder.
A expressão de LeBerre era da mais absoluta satisfação. Harold
Austin, que a tudo ouvira, piscou de maneira simpática para
Heyward.
— Nosso fim de semana foi, sem dúvida, positivo. Você está crescendo
cada vez mais.
Hoje, S. Exa. Harold Austin simbolizava, mais que nunca, oplayboy
maduro: casaco escocês, calças moderníssimas, vistosa camisa com
uma gravata azul da melhor qualidade. Estava com novo corte de
cabelo, e muito bem penteado.
— Harold, se houver alguma coisa, em qualquer sentido, que eu
possa fazer em troca... — respondeu Heyward.
— Esteja certo que haverá — retrucou o outro, enquanto tomava seu
lugar à mesa.
Até mesmo Leonard L. Kingswood, o dinâmico presidente da Northam
Steel, que sempre apoiara Alex Vandervoort, quando passou
por Roscoe dirigiu-lhe um elogio:
— Ouvi dizer que você encurralou a Supranational, Roscoe. Isto
é que é negócio de primeira classe!
Outros diretores também o felicitaram.
Entre os últimos a chegar encontravam-se Jerome Patterton e Alex
Vandervoort. O presidente do Banco, com o cabelo grisalho já escasseando
e a habitual aparência de fazendeiro, encaminhou-se
diretamente à cabeceira da mesa. Alex, portando uma volumosa
pasta, ocupou seu lugar de sempre.
Patterton bateu com o martelinho, chamando a atenção de todos e
passou logo a tratar dos assuntos de rotina. A seguir, declarou:


— No que se refere aos assuntos importantes, o principal é: Empréstimos
submetidos à aprovação da diretoria.

Em volta da mesa houve uma verdadeira agitação quando os diretores
abriam suas pastas confidenciais de empréstimos, na tradicional
cor azul do FMA.

— Como sempre, cavalheiros, todos têm à sua frente, em suas pastas,
detalhes das propostas da administração. Mas o que é de
especial interesse hoje, como a maioria sabe,¿ a nossa nova conta
com a Supranational Corporation. Pessoalmente, estou
satisfeitíssimo com os termos em que as coisas estão sendo
negociadas e recomendo sua aprovação com o maior entusiasmo.
Deixo a seu cargo, Roscoe, já que você é o responsável por este novo
e importante negócio, responder a quaisquer perguntas que lhe
possam ser feitas.
— Obrigado, Jerome. — Roscoe Heyward limpou os óculos e
inclinou-se um pouco para a frente em sua cadeira. Quando falou,
sua maneira parecia menos austera que de hábito, e sua voz mais
agradável e segura.
— Cavalheiros, ao tomar qualquer compromisso relativo a um empréstimo
vultuoso, é sempre prudente assegurar-nos da solidez
financeira daquele a quem vamos emprestar nosso dinheiro, mesmo
que, no caso, o cliente tenha a melhor reputação, em todos os
sentidos, como ocorre com a Supranational. No apêndice B de suas
pastas (e mais uma vez ouviu-se o ruído de páginas viradas)
encontrarão um resumo do ativo e dos lucros projetados do grupo
SuNatCo, incluindo todas as suas subsidiárias, que preparei
pessoalmente. Baseei-me em relatórios financeiros da auditoria, e
também usei dados adicionais que me foram fornecidos, a pedido,
pelo tesoureiro da Supranational, Sr. Stanley Inchbeck. Como os
senhores podem ver, os números são excelentes. Nosso risco é
mínimo.
— Nada sei a respeito de Inchbeck — interrompeu um diretor. Wallace
Sperrie, proprietário de uma companhia de instrumentos
científicos.

— Mas conheço você. Roscoe, e se aprova esses números, então,
para mim, está tudo bem.
Vários outros fizeram coro.
Alex Vandervoort rabiscava em seu bloco.
— Obrigado, Wally, e aos demais — Heyward permitiu-se um leve
sorriso. — Espero que a confiança em mim depositada também se
aplique à ação concomitante que recomendei.
Embora as recomendações estivessem anotadas nas pastas, ele as
descreveu: a linha de crédito, num total de 50 milhões de dólares a
ser concedida imediatamente à Supranational e às suas subsidiárias,
bem como os cortes financeiros a serem efetuados em outras áreas
do Banco, na mesma oportunidade. Esses cortes, Heyward garantiu
aos diretores que o ouviam com a máxima atenção, seriam
restaurados "assim que possível e prudente fosse", embora ele
preferisse não dizer quando. E concluiu:
—É o que recomendo a esta diretoria. E prometo que, em conseqüência,
nossos lucros passarão a ser, de fato, muito bons.
Heyward recostou-se na cadeira e Jerome Patterton declarou:
— A sessão está aberta para perguntas e discussões.
— Francamente, não vejo necessidade nem de uma coisa nem de
outra — disse Wallace Sperrie. — Está tudo tão claro! Acho que
fomos testemunhas de uma obra-prima em favor do Banco e
proponho que seja aprovada.
Várias vozes gritaram em coro:
— De acordo!
— Então estamos prontos todos para votar? — perguntou Jerome
Patterton, evidenciando que esperava por tal pronunciamento. O
martelinho achava-se a seu lado.
— Não — disse calmamente Alex Vandervoort, interrompendo as
anotações que fazia. — Creio mesmo que nenhum dos presentes
possa votar sem uma boa discussão da matéria.

Patterton suspirou resignado. Alex o informara sobre suas intenções,
mas ele esperava que o ambiente de unanimidade o levasse a
recuar.

— Lamento de coração — disse Alex — discordar, perante a diretoria,
dos pontos de vista dos meus colegas Jerome e Roscoe. Mas não
posso deixar, em sã consciência, de mostrar o que julgo a respeito
deste empréstimo, além de minha absoluta oposição ao mesmo.
— Qual é o problema? Sua amiguinha não gosta da Supranational?
A pergunta agressiva partira de Forrest Richardson, um antigo diretor
do FMA. Sempre fora assim grosseiro, com reputação de
puritano, e era um rei, ou, pelo menos, um dos príncipes da
embalagem de carnes.
Alex enrubesceu de raiva. Sem dúvida não se haviam esquecido da
ligação amorosa que mantinha com Margot e que viera a público
durante o caso do Fórum East. Mas conseguiu controlar-se e
respondeu:
— A Srta. Bracken e eu raramente discutimos assuntos bancários.
Outro diretor perguntou:
— Então, por favor, me diga por que discorda da operação com a
Supranational, Alex?
— Por todos os motivos.
Em volta da mesa ouviam-se exclamações de aborrecimento; os rostos
que se voltavam para Alex Vandervoort expressavam a mais
absoluta falta de cordialidade.
Com simplicidade, Jerome Patterton disse:
— E melhor que você exponha tudo de uma vez.
— É exatamente o que farei.
Alex abriu uma pasta que trouxera consigo e tirou alguns papéis
com anotações.


— De início, sou contra a extensão, o volume do compromisso,
levando-se em consideração que é com uma só conta. Em minha
opinião, trata-se, não só de uma desaconselhável concentração de

risco, mas também de um ato fraudulento, conforme a Seção 23 A
do Federal Reserve Act.
Roscoe Heyward exclamou:


— Oponho-me absolutamente ao uso da palavra fraudulento.
— O fato de você objetar em nada altera a verdade — dissse Alex
com calma.
— Mas isto não é verdade! Já tornei bem claro que o compromisso,
em seu todo, não é apenas com a Supranational Corporation, mas
também com suas subsidiárias: Hepplewhite Distillers, Horizon
Land, Atlas Jet Leasing, Caribbean Finance e International Bakeries.
— Acenou com sua pasta azul. — Está tudo registrado aqui, da
maneira mais específica e detalhada possível.
— Todas estas companhias são subsidiárias, controladas pela Supranational.
— Mas também são companhias estabelecidas há muito tempo, e em
tudo viáveis.
— Então por que, hoje e tantas outras vezes, temos apenas falado da
Supranational?
— Para facilitar as coisas, para simplificar. — Heyward estava zangado.
— Você sabe tanto quanto eu que, tão logo o dinheiro do Banco
esteja em qualquer destas subsidiárias, G. G. Quatermain pode, e
provavelmente o fará, mudá-lo da maneira que melhor lhe convier
— insistiu Alex.
— Agora espere aí, alto lá. — A interrupção veio de Harold Austin,
que batia com a mão na mesa. — Big George Quartermain é um
bom amigo meu. E não vou ficar aqui sentado ouvindo sem protesto
uma acusação de má fé que lhe é feita.
— Eu não acusei de má fé — respondeu Alex. Refiro-me a algo que
é um fato concreto nas atividades de qualquer conglomerado.
Grandes somas de dinheiro são transferidas com freqüência entre as
subsidiárias da Supranational, o que pode ser comprovado por seus

próprios balanços. Isto vem confirmar que, na prática, estaremos
emprestando dinheiro a uma única entidade.

— Bem... — disse Austin. Voltou-se para Alex, olhou-o e depois
dirigiu-se aos presentes. — Mais uma vez repito que conheço
George Quartermain muito bem, assim como conheço a
Supranational. Como a maioria sabe, fui o responsável pelo
encontro nas Bahamas, durante o qual Roscoe e Big George
discutiram esta linha de crédito. Em vista de tudo, repito que acho
um negócio excepcional para o Banco.
Depois de um silêncio embaraçoso, Philip Johannsen falou.
— Não será o caso, Alex, de você estar enciumado por ter sido
Roscoe e não você, o convidado para a partida de golfe nas
Bahamas? — perguntou o presidente da MidContinent Rubber.
— Não. O que penso a respeito do caso nada tem a ver com aspectos
particulares.
Alguém disse em tom cético:


— Bom, mas não é a impressão que dá...
— Senhores, senhores! — Jerome Patterton bateu de leve com seu
martelo.
Alex previra uma reação desse tipo. Usando todo seu autocontrole,
persisitiu:
— Insisto: o empréstimo é grande demais para um só cliente. Além
disso, fingir ignorar que se trata de um só cliente é uma tentativa
tendenciosa de lograr a lei, todos nós nesta sala o sabemos.
Correu o olhar pelos presentes.
— Eu não sei disso e afirmo que sua interpretação é tendenciosa e
absolutamente errada — disse Roscoe Heyward.
A esta altura, já estava claro que o ambiente tornara-se irrespirável.
As reuniões de diretoria eram sempre afáveis; os eventuais
desacordos eram suaves, com os diretores trocando comentários
polidos. A argumentação de hoje, nervosa, zangada, nunca ocorrera.

Pela primeira vez Leonard L. Kingswood tomou a palavra. Sua voz
era conciliatória.

— Alex, chego a admitir que existe alguma substância no que você
diz mas, sem dúvida, a operação proposta é realizada com
freqüência pelos grandes bancos e grandes empresas.
A interferência do presidente da Northam Steel era significativa. Na
reunião de dezembro último ele próprio tinha liderado o
movimento para que Alex fosse designado o principal chefe
executivo e o Presidente do FMA. E prosseguia:
— Francamente, se existe irregularidade nessa espécie de financiamento,
minha própria Companhia também tem andado errada.
Embora sabendo que isto lhe custaria a perda de um amigo, Alex
disse:
— Lamento muito, Len. Mas continuo a acreditar que não é regular
e que deveríamos discutir abertamente o assunto. Julgo também que
há um conflito de interesses na ida de Roscoe para a diretoria da
Supranational.
Philip Johannsen tomou a palavra e disse em tom irritado:
— Se depois deste último comentário, você espera que acreditemos
na inexistência de um sentido pessoal no que diz, está
completamente louco.
Roscoe Heyward tentou, mas não conseguiu esconder um sorriso.
Alex continuava firme, corn o rosto o mais severo possível. Ele pensava
que talvez esta fosse a última reunião de diretoria do FMA de
que Participaria, mas de qualquer modo prosseguiria até o fim.
Ignorando o comentário de Johannsen, declarou:
— Nós. banqueiros, jamais aprendemos. De todos os lados, pelo
Congresso, consumidores, nossos próprios clientes, a imprensa,
somos acusados de perpetuar um conflito de interessas através de
diretorias interligadas. Se formos honestos, teremos de concordar
que quase todas as acusações são verídicas. Todos nós sabemos
como as grandes companhias de petróleo se ligam umas às outras,

trabalhando lado a lado nas diretorias, e isto é apenas um exemplo.
E no entanto continuamos a persistir na mesma espécie de atitude:
Você participa da minha diretoria, e eu participo da sua. Quando Roscoe
se tornar um diretor da Supranatio-nal. quais os interesses que ele
porá em primeiro lugar? Os da Supranational? Os do FMA? E.
mesmo nas reuniões de diretoria, favorecerá ele a SuNatCo contra
outras companhias, porque é dos seus diretores? Os acionistas de
ambas as companhias têm direito a respostas para estas perguntas:
bem como os legisladores e o público. E há mais: se não dermos
logo respostas convincentes, se não deixarmos de ser tão arrogantes
como somos, todo o sistema bancário terá que enfrentar leis duras e
restritivas. |Na minha opinião, serão merecidas.

— Se você continuar por este caminho, metade dos membros desta
diretoria poderiam ser acusados de viver em conflito de interesses
— objetou Forrest Richardson.
— Nem mais, nem menos. Chegará o momento em que o próprio
Banco terá que enfrentar esta situação e ver como poderá contornála.
Richardson resmungou:
— Mas sobre este assunto nem todos têm a sua opinião.
Sua própria companhia de embalagem de carnes congeladas, como
todos sabiam, era grande devedora do FMA e Forrest Richardson
participara de reuniões de diretoria, nas quais empréstimos à sua
empresa tinham sido aprovados.
Ignorando a crescente hostilidade, Alex continuou:
— Outros aspectos referentes ao empréstimos à Supranational também
me preocupam. Para conseguirmos ter todo esse dinheiro livre,
teremos que cortar hipotecas e pequenos empréstimos. Nestas duas
áreas, sem considerar outras, o Banco estará ralhando perante o
público, perante a comunidade.
Cheio de melindres. Jerome Patterton disse:
— Mas ficou claramente entendido e resolvido que tais cortes serão
apenas temporários.

— Certo. Exceto que ninguém, até agora, disse qual o prazo dessa
suspensão, e ninguém leva em consideração a má vontade que a
suspensão desses empréstimos e hipotecas trará para o Banco. Mas
existe ainda uma terceira área a ser atingida por esses cortes: refiro-
me aos bônus municipais. — Abrindo sua pasta, Alex voltou a
consultar algumas notas. — Nas próximas seis semanas, 11 tipos de
bônus municipais e escolares serão lançados no Estado. Se o Banco
deixar de participar, pelo menos em metade deles com certeza não
conseguirão ser vendidos. — A voz de Alex tornara-se mais áspera.
— Terá a diretoria a intenção de deixar de lado, tão imediatamente
após a morte de Ben, uma tradição que durou três gerações de
Rosselli?
Pela primeira vez, desde o início da reunião, os diretores
mostraram-se perturbados. Era de fato uma política estabelecida há
muitos anos pelo fundador do Banco, Giovanni Rosselli, que o FMA
sempre liderasse a subscrição e a venda de bônus emitidos pelas
pequenas municipalidades estaduais. Sem ajuda do maior banco do
Estado, tais bônus, em grande número, mas de pequena
importância, poderiam não encontrar mercado, deixando suas
comunidades sem recursos financeiros. A tradição fora seguida
fielmente pelo Filho de Giovanni Lorenzo, e por seu neto, Ben. A
transação, em si. não era específica ou especialmente lucrativa, mas
não chegava a dar prejuízo. Tratava-se de um típico serviço de
utilidade pública, que acabava por trazer pequenos resultados
dessas comunidades, já que alguns de seus cidadãos passavam a
transacionar com a agência local do FMA.
— Jerome, talvez fosse bom a gente reexaminar a situação — sugeriu
Kingswood.
Murmúrios de consentimento. Roscoe
Heyward interrompeu.
— Jerome... se me dá licença.
O Presidente do Banco acenou com a cabeça, concordando.

— Em vista do que parece ser uma reação sentimental da diretoria
— disse Heyward numa voz macia — estou certo de que podemos
reestudar o assunto e talvez restaurar uma porção dos fundos
necessários para compra de bônus municipais, sem contudo
impedir que a transação com a Supranational se realize. Tomo a
liberdade de sugerir que esta diretoria, uma vez tenha feito seus
sentimentos conhecidos, deixe os detalhes a cargo de Jerome e de
mim próprio. — Excluíra o nome de Alex.
Todos concordaram. Alexporém, objetou:
— Isto não é um compromisso completo, nem tem nada que ver
com a restauração das hipotecas e dos pequenos empréstimos.
Os outros membros da diretoria ficaram em silêncio.
— Não, ainda existe um aspecto sobre o qual preciso falar. Patterton
e Heyward trocaram olhares de resignação.
— Já mencionei um conflito de interesses. Agora, quero alertar a
diretoria sobre algo ainda mais importante — continuou Alex
sombriamente. — Desde que começamos a negociar a futura
transação com a Supranational. e até ontem à tarde, nosso
Departamento de Administração de Carteiras já comprou — ele
consultou suas anotações — 123 000 ações da Supranational.
Durante este curto período, e provavelmente devido a compra tão
substancial feita com dinheiro das carteiras de nossos clientes, as
ações da SuNatCo tiveram seu preço elevado em sete e meio pontos.
Creio que isso foi o pretendido e o acertado como condição...
Sua voz foi sufocada pelos protestos de Roscoe Heyward. Jerome
Patterton e muitos outros diretores.
Heyward levantou-se outra vez, com os olhos fuzilando.

— Isto é o que pode se chamar dedestorção deliberada! Alex. sem
titubear, retrucou:
— A compra das ações não foi destorção alguma.
— Mas sua interpretação, sim. A SuNatCo é um investimento excelente
para os clientes cujas carteiras administramos.

— E o que o tornou assim, de repente, tão bom?
Pattertoit protestou com veemência:
—Alex, transações específicas do Departamento de Carteiras não
são assuntos para discussão aqui.
— Concordo inteiramente com você — disse Philip Johannsen.
Harold Austin e vários outros gritaram concordando:
— Eu também.
— Quer sejam ou não assunto para discussão aqui — prosseguiu
Alex — eu os estou alertando de que tudo que está acontecendo
pode representar uma contravenção do Glass-Steagall Act de 1933, o
que os diretores podem ser considerados responsáveis...
Todo mundo começou a falar ao mesmo tempo. Alex sabia que
tinha tocado num nervo sensível. Embora os membros da diretoria
fossem, sem dúvida, bem informados e, portanto, tivessem
conhecimento da espécie de duplicidade que ele acabava de
apontar, teriam preferido não tomar conhecimento disso, assim às
claras. Tomar conhecimento implicava em envolvimento, em
responsabilidade. E eles não queriam nem uma coisa, nem outra.
"Bem", pensou Alex, gostem ou não gostem, agora se deram conta.
Todos eles".
E acima do murmúrio das vozes dos presentes, que falavam entre
si, Alex continuou com a maior firmeza:
— Estou apenas avisando à diretoria que, se ratificar o empréstimo
à Supranational, com suas implicações, todos se arrependerão. —
Recostou-se na sua cadeira e disse: — Isto é tudo.
Jerome Patterton precisou bater com o martelinho na mesa para que
o silêncio voltasse. Mais pálido do que nunca, declarou:
— E se não houver mais nenhuma discussão, se ninguém quiser
fazer mais nenhuma pergunta, poderemos passar à votação.
Momentos depois a proposta referente à Supranational era
aprovada com um único voto contra, o de Alex Vandervoort.

12


A frieza com que todos trataram Alex Vandervoort era evidente,
quando os diretores voltaram a se reunir, após o almoço.
Normalmente, uma reunião que durasse duas horas cobria todos os
assuntos a serem discutidos. Hoje, entretanto, eles precisavam de
mais tempo.
Sabendo do antagonismo da diretoria, Alex tinha sugerido a Jerome
Patterton, durante o almoço, que a apresentação de seus projetos
fosse transferida para o mês seguinte. Mas Patterton foi sucinto:


— Nada feito. Se os diretores estão mal-humorados, é porque você
os fez ficar assim; portanto, agüente as conseqüências.
Para Jerome Patterton, cuja maneira habitual era amável e contemporizadora,
a declaração era extraordinariamente forte, mas servia
para ilustrar a onda de ressentimento que tomava conta de todos,
contra Alex. Também serviu para convencê-lo de que a próxima
hora de reunião seria gasta em tolices. Tinha certeza que suas
propostas seriam rejeitadas, qualquer que fosse seu valor, até
mesmo por simples represália.
Os diretores sentaram-se, Philip Johannsen olhou para o relógio a
fim de que todos se dessem conta de que horas já eram.
— Eu, por mim, já tive que cancelar uma reunião para esta tarde —
resmungou o chefe da MidContinent Rubber — e tenho outras
coisas a fazer, muitas outras coisas. Portanto, vamos acabar com isto
tudo de uma vez, e o mais depressa possível.
Todos acenaram com a cabeça, concordando.
— Serei tão breve quanto possível, cavalheiros — Alex prometeu,
quando Jerome Patterton lhe deu a palavra. — Minha intenção é
apenas mencionar quatro pontos. — E mostrou os dedos à medida
que falava.
— Primeiro, o Banco está perdendo negócios importantes, lucrativos,
deixando de atender grande número de oportunidades para
estimular as pequenas economias. Segundo, uma expansão dos

pequenos depósitos, das pequenas economias só tenderia a
melhorar a estabilidade do Banco. Terceiro, quanto mais nos
demorarmos a fazê-lo, mais difícil será alcançar nossos muitos
competidores. Quarto, existe um campo de ação para liderança, que
nós e outros bancos poderíamos exercer, batendo-nos por certos
hábitos de poupança pessoal, empresarial e nacional, hábitos há
muito tempo esquecidos, negligenciados durante muito tempo.
E Alex começou a descrever métodos pelos quais o FMA poderia
ganhar de seus competidores ao oferecer taxas de juros um pouco
mais altas sobre a poupança, naturalmente dentro do limite legal
máximo; oferecendo termos mais atraentes para certificados de
depósitos de um a cinco anos; conferindo certas facilidades aos
depositantes de poupança, naquilo que a legislação bancária
permitisse; presenteando os clientes quando abrissem novas contas;
lançando uma campanha maciça de propaganda que cobrisse o
programa de poupança e, ao mesmo tempo, abrindo novas
agências, em número de nove.
Para fazer sua exposição, deixara seu lugar habitual e se dirigira à
cabeceira da mesa, ficando de pé. Patterton cedera seu próprio
lugar, sentando-se na cadeira seguinte. Trouxera o economista-chefe
do Banco, Tom Straughan, que havia preparado gráficos que Alex
montara em cavaletes, para que toda a diretoria os pudesse ver.
Koscoe Heyward permanecia em silêncio, ouvindo, com o rosto sem
expressão.
Quando Alex fez uma pausa, Floyd LeBerre tomou a palavra e
disse:

— Tenho uma observação a fazer.
Patterton, já de posse de sua polidez habitual, perguntou:
— Alex, você prefere responder às perguntas à medida que forem
feitas, ou prefere respondê-las quando terminar?
— Responderei a Floyd agora.
— Não é bem uma pergunta — disse o presidente da General Cable.
sério. — É apenas para questão de registro. Sou contrário à

expansão do programa de captação de poupanças porque estaremos
nos dilacerando. Agora mesmo, temos grandes depósitos de
instituições que se dedicam a isso.

— 18 milhões de dólares dessas instituições — disse Alex. Ele já
esperava a objeção de LeBerre, aliás válida.
Poucos bancos existiam por si mesmos. A maioria tinha ligações financeiras
com outros, e o FM A não era exceção. Várias instituições
locais de crédito (saving and loan institutions) mantinham grandes
depósitos com o FMA e temiam que estas importâncias fossem
empregadas em outras atividades de poupança, como já ocorrera no
passado.
Alex disse:
— Levei tudo isso em consideração. LeBerre não ficou satisfeito.
— Você levou em consideração o fato de que, se competirmos intensamente
com nossos próprios fregueses, perderemos parte de
seus depósitos e de suas operações financeiras?
— Uma parte, sim. Mas não creio que o total. De qualquer modo,
surgirão novos negócios que ultrapassarão aquilo que perdermos.
— Isto é o que você diz. Alex insistiu:
— Julgo que é um risco aceitável. Leonard Kingswood disse
tranqüilamente:
— Você era contrário a qualquer risco com a Supranational, Alex.
— Não sou contra riscos. Este é um risco muitíssimo menor. Os
dois, entre si, não têm a menor relação.
Em volta da mesa a expressão dos diretores era do maior ceticismo.
LeBerre disse:
— Gostaria de ouvir a opinião de Roscoe sobre o assunto. Os outros
dois concordaram.
— Certo, vamos ver o que Roscoe tem a dizer.
Os olhares se voltaram para Heyward que estudava papéis de sua
pasta. Ele respondeu:
— Não é muito agradável fazer carga contra um colega.

— E por que não? — alguém perguntou. — E o que esteve ele fazendo
com você até agora?
Heyward sorriu de leve. Depois seu rosto tornou-se duro e ele prosseguiu.
— Prefiro se manter acima disto. No entanto, tenho a dizer que concordo
com Floyd. Uma atividade intensiva de poupança de nossa
parte, nos faria perder muitos negócios importantes e correlatos.
Não acredito que nenhum lucro teórico, em potencial, possa
corresponder a tais perdas. — Ele apontou para um dos painéis de
Straughan que indicava a localização das agências propostas. —
Peço que observem que cinco das agências sugeridas seriam
localizadas próximo de associações de poupança e empréstimos,
grandes depositantes no FMA. E evidente que não lhes passará
despercebido.
— Estas localizações — disse Alex — foram escolhidas como resultado
de cuidadosos estudos de concentração populacional. E aí que
o povo realmente se encontra. Claro que as associações chegaram
primeiro; sob muitos aspectos foram mais perspicazes que o Banco.
Mas isto não quer dizer que fiquemos sempre de fora.
Heyward deu de ombros.
— Por mim, já dei minha opinião. Mas digo ainda: não gosto desr.a
idéia de fachada de agências novas.
Imediatamente Alex respondeu:
— Elas serão como que "lojas de dinheiro", as agências bancárias do
futuro. — Alex verificava que tudo se encaminhava em direção
oposta a seus desejos. O assunto das agências, ele teria preferido
discutir mais tarde. Agora, pouca diferença faria...
— Pela sua descrição — enquanto falava, Floyd LeBerre consultava
um informe que Tom Straughan havia distribuído aos presentes —
essas agências mais parecem lavanderias automáticas.
Heyward, que estava lendo o informe, concordou:

— Absolutamente em desacordo com nosso estilo habitual. Não têm
categoria, nem dignidade.
— Acho que seria melhor para nós se perdêssemos um pouco de
nossa dignidade e nos dedicássemos a fazer maiores negócios —
declarou Alex. — E certo, agências bancárias em lojas podem
lembrar lavanderias; ainda assim, são a espécie de agências que está
surgindo. Vou fazer uma previsão, que espero não seja esquecida:
nem nós, nem nossos competidores podemos nos dar ao luxo de
manter os sepulcros dourados que temos atualmente, servindo de
agências. O preço do terreno e da construção torna tudo isso sem
sentido. Em dez anos, no máximo, a metade de nossas atuais
agências terá deixado de existir da maneira como são agora.
Evidentemente, conservaremos algumas, as agências principais. O
resto delas terá que ser construído em terrenos mais baratos,
totalmente automatizadas, com caixas automáticas, aparelhos de
televisão para responder a perguntas, tudo, é lógico, ligando a um
centro computador. Ao planejarmos novas agências, inclusive as
nove que ora proponho, estaremos dando um passo à frente,
antecipando o próprio futuro.
— Alex tem toda razão sobre a automatização. Nós todos vemos
isto em nossos negócios individuais, tomando um aspecto sólido,
significativo, e cada vez mais depressa, bem mais depressa do que
esperávamos — disse Leonard Kingswood.
— Mas, também é significativa a oportunidade que teremos de ganhar
dinheiro, caso façamos uma campanha dramática, com faro,
discernimento e inspiração. Uma campanha de propaganda e
promoção maciça, com toda espécie de cobertura, levando à
saturação. Cavalheiros, olhem para os números. Primeiro, nossos
depósitos atuais de poupança, muitíssimo abaixo do que poderiam
ser.
Alex continuou mostrando os gráficos e dando certas explicações.
Sabia que aqueles números e as propostas que ele e Straughan

haviam labutado tanto para pôr no papel eram dados lógicos. No
entanto, continuava a perceber a mais absoluta oposição por parte
de alguns diretores, afora o desinteresse por parte de outros. Na
outra extremidade da mesa, um deles chegou a disfarçar um bocejo
com a mão.
Era evidente que fora derrotado. A expansão das agências e das
poupanças seria rejeitada e isto, na realidade, representaria um
testemunho de falta de confiança nele próprio, Alex. Mais uma vez
pensou quanto tempo ainda duraria sua ligação com o FMA. Seria
um prazo muito curto, mesmo porque ele não podia se ver como
participante de um regime dominado por Heyward.
Resolveu não perder mais tempo.

— Bem, vou encerrar aqui, cavalheiros. É desnecessário prosseguir,
a menos que hajam perguntas a serem feitas.
Claro; ele não esperava nenhuma espécie de pergunta e, muito menos,
qualquer tipo de apoio. Mas, de forma surpreendente, este
apoio surgiu.
— Alex, gostei do que você disse e, com sinceridade, quero
agradecer-lhe. Estou verdadeiramente impressionado e surpreso. A
sua apresentação foi muito convincente; além do mais, gosto da
idéia desse novo tipo de agências — disse Harold Austin no mais
cordial dos tons de voz.
De sua cadeira Heyward pareceu paralisado, depois olhou para
Austin. S. Exa. Harold Austin ignorou-o e dirigiu-se aos presentes.
— Acho que deveríamos estudar este assunto com uma mente
aberta, receptiva, deixando de lado nossas discordâncias iniciais.
Leonard Kingswood concordou, bem como vários outros. A atenção
voltara àqueles diretores que estavam quase dormindo depois de
terem almoçado lautamente. Não era à toa que Austin era o
membro da diretoria do FMA com a mais longa folha de serviços.
Era persuasivo e sabia fazer com que os outros entendessem e
aprovassem seus pontos de vista.

— Durante o começo de seus comentários, Alex, você falou num
retorno à economia pessoal e numa liderança que bancos como o
nosso poderiam ter — disse ele.
— Sim, foi o que eu disse.
— Poderia explicar em detalhes estas suas idéias? Alex hesitou, mas
disse:
— Creio que sim.
No íntimo, ele começou a pesar os pró e os contra. Deveria estender-
se sobre o assunto? A intervenção da Austin só o surpreendera nos
primeiros instantes. Sabia muito bem o motivo daquela troca de
campo.
Propaganda. Poucos minutos antes, quando ele sugerira uma "campanha
de propaganda maciça" com "cobertura total até a saturação",
percebera que Austin passara a olhá-lo com interesse crescente. A
partir daí, não era difícil perceber o que tinha em mente. A Austin
Advertising Agency, exatamente devido à influência de Harold
Austin, tinha o monopólio de toda a propaganda do Banco. Uma
promoção do vulto proposto por Alex traria um lucro substancial à
empresa dele.
A posição de Austin caracterizava o conflito de interesses em sua
forma mais grosseira. Tratava-se daquele mesmo conflito a que Alex
se opusera quando se referira à designação de Heyward para a
diretoria da Supranational. Naquela oportunidade, ele indagara:
Quais os interesses que Roscoe porá em primeiro lugar? Os da
Supranational? Os do FMA? Agora, uma situação em tudo
semelhante se apresentava.
A resposta era evidente: Austin estava cuidando dos próprios interesses;
o FMA vinha em segundo lugar. Alex chegou à conclusão
que Austin não estava, de fato, confiando no sucesso do plano. Se o
apoiava, era movido por motivos exclusivamente egoístas. Tratava-
se de um abuso de confiança, um desrespeito a toda e qualquer
ética.


Deveria Alex referir-se a isso? Mas, se o fizesse, provocaria uma
reação ainda mais forte que a da sessão da manhã. E uma vez mais
perderia. Os diretores agiam como se fossem vizinhos de quarto.
Além disso, ele sabia que qualquer acareação poria fim às suas
atividades no FMA. Portanto, valeria a pena? Seria tão necessário?
Seus deveres exigiam que fosse ele o guardião da consciência da
diretoria? Sentia-se um tanto confuso e enquanto assim raciocinava,
os diretores o observavam e aguardavam sua resposta.

— É certo, eu me referi, conforme Farold acaba de lembrar, às economias
e à necessidade de liderança. — Alex olhou suas anotações,
as mesmas que, poucos minutos tinha decidido não levar sequer em
consideração. — Com frequência se diz que o governo, a indústria e
o comércio em geral são fundados, criados através do crédito. Sem
crédito, sem empréstimo médio, pequeno, maciço, os negócios se
desintegrariam e a própria civilização definharia. Nós, banqueiros,
sabemos disso muito bem. No entanto, e cada vez mais, alguns
acreditam que o sistema de empréstimos e de financiamentos
deficitários está sem controle, e embotou todo o raciocínio. Isto é
particularmente verdadeiro no que se refere aos governos. O
Governo dos Estados Unidos acumulou uma tremenda montanha
de débitos, muito além de nossa capacidade ou possibilidade de,
algum dia, cobri-los. Outros governos estão nas mesmas condições,
ou pior. Esta é a razão real da inflação e da erosão da moeda, nos
Estados Unidos e internacionalmente. Esse débito governamental é
acompanhado por um gigantesco débito das empresas, chegando
ambos a uma extensão terrível. E, num nível financeiro mais baixo,
milhões de pessoas, indivíduos que seguem os exemplos
estabelecidos pela Nação, passaram a contrair dívidas que não
podem pagar. O débito nacional do consumidor está chegando
atualmente a duzentos bilhões de dólares. Nos últimos seis anos,
mais de um milhão de americanos foi à falência. Ao longo do
caminho, nacionalmente, empresarialmente, individualmente,
perdemos o antigo hábito de poupança e economia, o hábito de

equilibrar o que gastamos com o que ganhamos, e de mantermos
nossas dívidas dentro de limites honestos.
A atmosfera da reunião estava mais receptiva. Aproveitando-se
disso, Alex disse com calma:


— Gostaria de poder dizer que vejo algo melhor; mas nada vejo.
Entretanto, é necessário tomar uma atitude, fazer uma tentativa e,
seja qual for, tem que partir de uma ação resoluta. Por que não
aqui? Nos tempos atuais, os depósitos de economias, mais do que
qualquer outro tipo de atividade monetária, representam prudência
financeira. Tanto no plano nacional quanto no individual,
precisamos ter mais prudência. E um meio de obtê-la é através de
grandes aumentos da poupança. Tais aumentos podem ocorrer se
nos comprometermos a isto, se, de fato, trabalharmos para tanto. E
conquanto as economias individuais, por si só, não sejam suficientes
para restaurar a sanidade fiscal em todo o país, pelo menos será um
primeiro passo em direção a esse objetivo. Assim sendo, constato
que há uma oportunidade para o exercício de uma liderança e esta é
também a razão pela qual creio que ela deveria caber ao nosso
Banco.
Alex sentou-se. Logo depois deu-se conta de que não opusera reparos
à intervenção de Austin.
Leonard Kingswood quebrou o silêncio.
— A verdade e a sensatez não são boas de ouvir. Mas acho que
todos nós acabamos de ouvir ambos, sensatez e verdade.
Philip Johannsen resmungou, mas acrescentou entre dentes:
— Acho que também penso assim.
— Penso, exatamente como você — disse S. Exa. Harold Austin. —
Em minha opinião, a diretoria deve aprovar o plano de expansão de
agências e poupanças, conforme exposição feita por Alex. Meu voto
será favorável. E peço a todos que meditem e se decidam como eu.
Desta vez Roscoe Heyward não manifestou desagrado, embora sua
expressão continuasse carrancuda. Alex pensou que ele também
percebera quais os motivos de Harold Austin.

Durante cerca de 15 minutos a discussão continuou, até que Jerome
Patterton bateu com seu martelinho e pediu que começassem a
votar. Por uma maioria esmagadora, as propostas de Alex
Vandervoort foram aprovadas. Floyd LeBerre e Roscoe Heyward
foram os únicos dissidentes.
Quando saía da reunião, Alex teve consciência de que a hostilidade
a seu respeito já desaparecera. Alguns diretores tornaram claro que
ainda se ressentiam de sua posição relativa à Supranational. Mas o
resultado final, inesperado, deixou-o mais alegre e menos
pessimista quanto à sua permanência no FMA.
Harold Austin interceptou-o.

— Alex, quando dará início ao projeto de poupança?
— Imediatamente. — Não querendo parecer descortês, acrescentou:
— Obrigado pelo seu apoio.
— O que eu quero saber é se posso trazer dois ou três de meus
melhores profissionais para discutir a campanha — disse Austin.
— Muito bem; na próxima semana.
E assim Austin havia confirmado, sem demora ou qualquer espécie
de embaraço, o que Alex havia deduzido. Mas, para ser justo, Alex
pensava, teria que concordar que a agência de Harold Austin
trabalhava bem e era uma das mais competentes para se encarregar
da campanha que ele tinha em mente.
Mas também sabia, com certeza, que apenas buscava uma justificativa
para sua transigência. Ao se calar, momentos antes, sacrificara
seus princípios para atingir um fim. E ele cogitava como Margot
reagiria a essa falta.
Austin despediu-se, acrescentando com amabilidade:
— Está bem; voltaremos a nos encontrar daqui a uns dias.
Heyward, caminhando logo à frente de Alex, ia acompanhado por
um mensageiro do Banco, que lhe trouxera um envelope fechado.
Ele abriu o envelope e desdobrou um papel. Ao ler as palavras ali
contidas, ficou visivelmente mais risonho, olhou para o relógio com
a alegria estampada no rosto. Alex perguntou-se por quê.

13


O recado era curto. Datilografado por sua secretária mais categorizada,
Dora Callaghan, o informava que a Srta. Deveraux telefonara
comunicando que se encontrava na cidade e que gostaria que ele a
chamasse, logo que possível. Indicava um número de telefone, e o
ramal.
Pelo número, Heyward reconheceu o Colúmbia Hilton Hotel. E a
Srta. Deveraux era Avril.
Já se tinham encontrado duas vezes desde a visita às Bahamas, há
um mês e meio, sempre no Colúmbia Hilton. E ambas as vezes,
assim como naquela noite em Nassau quando ele apertara o botão
número sete para que Avril viesse a seu quarto, ela o tinha levado a
uma espécie de paraíso, um lugar de êxtase sexual tal como ele
jamais sonhara que pudesse existir. A moça sabia fazer coisas
inacreditáveis com um homem, coisas que, naquela primeira noite,

o chocaram de início, mas que logo o deliciaram.
Com o prosseguimento, a habilidade de Avril despertou-lhe. onda
por onda, prazeres sexuais que nunca suspeitara existir, até que
chegou a gritar, num êxtase de gozo, palavras que ele próprio
pensava desconhecer. Avril tinha sido gentil, carinhosa, paciente e
amorosa até que, para a maior surpresa e exaltação de Heyward, ele
se sentiu outra vez apto para repetir o ato sexual.
Foi então que ele começou a pensar, pela primeira vez, o quanto
havia perdido da paixão e glória da vida: a exploração mútua, o
dividir e partilhar, o dar e receber no ato do amor, coisas que ele e
Beatrice jamais haviam praticado.
Para o casal, essa descoberta chegara tarde demais. E para Beatrice
talvez viesse a ser uma descoberta à qual ela se recusaria. Mas para
Roscoe e Avril ainda havia tempo; as ocasiões desde Nassau assim o
comprovavam. Ele olhou para o relógio, sorridente, o mesmo
sorriso que Alex surpreendera.

Claro! Iria ao encontro de Avril logo que fosse possível. Isto representava
uma completa desorganização de sua agenda para o resto
da tarde e para a noite, mas nada importava. Mesmo agora, o
simples pensar que iria vê-la era o suficiente para excitá-lo
fisicamente, como se fosse um adolescente.
Em certas ocasiões, desde que começara seu caso com Avril, a
consciência de Heyward perturbava-se um pouco. Durante os
últimos domingos, na igreja, o texto que ele havia lido antes de
partir para as Bahamas voltava-lhe à memória: A virtude exalta uma
nação; mas o pecado é uma desgraça para qualquer povo. Mas, cada vez
que estas palavras lhe vinham à memória, ele encontrava consolo
nas palavras de Cristo no Evangelho de São João: Aquele que entre
vós não tiver nenhum pecado, que seja o primeiro a atirar uma pedra... E
ainda: Vós julgais segundo a carne; eu não julgo homem nenhum.
Heyward ousou pensar, com uma leviandade inteiramente nova,
que a Bíblia, tanto quanto as estatísticas, podiam ser usadas para
provar quase tudo.
De qualquer forma, não adiantava analisar o assunto, era apenas
uma coisa imaterial e tola. Ele estava, por completo, intoxicado de
Avril e essa intoxicação era mais forte que qualquer rebate de
consciência.
Ao deixar a sala de reuniões, em direção a seu escritório, ele concluía
que aquele encontro com Avril era o coroamento de um dia
triunfal, com sua proposta sobre a Supranational aprovada e seu
prestígio em pleno apogeu na diretoria. Ficara, sem dúvida,
bastante desapontado com o resultado da reunião da tarde, e
decepcionado com a atitude de Harold Austin, que julgava uma
traição, embora lhe fosse fácil perceber o interesse pessoal que a
motivara. Mas Heyward não acreditava que os planos de
Vandervoort viessem a resultar em qualquer sucesso positivo, concreto.
Os lucros enormes, quase excessivos que o Banco teria este
ano, provenientes de seus arranjos com a Supranational seriam
muito, muito maiores.


Isto levou-o a pensar que precisava tomar uma decisão quanto ao
meio milhão de dólares pedidos por Big George como um
empréstimo adicional para a Q-Investments.
Roscoe Heyward meditou sobre o assunto. No fundo, achava que
nessa história toda de Q-Investments havia qualquer sutil
irregularidade. Mas, considerando o compromisso do Banco para
com a Supranational e vice-versa, não poderia ter gravidade.
Aliás, ele fizera referência ao assunto num memorando confidencial
dirigido a Jerome Patterton, a cerca de um mês:

G. G. Quartermain da Supranational me telefonou duas vezes
ontem, de Nova Iorque, sobre um projeto pessoal que ele chama Q-
Investments. Trata-se de pequeno grupo privado do qual Quartermain
(Big George) é o maior acionista, e nosso diretor, Harold
Austin, um dos participantes. O grupo já comprou grande
quantidade de ações ao portador de várias empresas da
Supranational, sempre em condições vantajosas. Então planejando
compras maiores.
O que Big George quer de nós é um empréstimo para a Q-
Investments de meio milhão de dólares com a mesma taxa baixa
concedida no empréstimo a Supranational, embora sem nenhuma
exigência de retenção. Ele destaca o fato de que a retenção da Su-
NatCo será suficientemente ampla para equilibrar este empréstimo
pessoal — o que, na realidade, é a mais absoluta verdade, embora,
evidentemente, não exista nenhuma garantia total.
Gostaria de acrescentar que também Harold Austin me telefonou
hoje insistindo para que o empréstimo fosse concedido.
Na realidade, Austin lembrara a Heyward o acordo que haviam
feito, após a morte de Ben Rosselli e do apoio que lhe dera. Tratava-
se de um apoio que Heyward continuaria a necessitar quando
Patterton, o Papa interino, se retirasse, dentro de oito meses. O
memorando prosseguia.


Francamente, a taxa de juro sobre este empréstimo pedido é muito
baixa e conseguir um saldo médio, em si, já seria uma grande
concessão. Mas, em vista dos grandes negócios da Supranational
que Big George nos trouxe, acho que seria prudente seguirmos
avante. Por mim, recomendo que aprovemos o empréstimo. Você
concorda?

Jerome Patterton devolveu o memorando, apenas apondo seu OK
no que se referia à pergunta final. Conhecendo Patterton, Heyward
cogitava se, de fato, ele lera tudo, na íntegra, ou se empregara
apenas a leitura dinâmica.
Heyward não via nenhuma razão para que Alex opinasse sobre o
assunto e também nao julgava que o volume do empréstimo viesse
a exigir a aprovação do comitê de política monetária. Assim sendo,
dias depois apusera sua rubrica de aprovação, para o que tinha total
autoridade.
Mas não tinha autoridade, nem comunicara a ninguém, para fazer
uma transação pessoal entre ele próprio e G. G. Quartermain.
Durante sua segunda conversa telefônica que ambos mantiveram
sobre a Q-Investments, Big George, que telefonava de uma de suas
organizações em Chicago, lhe dissera:

— Tenho falado muito com Harold Austin a seu respeito, Roscoe.
Tanto ele quanto eu achamos que já é tempo de você participar dos
nossos investimentos, em nosso grupo. Eu gostaria de tê-lo conosco.
Por isso, me decidi e destinei a você 2 000 ações que pode
considerar como totalmente pagas. Para tornar a coisa mais discreta,
os certificados são nominativos e endossados em branco. Seguirão
amanhã pelo correio.
Heyward não sabia o que dizer.
— Obrigado, George, mas na realidade não creio que possa aceitar.
— Pelo amor de Deus, por que não?
— Seria inteiramente fora de toda e qualquer ética. Big George
mostrou-se surpreso.

— Roscoe, o mundo é como é. Este tipo de transação é comum,
acontece a toda hora entre clientes e banqueiros. Você sabe disso; e
eu também.
Sim, Heyward sabia; conquanto não acontecesse "a toda hora",
como Big George dizia. E Heyward jamais pensara em participar de
coisa semelhante.
Mas antes que pudesse dizer qualquer coisa, o outro persistiu:
— Escute, meu caro, não seja idiota. Se isto o faz sentir-se melhor,
diremos que as ações são uma recompensa por seus conselhos em
matéria de investimentos.
Mas Heyward sabia que não dera nenhum conselho referente a
qualquer espécie de investimento, em nenhuma oportunidade.
Um ou dois dias depois, os certificados das ações da Q-Investr
ments chegaram por via aérea registrada, com a indicação de
Estritamente Pessoal e Confidencial. Nem mesmo Dora Callaghan
abriu o envelope.
Em casa, aquela noite, estudando o relatório financeiro da Q-
Investments que Big George lhe mandara, Heyward chegou à
conclusão de que suas 2 000 ações tinham um valor (líquido
nominal) de 20 000 dólares. No futuro, se os Q-lnvestments
chegassem a prosperar a ponto de irem a público, sendo vendidos
em bolsa, valeriam muitíssimo mais.
Nesta altura, Heyward sentiu-se fortemente inclinado a devolver as
ações. Depois, ao pensar em sua própria situação financeira,
bastante precária e em nada melhor do que a de vários meses atrás,
hesitou. Afinal, cedeu à tentação e mais tarde, naquela mesma
semana, pegou os certificados e encerrou-os num cofre individual
na agência central do FMA. Para acalmar sua consciência,
procurava justificar-se com o fato de não haver desviado nenhum
dinheiro do FMA, pois o ganho lhe viera da Supranational. Então,
se Big George queria lhe dar um presente generoso, por que ser
grosseiro e recusá-lo?

Entretanto, aquela aceitação ainda o preocupava um pouco, em especial
depois que Big George lhe telefonara no final da última
semana, desta vez de Amsterdã, pedindo um empréstimo adicional
de meio milhão de dólares para a Q-Investments.

— Roscoe, preste atenção, eu não posso dizer muito num telefonema
internacional, então você tem que acreditar em mim e confiar.
Tenho em vista uma possibilidade única para nosso grupo Q-
Investments de comprar aqui em Guilderland um lote de ações que,
tenho certeza, subirão como um meteoro.
— Compreendo que você não possa falar muito, é claro, George —
disse Heyward — mas o Banco vai precisar de maiores detalhes.
— Você receberá todos os detalhes pelo correio de amanhã. E Big
George acrescentara de maneira significativa:
— Não se esqueça, Roscoe, de que você é um dos nossos.
De imediato, Heyward teve um pressentimento muito
desagradável: G. G. Quartermain estaria dando maior atenção a
seus próprios investimentos do que à administração da
Supranational. Mas os jornais dos dias que se seguiram o
tranqüilizaram. O Wall Street Journal e outros quase tão
importantes noticiavam uma transação engenhosa da SuNatCo na
Europa. Era como se fosse um coup d'État comercial que levaria as
ações do conglomerado, nas bolsas de Nova Iorque e Londres,
vários pontos acima, e que tornaria o empréstimo do FMA à
Supranational parecer ainda mais sólido.
Quando Heyward passou pela ante-sala, a Sra. Callaghan dirigiu-
lhe seu habitual sorriso.
— Os outros recados estão sobre sua mesa. Senhor.
Ele aquiesceu com a cabeça, mas, uma vez em seu gabinete, deixou
tudo de lado, inclusive documentos referentes ao empréstimo
adicional à Q-Investments que não havia sido aprovado. Usando o
telefone direto, discou o número que sabia ser o do lado do paraíso.
— Rossie, meu docinho — Avril sussurou-lhe enquanto a ponta de
sua língua explorava a orelha de Roscoe — você está indo depressa

demais. Espere! Controle-se! Quietinho! Vamos agüentar! —
Suavemente ela acariciou-lhe os ombros, depois foi descendo pela
espinha, arranhando-o de leve e com suavidade.
Heyward gemeu, num misto de prazer e de dor. pelo retardamento
do orgasmo que seu corpo pedia — mas obedecei Avril voltou a
murmurar:


— Vale a pena esperar, garanto!
Roscoe sabia que valia a pena esperar. Entre os dois fora sempre
assim. Mais uma vez ele pensou como uma jovem tão bonita e com
tão pouca idade, pudesse saber tanto, ser tão emancipada... tão
aberta... e tão gloriosamente sábia.
— Ainda não!, Rossie! Querido, ainda não! Assim! Assim é que é
bom! Vamos ter paciência!
As mãos de Avril, tão hábeis e tão conscientes, continuavam seu
trabalho de exploração. Roscoe deixou que sua cabeça e seu corpo
flutuassem, sabendo através de sua experiência com ela que era
melhor fazer tudo... exatamente tudo como Avril dizia.
— Oh, que delícia, Rossie. Você não está achando gostoso? Entre
suspiros Roscoe respondeu:
— Sim. Sim!
— Daqui a pouquinho, Rossie. É quase agora! Ao lado do rosto de
Roscoe, entre os dois travesseiros, o cabelo
vermelho de Avril ocupava todo o espaço, cobria-lhe o rosto e a
boca, enquanto ela o devorava com seus beijos. Seu cheiro excitante,
já tão conhecido, quase o sufocava de prazer e felicidade. Seu corpo
maravilhoso, desejoso e sensual era todo dele. E ele estava certo de
que era tudo que podia haver de melhor na vida, na terra ou no céu.
O que ele sentia no momento era o que de melhor poderia existir
aqui e agora.
Roscoe sentia-se entristecido ao dar-se conta de quanto tempo perdera
até encontrar Avril, e conhecer o gozo total.
Mais uma vez os lábios da moça procuraram e encontraram os dele.
De repente Avril disse, com uma voz premente, num tom de urgên

cia:
—Agora, Rossie! Agora, meu querido! Agora!


O quarto, como ele observara ao entrar, era realmente do padrão
Hilton: limpo, do maior conforto e neutro. Ao lado, havia uma
pequena sala, também no mesmo gênero. Era o que se denominava
suíte.
Os dois ali ficaram desde o final da tarde. Depois de se amarem
havia adormecido, acordado, e copulado outra vez. Para ser honesto
consigo mesmo, Roscoe reconhecia no íntimo que o sucesso dessa
segunda tentativa não fora absoluto. Depois dormiram por mais
uma hora. Agora se vestiam. O relógio de Heyward marcava oito da
noite.
Ele se sentia exausto, fisicamente exausto. Mais do que qualquer
coisa no mundo, o que desejava agora era ir para casa e, em casa, ir
para a cama — sozinho. Mas não queria ser indelicado e procurava
um meio de, sem magoá-la, ir embora o mais depressa possível.
Avril fora à ante-sala para telefonar. Quando voltou, disse:


— Encomendei um ligeiro jantar para nós, meu doce. Virá em seguida.
— Idéia maravilhosa, querida.
Avril vestia apenas uma combinação e uma meia-calça. Não usava
sutiã. Enquanto escovava os maravilhosos cabelos, que estavam
revoltos, Roscoe, sentado na beira da cama não podia deixar de
observar, apesar de todo o cansaço, a carga de sensualidade de cada
um dos gestos de Avril. Comparada com Beatrice, que ele via
diariamente, Avril era tão jovem! E, de repente, sentiu-se velho e
deprimido.
Dirigiram-se ambos para a saleta e Avril disse:
— Vamos começar por abrir o champanha.
A garrafa estava numa prateleira dentro de um balde de gelo.
Heyward já a tinha visto. A esta altura o gelo se derretera, mas a

garrafa continuava gelada. Desajeitadamente, ele tentou arrancar a
rolha.

— Não, não tente puxá-la; incline a garrafa um pouco, então segure
a rolha e torça a garrafa — disse a moça.
Ele seguiu as instruções. Avril sabia tudo!
Retirando a garrafa de suas mãos, ela serviu o champanha em duas
taças. Ele recusou, maneando a cabeça.
— Você sabe que eu não bebo, meu amor.
— Vai fazer você se sentir mais jovem — disse ela ao lhe entregar a
taça, que ele, afinal, aceitou. Teria Avril lido em sua mente?
Depois da segunda dose. quando a refeição chegou, ele de fato
sentia-se mais jovem.
Após o garçom ter-se retirado, Heyward disse:
— Você devia ter deixado que eu pagasse a conta. Referia-se ao fato
de Avril, com seus modos firmes, ter assinado a nota da despesa,
momentos antes.
— Por que, Rossie?
— Porque você deve me dar uma oportunidade de lhe retribuir
todas as despesas que está tendo: hotel, passagem aérea de Nova
Iorque, e outras. A essa altura ele já sabia que a moça morava num
apartamento em Greenwich Village. — É despesa demais para ficar
tudo por sua conta.
Avril olhou-o de maneira curiosa, sem entender, depois soltou uma
gargalhada.
— Por acaso você estava pensando que eu estivesse pagando tudo
isto? — E, com a mão, indicou o apartamento — Gastando do meu
dinheiro? Rossie. meu amor, você deve ser maluco!
— Então quem de fato, está pagando?
— A Supranational, claro, seu tolinho! Tudo vai para a conta deles:
a suíte, a refeição, o champanha, a minha viagem de avião e o meu
tempo. — Ela chegou-se a ele e beijou-o. Seus lábios apetitosos
estavam molhados. — Mas não vá preocupar-se com isso!

Roscoe permaneceu sentado, silencioso, absorvendo e tentando reagir
ao impacto do que acabava de ouvir. A ação do champanha
ainda agia sobre seu corpo, mas já tinha a sua mente lúcida.
"Meu tempo." Fora isto o que mais o magoara. Até agora Roscoe
tinha pensado que Avril lhe telefonara, depois de se terem
conhecido nas Bahamas, sugerindo um encontro porque havia
gostado dele e queria, tanto quanto ele, repetir o prazer do primeiro
encontro.
Como podia ter sido tão ingênuo? Agora tornara-se evidente que
toda a manobra fora movida e patrocinada por Quartermain, e que
tudo corria por conta da Supranational. Já não teria ele suspeitado
disso? Não teria ele sufocado qualquer dúvida, sem nada perguntar
antes, porque na verdade não queria saber? Além do mais, se Avril
estava sendo paga pelo "seu tempo", então o que era ela? Uma
prostituta? Se fosse este o caso, qual era então o papel dele? Fechou
os olhos, e pensou em São Lucas 18:13: Deus tenha piedade de mim,
pecador.

Pelo menos uma coisa Roscoe tinha que fazer o mais depressa possível:
saber ao certo quanto fora gasto com ele, através de Avril. Em
seguida mandar um cheque pessoal, seu, cobrindo a despesa total,
para a Supranational. Começou a fazer os cálculos-, mas deu-se
conta de que não podia fazer idéia do custo, do preço de Avril. O
instinto lhe dizia que não seria baixo.
Mas, ao mesmo tempo, Heyward hesitava em tomar esta providência.
Sua mente de tesoureiro não encontrava a forma pela qual a
Supranational lançaria tais despesas em seus livros. E, para ser
bastante objetivo, ele próprio, Roscoe, não tinha tanto dinheiro para
gastar. Mas, o que aconteceria quando voltasse a desejar Avril? E
tinha certeza de que voltaria a desejá-la.
O telefone tocou, enchendo de barulho a ante-sala, até então silenciosa.
Avril atendeu, falou rapidamente e depois disse:

— E para você.
— Para mim?

Quando pegou o fone ele ouviu uma voz dizer:

— Oba, Roscoe! Heyward respondeu asperamente:
— E você, George? — E, para satisfazer sua curiosidade, indagou: —
Onde está, George?
— Em Washington. E que diferença faz? Tenho boas notícias para
lhe dar sobre a SuNatCo, constantes do relatório financeiro
trimestral. Leia nos jornais de amanhã.
— E você telefonou para aqui apenas para me dizer isto?
— Fui inoportuno, interrompi vocês, não?
— Não — respondeu Heyward rindo: Big George concluiu, alegre:
— Apenas um telefonema de amigo; só para saber se tudo estava
correndo bem.
Se Heyward quisesse protestar, certamente este não seria o momento.
Mas também protestar o quê? Contra a generosa
disponibilidade de Avril? Ou contra seu próprio embaraço?
A voz do outro lado do fio resolveu seu dilema.
— Diga-me, o crédito da Q-Investments já foi aprovado?
— Ainda não.
— Você está andando devagar, não?
— Não, não é isso. Mas existem certas formalidades.
— Pois remova-as, senão eu vou ter que dar este negócio para outro
banco, e talvez transferir o crédito da Supranational para outro
banco também.
A ameaça estava bem clara. Mas não constituía surpresa, pois Heyward
conhecia muito bem as pressões e concessões que faziam parte
da rotina diária de um banco.


— Farei o possível, George.
— Avril ainda está aí?
— Está, sim.
— Quero falar com ela.
Heyward passou o telefone à moça. Ela ouviu e respondeu "bem,
bem", sorriu e desligou.

Foi para o quarto, mudou de roupa e já pronta para sair deu-lhe um
grande envelope de papel pardo.

— George disse que era para eu lhe entregar isto.
O envelope era idêntico, com os mesmos selos, àquele que ele recebera
e que continha os certificados das ações da Q-Investments.
— George manda lhe dizer que é apenas uma pequena lembrança
do nosso ótimo fim de semana em Nassau.
Mais certificados de ações? Roscoe não acreditava. Pensou em
recusar-se a receber o envelope, mas sua curiosidade foi mais forte.
Avril disse:
— George recomendou que o envelope não fosse aberto aqui. Só
depois que formos embora.
Ele aproveitou a oportunidade para olhar o relógio.
— Aliás, minha querida, está na hora de irmos.
— Certo. Tenho que voltar para Nova Iorque ainda esta noite.
Despediram-se ainda na suíte. Poderia ter havido um certo
embaraço
na despedida, mas a prática e a tarimba de Avril, evitaram que
houvesse qualquer mal-estar.
Ela passou os braços em volta do pescoço de Roscoe, abraçou-o com
força e sussurrou:
— Você é a coisa mais gostosa do mundo, Roscoe. Vamos estar
juntos outra vez, dentro em breve.
Apesar de tudo de que se dera conta, apesar do momentâneo esgotamento,
sua paixão por Avril em nada diminuíra. Fosse qual fosse
o preço do "meu tempo", ele pensava, uma coisa era certa: valia a
pena.
Ao sair do hotel, regressou de táxi ao FMA. No saguão, deixou um
aviso de que necessitaria de um carro com motorista para levá-lo à
sua casa dentro de 15 minutos. A seguir, tomou o elevador até o 36.°
andar, passando por corredores desertos e mesas vazias até seu
gabinete.

Sentado à sua mesa, abriu o envelope que Avril lhe entregara.
Dentro deste havia outro, pardo, encorpado. Roscoe abriu-o: surgiu
uma dúzia de ampliações fotográficas.
Aquela noite nas Bahamas, quando as moças e os homens tomaram
banho de piscina, completamente nus, o fotógrafo estivera muito
bem escondido ou, então, utilizara uma objetiva zoom. Fotógrafo ou
fotógrafa, fora um ótimo profissional.
As fotografias mostravam Krista, Rhetta, Moonbean, Avril e Harold
Austin tirando as roupas e. depois, totalmente nus. Heyward. em
meio às moças despidas, tinha estampado no rosto o que poderia
ser chamado de fascinação. Uma das fotografias fixava o momento
em que ele desabotoava o vestido e o sutiã de Avril. Em outra, Avril
beijava-o, enquanto ele segurava seus seios. Fosse por coincidência
ou não, do Vice-Presidente Stonebridge só se via o traseiro.
Técnica e artisticamente a qualidade das fotografias era boa, de fato
muito boa; ficava patente que o fotógrafo não era um amador. Mas,
pensava Heyward, Big George nunca fazia por menos: pagava
sempre ao melhor profissional, em qualquer categoria.
Roscoe notou que Big George não aparecia.
Aquelas fotos chocaram Heyward simplesmente pelo fato de existirem.
Perguntava-se porque lhe tinham sido enviadas. Seria uma
espécie de ameaça? Apenas uma brincadeira de mau gosto? E onde
estariam os negativos e outras cópias? Ele deu-se conta de que
Quartermain era um homem completo, cheio de caprichos e, sem
dúvida, perigoso.
Ao mesmo tempo, apesar do choque, Heyward sentiu-se fascinado.
A medida que olhava as fotografias, inconscientemente passava a
língua pelos lábios. Seu primeiro impulso fora destruí-la, mas
constatava não ser isso possível. Gostava de vê-las e revê-las.
Com surpresa, percebeu já decorrera cerca de meia hora.
Era fora de dúvida que não podia levar as fotos para casa. E agora?
Guardou-as, pois, no mesmo envelope, com o maior cuidado para
não amassá-las. Em seguida colocou-o numa gaveta de sua


secretária onde guardava documentos estritamente confidenciais e
particulares.
Por força do hábito, abriu outra gaveta na qual a Sra. Callaghan deixava
sempre papéis e documentos mais recentes, sobre os quais ele
ainda não opinara, e que costumava levar para casa. Em cima da
pilha estavam os relativos ao empréstimo adicional à Q-
Investments. Roscoe perguntou-se: por que adiar este assunto? Por
que vacilar? Haveria, de fato, necessidade de consultar Patterton
outra vez? O empréstimo era sólido e seguro, tanto quanto G. G.
Quartermain e Supranational. Sem hesitação, Heyward pegou os
papéis, escreveu "aprovado" e rubricou-os.
Minutos depois, desceu ao térreo. Do lado de fora, a limusine o
aguardava.

14


Presentemente, apenas em raras ocasiões Nolan Wainwright era forçado
a visitar o necrotério da cidade. Ali fora, pela última vez, há
três anos, a fim de identificar o corpo de um guarda assassinado
durante um assalto ao Banco. Quando pertencia à polícia, ir ao
necrotério e observar vítimas de crimes violentos fazia parte de sua
rotina de trabalho. Mesmo então não se habituara a isso; jamais.
Qualquer necrotério, com sua atmosfera de morte e seu cheiro de
sepulcro o deprimia e, às vezes, provocava-lhe náuseas. Como
agora, por exemplo.
O sargento-chefe que marcara encontro com ele, levou-o por um
corredor lúgubre, silencioso. Seus passos ecoavam no velho chão de
ladrilhos rachados. O funcionário que o encaminhara ao sargento
parecia, ele próprio, um cadáver, o rosto exangue e o deslizar dos
sapatos de sola de borracha.


Timberwell, o detetive, era jovem, mais para gordo, tinha os cabelos
compridos e revoltos e precisava de fazer a barba com urgência.
Nolan Wainwright notou que muitas coisas haviam mudado desde
quando ingressara na polícia, doze anos atrás.
Timberwell lhe disse:


— Caso o "presunto" seja o seu homem, quando o viu pela última
vez?
— Há sete semanas; no começo de maio.
— Onde?
— Num pequeno bar, do outro lado da cidade. O Easy Over.
— Conheço o lugar. E depois disto, o senhor teve alguma notícia
dele?
— Não.
— O senhor sabia onde ele morava?
— Ele não queria que eu soubesse. Fiz o jogo dele — respondeu
Wainwright.
O Chefe de Segurança do FM A nem mesmo sabia ao certo o nome
do homem. Conhecia-o apenas por Vic, um simples apelido e que,
inclusive, podia ser falso. Na verdade, Wainwright não se
interessara em descobrir o seu nome verdadeiro. Sabia apenas que
Vic era um ex-presidiário que precisava de dinheiro e estava pronto
a ser alcagüete.
No mês de outubro anterior, Alex Vandervoort o autorizara a empregar
um espião para tentar descobrir a fonte dos cartões
falsificados Keycharge, cujo volume começava a atingir proporções
gigantescas. Wainwright estabelecera contatos na cidade e acabara
por chegar até Vic, com quem marcara um encontro secreto, que se
realizou em dezembro. Lembrava-se bem da data, porque esse
encontro ocorrera na mesma semana em que Miles Eastin fora
julgado.
Encontraram-se mais duas vezes; sempre em locais diferentes, em
bares distantes. Wainwright, sacando contra o futuro, dera a Vic
algum dinheiro. O sistema de comunicação era unilateral. Só Vic

telefonava marcando hora e local, sempre à sua escolha;
Wainwright, por sua vez, não tinha como entrar em contato com ele.
Wainwright não simpatizara com o alcagüete, nem esperava que tal
acontecesse. O ex-sentenciado era matreiro, evasivo, com uma
coriza permanente, além de outros sintomas nítidos de um viciado
em narcóticos. Contudo, parecia contente com qualquer coisa e
estava sempre pronto a sorrir. Afinal, ao terceiro encontro, em
março, tudo indicava que ele encontrara uma pista.
Vic disse-lhe ter sabido que um grande fornecimento de notas falsas
de 20 dólares, da melhor qualidade, estava pronto para ser posto em
circulação através de inúmeros intermediários. Por trás de todo esse
sistema, escondido nas sombras, havia uma organização
competente, poderosa, que atuava também em outros setores,
incluindo os cartões de crédito. Esta última informação era um tanto
vaga, e Wainwright suspeitava de que Vic talvez a tivesse
inventado apenas para justificar o dinheiro que recebia mas, por
outro lado, talvez fosse verídica.
O alcagüete acrescentou que lhe fora prometida uma pequena parte
na distribuição do dinheiro falsificado. Ele pensava que, por esse caminho,
acabaria por chegar ao centro da organização. Na opinião de
Wainwright, Vic não tinha o conhecimento nem a inventividade
para criar tudo isso por conta própria, pelo que a informação
merecia um certo crédito. Além disso, o plano proposto fazia
sentido.
Wainwright estava convicto de que qualquer usuário de cartões
falsificados Keycharge deveria, de alguma maneira, estar envolvido
com outras formas de falsificação e expressara essa opinião a Alex
Vandervoort, em outubro. De uma coisa ele tinha certeza: seria
terrivelmente perigoso tentar penetrar na organização e o
informante poderia considerar-se liquidado se fosse descoberto. Ele
sentira-se na obrigação de advertir Vic desse risco, mas o outro
respondera com um simples meneio de cabeça.
Após este encontro, Wainwright não tivera mais contato com Vic.


No dia anterior, no entanto, uma pequena nota no Times Register
sobre um corpo encontrado flutuando no rio, chamara sua atenção.

— Devo avisar-lhe — disse o detetive Timberwell, — de que o que
restou do cara não é nada bonito. O legista acha que ele esteve na
água durante uma semana, e que, com todo o tráfego do rio, parece
que a hélice de algum barco acabou por cortá-lo em pedaços.
Wainwright entrou afinal numa sala de teto baixo, comprida' e mal
iluminada: o ar, gelado; o cheiro, de desinfetante. Ocupando uma
parede, de frente para eles, estava o que mais parecia um enorme
arquivo de aço, com gavetas numeradas. O silêncio era tal que dava
para ouvir o barulho do equipamento de refrigeração do "arquivo".
O atendente consultou uma ficha, dirigiu-se a um determinado
gavetão e abriu-o. Dentro dele encontrava-se o que se poderia
descrever como o formato de um corpo, coberto por um plástico.
— Estes são os despojos que queria ver — informou o velho. Com a
maior naturalidade, como se estivesse desembrulhando pepinos,
retirou a folha de plástico e dobrou-a.
Wainwright desejou não ter vindo. Sentiu-se doente.
Algum dia, o corpo para o qual eles olhavam tivera um rosto. Agora
não tinha mais. O fato de ter ficado imerso na água, a putrefação e
mais alguma coisa, provavelmente a hélice de um motor, como
Timberwell dissera, havia destruído o que restava de carne. Entre
aqueles restos, apareciam ossos brancos.
Eles estudaram o corpo no mais absoluto silêncio. Depois o detetive
perguntou:
— O senhor reconhece alguma coisa que possa realmente servir
para identificá-lo?
— Sim — disse Wainwright. Espiava para o lado do rosto, o que
dele restava, onde acaba o cabelo e começa o pescoço. A marca
avermelhada que notara em Vic, em forma de maçã, sem dúvida
congênita, ainda era bem visível. Os olhos treinados de Nolan
Wainwright a tinham observado durante as três ocasiões em que se

encontrara com o alcagüete. Sem dúvida, o que restava do corpo era
do seu conhecido Vic, conforme informou a Timberwell.

— Nós o identicamos pelas impressões digitais. Não estavam muito
claras, mas davam para o gasto. O detetive abriu um caderninho
que trazia consigo. — Seu nome verdadeiro era Clarence Hugo
Levinson, mas usava vários outros e tinha uma ficha policial
bastante longa, mas da qual só constava coisas pequenas.
— O noticiário do jornal dizia que ele morreu de ferimentos, possivelmente
facadas, e não por afogamento — disse Nolan.
— Isto foi o que a autopsia comprovou. Mas, antes, ele foi terrivelmente
torturado.
— E como é que constataram isso?
— Seus órgãos genitais foram arrebentados. O relatório do patologista
consigna que o torturador usou uma espécie de dispositivo
para apertar-lhe os testículos, até que eles estouraram. Quer ver?
Sem esperar pela resposta, o atendente retirou o plástico que cobria
os restos do cadáver.
Apesar dos órgãos genitais terem encolhido com a imersão, a autopsia
tinha material suficiente para comprovar a verdade daquela
declaração. Wainwright quase vomitou.
— Oh, Deus! Por favor, cubra-o! Depois disse:
— Pelo amor de Deus, vamos embora daqui.
Tomando um cafezinho num bar a meio quarteirão do necrotério, o
detetive Timberwell murmurava:
— Pobre filho da mãe. O que quer que tenha feito, ninguém merece
aquilo!
Pegou um cigarro, acendeu-o e ofereceu outro a Wainwright, que
não aceitou.
— Sei como o senhor se sente — disse Timberwell. — A gente vai
ficando duro em relação a muitas coisas, mas há outras que
realmente dão o que pensar sobre a vida.
— É verdade.

Wainwright estava pensando no que lhe cabia de responsabilidade
pelo que acontecera a Clarence Hugo Levinson, aliás Vic.

— Vou precisar de um relatório seu, Sr. Wainwright. Um relatório
sucinto, relativo apenas à espécie de arranjo que havia entre o
senhor e o morto. Se não tiver dúvidas, poderíamos ir agora ao
distrito policial para tal fim.
— Está bem.
O detetive deu mais uma tragada e tomou mais um gole de café.
— Como é que está a situação dos cartões de crédito falsificados, no
momento?
— Em progressão. E cada vez surgem mais cartões falsificados. Em
determinados dias, é quase como uma epidemia. Está custando a
bancos como o nosso um monte de dinheiro.
Timberwell disse de maneira bastante cética:
— O senhor quer dizer que está custando muito dinheiro ao
público. Bancos como o seu passam as perdas adiante. E é por esta
razão que os seus diretores não ligam para o assunto o quanto
deveriam.
— A este respeito, nada posso dizer.
Wainwright se lembrava de sua própria insistência, sem nenhum
eco, para conseguir maiores recursos destinados à luta contra a
falsificação de valores bancários.
— A qualidade dos cartões é boa?
— Excelente.
O detetive acrescentou:
— Engraçado, é isto mesmo que nos dizem os agentes do serviço
secreto sobre o dinheiro falso que está em circulação. E trata-se de
um bocado de dinheiro, creio que o senhor sabe.
— Sei, sim.
— Então, talvez seu ex-alcagüete tivesse razão quando disse que
ambas as falsificações provinham da mesma fonte. — E acrescentou:
— Mas existe uma coisa sobre a qual devo chamar sua atenção.
Talvez já tenha pensado nisto.

Wainwright aguardou a conclusão.

— Quando ele foi torturado, quem quer que o tenha feito conseguiu
que ele falasse. O Senhor viu o estado em que ficou. Não há
possibilidade de que não tenha falado. Então, bem pode imaginar
que falou o bastante sobre tudo, incluindo, naturalmente, a espécie
de acordo que tinha consigo.
— E, também já pensei nisto.
— Não chego a dizer que esteja em perigo, mas acho que os assassinos
de Levinson são seus inimigos: para eles. o Senhor é veneno. Se
qualquer pessoa com a qual lidaram alguma vez na vida respirar o
mesmo ar que o Senhor, e eles chegarem a sabê-lo, esta pessoa tem
os dias contados — disse Timberwell.
Wainwright ia responder, mas o outro o silenciou.
— Veja bem, não estou querendo dizer com isto que não deva mandar
outro cara para baixo da terra. O problema é seu; não quero
saber de nada, pelo menos, não agora. Mas uma coisa lhe digo: se
voltar a agir, seja cuidadoso ao extremo e mantenha-se a distância.
Pelo menos isto o Senhor deve ao pobre coitado.
— Obrigado pelo aviso — disse Wainwright, enquanto pensava no
corpo despedaçado de Vic. — Duvido muito que venha a haver
mais uma vítima.
PARTE III



1


Apesar de ser bastante difícil para Juanita continuar a manter seu
humilde padrão de vida com os 98 dólares semanais que recebia
como caixa do Banco (líquidos eram, na realidade, 83), de um modo
ou de outro conseguia, semana após semana, manter-se a si mesma
e a Estela e pagar a escola maternal da menina. Lá pelo mês de
agosto, conseguira até reduzir, embora muito pouco, as dívidas
deixadas pelo marido. A financiadora obrigara-a a assumir o débito,
diminuindo porém o valor das prestações mensais e aumentando o
prazo para um total de três anos, claro que com um oneroso
acréscimo de juros. De qualquer forma, lhe possibilitou, apesar da
grande dificuldade, fazer face ao compromisso.
No Banco, ela era tratada com toda consideração e, mesmo, com
maior cordialidade após a falsa suspeita de que fora vítima. No
entanto, não fizera nenhuma amizade entre os colegas, pois tinha
dificuldade de se relacionar com as pessoas, em parte por natural
timidez e em parte condicionada pelas experiências anteriores. O
centro de sua vida, o apogeu era, ao final de cada dia de trabalho, as
horas que passava com a filha.
Naquela noite, como de hábito, estavam as duas sozinhas no apartamento.
Na cozinha, Juanita preparava o modesto jantar ajudada, e
as vezes atrapalhada, pela menina de três anos de idade. Preparava
um pastelão de carne, enquanto Estela modelava figurinhas de
miolo de pão, com forte auxílio da própria imaginação.

— Mamãe! Olhe só, acabo de fazer um castelo! E riram juntas.
— Que lindo, mi cielo! — disse Juanita, carinhosa. — Vamos pôr seu
castelo no forno, junto com o pastelão.
Para preparar o prato, usara muito pouca carne moída, acrescentando
de mistura cebola, batata, cenoura e uma lata de petit-pois. Os
legumes aumentavam o volume e compensavam a pequena

quantidade de carne que pudera comprar. Mas Juanita tinha
imaginação no que se referia à cozinha e por certo o prato sairia
delicioso, além de nutritivo.
Enquanto esperavam que ficasse pronto, coisa de 20 minutos,
Juanita lia para a filha uma tradução em espanhol de Andersen. De
repente, ouviu que batiam à porta. Ela parou de ler e prestou
atenção para se certificar se batiam de fato em seu apartamento.
Recebia pouquíssimas visitas, ainda menos àquela hora da noite.
Passados instantes, as pancadas se repetiram. Um pouco nervosa,
fazendo sinal com as mãos para que Estela ficasse onde estava,
Juanita levantou-se e dirigiu-se devagar até a porta.
Seu apartamento era no segundo andar do que, antes, fora uma moradia
de dois andares dividida há tempos em apartamentos
independentes. Com a implantação do projeto Fórum East, os
moradores mantiveram as antigas divisões, embora modernizando-
as e conservando-as. Mas todo esse esforço não conseguia esconder

o fato de que o Fórum East situava-se numa área de alto índice de
criminalidade, em especial no que se referia a assaltos e
arrombamentos. Assim, embora os edifícios estivessem sempre
lotados, à noite quase todos os moradores fechavam as portas,
garantindo-as ainda com fechos de segurança. Claro que existia
uma porta fortíssima que dava para a rua usada como proteção
geral. Mas certos moradores costumavam esquecer-se de fechá-la.
Com o ouvido encostado à porta Juanita perguntou: "Quem é?" Não
houve resposta, apenas a repetição das batidas leves, porém
insistentes.
Juanita certifícou-se que o ferrolho estava no lugar e abriu um
pouco a porta, apenas o que lhe permitia a corrente de segurança.
De início, devido à pouca iluminação, ela pouco pôde ver, mas logo
percebeu um rosto, bem como uma voz que lhe perguntava:
— Juanita, posso falar com você? Permite que eu entre?
A moça ficou surpresa e chocada. Tratava-se de Miles Eastin, em
pessoa. Mas aquele rosto e aquela voz lembravam muito pouco o

homem que ela conhecera. Em sua presença estava um homem
pálido, de pele emaciada, de voz insegura e suplicante.
Hesitou por instantes e depois disse:


— Pensei que você estivesse preso.
— Estive, mas saí hoje. — E ele acrescentou: — Fui solto sob liberdade
condicional.
— E por que veio me procurar?
— Porque me lembrava de onde você morava.
Juanita continuava surpresa e desconfiada. Não sabia que fazer ou
dizer.
— Não foi isso que eu quis dizer. Perguntei por que veio procurar
exatamente a mim.
— Porque durante todos esses meses, durante todos os dias em que
estive preso, a única coisa em que pensava era que precisava vê-la,
falar com você, pelo menos tentar explicar...
— Não há nada a explicar.
— Mas é claro que há Juanita, eu imploro! Por favor, não me mande
embora! Por favor!
Da sala, Estela perguntou com sua voz alegre:
— Mamãe, quem é?
Foi Miles quem respondeu:
— É um amigo. — E dirigindo-se a Juanita, disse: — Juanita, por
favor, não precisa ter medo por você, ou pela menina. Tenho
comigo apenas isso. E mostrou-lhe uma pequena pasta. — Aqui está
tudo o que tenho; os objetos que me devolveram quando me
libertaram e que tinha em meu poder quando fui preso.
— Bem... — disse Juanita.
Apesar do ocorrido e do mal que ele procurara lhe causar, sua
curiosidade foi mais forte. Por que queria ele vê-la? Ainda sem saber
se estaria certa ou errada, desprendeu o fecho de segurança e abriu

a porta inteiramente.

— Obrigado.

E Miles Eastin entrou de maneira quase furtiva, como se até aquele
momento tivesse medo de que Juanita não o recebesse.

— Alô, garota — disse ele dirigindo-se a Estela.
— Você é amigo de mamãe? — perguntou-lhe a menina.
Durante um longo momento ele pareceu desconcertado. Respondeu
afinal:


— Não. Nem sempre fui amigo dela. Mas gostaria de ter sido. A
criança, miúda, de cabelos escuros, olhava-o com curiosidade.
— Como é seu nome?
— Miles. Estela sorriu.
— Você é muito magro.
— É verdade, sou mesmo.
Agora que podia vê-lo por inteiro, Juanita estava chocada, surpresa
com a mudança operada em Miles. Durante oito meses, desde que o
vira pela última vez, ele emagrecera tanto, que as bochechas
estavam flácidas. Parecia um feixe de ossos. O terno amarrotado era
muito maior, como se tivesse sido talhado para uma pessoa com o
dobro do tamanho. Parecia cansado e fraco.


— Posso me sentar?
— Pode. — Juanita indicou-lhe uma cadeira de vime, mas
continuou de pé, olhando-o. Confusa, acabou por dizer a primeira
coisa que lhe veio à cabeça. — Você não deve ter comido bem na
prisão.
Ele fez um aceno concordando e pela primeira vez sorriu.
— Na prisão, de fato não se vive como um gourmet. Tenho a impressão
que demonstro isto.
— Si, me dí cuenta. Nota-se. Estela perguntou:
— Você veio jantar conosco? Mamãe fez pastelão. Ele hesitou e
respondeu:
— Não.
Juanita perguntou com aspereza:
— Você já comeu hoje?

— Comi de manhã um sanduíche no ponto do ônibus.
O cheiro da torta que assava no forno espalhava-se pela sala como
uma verdadeira tentação.
— Então vai jantar conosco.
E logo ela pôs mais um talher na pequena mesa de refeições. Para
Juanita, era um gesto natural. Em qualquer casa porto-riquenha, por
mais pobre que fosse, o hábito da hospitalidade impunha que a
refeição, mesmo a mais parca, fosse partilhada com os visitantes.
Enquanto jantavam. Estela falava sem parar, e Miles respondia-lhe
as perguntas. Parecia que a tensão inicial começava a abandoná-lo.
Por vezes olhava em volta, apreciando o apartamento simples e
pequeno, mas tão agradável, embora mobiliado com pobreza.
Juanita tinha verdadeiro dom para os arranjos caseiros. Adorava
costurar e decorar. Na pequena sala havia um velho sofá que ela
cobrira com um tecido de algodão, num estampado alegre de
branco, vermelho e amarelo; a cadeira de vime, na qual Miles se
sentara antes, era uma do par que comprara há muito tempo num
saldo e que ela mesma pintara em vermelho laca. Nas janelas pusera
cortinas simples e baratas, mas muito alegres, de um amarelo vivo.
Enfeitando as paredes havia uma gravura primitiva e muitos
posters de turismo.
Enquanto Miles e Estela conversavam. Juanita pouco falara, cogi


tando sobre o motivo daquela extraordinária visita. Sentia-se
perplexa e cheia de suspeitas. Por que teria Miles vindo à sua casa?
Voltaria ele a causar-lhe tanto transtorno quanto antes? A
experiência indicava que era possível. Mas no momento ele parecia
inofensivo e por certo muito fraco fisicamente, um pouco
amedrontado, e sem dúvida aniquilado. Juanita tinha uma
capacidade especial para reconhecer tais sintomas.
Uma coisa porém ela não sentia: raiva ou ressentimento. Apesar de
Miles ter tentado culpá-la do roubo que ele próprio cometera, com o
passar do tempo aquilo parecia uma coisa remota. Mesmo quando
ele fora julgado, o principal sentimento que a dominara fora de


alívio, nunca de ódio. Agora, tudo que desejava para si e para Estela
era que as esquecessem e as deixassem em paz.
Miles suspirou ao empurrar o prato, inteiramente vazio.


— Obrigado. Foi a refeição mais deliciosa que fiz há muito tempo.
Juanita indagou:
— E agora, o que vai fazer?
— Não sei. Amanhã vou começar a procurar emprego.
Ele respirou fundo, dando a impressão de que ia dizer mais alguma
coisa, mas a moça lhe fez um sinal para que esperasse.
—Estelita, ramos, amorcito. Está na hora de ir para a cama! Pouco
depois, dentes e cara lavados, cabelo escovado e com seu
pijama cor-de-rosa, a menina voltou à sala para dizer boa noite.
Seus grandes olhos miravam Miles com gravidade.
— Meu pai foi-se embora. Você também vai-se embora?
— Vou, daqui a pouco.
— Foi o que pensei. — Estela levantou-se e beijou-o no rosto. Depois
de ter levado a filha para o quarto, Juanita voltou para a
salinha, cerrando a porta atrás de si. Sentou-se em frente a Miles,
com as mãos no colo.
— Bem... agora pode falar.
Hesitante. Miles passou a língua pelos lábios, buscando as palavras
que lhe faltavam. Depois disse:
— Durante todo o tempo em que estive... afastado, desejei uma
oportunidade de lhe dizer o quanto lamento, o quanto me
arrependo por tudo que lhe fiz, muito mais que aos outros. Tenho
vergonha. Não sei como aquilo chegou a acontecer. Mas, por outro
lado, creio que sei.
Juanita deu de ombros.
— O que aconteceu, aconteceu. Que importa agora?
— Para mim, tem imensa importância. Por favor, Juanita. deixe que
eu lhe diga tudo.

Então, como um reservatório transbordante, as palavras jorraram
aos borbotões. Ele contou o que se passara, os remorsos, as crises de
consciência, a espécie de loucura que se apossara dele no ano
anterior devido ao jogo e às dívidas conseqüentes. Essa loucura,
uma espécie de delírio, destorcera seus valores morais e sua
percepção. Agora, pensando no passado, parecia que um espírito
maligno se apossara de seu corpo e de sua mente. Falou de seu
complexo de culpa por haver roubado o Banco. Mas disse-lhe que o
mais grave, o pior de tudo, era o que fizera ou tentara fazer com ela.
O remorso então, disse, tomara conta dele durante todos os dias que
passara na prisão e jamais o deixaria.

Enquanto Miles falava, o primeiro sentimento de Juanita foi de suspeita.
Mas à medida que ele prosseguia, ela começava a mudar de
opinião, embora já houvesse sido por demais enganada pela vida
para crer sem reservas, fosse no que fosse. No entanto, sentia-se
inclinada a aceitar como legítimas as palavras de Miles. Aos poucos,
era dominada pela piedade.
Juanita percebeu que estava comparando Miles a Carlos, seu
marido ausente. Este, tinha sido fraco, assim como aquele. Mas a
atitude de Miles ao procurá-la, encará-la e pedir-lhe perdão
demonstrava uma força, uma hombridade que Carlos nunca tivera.
De repente ela começou até a achar seu destino bastante cômico: os
homens de sua vida, por uma ou outra razão, eram fracos e
inexpressivos. E, do mesmo modo que ela própria, eram uns
fracassados. Quase riu, mas dominou-se porque decerto Miles não a
compreenderia.
Emocionado, este lhe disse:

— Juanita, creia em mim. Você me perdoa? Ela o olhou
demoradamente.
Miles insistiu:
— E se for capaz de me perdoar, você me dirá?

Agora ela não mais tinha vontade de rir; lágrimas encheram-lhe os
olhos. Isto, Juanita podia compreender. Criada no catolicismo,
conquanto presentemente não fosse uma praticante, conhecia o
consolo da confissão e da absolvição. Levantou-se.

— Miles, levante-se. Olhe bem para mim — disse Juanita.
Ele obedeceu e olhou-a nos olhos, enquanto ela lhe dizia, da
maneira doce.
— Has sufrido bastante. Sim, Miles, eu perdôo.
Os músculos do rosto de Miles pareciam contorcer-se e ele
entregou-se à emoção. Juanita abraçou-o. enquanto Miles soluçava
sem parar.
Quando ele conseguiu dominar-se, e já estavam sentados um em
frente ao outro, Juanita perguntou num tom de voz prático e
objetivo.
— Onde vai passar a noite?
— Não tenho certeza. Mas devo achar algum lugar.
Juanita pensou, pensou, depois lhe disse:
— Pode passar a noite aqui, se quiser. — Quando viu a surpresa no
olhar de Miles, acrescentou: — Pode dormir aqui na sala, somente
por esta noite; dormirei no quarto com Estela. E a porta ficará
fechada a chave.
— Se, de fato, não se incomoda, creio que aceitarei. E você não terá
com que se preocupar — respondeu Miles, grato.
Ele não disse a Juanita o motivo real pelo qual-ela não precisava de
se preocupar; tinha outros problemas, psicológicos e sexuais que
ainda não enfrentara com objetividade. Tudo o que sabia, até agora,
era que devido aos repetidos atos homossexuais entre ele e Karl, seu
protetor na prisão, não sentia mais desejo por mulher alguma.
Duvidava se algum dia voltaria a ser homem, no sentido sexual,
outra vez.
Logo em seguida, o cansaço tomou conta dos dois. Juanita foi para o
quarto juntar-se a Estela.

Pela manhã, através da porta fechada, ela ouvia a movimentação de
Miles. Meia hora mais tarde, quando saiu do quarto, eleja havia
partido.
Em cima da mesa havia um bilhete.
"Juanita, de todo meu coração, obrigado, Miles".
Enquanto preparava o desjejum para si e para a filha, ela se surpreendeu
ao perceber que estava triste com a partida de Miles.


2


Nos quatro meses e meio posteriores à aprovação pela diretoria do
FMA do plano de expansão de agências e de incremento das
poupanças, Alex Vandervoort não se desligou um instante do
assunto. Quase todos os dias fazia reuniões com funcionários e
consultores externos para discutirem a campanha a ser adotada. O
trabalho não era interrompido nem mesmo durante a noite, fins de
semana e feriados, sempre sob a supervisão de Alex, que .insistia na
necessidade do programa estar em pleno funcionamento antes do
final do verão.
A reorganização da poupança seria mais facilmente alcançada com

o correr do tempo. O que Alex tinha urgência em ver realizado
decorria de estudos anteriores feitos sob sua supervisão, ou seja, o
lançamento de quatro tipos de caderneta de poupança, com maiores
taxas de juros e vinculadas em modalidades diferentes. Só faltava
transformar o plano em realidade. Havia um novo campo a ser
coberto, que exigia um programa intenso de propaganda destinado
a atrair novos depositantes, programa sobre o qual a Agência

Austin apresentou com eficiência, dentro do mais curto prazo
possível, excelente material. O tema da campanha de poupança era:
NO FIRST MERCANTI LE AMERICAN BANK VOS
PAGAMOS PARA QUE VOCÊ PROSPERE.
Agora, início de agosto, páginas inteiras dos jornais proclamavam
as virtudes da poupança ao estilo FM A. Os jornais destacavam a
localização das nove novas agências no Estado, nas quais qualquer
novo cliente, ao abrir uma conta, era recebido com brinde, café e
"um cordial conselho sobre economia". O valor do brinde dependia
da importância do depósito inicial. Anúncios na televisão e no rádio
levavam a campanha aos lares americanos.
Das nove novas agências — our money shops (nossas lojas de dinheiro),
como Alex as chamava — duas haviam sido inauguradas
na última semana de julho, três outras nos primeiros dias de agosto,
e as quatro restantes seriam inauguradas antes de setembro. Como
todas seriam estabelecidas em locais alugados, o que envolvia mais
reformas do que propriamente construção, — também nisso Alex
tivera êxito — os trabalhos eram executados com rapidez.
O nome que Alex havia dado, "lojas de dinheiro" (money shops),
havia atraído a atenção popular. Essas lojas de dinheiro trouxeram
muito maior publicidade para o Banco do que poderiam esperar o
próprio Alex ou mesmo a agência de propaganda. E o responsável
por tudo isso, que ganhava enorme projeção como se fosse um
foguete ascendente, era Alex.
Ele não esperava que tal acontecesse. Simplesmente aconteceu.
Um repórter do matutino Times-Register, designado para fazer a
cobertura das inaugurações das novas agências, tentando um certo
sensacionalismo, descobriu e mencionou a sutil relação de Alex no
caso dos moradores do Fórum East, em fevereiro.

De agora em diante, quando pensar nos banqueiros modernos, não
pense naqueles tradicionais cavalheiros de aparência solene,
cautelosa, de terno azul-marinho. passando a língua pelos lábios e


sempre dispostos a dizer "não". Pense, isto sim, em Alex Vandervoort.
O Sr. Vandervoort. que é u m executivo V I P de nosso First
Mercantile American Bank. para começo de conversa em nada se
parece com um banqueiro. Seus ternos saem das folhas do Esquire,
suas maneiras, à la Johnny Carson. e quando o assunto é
empréstimos, especialmente pequenos empréstimos, está sempre
pronto, salvo raras exceções, a dizer "sim". Mas ele também acredita
em pequenas economias e assegura que nós. hoje em dia, não somos
tão espertos no que se refere à economia quanto o eram nossos pais
e nossos avós.
Entre outras coisas, Alex Vandervoort é um verdadeiro líder na
moderna tecnologia bancária, conforme pudemos constatar nos
subúrbios da cidade, esta semana.
O new look bancário compreende agências sem a menor aparência de
banco — o que é compreensível já que o próprio Sr. Vandervoort
(que em nada se parece com um banqueiro, como dissemos acima) é
a força propulsora de tudo.
Este repórter teve o prazer de acompanhar Alex Vandervoort esta
semana para ver o que ele chama "o banco do futuro, já em
funcionamento, aqui e agora".

O chefe de relações públicas do FMA, Dick French, havia tomado as
providências necessárias. A repórter era uma mulher de meia-idade,
loura e desmazelada, chamada Jill Peacock. Sem ser uma jornalista
com o Prêmio Pulitzer, escrevia histórias interessantes e era muito
amável.
Alex e a Sra. Peacock foram juntos para uma das novas agências
instalada numa galeria de lojas localizada numa praça de subúrbio.
A agência era. em tamanho, igual ao drugstore do lado. Tinha
iluminação suave e decoração agradável. As principais atrações
eram dois caixas automáticos de aço inoxidável Ducotel que os
próprios clientes operavam e uma câmara de televisão em circuito


fechado. Os caixas-automáticos, explicava Alex, estavam ligados
diretamente a computadores no escritório central do FMA.
E prosseguiu:

— Hoje em dia o público espera ser bem servido e por isso constato
a necessidade de que os bancos fiquem abertos até mais tarde,
facilitando a vida do povo. "Lojas de dinheiro" como esta ficarão
abertas 24 horas por dia, sete dias na semana.
A repórter indagou:
— Com funcionários o tempo todo?
—Não. De dia teremos um funcionário para responder a perguntas
e eliminar dúvidas da parte dos clientes. O resto do tempo não
haverá ninguém, exceto os próprios clientes.
—O senhor não tem medo de assaltos? Alex sorriu.
— Os caixas-automáticos são máquinas construídas como verdadeiras
fortalezas, com todos os sistemas de alarma possíveis. E os
transmissores de televisão, um em cada "loja de dinheiro", são
manipulados num centro de controle na matriz do Banco. Nosso
problema imediato não é segurança, mas fazer que os clientes se
adaptem às novas idéias.
— A impressão que tenho é que alguns já se adaptaram — disse a
Sra. Peacock. olhando as pessoas que chegavam.
Embora fosse cedo. nove e meia da manhã, a pequena agência já
estava com uma dúzia de pessoas, enquanto outras aguardavam
para entrar. A maioria era de mulheres.
— Os estudos que efetuamos — disse Alex — indicaram que as mulheres
aceitam mudanças mais depressa. Talvez seja por isso que as
lojas de vendas a varejo são sempre tão renovadoras. Os homens
são mais lentos em aceitar novidades mas, de modo geral, as
mulheres acabam por persuadi-los.
Pequenas filas formavam-se em frente aos caixas-automáticos. mas
praticamente não havia demora. As transações eram completadas
com rapidez, tão logo o cliente enfiasse seu cartão plástico de
identificação e apertasse uma série de botões, de fácil operação.

Alguns estavam fazendo depósitos em dinheiro ou em cheques,
outros retiravam dinheiro: um ou dois pagavam cartões de crédito
ou serviços de utilidade pública. Qualquer que fosse a operação, a
máquina engolia o papel ou o dinheiro e os movimentava com uma
velocidade incrível.
A repórter apontou para um dos caixas-automáticos.
—E o povo aprendeu a usá-los mais depressa, ou mais devagar do
que o senhor esperava?
—Muito, muito mais depressa do que eu supunha. De início, é necessário
um certo esforço para persuadir as pessoas a utilizar
máquinas. Mas uma vez que o fazem, ficam fascinadas e logo se
apaixonam por elas.
—Mas sempre ouvi dizer que as pessoas preferem lidar com outras
pessoas e não com máquinas. Por que seria diferente tratando-se de
transações bancárias?
—Os estudos que efetuamos e sobre os quais já lhe falei indicam
que é devido ao aspecto confidencial da operação.
Realmente a gente pode contar com o segredo (disse Jill Peacock em
seu artigo assinado, na edição de domingo), e não apenas em
relação àquelas caixas com cara de Frankenstein-monstros.
Sentando-se sozinha numa cabina naquela "loja de dinheiro",
olhando para uma tela e uma câmara de televisão, abri uma conta e
imediatamente negociei um empréstimo.
Das outras vezes que precisei levantar dinheiro em banco, senti-me
embaraçada. Mas desta vez não, porque o que eu via em frente a
mim na tela era algo impessoal. Quem de fato me atendia, um
funcionário incorpóreo cujo nome nem sequer sei — encontrava-se a
quilômetros de distância.

— Para ser exato, encontrava-se a cerca de 30 quilômetros — disse
Alex. — O funcionário do Banco com quem a senhora falou trabalha
na sala de controle da nossa matriz. De lá, ele e outros entram em
contato com qualquer agência de Banco equipada com televisão de
circuito fechado.

A Sra. Peacock pensou em pouco e perguntou:

— Com que rapidez, de fato, os serviços bancarios tem mudado?
— Tecnologicamente, nossas mudanças estão sendo mais rápidas
que as realizadas na área espacial. O que estamos assistindo aqui é o
mais importante passo desde a introdução da conta-corrente,
através de cheque, e dentro de dez anos, ou menos, toda a rotina
bancária será executada desta maneira.
— Mas haverá sempre alguns caixas humanos, não?
— Ainda durante um certo tempo; mas a classe tende a desaparecer.
Dentro em breve, a noção de ter uma conta individual preenchida a
mão, entregue a um caixa humano, será algo antediluviano — tão
ultrapassado como o dono de mercearia de antigamente, que pesava
o açúcar, a manteiga e a farinha, e depois punha tudo, ele próprio,
em sacos de papel.
A repórter disse então que achava aquilo tudo, de certa forma,
triste.
— Mas na verdade faz parte do progresso — retrucou Alex.
Mais tarde me dirigi ao acaso a umas doze pessoas e perguntei o
que estavam achando das novas lojas de dinheiro. Sem nenhuma
exceção, todos mostravam-se entusiasmados.
A julgar pelo grande número de pessoas que estão fazendo uso
delas, a julgar pela sua crescente popularidade, o que está ocorrendo
é que as pessoas se sentiram de certa forma estimuladas a
economizar, segundo disse o Sr. Vandervoort...
Nunca ficou bastante claro se as lojas de dinheiro estavam incentivando
as poupanças, ou vice-versa. Porém ficou evidente que as
mais otimistas esperanças do FMA estavam sendo alcançadas e
ultrapassadas com uma velocidade fenomenal. Dava até a
impressão, conforme Alex dissera a Margot Brackeh, de que havia
uma perfeita sincronia entre a reação do povo e as inovações do
FMA.


— Pare de envaidecer-se e tome seu suco de laranja — disse-lhe
Margot.

As manhãs de domingo no apartamento de Margot eram uma fonte
de prazer. Ainda de pijama, vestindo um roupão, Alex estava lendo

o artigo de Jill Peacock no Sunday Times-Register enquanto Margot
lhe preparava o desjejum com ovos à Beneditine.
Alex ainda estava entusiasmado enquanto tomavam café. Margot
também lera o artigo do Times-Register e concordou:
— Nada mau, nada mau. — Chegou-se a Alex e beijou-o. — Estou
tão contente por você!
— Bem, pelo menos é uma publicidade muito melhor do que a
última que você me patrocinou, Bracken.
Com seu jeito alegre, ela disse:
— Mas a gente nunca sabe como as coisas se desenvolverão. A imprensa
dá e a imprensa tira. Amanhã você e seu banco podem até
ser atacados.
Alex suspirou.
— Você quase sempre tem razão.
Mas desta vez Margot enganara-se por completo.
Uma versão do artigo original foi reproduzido por vários jornais,
em 40 outras cidades do Estado. A AP., face o grande interesse
provocado, fez seu próprio artigo sobre o assunto, como também a
UPI. O Wall Street Journal enviou um repórter, poucos dias mais
tarde, ao First Mercantile American Bank e como resultado a figura
de Alex era apresentada em sua primeira página num artigo
dedicado ao sistema automatizado do Banco. Uma subsidiária da
NBC mandou uma equipe de televisão entrevistar Alex numa "loja
de dinheiro" e o vi oteipe foi transmitido pela cadeia da NBC em
seu noticiário noturno.
Como resultado, a campanha de poupança ganhava maior
promoção e os negócios das lojas de dinheiro pareciam desabrochar.
Um pouco mais tarde, descendo de sua imponência, o New York
Times condescendeu e também deu uma nota sobre o assunto.
Então, lá para o meio de agosto, a seção "Sunday Business and

Finance" do New York Times proclamava: Um banqueiro radical sobre o
qual talvez venhamos a ouvir falar ainda muito mais.
The Times, entrevistando Alex Vandervoort, começou com o aspecto
de automatização, passando depois para temas mais amplos.
Pergunta O que acha o Senhor mais errado atualmente no sistema
bancário?
Vandervoort Acho que nós, banqueiros, temos pensado demasiado
em nós mesmos. Temos andado tão preocupados com o nosso
próprio bem-estar, que não damos a devida atenção aos interesses
dos clientes.
Pergunta O Senhor pode dar um exemplo específico?
Vandervoort Posso. Os clientes de bancos, em especial as pessoas
físicas, deveriam receber taxas de juros mais elevadas do que
recebem.
Pergunta De que maneira?
Vandervoort De várias maneiras: em cadernetas de poupança, em
certificados de depósito. Também deveríamos pagar juros sobre as
contas-correntes.
Pergunta Uma coisa de cada vez. Falemos primeiro das cadernetas
de poupança. Existe uma lei federal que estabelece um limite a essas
taxas de juros nos bancos comerciais.
Vandervoort Certo. O objetivo é proteger os Saving and Loan Banks*
Aliás, existe outra lei que não permite aos clientes desses bancos o
uso de cheques. Isto, para proteger os bancos comerciais. Meu ponto
de vista é que as leis cessassem de proteger os bancos e começassem
a proteger o povo.
Pergunta Quando o Senhor diz "proteger o povo", refere-se a permitir
que aqueles que depositam suas poupanças cheguem a gozar
da taxa mínima de juros permitido, além de outros serviços que
qualquer banco pode dar?
*Saving & Loan Banks: tipo de banco cuja finalidade primordial é o estímulo às

pequenas economias e à aquisição de casa própria. Pode ser federal ou estadual.

(N.T.I

VanJervoort Sim, é isto mesmo.
Pergunta O Senhor mencionou certificados de depósitos.
VanJervoort O Banco Federal da Receita dos Estados Unidos proibiu
que grandes bancos, como o FMA por exemplo, fizessem propaganda
de certificados de depósito a longo prazo com taxas de juros
elevadas. Esta espécie de CDB (CDs) é particularmente boa para as
pessoas que pensam no futuro, em uma aposentadoria, e que
desejem adiar o imposto de renda para mais tarde, para os anos de
menor renda. A Receita Federal justifica de modo obscuro essa
proibição. Mas a razão, o objetivo verdadeiro é proteger os
pequenos bancos contra os grandes, já que os primeiros estão mais
aptos a apresentar melhores serviços. Como de hábito, a última
pessoa a ser considerada é o público, o indivíduo.
Pergunta Vamos ser bem claro sobre isto. O Senhor estaria sugerindo
que a Receita Federal se preocupa mais com os pequenos
bancos que com a população em si?
VanJervoort É exatamente isto que quero dizer.
Pergunta Passemos agora ao assunto das contas-correntes. Alguns
banqueiros dizem que gostariam de pagar juros sobre elas, mas que
a legislação federal os proíbe.
VanJervoort Quando um banqueiro lhe disser isto, pergunte-lhe
quando foi a última vez que nossa representação, tão poderosa em
Washington, tentou modificar essa lei. Se houve algum esforço
neste sentido, não tenho conhecimento dele.
Pergunta O Senhor, então, está sugerindo que a maioria dos
banqueiros, na realidade, não está interessada em ver tal legislação
alterada?
VanJervoort Não estou apenas sugerindo. Sei o que digo. Para quem
dirige um banco, a lei que impede o pagamento de juros sobre as
contas-correntes é muito conveniente. Foi uma lei aprovada em
1933, logo após a Depressão, com o objetivo de ajudar os bancos a se
fortalecerem porque muitos haviam falido nos anos anteriores.
Pergunta Mas isto foi há mais de 40 anos.


VanJervoort Exato. Esta lei está ultrapassada há muito tempo. Deixe
que lhe diga uma coisa: atualmente, se todos os saldos de contas-
correntes do país fossem somados, dariam um total de mais de duzentos
bilhões de dólares. Esteja certo de que os bancos estão
ganhando com este dinheiro, mas os depositantes, os clientes dos
bancos, não recebem sequer um centavo.
Pergunta Sendo o Senhor mesmo um banqueiro, seu próprio banco
ganha dinheiro através dessa lei. Assim, que espécie de mudança
aconselharia?
VanJervoort Acredito na justiça. E acredito também que os bancos
não precisam dessas muletas, ou seja. leis protecionistas. Em minha
opinião, poderíamos trabalhar melhor sem elas e, assim, prestar
serviços melhores ao público e termos mais lucros.
Pergunta Mas já não houve recomendações em Washington, relativas
a algumas das mudanças a que o Senhor se referiu?
Vandervoort Sim. O relatório de 1971, da Comissão Hunt, propôs
uma legislação que beneficiaria os consumidores. Mas tudo acabou
engavetado no Congresso, por força de pressões e interesses,
inclusive os dos bancos, atrasando o progresso.
Pergunta Não julga o Senhor que sua franqueza pode criar um certo
antagonismo por parte de outros banqueiros?
Vandervoort Para falar a verdade, nem pensei nisso.
Pergunta E fora do assunto bancário, tem o senhor um ponto de
vista geral sobre o atual cenário econômico?
Vandervoort Tenho. Mas uma opinião geral, ampla no seu mais vasto
sentido, não se limitaria à economia apenas.
Pergunta Pois então torne claro seu ponto de vista sem nenhum limite.
Vandervoort Nosso maior problema e nossa maior falha, como nação,
é que quase tudo hoje em dia é dirigido contra o indivíduo e em
favor das grandes instituições: grandes corporações, grandes
negócios, grandes sindicatos, grandes bancos, grandes governos. Na
realidade o americano atual não apenas enfrenta dificuldades para


subir na vida e manter-se num ponto elevado, como
freqüentemente tem dificuldade simplesmente para sobreviver. E o
que quer que aconteça de mau — inflação, desvalorização,
depressão, falta de material, taxas mais elevadas, custos mais
elevados, até mesmo guerras — não atinge exatamente as grandes
instituições, pelo menos não muito. Mas o povo, o indivíduo, sim;
este é sempre o mais atingido.
Pergunta O Senhor vê algum paralelo na História?
Vandervoort Claro! Pode parecer estranho "que eu diga isto, mas o
exemplo que me ocorre, o mais parecido, é o da França logo antes
da Revolução. Naquela época, apesar da intranqüilidade reinante e
da economia em estado desesperador, todo mundo supunha que os
negócios continuariam como sempre. Foi então que a massa, o
povo, composto de indivíduos rebelados, tirou do poder os tiranos
que o oprimiam. Com isto não estou sugerindo que as nossas
condições atuais sejam exatamente as mesmas, mas em muitos
aspectos quase se assemelham à tirania. E mais ainda: à tirania
contra o indivíduo. E dizer ao povo, que não está podendo dar pão
às suas famílias devido à inflação que "você nunca esteve tão bem",
soa tão imaterial quanto dizer. "Pois que comam brioches."* É por
isso que, se queremos preservar nosso chamado "estilo de vida" e as
instituições que pretendemos valorizar, julgo ter chegado a hora de
começar a pensar e agir segundo os interesses dos indivíduos, dos
cidadãos, mais uma vez.
Pergunta E no seu próprio caso, o Senhor por certo começaria fazendo
com que os bancos atendessem melhor as pessoas?
Vandervoort Sem a menor dúvida!

— Querido, é magnífico! Sinto-me orgulhosa de você e amo-o hoje
mais do que nunca — disse Margot ao ler o original da entrevista,
ainda antes da publicação. — Trata-se da coisa mais honesta que
jamais li. Mas os outros banqueiros passarão a odiá-lo.
* Palavras atribuídas à Rainha Maria Antonieta, antes da Revolução Francesa
(N.T.)


Provavelmente alguns vão ter vontade de comer seus ovos no
desjejum.

— Alguns sim, outros não — disse Alex.
Mas agora que estava lendo as perguntas e as respostas e mesmo
com toda a onda de sucesso que o envolvia, sentiu-se um tanto
preocupado.
3


_ O que evitou que você fosse crucificado — declarou Lewis
D'Orsey — foi que o artigo saiu no The New York Times. Se tivesse
dado essa entrevista a qualquer outro jornal do país. os diretores de
seu banco o teriam repudiado e expulsado como a um pária. Mas
tratando-se do The Times, tudo fica diferente. Você ficou envolvido
numa aura de respeitabilidade, embora nunca me pergunte por
quê...

— Lewis querido, você podia interromper seu discurso e servir mais
vinho? — perguntou Edwina D'Orsey.
— Não estou propriamente fazendo um discurso. — Ele levantou-se
da mesa de jantar e pegou uma segunda garrafa de Cios cie Vougeot
62. Esta noite, Lewis parecia tão magro e subnutrido como sempre.
Continuou: — Estou falando, minha cara, calma e lucidamente
sobre The New York Times o qual, em minha opinião, não passa de
um pasquim com tendência a "melancia". O seu imenso prestígio, a
meu ver. é uni monumento à estupidez norte-americana.
— De fato, o The Times tem uma circulação bem maior que a de seu
boletim informativo; será esta a razão por que você não gosta dele?
— perguntou Margot Bracken.

Ela e Alex jantavam na elegante cobertura dos D'Orsey. em Cayman
Manor. Sobre a mesa, à luz de velas, a louça e os cristais brilhavam.
De um lado da grande sala de jantar uma janela ampla trazia-lhe a
visão da cidade iluminada a seus pés. Em meio às luzes da cidade,
uma sinuosa linha preta marcava o curso do rio.
Já decorrera uma semana desde a controvertida entrevista de Alex
ao jornal.
Lewis serviu-se de um bife medalhão e respondeu com desdém:


— Meu boletim informativo, quinzenal, apresenta uma alta
qualidade e uma inteligência superior. A maioria dos jornais
diários, incluindo o The Times, têm apenas quantidade.
_ Parem os dois de discutir! — Edwina virou-se para Alex. — Pelo
menos uma dúzia de pessoas que vieram à Agência Central esta
semana me disseram que leram suas declarações e que apreciaram
sua franqueza e sinceridade. Qual foi a reação nas altas esferas?
— Heterogênea.
— Aposto que sei de alguém que não aprovou.
_ Tem razão; Roscoe não estava entre os que me aplaudiam —
disse Alex sorrindo.
A atitude de Heyward tinha-se tornado ainda mais hostil que antes.
Alex suspeitava que ele estivesse ressentido, não apenas pela
atenção que Alex vinha recebendo, mas também devido ao sucesso
da campanha de poupança e das lojas de dinheiro, às quais se
opusera.
A outra previsão de Heyward e dos diretores seus adeptos, relativa
à possível retirada dos 18 milhões de dólares por parte das Savings
and Loan Insiitiitions. não se mostrava correta. As gerências dessas
instituições tiveram acessos de raiva, mas não levantaram seus
depósitos do FM A. E nada indicava que pretendessem fazê-lo.


— Excluindo Roscoe e alguns outros, ouvi dizer que você tem agora
uma imensa lista de adeptos no Banco — disse Edwina.

— Parece que estou na moda; mas talvez venha a ser uma moda
passageira, como o streaking.
— Ou o vício. Sempre achei que você vicia os outros — disse Margot
com um sorriso carinhoso.
Alex sorriu. Tinha sido animador, durante a última semana, receber
congratulações de pessoas que ele respeitava, como Tom Straughan,
Orville Young. Dick French e Edwina, e até de outros, incluindo
executivos menos categorizados, que antes conhecia apenas de
nome. Vários diretores lhe haviam telefonado, com expressões de
elogio e solidariedade.


— Você está criando uma nova imagem para o Banco e. com isto,
nos fazendo muito bem — disse-lhe Leonard Kingswood pelo
telefone.
E quando Alex entrava no escritório central do FM A às vezes
sentia-se quase triunfante, ao receber cumprimentos e sorrisos
calorosos dos funcionários e das secretárias.
— E por falar em seus funcionários, Alex, lembrei-me que está faltando
alguém em seu escritório central: Edwina — disse Lewis
D'Orsey. — Chegou o momento de você promovê-la. Enquanto ela
não for melhor aproveitada, promovida, quem tem a perder é o
Banco.
— Por favor, Lewis, como é que você pode dizer isso? — Mesmo à
luz das velas, o rubor de Edwina era visível. Ela prosseguiu: —
estamos jantando entre amigos; mesmo que assim não fosse, acho
sua sugestão pouco apropriada. Alex, por favor, desculpe.
Lewis, sem se perturbar, olhou para a esposa, por cima dos óculos.
— Você pode pedir desculpas, querida. Mas não eu. Tenho absoluto
conhecimento de sua habilidade e de seu valor; quem poderia sabêlo
melhor que eu? Além do mais. faz parte de minha personalidade
chamar atenção para qualquer coisa importante, porém
despercebida pelos outros.

— Bem, acho que você está certo, Lewis! — disse Margot. — Alex,
que diz você? Quando é que minha querida prima será promovida
para o escritório central?
Edwina começava a sentir-se realmente zangada.
— Acabem com isto, por favor! Vocês estão me pondo numa situação
muito desagradável.
— Não vejo motivo para se sentir embaraçada. — Alex provou o
vinho, deliciando-se. — Hum! 62 foi um ano bom para o Burgundy.
Tão bom quanto o ano de 61, você não acha?
— Acho sim. Felizmente comprei bastante dele — respondeu o anfitrião.
—Nós quatro aqui somos amigos, e portanto podemos falar com
franqueza, sabendo que estamos entre pessoas da maior confiança.
Não me importo de dizer que tinha pensado em uma promoção
para Edwina e até tenho um trabalho determinado, especial para
ela. Mas, quando vou poder fazer o que quero, ou seja, não só esta,
mas outras mudanças, dependerá do que vier a acontecer nos
próximos meses, como Edwina sabe — disse Alex.
— Sim. bem sei, — disse Edwina. Ela também sabia que as suas
ligações pessoais, sua amizade com Alex eram bem conhecidas no
Banco. Desde a morte de Ben Rosselli, e mesmo antes, tivera quase
como certa a ascensão de Alex à presidência e que, com isto, sua
própria carreira iria de vento em popa. Mas, se em lugar de Alex,
Roscoe Heyward fosse o sucessor de Ben Rosselli, Edwina sabia que
sua posição ficaria estagnada, que jamais chegaria a qualquer posto
mais elevado.
— Outra coisa que eu estimaria — disse Alex — seria ver Edwina na
diretoria do FM A.
Margot vibrou.
— Isto mesmo, Alex! Você acertou! Isto sim seria um passo, um
progresso para o women's lib.
— Não! — protestou Edwina. — Não me compare com qualquer
women's lib.'... Nunca! O ponto onde cheguei, tudo o que consegui

até agora foi às minhas próprias custas, competindo honestamente
com os homens. O women's lib, sua divisa, sua senha, tudo nele,
segundo meu ponto de vista, atrasou o objetivo da igualdade dos
sexos, e não avançou em nada. não resultou em nem um passo à
frente.

— O que você diz é tolice! — retrucou Margot. chocada. — Você
pode dizer isto agora, porque teve muita sorte, e é fora de série.
— Não se tratou de sorte, mas sim de trabalho — disse Edwina.
— Não foi questão de sorte?
— Bem, não muita.
E começaram a discutir mais uma vez. Margot argumentava que
sempre tem que existir o fator sorte, quando se trata de uma
mulher, porque o meio bancário sempre foi uma espécie de clube
exclusivo de homens, embora não houvesse a menor razão para tal.

— E você acha que a experiência não conta, que não teria sido um
fator positivo? — a pergunta partira de Alex.
— Não. A experiência não passa de uma cortina de fumaça, soprada
pelos homens, a fim de manterem as mulheres a distância. Nada
existe, em matéria de banco, que só os homens possam saber. Tudo
que o sistema bancário, ou mesmo a economia exigem é intelecto,
qualidade que muitas mulheres possuem e, às vezes, mais que os
homens. O restante, está no papel, na cabeça ou na conversa, de
modo que o único trabalho físico é içar o dinheiro para dentro e
para fora dos carros blindados, o que muitas mulheres-guardas sem
dúvida poderiam fazer também.
— Não discutirei mais o assunto — disse Edwina. — Só quero dizer
que você está um tanto ultrapassada, ou mal informada. A
exclusividade masculina já foi quebrada por pessoas como eu, e está
sendo quebrada cada vez mais. Quem precisa do women's lib?
Certamente não eu.

— É, mas você não quebrou essa exclusividade tanto assim; do contrário,
já estaria na matriz do Banco, e não apenas falando dessa
hipótese, como fazemos agora — respondeu Margot.
Lewis D'Orsey começou a rir.
— Touché, querida!
— Vá por mim, Edwina — concluiu Margot. — No meio bancário o
women's lib é e será necessário ainda por muito tempo.
Alex recostou-se, adorando, como sempre, ver Margot discutir.
— De uma coisa podemos ter certeza — observou ele — esses jantares
a quatro poderão ser tudo, menos monótonos.
Lewis concordou:
— Deixe que lhe diga, já que fui eu quem provocou o assunto: estou
contente por saber de suas intenções relativas a Edwina.
— Está certo — concluiu Edwina. — Também eu agradeço, Alex.
Mas chega por hoje; vamos deixar as coisas como estão.
E assim o assunto encerrou-se.
Margot passou a relatar uma ação que estava movendo contra uma
cadeia de lojas que sistematicamente lesava seus fregueses. Os totais
das contas mensais, ela explicou, eram sempre uns poucos dólares
acima dos corretos. Quando alguém reclamava, explicavam que
houvera um engano; mas ocorria que quase ninguém reclamava.


— Quando alguém vê um total impresso à máquina, em geral acha
que a conta está certa. O que as pessoas se esquecem, ou não sabem,
é que as máquinas podem ser programadas para incluir um erro.
Como neste caso.
Margot acrescentou que a cadeia já tinha ganho cerca de dezenas de
milhares de dólares, e era isto que ela pretendia provar nos
tribunais.


— No Banco, não programamos erros, mas eles ocorrem, por culpa
das máquinas, ou não. É por isto que sempre insisto com os clientes
para que confiram seus extratos — disse Edwina.

Para ajudá-la na investigação que fazia, Margot acrescentou, tinha
contratado um detetive particular chamado Vernon Jax, muito
diligente e habilíssimo.

— Já ouvi falar dele — disse Lewis D'Orsey. — Fez investigações
para 0 SEC sobre um assunto que, certa vez, divulguei. É uma boa
pessoa e ótimo profissional.
Quando saíram da sala de jantar, Lewis disse a Alex:
— Agora você e eu podíamos fumar um charuto e tomar um conhaque,
que diz? Vamos para o estúdio; deixemos as mulheres de lado.
Aliás, Edwina não gosta da fumaça de charuto.
Os homens desceram para primeiro andar, pois o apartamento dos
D'Orsey era duplex, e dirigiram-se ao santuário de Lewis. Lá
chegados, Alex olhou em volta, cheio de curiosidade.
A sala era grande, com estantes superlotadas de livros em dois
lados, e de revistas e jornais no terceiro. Havia ainda três mesas,
uma delas com uma máquina de escrever elétrica e, em todas,
papéis, livros e pastas, cobrindo-as quase que por completo.
— Quando uma das mesas fica superlotada, tornando impossível
usá-la, eu simplesmente pulo para a próxima — explicou Lewis.
Uma porta aberta mostrou o que, durante o dia, era a sala da secretária
e os arquivos. Entrando aí, Lewis voltou trazendo dois copos e
uma garrafa de Courvoisier da qual ele se serviu.
— Já várias vezes tenho pensado no ambiente de um boletim financeiro
de sucesso — disse Alex.
— Só posso falar do meu, que aliás é julgado pelas pessoas entendidas
como o melhor. — Lewis passou um copo a Alex e dirigiu-se ao
estojo de charutos. — Por favor Alex, sirva-se: são Macanudos; não
existem melhores, além de deduzíveis do imposto de renda.
— Mas como é que você consegue isso? Lewis deu uma gargalhada.
— Basta você olhar para essa espécie de anel que envolve cada charuto.
Compro-os a preço de custo, removo os anéis originais, e em
seu lugar ponho outro anel que diz The D'Orsey Newsletter. Isto é
propaganda. Uma despesa de negócios, contabilizável, de modo

que cada vez que acendo um charuto tenho a satisfação de saber
que nada me custa. Quem paga é o Tio Sam.
Sem nenhum comentário, Alex tirou um charuto, que aspirou,
apreciando-o. Há muito tempo que ele deixara de fazer julgamentos
morais sobre evasão de impostos. O Congresso é que fazia as leis do
país. e quem poderia acusar um cidadão de valer-se delas?


— Respondendo à sua pergunta, não faço nenhum segredo do objetivo
do The D'Orsey Newsletter: é ajudar os ricos a se tornarem mais
ricos — disse Lewis.
— Bom, até aí eu sei — disse Alex.
Todos os boletins, Alex sabia, continham conselhos sobre a aplicação
de dinheiro: títulos e moedas a comprar, a vender, a trocar;
mercadorias com as quais lidar; bolsas de valores do estrangeiro, a
favor ou contra; meios de se evadir ao imposto de renda para os
ricos e extravagantes, tais como transacionar com contas na Suíça;
até que ponto o ambiente político chegaria a afetar o dinheiro
nacional, e até as calamidades nacionais das quais o cidadão
poderia tirar proveito financeiro. A lista era longa, e o tom do
boletim de Lewis sempre autoritário. Poucas vezes empregava
qualquer espécie de subterfúgio.
— Infelizmente — acrescentou Lewis — existe um monte de charlatães
e impostores entre os responsáveis por boletins financeiros, o
que prejudica um boletim como o meu, honesto e sério. Mas
acontece que essas espécies de publicação não passam de uma
reprodução de notícias de jornais, em geral sem nenhum valor ou
base. Outros repetem conselhos de compra ou venda de ações
emitidos por corretoras ou promotores, o que, afinal, vem a ser
quase o mesmo gênero de chicana. Na realidade, talvez contemos
com meia dúzia de boletins financeiros realmente honestos e o meu,
é claro, é o ápice, o apogeu de todos.
Partindo de qualquer outra pessoa, Alex pensava, essa eterna auto-
valorização soaria mal. Mas, tratando-se de Lewis, isso não ocorria,
talvez porque ele era honesto e comprovava, na prática, que dizia a

verdade. Quanto ao que se referia à política de Lewis, Alex achava
que poderia passá-la por um coador, como a gente faz com o chá ou

o café, e o resultado final seria bom.
— Creio que você é um dos meus assinantes — disse Lewis.
— Sou, sim; através do Banco, claro.
— Aqui está um exemplar do último número. Pode dar uma vista
d'olhos, embora vá recebê-lo pelo correio, segunda-feira cedo.
— Obrigado.
Alex aceitou a grande folha litografada em azul-claro, dobrada em
quatro, e absolutamente inexpressiva na aparência. O original fora
datilografado, depois fotografado e reduzido. Mas o que lhe faltava
em apresentação gráfica sobrava em valor intrínseco. Lewis jactava-
se que os leitores do boletim poderiam aumentar seus capitais, num
período de um ano, em um quarto ou na metade do todo, e num
período maior, de vários anos, poderiam duplicar ou triplicar o
capital original.
— Qual é o seu segredo? — perguntou Alex — Como é que você
acerta com tanta freqüência?
— Acontece, meu caro, que minha mente é uma espécie de computador
com 30 anos de input. — Lewis tirou uma baforada do charuto
e tocando com o polegar na testa, acrescentou: — Cada partícula de
conhecimento financeiro que tenho está registrado aqui. Tenho, de
fato, uma capacidade excepcional para ligar um item ao outro, o
futuro ao passado. Além do que, tenho uma vantagem sobre o
computador, chama-se pura e genuína intuição.
— Então por que se preocupar em manter e editar um boletim
financeiro? Por que não ganha você uma fortuna, somente para si?
— Isto não me traria satisfação: não me sentiria realizado. Não haveria
competição. Além do mais. de minha parte, não estou me
saindo tão mal assim. Financeiramente até me dou por satisfeito —
disse Lewis sorrindo.
— Pelo que eu posso me lembrar, o preço da assinatura do seu boletim
é...

— Trezentos dólares por ano. para o boletim. E por consultas pessoais,
de uma hora. mil dólares.
— Várias vezes já quis saber quantos assinantes você tem.
— Outras pessoas também se preocupam com isso. Mas é um segredo
só meu.
— Desculpe: eu. de fato, não estava tentando sondá-lo.
— Mas não vejo razão para que não o fizesse. Eu. em seu lugar,
estaria muito curioso.
Esta noite, Alex pensava. Lewis parecia mais relaxado que nunca,
mais à vontade do que jamais o tinha visto. \
— Talvez me resolva a partilhar com você o meu segredo. Todo
mundo gosta de fazer seu próprio cartaz. Eu também. Para lhe dizer
a verdade tenho mais de 5.000 assinantes — disse Lewis.
Alex pós a cabeça a funcionar aritméticamente e assobiou. Somado
tudo, representava uma renda anual de mais de um milhão e meio
de dólares.
— Além disso — confidenciou Lewis — publico um livro por ano e
dou cerca de 20 consultas por mês. O preço das consultas, mais os
royalties referentes a cada livro cobrem todas as minhas despesas, de
modo que o boletim só dá lucro.
— Mas é surpreendente!
E no entanto, refletiu Alex, talvez não fosse tanto assim. Qualquer
pessoa que pagasse pelo conselho de Lewis se recuperaria da
despesas várias vezes. Além disso, tanto a assinatura como as
consultas eram deduzidas do imposto de renda.
— Diga-me. Lewis, se você tivesse que dar um conselho generalizado
a uma pessoa com dinheiro para investir, o que você diria? —
perguntou Alex.
— Diria apenas uma coisa: cuide de si mesmo.
— Mas supondo que se tratasse de uma pessoa completamente
ignorante...
— Pois entào ele que procurasse saber. Afinal de contas, aprender
não é tão difícil e cuidar de seu próprio dinheiro acaba se tornando

divertido. Que preste atenção a conselhos, é claro, mas que se
mantenha até certo ponto céptico e controlado, e saiba fazer a
devida seleção sobre qual o conselho a seguir. Depois de certo
tempo a pessoa aprenderá em quem deve e em quem não deve
confiar. Aconselho que leia bastante, inclusive boletins como o meu.
Mas que nunca dê a qualquer outra pessoa o direito de tomar
decisões por ela. Especialmente a corretoras, que representam a
maneira mais rápida de perder o pouco que você tem e, além
dessas, os departamentos de custódia e carteiras administrativas
dos bancos.

— Você é contra as carteiras administrativas?
— Pô, Alex, você sabe tão bem quanto eu que o registro do seu
banco, assim como o dos outros, é lamentável. As grandes contas
sob custódia das carteiras administrativas de fato recebem uma
espécie de serviço individual — uma espêice de. Mas as contas
médias e as pequenas são todas misturadas num só pote, ou são
manipuladas por assalariados incompetentes, pessoas sem gabarito,
que não sabem distinguir entre uma pulga e um elefante.
Alex fez uma careta, mas não chegou a protestar. Sabia muito bem,
bem demais, que tudo quanto Lewis dissera era verdade, salvo em
poucas e honrosas exceções.
Deliciando-se com o conhaque na sala, já agora cheia de fumaça,
ambos mantiveram-se em silêncio. Alex virou as páginas do último
Newsletter, dando uma vista d'olhos no texto, que iria ler
detidamente em seu escritório, no dia seguinte. Como sempre, havia
demasiada matéria técnica.
Os gráficos indicam tendência de baixa no mercado. A média MVG
foi interrompida em três médias DJ. que estão em perfeita sintonia
com a baixa. A linha A D está a todo vapor. Entre os dados técnicos
Alex viu: Recomendações quanto a moedas:
Francos suíços ...........40%
Guilders holandeses .25%
Marcos alemães ..........20%


Dólares canadenses.......... 10%
Schillings austríacos.......... ..5%
Dólares americanos............. 0%


Em outra coluna o boletim dava conta dos títulos internacionais que
recomendava para compra ou venda. Os olhos de Alex correram a
coluna de "compra", e a coluna de "venda". De repente ele parou
surpreendido quando leu: "Supranational — venda imediatamente,
ao preço do mercado".

— Lewis, essa referência sobre a Supranational, por que você
diz venda? E ainda mais imediatamente, ao preço do mercado? Durante
muitos anos, sei que você cotava a Supranational como um título a
longo prazo.
O anfitrião pensou um pouco antes de responder.

— Alex, não me sinto nada seguro com relação à SuNatCo. Tenho
recebido muitas informações negativas de diversas fontes. Muitos
rumores sobre grandes perdas que ainda não publiquei. E também
certas histórias sobre práticas, digamos, tendenciosas de
contabilidade entre suas subsidiárias. E também um boato, ainda
não confirmado, de que Big George Quartermain tentou em
Washington um subsídio do tipo Lockheed. Até que ponto isso é
verdade ou não. talvez estejamos entrando em águas perigosas, em
areias movediças. Como medida de precaução, prefiro que meus
leitores se mantenham fora do assunto.
— Mas tudo que você disse é baseado em rumores, em informações
não confirmadas. Pode-se ouvir toda espécie de boatos sobre
qualquer companhia. Onde você encontrou alguma substância para
o que diz?
— Não há, na realidade, nenhuma. Quando digo "venda", baseio-
me em minha intuição. Algumas vezes ajo apenas por instinto, já
que não tenho certeza de nada. Esta é uma das vezes. — Lewis
D'Orsey apagou o charuto num cinzeiro e pôs de lado o copo vazio.
— Como é. meu caro. vamos nos juntar às senhoras?

— Sim. vamos — disse Alex acompanhando-o.
Mas seus pensamentos concentravam-se no que acabara de ouvir a
respeito da Supranational.
4


Para falar a verdade, nunca pensei que você tivesse coragem de me
procurar — disse Nolan Wainwright no tom mais ríspido possível.

— Também eu pensei que não o conseguisse. — A voz de Miles
Eastin traía seu nervosismo. — Quis vir ontem, depois achei que
não era conveniente. Hoje. até entrar, fiquei rodando uma hora em
volta do quarteirão para criar coragem.
— Você pode chamar isso de coragem. Eu não sei que nome dar à
sua atitude. Deve haver uma expressão mais forte. Mas já que está
aqui. o que é exatamente que quer?
Os dois homens olharam-se com firmeza, ambos de pé, no escritório
de Nolan Wainwright. Apresentavam grande contraste: o negro,
limpo, bonito, vice-presidente da Segurança do FMA, e Eastin, o
condenado, encolhido, pálido, indeciso, trêmulo, em nada
lembrando aquele assistente de operações, brilhante e afável, que
trabalhara no Banco até há onze meses.
O ambiente do escritório era espartano, comparado com a maioria
dos departamentos do Banco. Aqui. as paredes eram apenas
pintadas, assim como decoração e inclusive a secretária de
Wainwright. em metal, cinza. No assoalho, passadeiras baratas
substituíam o tapete. O Banco esbanjava dinheiro em decoração e
em beleza apenas nas áreas que lhe traziam dinheiro. A Segurança,
é claro, não estava incluída.
— Bem, afinal o que é que você quer? — repetiu Wainwright.

— Vim aqui para ver se o Senhor poderia me ajudar.
— E por que haveria eu de ajudá-lo?
O jovem hesitou bastante antes de responder, depois disse, ainda
nervoso.
— Sei que o Senhor me pegou numa armadilha naquela primeira
confissão. Na noite em que fui preso, meu advogado me afirmou
que ela foi ilegal, e que eu poderia ter usado este argumento no
tribunal. O Senhor sabia disso; mas deixou que eu continuasse a
pensar que a confissão era legal, o que me levou a assinar a segunda
para o FBI, sem me dar conta de que havia uma enorme diferença...
Os olhos de Wainwright se estreitaram com suspeita.
— Antes de responder, preciso saber de uma coisa: por um acaso
você trouxe um gravador?
— Não.
— E o que me levaria a acreditar em você?
Miles deu de ombros, depois elevou suas mãos encostando-as à
nuca, conforme aprendera na prisão.
Por um momento Wainwright julgou que não precisava efetuar
uma busca, mas o seu instinto profissional foi mais forte e ele
passou as mãos, tateando, pelo corpo de Miles, que depois baixou
os braços.
— Sou uma raposa velha e caras como você pensam que podem
bancar os espertos e ganhar dinheiro acionando qualquer pessoa —
disse Wainwright. — Quer dizer então que você agora se julga um
advogado de prisão?
— Não. O que sei, e de que tenho absoluta certeza, é sobre aquela
confissão.
— Bem, já que você tocou no assunto, vou lhe dizer tudo. Eu sabia
que não tinha nada para usar legalmente contra você; nenhuma
evidência. É certo que fiz você cair na minha armadilha. E mais uma
coisa: nas mesmas circunstâncias, eu o faria outra vez. Você era
culpado, não era? Você estava a ponto de mandar para a cadeia a
Sra. Núhez. Que diferença isso faz agora?

— Apenas pensei...
— Sei muito bem o que pensou. Pehsou que voltaria aqui, que me
procuraria, que minha consciência estaria doendo e que eu lhe daria
qualquer espécie de apoio num esquema qualquer que você tenha
ou venha a ter em mente. Mas não é esse o meu caso.
Miles Eastin murmurou:
— Eu não tenho nenhum esquema em mente. Lamento ter vindo.
— Então, afinal, o quê quer?
Depois de uma longa pausa, durante a qual eles se entreolharam,
Miles disse:
— Um emprego.
— Aqui? Você deve ter ficado louco.
— Por quê? Eu seria o funcionário mais honesto que o Banco já teve.
— Até que qualquer coisa o levasse a roubar mais uma vez.
— Não, isso jamais aconteceria — Sem querer, o rosto de Miles
Eastin deixou transparecer o que lhe ia no íntimo. — Será que o
Senhor, será que ninguém quer acreditar que aprendi minha lição?
Que paguei o preço devido? Que aprendi o que acontece quando
uma pessoa rouba? E que aprendi que nunca mais incorrerei no
mesmo erro? Será que o Senhor não acredita que nenhuma tentação
no mundo seria bastante forte para que eu me arriscasse a voltar a
ser preso?
Wainwright respondeu num resmungo:
— O que eu acredito ou não acredito é irrelevante. O Banco tem as
suas normas; uma delas é jamais empregar alguém com registro
criminal. Mesmo que eu quisesse, não conseguiria alterar esta
norma.
— Mas poderia tentar. Existem empregos, mesmo aqui, para os
quais um registro criminal não faria nenhuma diferença. Empregos
nos quais não há a menor possibilidade de o funcionário ser desonesto.
Será que nem um trabalho assim me dariam?
— Não. — Mas a curiosidade foi mais forte e Wainwright perguntou:
— Por que você está tão ansioso para voltar?

— Porque não consigo encontrar rerhum trabalho, nenhum mesmo.
Não consigo nenhuma oportunidade, em lugar nenhum. — A voz
de Miles estava trêmula. — E também, porque estou morrendo de
fome.
— Você está o quê?
— Sr. Wainwright, já estou fora da prisão, em liberdade condicional,
há cerca de três semanas. Estou sem um centavo no bolso há mais
de uma semana. Não me alimento há três dias. Então tente
compreender por que estou desesperado. — Sua voz estava cada.
vez mais trêmula. — Vir até aqui... ter que enfrentá-lo, imaginando
o que o Senhor me diria... foi a última...
Ao ouvir tal confissão, a rispidez do chefe da Segurança foi diminuindo.
Puxando uma cadeira, ele disse:
— Sente-se
A seguir, saiu da sala, chamou sua secretária e lhe deu cinco
dólares, dizendo:
— Vá ao café e compre dois sanduíches de rosbife e um litro de
leite.
Quando ele voltou, Miles Eastin continuava sentado, sucumbido,
como que alheado.
— O encarregado de sua liberdade condicional, o policial
encarregado de você, não o ajudou?
Com amargura, Miles respondeu:
— Ele cuida, ou pelo menos assim me disse, de 175 presos em liberdade
condicional. O máximo que consegue é entrar em contato com
cada um deles, uma vez por mês. O que mais pode fazer? Nem ele
nem ninguém arruma empregos. Tudo que faz é nos dar conselhos.
Com sua longa experiência, Wainwright sabia que espécie de conselhos
seriam: não se ligar a outros criminosos que porventura tivesse
conhecido na prisão; não frequentar rodas conhecidas de
criminosos. Fazer uma coisa ou outra e ser notado por uma
autoridade traria ao ex-convicto uma volta rápida à prisão. Mas, na
prática, as regras eram tão irreais quanto arcaicas. Um ex

prisioneiro sem recursos financeiros tinha tudo contra si e, assim,
associar-se a outros na mesma situação era frequentemente o único
meio de sobreviver. Por isso é que a taxa de reincidência entre eles
era tão elevada. Wainwright perguntou:

— Você está, de fato, querendo trabalhar?
— Quero fazer qualquer coisa; não tenho escrúpulos em aceitar seja
o que for.
O máximo que Miles conseguira em matéria de emprego nestas três
semanas de procura fora o de ajudante de cozinha, num restaurante
italiano de terceira categoria. O emprego, de fato, existia e o
proprietário, um velho muito triste, sentira-se inclinado a empregálo.
Mas quando Miles Eastin contou-lhe sua prisão, como sabia que
teria de contar, percebeu que o dono olhara na direção da caixa
registradora. Mesmo assim ele hesitou, mas sua mulher, uma
italiana enérgica gritou:
— Não! Não podemos nos arriscar.
Miles implorou a ambos, mas nada conseguiu.
Em todos os outros lugares a que foi a sua situação de liberado condicional
eliminou toda e qualquer possibilidade.
— Realmente, se eu pudesse, talvez fizesse alguma coisa por você.
— O tom de voz de Wainwright tornara-se ameno. — Mas não
posso. Não há lugar aqui. Acredite, você não tem a menor
oportunidade.
Miles aquiesceu:
— Tenho a impressão que o Senhor não está me dizendo nada de
novo.
— E qual vai ser sua próxima tentativa?
Antes que lhe fosse dada resposta, a secretária entregou-lhe um
saco de papel e o troco. Quando ela se retirou, Wainwright pós a
garrafa de leite e os sanduíches à frente de Eastin.
— Pode comer os sanduíches e beber o leite aqui mesmo, se quiser.
Rapidamente, Miles desembrulhou o primeiro sanduíche e tomou
um

pouco de leite. Qualquer dúvida que Nolan tivesse de que Miles
estava de fato faminto desvanecia-se, à medida que observava a
maneira pela qual ele devorava tudo rápida e silenciosamente.
Depois que Miles esvaziou a garrafa de leite e comeu os sanduíches,
Wainwright voltou a perguntar:

— Você não me respondeu: qual vai ser sua próxima tentativa?
Miles hesitou e respondeu com a maior sinceridade:
— Não sei.
— Pois eu acho que sei. E creio também que você está mentindo
pela primeira vez desde que entrou aqui.
Miles Eastin deu de ombros.
— Que importância tem isso agora?
— Vou lhe dizer o que penso: até agora você procurou manter-se
afastado das pessoas que conheceu na prisão. Mas, como não
conseguiu nada, resolveu juntar-se a elas. E aí estará arriscando ser
visto ou não, manter sua liberdade condicional ou voltar para a
prisão.
— E. por acaso, o Senhor acha que tenho outra alternativa? Se o
Senhor sabe disso, para que perder tempo fazendo perguntas?
— Então, quer dizer que você tem, de fato, certos contatos.
— Se lhe disser que sim, a primeira coisa que o Senhor fará é telefonar
para o encarregado da liberdade condicional — respondeu
Eastin.
— Não. — Wainwright meneou a cabeça. — Decida o que decidir,
prometo-lhe que isto eu não farei.
— E o que quer dizer exatamente com "decida o que decidir" —
indagou Miles.
— Porque talvez pudéssemos chegar a um entendimento, a alguma
espécie de trabalho para você. Se estiver disposto a correr certos
riscos, aliás grandes riscos. .
— Que espécie de riscos?
— Por enquanto, deixemos os detalhes de lado. Se necessário, voltaremos
a falar no assunto. Antes, me diga que tipo de gente

conheceu na prisão, e com quais poderia estabelecer contato. —
Sentindo que Miles continuava desconfiado, Wainwright
acrescentou: — Dou-lhe minha palavra de honra que não me
aproveitarei, sem sua plena concordância, de nada que me disser.

— E como é que vou saber se não é mais uma armadilha,... como
aquela em que o Senhor já me fez cair?
— Você não poderá saber; terá que arriscar. Confiar ou não em mim.
Ou isso, ou sai daqui imediatamente, para nunca mais voltar.
Miles continuou sentado, em silêncio, passando de vez em quando a
língua pelos lábios, num gesto nervoso que lhe era habitual. Então,
de repente, sem mais aquela, começou a soltar tudo que sabia.
Revelou a tentativa inicial da turma da Máfia de estabelecer contato
com ele através de um emissário que lhe transmitira um recado de
Igor (o Russo) Ominsky, o agiota. Este mandara lhe dizer que ele,
Miles, era considerado "de confiança" por não ter revelado durante
o processo, nem depois, sua identidade e a do bookmaker a quem
devia dinheiro. Em retribuição, os juros sobre essas dívidas ficariam
suspensos, a partir da data da sua prisão.
— O intermediário disse que o relógio tinha parado quando fui
preso.
— Mas agora você já está do lado de fora — lembrou-lhe Wainwright.
— Portanto, o relógio passou a funcionar outra vez e o tempo
corre contra você.
Miles demonstrou preocupação.
— Sim, eu sei.
Já pensara nisso, mas tentara não se preocupar, pelo menos enquanto
procurava trabalho. Mantivera-se também afastado do local
onde o pessoal da Máfia lhe dissera que poderia entrar em contato
com o agiota Ominsky e outros: tratava-se de Double-Seven Health
Club, perto do centro da cidade, indicação esta que recebera poucos
dias antes de ser libertado. Contou tudo a Wainwright. em detalhe.

— Faz sentido. Eu próprio não conheço o Double-Seven , mas já
ouvi falar dele; tem fama de ser uma espécie de esconderijo de
gente da pior categoria — disse o chefe da Segurança.
Outra coisa que disseram a Miles, ainda na penitenciária, era que
encontraria, através de contatos, meios de ganhar o dinheiro
suficiente para viver e começar a pagar suas dívidas. Ele não
precisava de um diagrama para entender que espécie de "meios"
seriam estes: todos fora da lei. Seu pavor de voltar à prisão
mantivera-o bem longe do Double-Seven, pelo menos até agora.
— Então a minha impressão era correta. Daqui, você teria ido diretamente
para lá.
— Por Deus! Sr. Wainwright! Eu não queria ir! E ainda não quero!
— Talvez, entre nós, possamos dar um jeito, usando ambos os lados.
— Como?
— Você já ouviu falar do que chamamos de agente secreto? Miles
Eastin pareceu surpreso, mas respondeu:
— Já.
— Então preste a maior atenção.
Wainwright começou a falar.
Quatro meses antes, quando o chefe da Segurança do Banco viu o
corpo mutilado de seu informante, Vic, duvidara se algum dia
encarregaria outra pessoa do mesmo trabalho. Naquela hora,
chocado e com sentimentos de culpa, dissera a si mesmo que nunca
mais repetiria a experiência. Mas a presente oportunidade,
representada pelo desespero de Eastin e pelos contatos que ele já
tinha, era muito promissora para ser desprezada.


Além disso, Wainwright levava em consideração o fato de que os
cartões de crédito Keycharge falsificados estavam surgindo no que
parecia ser um verdadeiro dilúvio, enquanto sua fonte permanecia
ignorada. Tinham falhado todos os métodos convencionais de
localizar os falsificadores e os atravessadores. Por outro lado, sua
tarefa tornava-se ainda mais difícil pelo fato de que a falsificação de


cartões de crédito, segundo a lei federal, não representava, em si,
uma ofensa criminal. Toda fraude tinha que ser provada: a intenção
da fraude não era suficiente. Assim sendo, as agências encarregadas
de executar a lei estavam interessadas em outros tipo de falsificação
e seu interesse pelos cartões de crédito era apenas acidental. Os
bancos, para lástima e desgraça dos profissionais como Nolan
Wainwright, não haviam feito esforços realmente sérios no sentido
de alterar a situação.

Tudo isto o chefe da Segurança explicou a Miles Eastin e depois lhe
propôs um plano de ação bastante simples: ele iria ao Double-Seven
Health Club. para fazer os contatos que lhe haviam sido indicados.
Tentaria ser aceito e procuraria toda e qualquer oportunidade para
ganhar dinheiro.

— É preciso que não se esqueça que, agindo assim, você estará correndo
um duplo risco — disse Wainwright. — Se fizer alguma coisa
errada e for apanhado, será preso, julgado e ninguém poderá ajudálo.
O outro risco é que, mesmo sem ser descoberto, os responsáveis
por sua liberdade condicional tomem conhecimento de qualquer
fato desabonador em sua conduta, o que resultará também em
prisão.
No entanto, prosseguiu Wainwright, se nenhum desses infortúnios
acontecesse, Miles deveria tentar ampliar seus contatos, prestando
atenção a tudo e colhendo dados. De início, deveria ter todo
cuidado para não parecer curioso demais.

— Você terá que se manter calmo — alertou-o Wainwright. — Não
se apresse; tenha paciência; deixe que os boatos cheguem a seus
ouvidos, que as pessoas se acostumem com você.
Somente depois que fosse aceito, poderia trabalhar mais. Poderia
então fazer discretas investigações sobre os cartões de crédito
falsificados, mostrando um interesse pessoal, bem como tentar
estabelecer contato com algum distribuidor dos mesmos.


— Sempre há alguém, que conhece um outro alguém, que conhece
um terceiro que tem alguma parte ativa na ação. É a maneira de
você se imiscuir no assunto — esclareceu Wainwright.
De tempos em tempos, Eastin faria um relatório, mas nunca diretamente.
Ao citar o relatório, Wainwright lembrou-se de Vic e sentiu-se na
obrigação de relatar o ocorrido a Miles. Falou depressa, mas não
omitiu detalhes. Enquanto falava, percebeu que o outro empalidecia
e relembrou a noite, no apartamento de Miles, quando lhe arrancara
a confissão, graças ao verdadeiro pavor que ele sentia face a
qualquer violência física.


— Não importa o que aconteça — continuou Wainwright. — Mas
não quero que venha a dizer ou a pensar, mais tarde, que não lhe
avisei dos perigos que enfrentará. — Fez uma pausa, e acrescentou:
— Agora, falemos de dinheiro.
Se Miles concordasse em agir como agente do Banco, disse o chefe
da Segurança, ele lhe garantiria um pagamento de 500 dólares
mensais, de qualquer modo, até o final do trabalho. Esse dinheiro
seria entregue por um intermediário.


— Mas eu seria admitido no Banco?
— De nenhum modo.
A resposta tinha saído inequívoca, enfática, decisiva. Não haveria
qualquer envolvimento direto por parte do Banco. Ele teria que
atuar unicamente por sua conta e risco. Se. em qualquer
circunstância, tentasse envolver o FMA, este negaria tudo. Aliás,
ninguém lhe daria crédito.
— Desde que foi sentenciado e cumpriu pena — concluiu Wainwright
— ninguém aqui ouviu mais seu nome, entendeu?
Miles chegou a sorrir, fazendo uma careta.
— Parece que é um ajuste absolutamente unilateral.
— Certíssimo! Mas lembre-se que foi você que me procurou e não
eu a você. Afinal, qual é a sua resposta, sim ou nào?

— Se o Senhor estivesse em meu lugar, o que responderia?
— Não sou você e não tenho a menor intenção de, algum dia, vir a
sê-lo. Mas, da maneira como estão as coisas não tem muitas opções.
Por um instante o antigo bom humor de Miles pareceu renascer.
Respondeu com ironia:


— Cara, eu ganho; coroa, perco. Acho que não ganhei o Jackpot. Mas
permita-me mais uma pergunta.
— Diga.
— Se tudo funcionar, se tudo der certo, se eu conseguir, se de fato
conseguir a evidência que o Senhor precisa, me ajudará a regressar
ao Banco?
— Isto, não lhe posso prometer. Já lhe disse que não fui eu quem fez
o regulamento.
— Mas tem influência bastante para contorná-lo.
Wainwright pensou bastante antes de responder. Se o plano tivesse
êxito, iria a Alex Vandervoort e tentaria obter o perdão para Eastin.
Afinal, respondeu:
— Tentarei. Mas é tudo que lhe prometo.
— O Senhor é duro — disse Eastin. — Está bem; topo a parada.
E começaram a analisar quem poderia ser o intermediário.
— A partir de hoje — avisou Wainwright — não nos devemos encontrar
diretamente. É perigoso demais, podemos ser observados.
Precisamos de alguém que possa receber e transmitir nossos
recados e também dar-lhe o dinheiro. Alguém da mais absoluta
confiança.
Hesitante Miles Eastin disse:

— Lembrei-me de Juanita Núhez. Caso ela quisesse desempenhar
esse papel.
Wainwright indagou, surpreso:


— Está-se referindo à caixa a quem você...

— Sim, mas ela me perdoou. — Em sua voz sentia-se uma excitação
e alegria. — Fui vê-la. acredita-me, e Deus a abençoe, ela me
perdoou!
— Não acredito!
— Pois pergunte-lhe — disse Miles. — Não existe uma única razão
para que ela concorde. Mas eu pensei... só pensei, que talvez concordasse.
5


Até que ponto a intuição de D'Orsey a respeito da Supranational
Corporation seria correta? Até que ponto aquela empresa seria
sólida? Tais indagações continuavam a perseguir Alex.
A conversa entre eles fora no último sábado. Daí em diante, Alex
começou a analisar o conselho do D'Orsey Newsletter para que seus
assinantes vendessem as ações da Supranational ao preço do
mercado, fosse qual fosse. Levou também em consideração as
dúvidas de Lewis quanto à solidez do grupo.
O assunto, em si, era de extrema importância, vital mesmo, para o
Banco. Mas era uma situação por tal modo delicada, que ele teria de
andar com a máxima cautela.
Antes de mais nada, porque a Supranational tornara-se um dos
maiores clientes do FMA, e qualquer cliente ficaria indignado, com
todo direito, se seus próprios banqueiros espalhassem rumores
adversos sobre ele, principalmente se fossem infundados. Alex não
tinha ilusões: tão logo começasse a fazer perguntas, alguém saberia
de onde haviam partido.
Seriam os rumores, de fato, infundados? Por certo, como Lewis D*
Orsey admitira quando começaram a surgir os boatos sobre as


falências espetaculares da Penn Central, Equity Funding, U.S.
National Bank of San Diego, American Bank and Trust, Franklin
National Bank e outros. E havia ainda a Lockheed que, embora
ainda não tivesse falido, estava perto disso, tendo, inclusive,
recebido auxílio financeiro do Governo para evitar a ruína total.
Alex lembrava-se com inquietante clareza de Lewis D'Orsey lhe ter
dito que o presidente da SuNatCo, Quartermain, pleiteara em
Washington um empréstimo semelhante ao que o Governo havia
concedido à Lockheed, com a diferença que Lewis usava a palavra
"subsídio" o que, na realidade, não estava muito longe da verdade.
Era possível, claro, que a Supranational estivesse apenas passando
por uma temporária falta de fundos, fato que, às vezes, acontecia
mesmo às mais sólidas companhias. Alex esperava que assim fosse.
Entretanto, um dos diretores do FMA não podia cruzar os braços,
sentar-se e esperar. Cinqüenta milhões de dólares do Banco estavam
em poder da SuNatCo. Além disso, empregando fundos em
custódia, a Carteira de Administração investira substancialmente
em ações daquele grupo, operação que ainda agora fazia Alex se
arrepiar quando pensava nela.
Decidiu que a primeira coisa justa a fazer seria informar Roscoe
Heyward.
Segunda-feira pela manhã, dirigiu-se á sala de Heyward, levando o
último número do D'Orsey Newsletter, que recebera no sábado.


Heyward não estava. Acenando cordialmente para a Sra. Callaghan.
Alex deixou sobre a mesa de Heyward o boletim, no qual
assinalara, com lápis vermelho, o item relativo à Supranational.
Acrescentou o seguinte, num bilhete:
"Roscoe.
pensei que você deveria ler isto.
A."
E voltou para sua sala.
Meia hora depois, Heyward procurou-o rubro de cólera e atirou o
boletim em cima da mesa.



— Foi você quem pôs este lamentável insulto à inteligência em
minha mesa?
Alex apontou para o recado que escrevera.
— Mas claro! Se até assinei.
—Pois então faça favor de nunca mais me mandar essas publicações
idiotas, com comentários tolos feitos por um ignorante presunçoso.
—Calma! Bem sei que Lewis D'Orsey é presunçoso, convencido.
Também eu não gosto da maior parte do que escreve. Mas não é um
ignorante e tem algumas opiniões corretas. Vale a pena conhecê-las.
—Talvez você pense assim; outros não. Eu em seu lugar leria isto.
—Heyward entregou-lhe uma revista aberta.
Alex, surpreso com a veemência de Roscoe respondeu:
— Mas eu já li.
A revista era Forbes, e o artigo, de duas páginas, atacava violentamente
Lewis D'Orsey. Alex achara a matéria longa em seu ataque e
curta no que se referia aos fatos. Mas, como ele bem sabia, ataques
ao The D'Orsey Newsletter, por parte daquela revista financeira,
eram frequentes; aliás, por várias outras, no gênero. Alex
acrescentou
—O The Wall Street Journal disse qualquer coisa parecida, há cerca
de um ano atrás.
—Sendo assim — disse Roscoe — ainda mais me surpreende o fato
de você não reconhecer que D'Orsey não tem nenhum treino,
qualificação ou categoria como conselheiro financeiro. De certa
forma — acrescentou ele — até lamento que sua mulher trabalhe
para nós.
Asperamente, Alex retrucou:
—Edwina e Lewis D'Orsey nunca discutem seus trabalhos em casa,
como você por certo sabe. E, quanto a qualificações, é bom lembrar-
lhe que muitos especialistas, cheios de canudos, não se têm saído
tão bem como D'Orsey em suas previsões financeiras, muitas vezes
exatas.
—Não no que se refere à Supranational.

—Você continua achando que a SuNatCo é sólida?
Alex fez a última pergunta sem segundas intenções ou por antagonismo,
mas sim por querer uma informação segura. Heyward fitou-

o através dos óculos, com o rosto ainda mais rubro de cólera.
— Tenho certeza de que nada lhe daria maior prazer que ver a Su-
NatCo em dificuldades e. por tabela, a mim.
—Não, não e isso...
—Deixe-me acabar! — Os músculos faciais de Heyward estavam
tensos e transpareciam sob a pele enrubescida. — Já observei mais
do que o suficiente sua descrença e sua má vontade suspeita, como
por exemplo, me mandando agora este lixo. — Ele indicou com o
dedo o The D'Orsey Newsletter. — E agora lhe digo para parar e
desistir. A Suprana-tional sempre foi e continua sendo uma
companhia sólida, em franco progresso, com grandes lucros e
excelente administração. Ter conseguido para nós a conta da
SuNatCo — não importa o quanto isso lhe possa ter provocado
ciúme, ressentimento e inveja pessoal — foi coisa minha. O negócio,
portanto, é meu. E estou lhe avisando de uma vez por todas:
mantenha-se longe dele!
Em seguida. Heyward voltou-se e saiu da sala.
Durante vários minutos Alex ficou sentado, em silêncio, remoendo
tudo que acabava de ouvir. A explosão de Roscoe o surpreendera
pela violência. Durante dois anos e meio em que haviam trabalhado
juntos, os dois discordaram em diversas ocasiões e, vez por outra,
deixaram transparecer que não se gostavam. Mas Heyward nunca
perdera o controle como hoje.
Começou a suspeitar que sabia a razão: lá dentro, no fundo do coração,
Heyward também devia estar preocupado. E quanto mais
pensava sobre isto, mais convencido Alex ficava.
Antes, Alex achava que só ele se preocupava com a Supranational.
Agora indagava-se: teria Heyward as mesmas preocupações? E, se
assim fosse, o que viria a acontecer?


Enquanto ponderava, lembrou-se de uma conversa recente.
Apertou o botão do interfone e disse à sua secretária:
—Veja se consegue localizar a Srta. Margot Bracken. Quinze
minutos depois, a voz apressada de Margot se fez ouvir:
—É bom que o assunto seja importante. Você me tirou do tribunal.


— Confie em mim. Bracken — disse Alex. e acrescentou: — na ação
que você está movendo contra a cadeia de lojas, sobre a qual falou
sábado, você utilizou um investigador particular.
— Usei; chama-se Vernon Jax.
— Creio que Lewis também o conhece. Ou pelo menos ouviu falar
dele.
— É isso mesmo.
—E Lewis disse que ele é muito competente e que tinha até trabalhado
para o SEC.
—De fato, ele disse isso também. Provavelmente porque Vernon é
formado em Economia.
—Ele é discreto? Da mais absoluta confiança?
—Sem a menor dúvida!
—Onde posso encontrá-lo?
—Eu o encontrarei. Diga onde e quando quer vê-lo.
—Em meu escritório, Bracken. Hoje, sem falta.
Alex observava o homem mal vestido, desleixado, sem personalidade,
que se sentava à sua frente, na sala anexa ao seu escritório.
Era meio-dia.
Deu-lhe 50 anos de idade. Parecia o dono de uma mercearia de cidade
pequena, nada próspero. Seus sapatos estavam gastos e no
paletó via-se uma mancha de comida. Tinha sido informado de que
ele fora investigador do IRS1, antes de trabalhar por conta própria.


— Soube que o Senhor tem um diploma de Economia — disse-lhe
Alex.
O outro deu de ombros.
— De escola noturna; o Senhor sabe como é. Não disponho de
muito tempo.

Ele resumia as palavras, deixando as explicações incompletas, por
conta do interlocutor.
—O senhor tem conhecimentos sobre contabilidade?
—Algum. No momento, estou até fazendo exames para o CPA.
—Escola noturna, suponho. — Alex começava a compreender.
—Sr. Jax — começou Alex.
—Quase todo mundo me chama de Vernon.


— Vernon, estou estudando a possibilidade de pedir-lhe para fazer
uma investigação. Exijo a mais absoluta discrição e a rapidez é
essencial. Já ouviu falar na Supranationa! Corporation?
— Claro.
— Preciso de uma investigação financeira dessa companhia. Mas
terá que ser, não encontro outra palavra melhor, um trabalho de
bisbilhotice.
Vernon voltou a sorrir.
— Sr. Vandervoort — e dessa vez sua voz estava um pouco alta — é
precisamente essa a minha espécie de trabalho.
Ambos concordaram que seria necessário um mês para a execução
do trabalho, embora o investigador fornecesse relatórios ou
informações parciais, uma vez que estivesse convencido de que
eram seguras. E, claro, seria mantido o maior sigilo quanto ao papel
do Banco. Toda a investigação seria absolutamente legal. O
pagamento seria de 15 000 dólares, fora quaisquer despesas
razoáveis, metade pago no ato e o saldo após o relatório final. Alex
retiraria o dinheiro da verba de despesas gerais. Sabia que, mais
tarde, teria que prestar contas dessa despesa, mas deixou o
problema para a hora devida.
No final da tarde, depois que Vernon já tinha partido, Margot lhe
telefonou.
—Contratou-o?
—Contratei, sim.
IRS: Internai Renevue Service.


— Que tal o achou? Alex decidiu ser franco:
—Não me impressionou nada. Margot respondeu rindo:
—Acabará ficando impressionado. Vá por mim.
Mas Alex esperava que não, pois desejava com fervor que a intuição
de Lewis D'Orsey estivesse errada, que Vernon Jax nada
descobrisse, e que os rumores a respeito da Supranational fossem
falsos. Era isso que desejava.
Ao sair do escritório, Alex foi visitar Célia no Centro de Terapia.


Detestava cada vez mais essas visitas. Insistia em ir. mesmo se
sentindo deprimido, pois achava que era seu dever. Ou seria um
certo complexo de culpa? Nunca teve certeza.


Como de hábito, uma enfermeira levou-o ao quarto particular da esposa.
Quando a enfermeira retirou-se, ele sentou e começou a
conversar, monologando sobre tudo que lhe vinha à cabeça, apesar
de Célia não dar o menor indício de estar ouvindo, ou, sequer, de
perceber sua presença. Em outra ocasião, tentara tagarelar com ela
para ver se sua face inexpressiva se alterava, mas nada conseguira.
Depois disso, sentiu-se acanhado e não mais tentou contar-lhe
bobagens.
Durante essas visitas, ele se habituara a ir falando tudo que vinha à
cabeça, embora tivesse o espírito longe. Hoje, entre outras coisas,
disse-lhe:

— As pessoas hoje em dia, Célia, têm toda sorte de problemas; problemas
que não tinham anos atrás. Sempre que o homem descobre
ou inventa alguma coisa nova, dezenas de perguntas, dezenas de
decisões têm que ser feitas e tomadas, o que antes não ocorria. Por
exemplo: veja o abridor elétrico de latas. Se você tem um, como eu
tenho, o primeiro problema é saber onde adaptá-lo, quando usá-lo,
como limpá-lo, e o que fazer quando se quebra; problemas que
ninguém teria se não houvesse abridores elétricos de lata. Na
verdade, quem precisa deles? E por falar em problemas, tenho
vários no momento, problemas pessoais no Banco. Um grande

problema surgiu hoje. De certa forma, às vezes penso que você aqui
está melhor do que nós lá fora...
De repente. Alex percebeu que acabara de dizer uma barbaridade.
Nada poderia ser pior que estar ali dentro, naquela horrível vida
crepuscular.


Além disso, constatou que nada mais restava de Célia. Nos últimos
meses, seu quadro clínico tornara-se cada vez mais claro. Há coisa
de um ano ainda era possível perceber vestígios de sua beleza frágil
e infantil. Agora, não. O que antes fora um cabelo lindo e sedoso,
estava seco, duro e esparso; a pele adquirira uma textura
acinzentada. Em certos lugares de seu rosto, e até do corpo, ele
podia ver as marcas dos arranhões que ela própria se infligia.
A posição fetal, que antes era episódica, tornara-se quase permanente.
Sendo dez anos mais jovem que ele. Célia. hoje. parecia ser 20
anos mais velha.
Ela estava internada no Centro de Terapia há cerca de cinco a anos e
tornara-se totalmente dependente dele. Pelo jeito, jamais teria alta.
Estava no Fim.
Observando, estudando a aparência de sua mulher enquanto falava
para ver se lhe despertava alguma atenção, ele sentiu um misto de
compaixão e tristeza mas, na realidade, esses sentimentos não mais
significavam amor ou mesmo afeição. Alex culpava-se por isso.
porém, honesto consigo mesmo, como sempre era, sabia que isso
jamais seria possível. E, no entanto, bem o sabia, estava ligado à
esposa por laços que só se romperiam pela morte de um deles.


Enquanto continuava a falar a esmo. relembrava a entrevista que tivera
com o Dr. McCartney. diretor do Centro, há quase onze meses
atrás. Lembrava-se bem porque fora no mesmo dia em que Ben
Rosseli anunciara de forma tão dramática sua morte iminente.
Respondendo à sua pergunta sobre o efeito que teria sobre Célia um
pedido de divórcio, o psiquiatra dissera: Isto seria o bastante para que
ela rompesse os limites e se tornasse absolutamente demente.



E a esse respeito, Margot fora positiva: O que não quero na minha
consciência, ou na sua, é acabar com o que resta ainda de lucidez em Célia e
levá-la a um abismo sem fundo.

No momento, Alex continuava a desconfiar que Célia já entrara no
"abismo sem fundo". No entanto, mesmo que isso fosse verdade, em
nada alteraria sua relutância em tomar a decisão de se divorciar.
Margot e Alex continuavam em seus respectivos apartamentos. Ela
aceitava qualquer espécie de arranjo, embora ele, Alex, quisesse o
casamento que, evidentemente, só poderia concretizar-se após o
divórcio, embora, nos últimos tempos, julgasse perceber uma certa
impaciência em Margot, devida à sua indecisão.
Como era incrível que ele, acostumado a tomar com rapidez as
maiores decisões, sempre sob a maior pressão, pudesse hesitar
dessa forma no que se referia à sua vida privada!
Mas Alex sabia que a essência, o cerne do problema era sua velha
ambivalência sobre a culpa que lhe cabia no caso. Se anos atrás se
tivesse esforçado mais, amado mais, e tentado compreender mais,
não teria salvo sua jovem, nervosa e insegura esposa, evitando que
ela chegasse à situação atual? Quem sabe se tivesse sido um esposo
mais devotado — e um banqueiro menos devotado — teria evitado

o que viera a acontecer?
Estes os motivos que o faziam retornar ao Centro de Terapia, a
única e insignificante coisa que lhe era dado fazer.
Quando chegou a hora de ir-se embora Alex dirigiu-se a Célia,
tentando dar-lhe um beijo na testa, como sempre fazia quando ela
permitia. Mas esta noite ela encolheu-se toda, curvando ainda mais
sua posição fetal, com os olhos cheios de medo. Alex suspirou e
desistiu de qualquer tentativa.
— Boa noite, Célia — disse ele tristemente.
Não recebeu resposta. Saiu, deixando sua mulher sepultada naquela
espécie de mundo vazio onde vivia.
Na manhã seguinte Alex mandou chamar Nolan Wainwright. para
cientificar-lhe que as despesas do investigador Vernon Jax seriam

feitas através do Departamento de Segurança, com a aprovação
dele, Alex. Mas, evidentemente não disse, nem Wainwright
perguntou que espécie de investigação seria feita. Decidira que
quanto menos gente soubesse do que se tratava, tanto melhor.
Em contrapartida. Wainwright também tinha notícias a lhe dar,
relativas ao arranjo que fizera com Miles Eastin, tornando este um
agente secreto. A reação de Alex foi imediata.
—De forma nenhuma! Jamais pagaria um níquel do dinheiro do
Banco para aquele homem! Não às expensas do Banco.
—Ele não figurará em nossa folha de pagamento — argumentou
Wainwright. — Já expliquei a Miles e ele sabe que, aqui, nunca mais
porá os pés. Qualquer importância que venha a receber, será em
espécie e sem nada que possa indicar a procedência.
—Nolan, não estou interessado em detalhes. De uma ou de outra
forma, ele estaria sendo empregado por nós. É com isto que não
concordo de maneira alguma.
—Sua discordância Impedirá qualquer iniciativa minha para
desempenhar meu trabalho — objetou o chefe da Segurança.
—Realizar seu trabalho não requer que empregue um ladrão, que
foi julgado e condenado.
—Você já ouviu falar em ladrão que pega ladrão?
—Pois então use qualquer outro, um que não tenha pessoalmente
nos roubado.
Discutiram acaloradamente, para afinal chegarem a um acordo, que
Alex aceitou com relutância, acrescentando:
—Mas, pelo menos, sejamos honestos: Eastin tem idéia do risco que
corre?
—Ele está a par de todos os riscos.
—Você lhe contou sobre o homem assassinado?
Alex lera a notícia nos jornais e Wainwright lhe dera outros detalhes
confidenciais.
—Disse-lhe tudo.
—Mesmo assim, não gosto nada, absolutamente nada, desse plano.



— Mas creio que goste ainda menos que as falsificações dos cartões
Keycharge continuem crescendo, principalmente no ritmo atual.
Alex suspirou.
— Bem. O departamento é seu; você é que é o encarregado de
dirigi-lo, seja qual for o critério que escolha. Mas faço questão de lhe
chamar atenção apenas para uma coisa: no exato momento em que
verifique que Eastin representa um perigo para o Banco, esqueça-se
dele no mesmo instante!
— É exatamente desse modo que agirei.
De certa forma, Wainwright sentia-se satisfeito por tenho ganho a
parada, embora com dificuldade maior do que esperara. No
momento, não lhe pareceu oportuno mencionar outros detalhes,
como por exemplo a possibilidade de Jaunita Núhez vir a atuar
como intermediária. Afinal, o fundamental estava estabelecido. Para
que preocupar Alex com pormenores?
6


Juanita Núfiez estava entre a suspeita e a curiosidade. Suspeita, porque
não gostava nem confiava no vice-presidente do banco
encarregado da Segurança, Nolan Wainwhright. Curiosidade, por
desejar saber por que ele queria vê-la e, ao que tudo indicava, com
tanto sigilo.
Pessoalmente, Juanita não tinha motivos para se preocupar,
conforme Wainwright lhe assegurara ao lhe telefonar no dia
anterior. Dissera-lhe que o assunto era confidencial e para ser
tratado apenas entre os dois.

— De fato, trata-se de saber se a senhora quer ajudar a uma terceira
pessoa.

— Como, por exemplo, o senhor?
— Não exatamente.
— Então, quem?
— Só lhe posso dizer pessoalmente.
Pela voz, Juanita sentiu que Wainwright estava tentando ser cordial
e amável. Mas ela já não acreditava na amizade de ninguém e muito
menos na dele. Ainda se lembrava de como fora áspero e insensível
quando ela estava sob suspeita de roubo. Suas desculpas posteriores
não conseguiram apagar aquela lembrança. E Juanita tinha dúvidas
se algum dia conseguiria esquecer o ocorrido.
Apesar disso. Juanita lembrava-se que Nolan era um funcionário
graduado do FM A e ela uma subalterna.
— Bem — respondeu Juanita — da última vez que olhei para o túnel
ele estava aberto.
— Ela pensava seguir por ali ao encontro de Wainwright ou então
que ele fizesse o trajeto. Mas a resposta de Nolan a surpreendeu.
— Será melhor se nos encontrarmos fora do Banco. Sra. Núhez.
Quando eu tiver oportunidade de lhe explicar o assunto a senhora
compreenderá melhor. Vamos fazer uma coisa: irei buscá-la de
carro em sua casa esta noite e enquanto damos um passeio explico-
lhe tudo.
— Não, isto eu não posso.
A senhora quer dizer que esta noite não pode?
— Exatamente.
— Então, que tal amanhã?
Juanita não sabia como responder, nem o que decidir.
Vou ter que pensar um pouco e amanhã telefono ao senhor.
— Está bem; telefone amanhã. O mais cedo possível. Por favor, não
conte a ninguém nossa conversa. — E Wainwright desligou o
telefone.

Agora já era amanhã. Terça-feira da terceira semana de setembro.
Ao meio-dia Juanita sabia que se não ligasse para Nolan
Wainwright este o faria.
Mas ela sentia-se constrangida. E monologava: "As vezes parece que
sinto cheiro de problema, como agora." Poucos minutos antes pensava
em pedir o conselho da Sra. D'Orsey. que ela podia ver ao
longe, do outro lado do salão, à sua mesa de gerente, sobre a
plataforma. Mas hesitou, lembrando-se que Wainwright pedira-lhe
segredo absoluto. Isto, mais que tudo, aguçou sua curiosidade.

Juanita, que era muito competente, trabalhava hoje com contas novas.
A seu lado, um telefone. Olhou-o, levantou o ascultador e
discou o número interno da Segurança. Logo ouviu a voz grave de
Nolan Wainwright perguntando:

— Como é, pode ser esta noite? A curiosidade venceu-a.
— Sim, pode ser, mas por pouco tempo. — E Juanita explicou que
só poderia deixar Estela sozinha meia hora; nunca por mais tempo.
— Para mim é o suficiente. Basta que me diga a que horas e onde.
Já era quase noite quando Nolan, em seu Mustang II, encostou ao
lado do edifício do Fórum East, onde Juanita morava. Minutos
depois ela saía pela porta principal, após tê-la chaveado
cuidadosamente. Wainwright movimentou o braço para abrir a
porta a seu lado, de maneira que Juanita pudesse entrar.
Ajudou-a a apertar o cinto de segurança e, a seguir, disse-lhe:


— Obrigado por ter vindo.
—Apenas meia hora — Juanita disse mais uma vez. — E isto é tudo.
Nem mesmo tentava ser agradável, sentindo-se nervosa e preocupada
por deixar Estela sozinha.
Nolan concordou com um aceno de cabeça, enquanto movimentava


o carro. Em silêncio rodaram cerca de dois quarteirões, depois ele
virou à esquerda entrando numa via de tráfego intenso, muito
iluminada, repleta de lojas, restaurantes e lanchonetes. A seguir,
Wainwright disse:

— Soube que Miles Eastin a procurou. Juanita
respondeu com aspereza:
— Como é que o senhor veio a saber?
— Ele próprio me disse. E disse também que a senhora o havia perdoado.
— Se ele falou, então o senhor já sabe.
— Juanita... Permite que eu a chame pelo nome?
— É o meu nome. E todo mundo me chama assim.
Wainwright suspirou:
_ Juanita, já lhe disse o quanto lamento a maneira como as coisas
ocorreram entre você e eu, e compreendo muito bem seus
sentimentos. A moça refletiu e depois respondeu:
_ Bueno, o melhor é que o senhor me diga o motivo pelo qual esta-
mos aqui.
— Quero saber se está disposta a ajudar Eastm.
— Então ele é a pessoa.
— Exatamente.
— E por que haveria eu de ajudá-lo? Tê-lo perdoado não é o bastante?
— Se quer minha opinião, acho que fez até mais do que devia. Mas
foi ele que me disse que você talvez...
Juanita o interrompeu.
— Que espécie exata de ajuda?
— Antes de mais nada quero que você jure jamais dizer a ninguém
o que conversamos esta noite.
Ela sentiu-se assustada.
— Não conheço ninguém a quem possa contar segredos. Mas, de
qualquer forma, prometo.
— Eastin vai fazer um trabalho de investigação para nós. É para o
Banco, mas de forma indireta. Se tiver êxito talvez eu possa ajudá-lo
a se reabilitar, o que é sua máxima aspiração. — Wainwright fez
uma pausa enquanto manobrava o carro. Depois continuou: — O

trabalho é difícil e muito arriscado. Mas ficaria ainda mais arriscado
se ele tivesse que se dirigir diretamente a mim. Nós dois precisamos
de alguém que nos leve recados, um intermediário.

— E decidiram que essa pessoa seria eu?
— Ninguém decidiu nada. Queremos apenas saber se você estaria
disposta a isso. Se estiver, estará ajudando Miles a reabilitar-se.
— Diga-me com a maior honestidade, seria apenas a Miles que eu
ajudaria?
— Não — admitiu Wainwright. — Ajudaria também a mim; e muito
ao Banco.
— De uma maneira ou de outra, foi isso mesmo o que pensei.
Estavam atravessando o rio por uma ponte; na escuridão, a água
negra brilhava. O vento assoviava de encontro à estrutura da ponte.
Quando acabaram de ultrapassá-la, atingiram uma rodovia
interestadual. Wainwright parou.
Quero saber de todos os detalhes a respeito dessa investigação —
disse Juanita em voz baixa mas firme.
— Está bem.
Ele descreveu como Miles Eastin operaria, agindo como espião e
usando os contatos que fizera na prisão. Esclareceu que espécie de
provas deveria procurar. Wainwright chegara à conclusão de que
seria tolice esconder qualquer coisa de Juanita; ela viria a ficar a par
de tudo no decorrer da operação. Contou tudo. inclusive o
assassinato de Vic, omitindo, é claro, os detalhes mais escabrosos.
— Não quero dizer com isso, que o mesmo venha a ocorrer a Eastin
— concluiu ele. — Farei tudo que estiver a meu alcance para que
nada lhe aconteça. Mas quero que você saiba o risco que ele corre,
do qual, aliás, está mais do que ciente. Se quiser ajudá-lo. talvez
fique menos exposto.
— E quem vai me manter a salvo?

— Para você não haverá virtualmente risco algum. Seus únicos
contatos serão com Eastin e comigo. Ninguém jamais chegará a
saber. Nós três guardaremos segredo absoluto.
— Se o senhor tem tanta certeza, então por que estamos nos encontrando
às escondidas, como agora?
— Simples medida de precaução. Apenas para ter certeza de que
você e eu não estamos sendo vistos e, mais que tudo, que não
estamos sendo ouvidos.
Juanita hesitou e depois disse:
— E isto é tudo? O senhor, de fato, me contou tudo?
Wainwright apenas respondeu:
— Claro que é.
Eles encontravam-se nas proximidades de um ponto de retorno e
Wainwright, sem se dar conta, fez a volta em direção à cidade.
Enquanto guiava, tendo os olhos da moça fixos nele, Wainwright
aguardava que ela falasse, desejando que aceitasse o encargo.
Como de outras vezes, sentia a presença do corpo miúdo e provocante
da moça. Aquela obstinação fazia parte dela; tanto quanto seu
cheiro — um cheiro feminino que enchia o carro. Desde que se
divorciara, poucas mulheres haviam passado pela vida dele e
sentiu-se tentado a arriscar a sorte com Juanita. Mas o que queria
dela, no momento, era mais importante que suas aspirações
pessoais. Nolan já se resolvera a quebrar o silêncio quando Juanita,
na penumbra do carro, lhe disse:
— O senhor deve ser louco, louco, louco! — Sua voz ficou mais
veemente, mais apaixonada. — Que espécie de idiota pensa que
sou? Uma boba? Uma tonta? Nem pense nisto. Claro! Quando
existem riscos, sei assumi-los. Mas, no caso, para quê? Para a glória
do Sr. Segurança Wainwright e seu Banco?
— Agora, espere um pouco...
Mas Juanita não atendeu. Exaltada, as palavras lhe saíam como
lavas de um vulcão.

—Será que vocês pensam que sou tão fácil? O fato de ser uma mulher
sozinha e ainda por cima porto-riquenha, me qualifica para
toda espécie de abusos do mundo? Confesse. O senhor realmente
ignora quem está usando não é? Pelo amor de Deus! Quero ir para
casa! Que espécie de pendejada é esta, afinal de contas?
—Calma! — disse Wainwright. A reação de Juanita o pusera fora de
órbita. — O que quer dizer pendejada?

— Quer dizer idiotice! É uma pende jada que pense em jogar, da
maneira mais egoísta, com a vida de um homem em benefício de
seus cartões de crédito. Pendejada que o próprio Miles concordasse
com isso.
— Foi ele quem me procurou pedindo ajuda. Eu não fui atrás dele.
— O senhor chama a isto de ajuda?
— Será pago pelo que fizer; aceitou o trabalho. E foi ele quem sugeriu
seu nome.
— Então, por que não me tocou no assunto quando esteve comigo?
Miles perdeu a língua? Ou está tão envergonhado que foi-se
esconder debaixo das suas saias?
— Está bem, está bem — protestou Wainwright. — Assunto encerrado.
Já vou levá-la para casa.
E atravessando um cruzamento encaminhou-se para o centro da cidade.
Juanita estava exaltada.
A princípio tentara considerar com calma a proposta de
Wainwright. Mas, enquanto ele falava e ela ouvia, as dúvidas
começaram a surgir e, ao considerá-las, seu ódio e sua emoção
cresceram, resultando naquela explosão. Aliado a isso, sentia um
novo ódio, uma espécie de repulsa pelo homem que estava a seu
lado. Todos os desgostos que ele lhe causara voltaram-lhe à
memória, fazendo que ficasse furiosa não somente consigo mesma,
mas porque Wainwright e o próprio Banco pretendiam servir-se
dela e de Miles. Além disso, Juanita sentia-se também confusa no
que se referia à atitude de Miles. Por que não lhe falara

diretamente? Não seria homem para isso? Juanita lembrava-se
muito bem que, há menos de três semanas, o havia admirado tanto
pela simples coragem que demonstrara ao fitar os olhos de sua
vítima e pedir-lhe perdão. Mas, agora, esse método de usá-la
através de outra pessoa realmente estava de acordo com o que
conhecia dele: tratava-se de um mau caráter. De repente seus
pensamentos deram uma guinada total e perguntou-se: "Não estarei
eu sendo áspera e injusta?" E fazendo uma auto-análise, prosseguiu:
"Esta irritação não será resultado do desapontamento por Miles nào
ter voltado a procurar-me?"
E em conseqüência não estaria transferindo para Wainwright a
agressividade que era, afinal, dirigida a Miles, de quem ela gostava,
apesar de tudo?
A raiva, como tudo nela, que era tão espontânea, já amainara. Em
seu lugar, Juanita sentia uma grande incerteza mesclada de
insegurança. Afinal, perguntou a Wainwright:

— Então, o que pretende o senhor fazer agora?
— Decida o que decidir, tenho certeza de que não vou confiá-la a
você — respondeu ele sucintamente, sem mostrar-se nada cordial.
Mas, de repente, sem razões aparentes, Juanita chegou à conclusão
de que talvez ela tivesse sido demasiado agressiva. Podia ter dito
não, rejeitado apenas a proposta. Mas, ocorria que jamais deixara de
temer que Wainwright viesse a vingar-se dela no Banco, pondo seu
emprego em perigo. Emprego do qual ela e Estela tanto dependiam.
Sua ansiedade crescia, até que seu sexto sentido levou-a a perceber
que estava sendo vítima de uma armadilha.
E Juanita continuou a pensar. Se fosse, de fato, honesta consigo
mesma — o que sempre tentava ser — teria que admitir que iria
lamentar o resultado de sua decisào, pois não mais veria Miles.
Nolan diminuíra a velocidade do carro ao aproximar-se do
reto'rno_ que levava à ponte por onde haviam passado há pouco.
Para sua própria surpresa, Juanita disse em voz baixa, insegura:


— Bem; eu serei.
— Você será o quê?
— Eu serei... seja lá o nome que vocês dêem, uma...
— Intermediária? — Wainwright estava confuso e, para assegurar-
se, perguntou: — Você tem certeza?
— Sí, estoy segura. Estou certa.
Pela segunda vez, Wainwright disse a si mesmo: "que mulher estranha"!
Isto levou-o a exclamar:
Você, realmente, é diferente de qualquer pessoa.


— Acontece que sou mulher.
— Isto eu sei — disse Wainwright, e de repente se tornou mais afável,
mais cordial. — Para falar a verdade, já notei que você é toda
mulher.
Mais ou menos a uma distância de um quarteirão e meio do Fórum
East Wainwright parou o carro, sem desligar o motor. Tirou do
bolso dois envelopes, um bem cheio e o outro mais delgado,
entregando-os a ela.
— Juanita, é dinheiro para Eastin. Guarde-o até que ele a procure.
Esclareceu que o envelope continha 450 dólares, importância
mensal
estabelecida entre os dois, menos 50 dólares já dados como adiantamento.
E Wainwright acrescentou:


— Eastin vai me telefonar durante a semana e estabeleceremos uma
espécie de código. Seu nome jamais será mencionado, mas ele
saberá que tem de procurá-la, o que fará logo que puder.
Juanita aquiesceu, atenta, armazenando a informação em seu '
'cérebro-computador ".
— Após esse telefonema. Eastin e eu nunca mais teremos contactos
diretos. Nossos recados ou informações terão que ser sempre
através de você. Recomendo-lhe que não escreva nada.

absolutamente nada. guardando tudo na memória. Aliás, agora me
lembro que sua memória é fora de série.
Ao dizer isto. Wainwright sorriu e, de repente. Juanita riu alto.
Achava tudo aquilo tão cheio de ironia que, a bem dizer, nada mais
entendia. Lembrava-se apenas que, durante um dia inteiro, sua
memória incrível fora a causa de toda a confusão no doloroso
episódio do roubo do Banco. E agora ele confiava nessa mesma
memória prodigiosa!


_A propósito — disse Nolan — preciso saber o número do telefone
do seu apartamento, pois não o encontrei na lista.
_ É simplesmente porque não tenho telefone. Custa muito caro.
_Seja lá como for, precisará de um. Eastin terá de comunicar-se
com você; bem como eu mesmo. Você precisa de um telefone
imediatamente; o Banco pagará todas as despesas.
_ Tentarei. Mas ouvi dizer que no Fórum East os telefones não são
ligados assim com tanta rapidez.
_Pois então deixe por minha conta. Falarei com a companhia telefônica
amanhã cedo. Fique certa de uma coisa: eu trabalho depressa.


— Muito bem.
A seguir, Wainwright abriu o outro envelope.
_ Quando lhe der o dinheiro, por favor, dê-lhe também isto.
E mostrou-lhe um cartão de crédito Keycharge, emitido em nome de
H. E. LYNCOLP, com o espaço para a assinatura, em branco, no
verso.
_ Peça-lhe que assine com este nome. Diga-lhe que é um nome
fictício e que as duas iniciais, mais a última letra do sobrenome
formam a palavra H-E-LP (SOCORRO), o que constitui, na
realidade, o verdadeiro objetivo do cartão.
Wainwright explicou à moça que aquele nome fora programado de
tal forma que, tão logo o cartão fosse apresentado para compras até


o limite de 100 dólares, seria aceito. Mas, automaticamente o Banco

seria alertado. Desta forma, o Serviço de Segurança saberia que
Eastin precisava de ajuda.

— Ele pode fazer uso deste cartão se descobrir uma pista, ou então
se perceber que está em perigo. Diga-lhe que compre um pouco
acima de 50 dólares, para levar a loja a telefonar pedindo
confirmação do crédito. Enquanto isso, deve demorar na loja para
que eu seja avisado e tenha tempo de agir.
E Wainwright concluiu:

— Talvez ele não venha a necessitar de fazer uso do cartão mas se o
fizer será como uma senha, da qual ninguém tem conhecimento.
A seu pedido, Juanita repetiu palavra por palavra as instruções que
recebera. Ele olhou-a, manifestando admiração e disse:
— Você é incrivelmente esperta!
— De qué me vale muerta?
E desse espanhol todo, do qual nada entendi, qual é a tradução? A
moça hesitou um pouco, depois traduziu:

— E de que me valerá, se eu estiver morta?
— Deixe de se preocupar
Enquanto continuava a guiar o carro até o ponto onde deviam
separar-se, Wainwright tocou de leve as mãos de Juanita, de
maneira gentil.
— Juro que tudo vai dar certo.
Naquele instante, sua confiança era contagiante. Mas um pouco
mais arde. ja em seu apartamento, com Estela dormindo tranqüila, o
instinto de Juanita lhe segredava que ficasse alerta, porque muitos
problemas ainda haveriam de surgir.

7


O Double-Seven Health Club cheirava a vapor de caldeira, a urina,
a suor e a bebida. Após certo tempo, no entanto, para quem
conseguisse permanecer lá dentro, os vários eflúvios se misturavam
e davam ao freguês uma sensação tal que o ar fresco que às vezes
entrava, quando abriam a porta, parecia deslocado.
O clube, em si. lembrava um grande caixote, com seus quatro andares,
as paredes externas em tijolos aparentes, ao fundo de uma viela
próxima ao centro da cidade. A velha fachada ostentava o que se
poderia denominar de cicatrizes provocadas por 50 anos de uso
negligente e de abandono, agravados presentemente por inúmeras
inscrições murais, pornográficas ou não. Era encimado por um
mastro de bandeira que parecia nunca ter sido usado. A entrada
principal consistia em uma porta sólida, sem nenhum letreiro, que
surgia de repente, uma vez que se conseguisse atingi-la, depois de
atravessar uma fileira de latas de lixo derrubadas e toda a sorte de
sujeira. Seguia-se o saguão, que deveria ser guardado por um leãode-
chácara, com atribuições de permitir, ou nào, a entrada das
pessoas.
Mas este estava sempre ausente, e Miles Eastin conseguiu entrar
sem que ninguém o impedisse.
Era um pouco antes do meio-dia e ele foi-se guiando pelos ruídos
que vinham dos fundos. Atravessou um corredor que não se
poderia propriamente chamar de limpo e deparou com velhos
posters de lutadores de boxe. Prosseguindo, deu com uma porta que
abria para um bar muito escuro, de onde vinham as vozes, por onde
entrou procurando aparentar tranqüilidade.
Mal conseguindo ver na escuridão reinante, seguiu um garçon que
levava uma bandeja cheia de copos. Esbarrou nele. mas o garçom
conseguiu equilibrar a bandeja e afastou-se dizendo palavrões. Dois
homens sentados nos tambores do bar olharam-no e um deles disse:


— Meu caro, isto aqui é um clube privado; se não é sócio, caia fora!
O outro resmungou:
— A culpa é daquele preguiçoso idiota do Pedro, que não fica em
seu posto. Afinal, quem é você? O que quer aqui?
Miles respondeu:
_ Estou procurando o Sr. Jules LaRocca.
_ Pois então que vá procurá-lo no inferno — disse o primeiro dos
homens. — Aqui. ninguém sabe quem é. Mas logo ouviu-se uma
voz:
_ Ôba, Miles querido! — Era uma figura meio gorda, barriguda,
que conseguiu atravessar a penumbra. O rosto tão familiar e como
sempre carrancudo apareceu inteiramente sob a luz. Era LaRocca
que. na penitenciária, lhe levava os recados da turma da Máfia e
depois tornara-se amigo de Miles e de seu amante, Karl. Este,
permanecia na cadeia e lá deveria ficar para sempre. LaRocca fora
posto em liberdade condicional, logo após a saída de Miles.


— Oba, Jules — disse Miles.
— Chegue-se a nós. Quero lhe apresentar a uns amigos. — LaRocca
passou a mão nojenta sobre o ombro de Miles. — Amigo meu —
disse ele, dirigindo-se aos dois homens que estavam sentados nos
tamboretes e que não lhe deram a mínima atenção.
— Olhe — falou Miles — não adianta mentir; estou duro, matando
cachorro a grito. Não posso sequer lhe oferecer uma cerveja.
E, de repente, deu-se conta de que empregava gíria da prisão.
— Nem pense nisso! Vamos tomar uma cervejinhas por minha
conta. — Enquanto andava entre as mesas, LaRocca perguntou: — E
você, cara, por onde tem andado?
— Por incrível que pareça, procurando trabalho. Estou na pior, Jules.
Preciso de uma ajuda. E como você me disse antes de sair da
prisão que me arranjaria um galho, vim procurá-lo.
— Claro! Claro!
Pararam, sem nem saber como, junto a uma mesa onde já estavam
sentados dois outros homens. Um era muito magro, com um rosto

carrancudo e todo marcado de varíola; o outro tinha longos cabelos
louros,-, usava botas de cowboy e óculos escuros. LaRocca puxou
cadeiras, juntando-se a eles..

— Este é uma grande amigo, Miles.
O homem que usava óculos escuros apenas emitiu uma espécie de
grunhido. O outro disse:
— Este é o cara que você disse que sabe tudo sobre dinheiro?
— O próprio — gritou LaRocca, para que a sala inteira ouvisse. A
seguir, pediu cerveja e disse ao homem que lhe fizera a pergunta:
— Pergunte a ele o que quiser.
— Perguntar o quê?
— Por exemplo, sobre o dinheiro, seu veado idiota! — Disse o de
óculos. — Ah! Diga aí qualquer coisa sobre como surgiu o primeiro
dólar.
— E fácil — disse Miles. — Muita gente pensa que a América foi
quem inventou o dólar. Mas não foi bem assim. O dólar veio da
Boêmia, na Alemanha. Só que. no início, se chamava thaler e como
os outros europeus não conseguiam pronunciar a palavra, ela foi-se
transformando a ponto de, quando aqui chegou, já ser pronunciada
dólar. E assim permaneceu para sempre. Uma das primeiras
referências ao dólar, como tal. consta no Macbeth: 10 000 dólares
para uso geral.
— Mac o quê?
— Macmerda — disse LaRocca. — Você quer o programa oficial? —
Depois, dirigindo-se aos outros dois, cheio de orgulho, acrescentou:
— Entenderam o que eu quero dizer? Este menino sabe de tudo.
— Quem me dera — disse Miles — saberia como ganhar dinheiro
hoje.
O garçom trouxe dois.copos de cerveja. LaRocca emborcou um e
passou o outro a Miles.

Antes que você consiga ganhar dinheiro — disse-lhe LaRocca —
você tem que pagar a Ominsky. — E falou ao ouvido de Miles,
segredando, como se ignorasse a presença dos outros dois:

— O Russo tem perguntado por você, sabe que saiu da jaula.
A menção do agiota a quem ele ainda devia pelo menos 3 000
dólares fez Miles suar frio. E ainda tinha outra dívida, mais ou
menos da mesma importância, com o bookie. A oportunidade de
pagar a um ou a outro, no momento, parecia absolutamente remota.
No entanto, ele sabia que ter vindo até ali reabriria as velhas dívidas
e, não podendo pagá-las, ficava a mercê de represálias
verdadeiramente selvagens.
Dirigindo-se a LaRocca, perguntou:
— Como é que eu vou poder pagar, nem que seja parte do que
devo, se não consigo arranjar trabalho?
LaRocca fez um meneio de cabeça.
— Logo de cara, você tem que procurar o Russo.
— Onde? — Miles sabia que Ominsky não tinha escritório e que
trabalhava onde as oportunidades surgissem.
LaRocca apontou para o copo de cerveja e disse:
— Beba logo; e depois vamos procurá-lo.
Continuando seu almoço, o homem bem vestido, disse:

— Mas veja pelo meu ponto de vista. — Seus dedos, cheios de brilhantes,
empurraram o prato para o lado. — Nós tínhamos um
acordo comercial, você e eu, sobre o qual estávamos acertados. Eu
mantive minha parte; você não. Então, lhe pergunto: — Como é que
eu fico?
— Olhe — implorou Miles — o senhor sabe o que aconteceu e sou-
lhe muito grato por ter feito o relógio parar. Mas, com sinceridade,
não posso pagar agora. Quero, mas não posso. Por favor dê-me
algum tempo.

Igor (o Russo) Ominsky ostentava um cabelo muito bem penteado,
unhas manicuradas, o rosto rosado. Orgulhava-se de sua aparência,
da maneira como vivia e como se trajava: tinha dinheiro para tanto.

— Tempo é dinheiro. E você já recebeu ambos em demasia — responde
ele de modo suave.
Na mesa do restaurante para o qual LaRocca o trouxera, Miles tinha
a sensação de ser um camundongo enfrentando uma cobra. A sua
frente não havia nenhum prato, nem mesmo um copo. e ele bem
que precisava de um pouco de água para ao menos molhar os lábios
que o medo tornava secos, medo que também lhe queimava o
estômago. Se naquele momento pudesse procurar Wainwright e
cancelar o acordo que levara à aflitiva e humilhante situação
presente, ele o teria feito. Mas agora isso não era mais possível.
Enquanto suava, de pavor, Ominsky continuava a devorar o seu filé
de badejo. Jules La Rocca afastara-se discretamente em direção ao
bar do restaurante.
O medo que Miles sentia era justificado, pois agora fazia uma idéia
das atividades de Ominsky e conhecia todo seu poder.
Certa vez. ele assistira a um programa de televisão no qual Ralph
Salerno, uma autoridade no que se referia a crimes americanos, era
entrevistado. Fizeram-lhe a seguinte pergunta: "Se o senhor tivesse
que viver na ilegalidade, que espécie de criminoso seria?" A
resposta viera imediata: "Agiota!" Aquilo que Miles conhecia agora,
através de seus contatos na prisão, e mesmo antes, ratificava a
opinião do entrevistado.
Um agiota do vulto de Ominsky era quase como um banqueiro que
conseguisse lucros ilimitados, com riscos mínimos, lidando com
empréstimos grandes ou pequenos, sem ter que se preocupar com
qualquer regulamentação. Seus clientes é que o procuravam;
pouquíssimas vezes dava-se o contrário. Não gastava dinheiro com
aluguel de escritórios caros, fazia suas transações num carro, num
bar, ou durante o almoço como. por exemplo, agora. Seus registros
eram rudimentares, geralmente cifrados, e suas transações, quase


sempre em espécie, não deixavam pistas. As perdas resultantes de
maus pagadores eram mínimas. Não pagava nenhuma espécie de
imposto federal, estadual ou municipal. E, em contrapartida, suas
taxas de juro eram, em geral, de cem por cento ao ano, quando não,
mais elevadas.

A qualquer minuto que quisesse, pensava Miles, Ominsky teria pelo
menos dois milhões de dólares em circulação. Não que todo esse
dinheiro fosse propriamente dele, mas dispunha do dinheiro dos
reis do crime organizado, que lhe entregavam importâncias
enormes para que as investisse. Em troca de uma gorda comissão.
Ominsky lhes dava lucros fabulosos. Era normal que um
investimento de agiota, digamos, iniciado com 100 000 dólares, em
cinco anos chegasse a um e meio milhão de dólares. Ou seja: 1 400
por cento de lucro sobre o capital. Nenhum outro negócio, no
mundo, podia igualar-se a este.

E nem sempre os clientes de um agiota eram gente humilde. Com
frequência surpreendente, grandes nomes, ou respeitáveis homens
de negócios vaham-se dos agiotas, quando as outras fontes de
crédito estavam exauridas. Algumas vezes, em vez de ser
reembolsado, o agiota passava a ser tornar parceiro — ou mesmo
dono — do negócio. Como um tubarão, sua goela era enorme.

As maiores despesas de um agiota referiam-se a intimidação para o
pagamento das dividas. Mas umas costelas quebradas e alguns
corpos hospitalizados custavam barato. E ele sabia que seu maior
aliado era o medo que os devedores sentem.
No entanto, o medo precisava de uma base real. Assim, quando um
devedor estava em falta, a punição vinha rápida, da forma mais
selvagem, através de capangas alugados.

E quanto aos riscos, os do agiota eram ridículos comparados com os
de outras formas de crime. Raros agiotas foram alguma vez
sentenciados e. menos ainda, cumpriram pena. A razão principal
era a falta de provas. Seus clientes eram sempre "mudos", em parte


devido ao medo, em parte devido à vergonha de terem que
confessar o fato. Quanto aos que eram punidos fisicamente jamais
deram queixa à polícia, sabendo que se o fizesse receberiam castigo
maior.


Assim, Miles continuava sentado, apreensivo, enquanto Ominsky
acabava de comer seu peixe.
De repente, o agiota indagou:


— Você é capaz de escriturar livros contábeis?
— Escrituração mercantil? Mas claro; quando eu trabalhava no
Banco...
Ominsky fez um sinal para que se calasse.


— Talvez eu possa usá-lo. Preciso de um contador no Double-
Seven.
— O senhor se refere ao clube?
Era uma grande novidade para Miles que Ominsky fosse o dono, ou
mesmo administrasse o clube. E acrescentou: Estive lá hoje, antes...
Ominsky interrompeu-o com rudeza:
— Quando eu falar, fique quietinho, não abra a boca e apenas escute.
Só quero que responda às minhas perguntas, e da maneira
mais sucinta. LaRocca diz que você quer trabalhar. Se eu lhe der
trabalho, tudo que ganhar será para pagar o que me deve. Em
outras palavras, meu caro, você me pertence. E quero, Miles, que você
tenha sempre isto em mente.
— Sem senhor, Sr. Ominsky.
Miles sentiu-se aliviado. Pelo menos assim o tempo, o relógio, não
estaria agindo contra ele. O como e o porquê, no momento, eram
irrelevantes.
— Você terá um quarto e refeições — disse o agiota — mas fique
avisado: mantenha os dedos longe da caixa registradora. Se algum
dia eu perceber que não se manteve bastante longe, juro por Deus,
você desejará mil vezes ter roubado de seu banco outra vez. e não
de mim.

Miles arrepiou-se, não tanto pela simples hipótese de roubar, coisa
que não tinha a menor intenção de voltar a fazer, como por saber o
que Ominsky faria se algum dia descobrisse que em seu time jogava
um Judas.

_Jules tomará conta de você, providenciará para que se instale. A
partir daí, você receberá recados quanto ao que tem que fazer. No
momento, é tudo.
Com um gesto de quem manda embora, Ominsky fez com que
Miles se levantasse desconcertado, ao mesmo tempo que se dava
conta de que LaRocca estava no bar apenas esperando por ele. Miles
dirigiu-se à porta de saída mas pôde perceber que o agiota dava
instruções a LaRocca.
Este dirigiu-se a Miles e lhe disse:
_ Cara, você deu uma bruta sorte; agora tratemos de levantar nossos
rabos da cadeira e vamos nos virar.
Quando saíam, Miles observou que Ominsky já estava comendo a
sobremesa e que, à sua frente, havia um novo personagem.

O que chamavam de "quarto" no Double-Seven era pouco mais que
um cubículo, da pior qualidade, no último andar do prédio. Para
Miles, isso não tinha importância. Por pior que fosse, representava
um começo, uma oportunidade de refazer sua vida e tentar o que
perdera, mesmo sabendo que levaria muito tempo, além de incluir
muito risco e muito trabalho. No momento, não queria pensar
detidamente sobre o papel de espião. Concentrava-se em se tornar
útil e ser aceito, como Wainwright lhe dissera.
De início, tratou de aprender a disposição interna do clube. A maior
parte do andar térreo, completamente separado do bar onde
estivera antes, era toda ocupada por um ginásio, com diversas
formas de esportes. No segundo andar encontravam-se as salas de
banho turco e de massagem. Já no terceiro andar, o ambiente era
diferente: havia de tudo, inclusive certas salas cuja finalidade só
com o tempo ele veio a conhecer. No quarto andar, menor que os


outros, havia mais alguns cubículos como o seu, onde era permitido
aos sócios do clube passarem a noite, vez por outra.
Miles dedicou-se por completo ao seu trabalho de escrituração mercantil.
Era competente e logo percebia o que estava certo ou errado,
bem como o que era necessário fazer para sanar os erros. Sugeriu
algumas modificações ao gerente do clube e esmerou-se em seu
trabalho.
O gerente, um ex-empresário de pugilismo chamado Nathanson,
sentia-se grato com a presença de Miles, porque o trabalho de
escritório de fato não condizia com o que tinha sido até agora sua
vida. E mais grato ficou quando este se ofereceu para fazer
pequenos trabalhos extras no clube, tais como corrigir o que estava
errado e organizar um novo tipo de inventário. Em troca,
Nathanson permitia que ele usasse as quadras de hand-ball, em suas
folgas, o que lhe dava ensejo de conhecer os membros do clube.

O clube era masculino, Miles logo se dera conta, mas com o tempo
verificou que havia duas classes de sócios. Uns, que usavam com a
maior seriedade as facilidades atléticas do clube, incluindo os
banhos turcos e as massagens. Os dessa espécie entravam e saíam
sozinhos e, às vezes, nem sequer se conheciam. Miles percebia que
se tratava de trabalhadores pouco remunerados, empregados
humildes. O outro grupo compunha-se de executivos, não muito
graduados, mas que pareciam pertencer ao clube porque queriam
manter-se saudáveis. Suspeitou também que o primeiro grupo dava
uma base legítima ao segundo, que quase nunca utilizava as
instalações de atletismo, a não ser um banho turco esporádico.
Os integrantes do segundo grupo reuniam-se no bar ou então nas
salas do terceiro andar. Em geral, chegavam bem tarde da noite,
quando os do primeiro grupo já haviam deixado o clube. Miles não
tardou em perceber que era a estes que Nolan Wainwright se referia
quando qualificou o Double-Seven como um "esconderijo da ralé".


Com sua vivacidade, Eastin também se deu conta de que as salas do
terceiro andar eram usadas em atividades ilegais, jogos de cartas ou
de dados com apostas altíssimas. Nesta altura, ele já trabalhava há
uma semana, alguns dos frequentadores habituais o conheciam e ele
sentia-se um pouco mais à vontade, em especial porque contava
com a boa vontade de La Rocca que não se cansava de proclamar:

— Podem estar certos, este cara é legal.
Continuando em sua política de tornar-se o mais útil possível, ele
começou até a ajudar os garçons, servindo bebidas e sanduíches
para os fregueses do terceiro andar. Sua primeira tentativa não foi
aceita pelos leões-de-chácara que asseguravam a tranqüilidade às
salas de jogo. Mas insistiu e acabou por prestar serviços em todas
essas salas. Em troca, ele trazia cigarros que eram vendidos no
andar térreo aos demais fregueses, inclusive aos próprios guarda-
costas.
Miles sentia que começava a ser "aceito".
Em primeiro lugar, devido à boa vontade com que fazia qualquer
serviço; em segundo, porque era alegre e bem-humorado, apesar de
todos os problemas e perigos que enfrentava; em terceiro, porque
Jules La-Rocca, que parecia ser uma espécie de supervisor-geral,
agia como se fosse seu patrocinador, embora, às vezes, Miles se
sentisse como um ator de vaudeville.
Seu conhecimento a respeito do dinheiro e de sua história que dei


xava todos fascinados, começou a ser conhecido. Um dos tópicos
que todos mais gostavam de ouvir era o relativo ao dinheiro
falsificado pelos próprios governos e que Miles contava na prisão.
No clube, eleja repetira a história pelo menos uma dúzia de vezes,
sempre estimulado por LaRocca. A reação era sempre a mesma, os
epítetos indo de "hipócritas e nojentos" a "escroques e velhacos".

Para melhor documentar suas narrativas. Miles resolveu ir ao edifício
onde residira antes de ser preso e obteve do zelador alguns
livros que este guardara. Os outros, de mais valor, ele vendera em


sebos. Em dias melhores Miles chegara a possuir uma verdadeira
coleção de moedas e notas, também vendida pouco a pouco, para
que pudesse sobreviver. Mas. algum dia, tinha esperança de tornar-
se um colecionador, perspectiva que no momento era remotíssima.

Guardou os livros em seu cubículo, e de vez em quando os consultava.
LaRocca e os outros gostavam de ouvi-lo discorrer sobre
formas pouco habituais de dinheiro. A moeda mais pesada, contava
ele, fora o disco de pedra (agronite) usado em Iap, no Pacífico, até o
irromper da Segunda Grande Guerra. A maior parte desses discos,
Miles esclarecia, tinha cerca de 30 centímetros de diâmetro, mas
chegavam até a três metros e meio e quando usados para
pagamento eram transportados em carretas.
Em meio ao riso geral, alguém perguntou a Miles:

— E como era dado o troco? Ao que ele respondeu:
— Em discos um pouco menores, também de pedra.
O oposto a esse pesadíssimo dinheiro, prosseguia ele, foi o dinheiro
mais leve do mundo, usado nas Novas Hébridas; leve como plumas.
Relatava aos ouvintes que o próprio sal servira como moeda
durante muitos séculos, em especial na Etiópia e que mesmo os
romanos costumavam pagar seus trabalhadores desse modo. Veio
daí a palavra "salário", derivada da palavra "sal". E até mesmo em
Bornéu, ainda no século dezenove, caveiras humanas substituíam e
valiam tanto quanto as moedas.
Ao final desses relatos, a conversa sempre se orientava para a falsificação
de dinheiro.
Depois de uma dessas sessões, um dos guarda-costas que estivera
tomando conta da sala de jogos chamou Miles de lado.
— Você, meu caro, sabe tudo sobre falsificação. Pois então dê uma
olhadela nisto.
Mostrou-lhe uma nota nova, novinha em folha, de 20 dólares.
Miles olhou para a célula e estudou-a, o que não constituía uma experiência
nova para ele. Quando trabalhava no First Mercantile

American Bank, todas as notas suspeitas lhe eram levadas, antes de
submetidas a um perito.
O homem ria:


— Boazinha, não?
— Se isto é uma nota falsa — disse Miles — é a melhor que eu já vi
até agora.
— Quer comprar algumas? — E o guarda-costas tirou do bolso do
paletó mais nove notas de 20 dólares. — Garotão, se você me der 40
dólares legítimos, tudo isto é seu.
Miles logo percebeu que se tratava de uma espécie de teste para
coisas maiores. As cédulas oferecidas eram idênticas à que ele
examinara.
Pensou em recusar a oferta, mas hesitou. Não estava interessado em
passar dinheiro falso, no entanto, era alguma coisa que poderia
mandar para Wainwright.
— Espere um pouco — respondeu ele.
Foi a seu quarto onde tinha escondidos pouco mais do que 40 dólares.
Parte era dos 50 dólares que Wainwright lhe adiantara; o
restante, de gorjetas que recebera nas salas de jogo do clube. Pegou
o dinheiro, todo em notas pequenas, a partir de um dólar e trocou-
os pelos duzentos dólares falsos do guarda-costas.
No dia seguinte, Jules LaRocca, sorrindo, dirigiu-se a ele. _
— Ouvi dizer que você fez uma transação interessante.
Miles. da mesa onde fazia a escrituração do clube, no terceiro andar,
respondeu:


— Mais ou menos.
LaRocca aproximou-se e lhe disse em voz baixa:
— Você quer um bocado mais de ação? Ele
respondeu com cautela:
— Depende da espécie de ação.

— Como, por exemplo, fazer uma viagemzinha rápida a Louisville.
Transportando um pouco daquele material que você comprou
ontem à noite.
Miles sentiu uma pancada no estômago pois sabia que se concordasse
e fosse apanhado, não só voltaria à prisão, como também por
muito mais tempo. Mas se não concordasse em aceitar o risco, como
poderia continuar a infiltrar-se, a ganhar a confiança dos demais?
— Seu trabalho seria pouco; apenas dirigir um carro de um lado
para outro. Receberia por isso duas notas de cem.
— E se acaso eu fosse detido? Você sabe, que estou em liberdade
condicional e não tenho licença para dirigir.
— Ah, não me venha com essa conversa fiada. Uma licença para
dirigir não representa problema, basta uma fotografia de frente,
pegando a cabeça e os ombros.
— Não tenho fotografia assim, mas seria muito fácil obtê-la.
— Pois então consiga-ao mais depressa possível.
Durante a folga para almoço, Miles foi a uma rodoviária do centro
da cidade e tirou uma fotografia numa máquina automática
instantânea, entregando-a a LaRocca. na mesma tarde.
Dois dias depois, enquanto trabalhava, uma mão silenciosa, cujo
dono ele não viu, colocou um pequeno retângulo de papel em frente
dele. sobre a mesa. Com surpresa. Miles verificou que era uma
licença para dirigir, em seu nome, com a foto que tirara.
LaRocca, a seu lado, disse rindo:


— Muito mais rápido do que o Serviço de Trânsito, é ou não è?
Miles indagou incrédulo:
— Mas é uma licença falsa?
— E não me diga que teria notado qualquer diferença!
— Não, não notei.
Miles examinou com minúcia a licença: era em tudo idêntica à oficial.
— Como é que você conseguiu?

— Deixe isso pra lá.
_Ah, não, por favor; gostaria de saber. Você bem sabe como eu me
interesso por coisas dessa espécie — disse Miles.
O rosto de LaRocca ficou tenso. Pela primeira vez seus olhos revelavam
suspeita.
_ Por que haveria você de querer saber?
_ Apenas por curiosidade, como já lhe disse.


No íntimo, Miles esperava que seu nervosismo súbito não fosse notado.


— Digo-lhe uma coisa: perguntar muito não é aconselhável. Um
cara faz muitas e logo todo mundo começa a pensar. Todos
começam a se preocupar e ele acaba se machucando seriamente.
Miles não respondeu, enquanto a suspeita ia-se desvanecendo dos
olhos de LaRocca que, afinal, acrescentou:
— Tome nota, o serviço é para amanhã a noite. Alguém lhe dirá o
que você tem a fazer, e quando.
No dia seguinte, bem cedo, as instruções foram entregues a Miles —
mais uma vez através de LaRocca, que lhe entregou um jogo de
chaves de automóvel, um recibo de um estacionamento da cidade, e
uma passagem aérea de volta. Miles teria que pegar o carro, um
Chevrolet Impala marrom, tirá-lo do estacionamento, e seguir para
Louisville, durante a noite. Lá chegando, teria que se dirigir ao
aeroporto e lá estacionar o carro, deixando o talão de
estacionamento e as chaves do carro debaixo do banco dianteiro.
Antes de sair do carro, deveria remover cuidadosamente suas
impressões digitais. Depois, pegaria um avião de volta, pela manhã
bem cedo.

Então, chegaram os piores momentos para Miles. Enquanto localizava
o carro, e o dirigia ao sair do estacionamento, pensava intensa
e rapidamente: estaria o Impala sob a vigilância da polícia? Era uma
hipótese, pois a pessoa que o estacionara podia ser um suspeito que
a polícia estivesse seguindo. Nesse caso, chegara o momento da lei


fechar-se em torno dele. Miles sabia o grande risco que enfrentava
no papel de pombo-correio, de intermediário, ainda mais porque
suspeitava que o dinheiro falso, provavelmente em grande
quantidade, estivesse no porta-malas do carro.

Mas nada aconteceu e ele foi-se tranqüilizando, à medida que ultrapassava
os limites da cidade.
Uma ou duas vezes na rodovia, quando se defrontou com as patrulhas
policiais, seu coração disparou, mas ninguém o fez parar e
acabou por chegar a Louisville, pouco antes da madrugada, após
uma jornada normal.

Apenas uma coisa não correra conforme as instruções. Mais ou menos
a 15km de Louisville, ele deixou a rodovia principal e, no
escuro, com ajuda de uma lanterna, abriu o porta-malas do carro.
Dentro, duas malas pesadas, fechadas a chave. De início, pensou em
forçar uma delas, mas seu bom senso lhe disse que, com isso,
estragaria tudo que fizera até então. Fechou o porta-malas, anotou o
número da licença do carro e retornou à estrada principal.
Sem maior dificuldade encontrou o aeroporto de Louisville,
cumpriu as outras instruções, e tomou o avião de volta. Chegou ao
Double-Seven Health Club pouco antes das dez horas da manhã.
Ninguém lhe perguntou nada sobre sua ausência.
Durante o resto do dia Miles sentiu-se exausto pela falta de sono.
mas conseguiu trabalhar como de costume. A tarde, LaRocca
chegou fumando um grande charuto.

— Você fez um servicinho limpo, Miles; ninguém se chateou, todos
ficaram satisfeitos.
— Ainda bem. E quando é que vou ver a cor dos meus 200 dólares?
— perguntou Miles.
— Já foram pagos. Ominsky ficou com o dinheiro, por conta do que
você lhe deve.
Miles suspirou. Esperava por uma coisa assim, mas parecia irônico
arriscar tanto, apenas em benefício do agiota. Perguntou a LaRocca:

— E como foi que Ominsky ficou sabendo?
— Ele está por dentro do que se passa com todo mundo.
— Você disse que todos estavam satisfeitos... Quem vem a ser todos?
Para fazer a espécie de trabalho que fiz ontem, acho que, pelo
menos, devia saber para quem trabalhei.
— Quanto menos perguntas fizer, melhor para você. Acho que já lhe
disse isto antes — retrucou LaRocca.
— Você deve ter razão — disse Miles.
Era evidente que nada saberia através de LaRocca. Ele se sentia
desanimado: a viagem à noite fora um esforço imenso, e os riscos
que correra não haviam adiantado nada em relação ao que
precisava saber.
Dois dias depois, ainda extenuado e deprimido, resolveu contar
seus infortúnios a Juanita.
8


Juanita e Miles já se haviam encontrado duas vezes, durante o primeiro
mês em que ele trabalhara no Double-Seven Health Club.
O primeiro encontro dera-se de modo imprevisto, poucos dias
depois do encontro da moça com Wainwright, quando ela
concordara em atuar como intermediária. Juanita já tinha telefone,
mas Miles não sabia e fora à casa dela, à noite, sem avisar. Após
certificar-se de quem se tratava, Juanita abrira a porta.


_ Alô — disse Estela. A menina pequena e morena, uma miniatura
de Juanita, acrescentou;
_ Você é o homem magro; mas agora está mais gordo.



_ Engordei mesmo. Como comida própria para gigantes —
respondeu ele.
Estela sorriu, mas Juanita mostrava-se séria, preocupada. Ele
desculpou-se:
_ Não tive como avisá-la de que vinha, mas o Sr. Wainwright disse
que você sabia que eu viria.


— Aquele hipócrita!
— Você não gosta dele?
— Odeio-o!
— Ele não é bem a idéia que faço do Papai Noel — disse Miles. —
Mas não chego a odiá-lo; compreendo que tem uma tarefa a
executar.
— Pois que a execute ele mesmo. E não use os outros.
— Se você se sente assim, por que concordou em?...
Juanita interrompeu-o:
— Você acha que já não me perguntei? Maldito sea el dia que lo conocí.
Fazer a promessa que fiz. tomar esse compromisso, foi uma tolice
de momento, da qual me arrependerei para sempre.
— Não há necessiddade disso. Você pode perfeitamente cair fora. —
A voz de Miles era gentil. — Explicarei a Wainwright.
Mas Juanita reagiu:
— E o que aconteceria com você? Como passaria as informações?
Você devia estar louco quando concordou com toda essa estupidez.
— Não estava nada louco; apenas não tinha outra saída. Mas não
vejo razão para que você se envolva nessa trapalhada. Quando
lembrei seu nome. não havia pesado os prós e os contras. Desculpe,
Juanita.
— Mamãe — perguntou Estela — por que você está tão zangada?
Juanita abaixou-se e abraçou a filha.
No te molestes, mi cielo. Estou zangada com a vida, meu amor.
Zangada por ver o que as pessoas fazem uma às outras. — E
voltando-se para Miles, acrescentou: — Sente-se, sente-se!
— Você tem certeza de que me quer aqui?

— Não, não tenho certeza de nada, nem mesmo disto. Mas sente-se!
Ele obedeceu.
— Gosto de sua maneira de ser, Juanita.
Miles sorriu, e por um momento Juanita pensou então que ele lembrava
o Miles que trabalhara no Banco. Ele continuou:
— E gosto de muitas outras coisas suas. Se quer saber a verdade
sugeri seu nome porque assim teria possibilidades de poder vê-la.
Bem, agora já me viu. — Juanita deu de ombros. — E me verá
outras vezes. Portanto, é melhor que faça logo seu relatório e eu o
transmitirei a nossa aranha, Sr. Wainwright, com suas teias
perigosas.
Meu relatório é apenas: nada a relatar. Pelo menos, ainda não.
Miles descreveu-lhe o Double-Seven Health Club. Sua feiura e sujeira.
Descreveu também seus encontros com Jules LaRocca e.
depois, com Ominsky, bem como o emprego que conseguira como
contador do clube. Até agora, com aqueles poucos dias de trabalho,
era tudo que sabia.
— Mas consegui entrar, conforme o Sr. Wainwright desejava —
concluiu ele.


— Às vezes é mais fácil entrar do que sair, como num curral de
peixes — disse Juanita.
Estela ouvia atenta e, então, perguntou a Miles:
— Você vai voltar outras vezes?
— Não sei.
Ele ergueu os olhos para Juanita inquisitivamente.
— Sim, amorcito — disse a Estela. — Ele voltará.
Juanita foi ao quarto e voltou com os dois envelopes que Nolan
Wainwright lhe entregara. Passou-os a Miles:
— São para você.
O envelope maior continha o dinheiro: o menor, o cartão Keycharge
com o nome fictício de H.E.L1NCOLP. Juanita explicou-lhe tudo
sobre ò cartão — em especial o sinal de perigo.

Miles guardou o cartão, mas devolveu o envefope com dinheiro a
Juanita.

— Guarde. Se eu for apanhado com dinheiro no bolso, provocarei
suspeitas. Use-o para si e para Estela: devo-lhe isto.
Juanita hesitou. Depois, em tom mais cordial, respondeu:
— Guardarei o dinheiro, sim, mas para seu uso.
No dia seguinte, no FMA, Juanita chamou Wainwright pelo telefone
interno e transmitiu-lhe as informações. Teve o cuidado de não se
identificar, nem de mencionar o nome de Miles ou mesmo do
Double-Seven. Wainwright ouviu tudo, agradeceu e desligou.
O segundo encontro entre Juanita e Miles ocorreu uma semana e
meia depois, numa tarde de sábado. Desta vez Miles tinha
telefonado antes, e quando chegou ao apartamento Estela e Juanita
mostraram-se contentes em vê-lo. Iam sair para fazer compras e ele
acompanhou-as a um supermercado, onde Juanita comprou
lingüiça e repolho, perguntando se ele jantaria com elas.
Miles respondeu que sim, acrescentando que só precisava voltar ao
clube tarde da noite ou mesmo de manhã.
Enquanto andavam. Estela disse para Miles, com sua franqueza infantil:
— Eu gosto de você.
Pegou a mão dele, e ambos sorriram:
O jantar decorreu na maior camaradagem. Quando Estela foi para a
cama, deu um beijo em Miles. Uma vez a sós, este fez à moça o
relatório que esta transmitiria depois a Wainwright. Estavam
sentados lado a lado no sofá, quando Juanita disse:
— Se quiser, pode dormir aqui hoje.
— Da última vez que o fiz você dormiu no quarto com Estela.
— Desta vez, nâo. Ela tem o sono pesado, não nos incomodará.
Chegando-se mais para perto de Juanita, Miles sentiu que ela o
desejava. Seus lábios entreabertos eram quentes, úmidos e sensuais.
Pareciam uma amostra de sensações maiores que viriam a seguir.
Sua língua roçava a dele, provocando-o. Miles sentia que ela

respirava depressa e que seu corpo miúdo tremia de excitação
reprimida, correspondendo ao que ele próprio sentia. Quando as
mãos dele começaram a explorar seu corpo, Juanita respirou fundo,
sentindo as ondas de prazer que antecediam o êxtase que se
aproximava. Fazia muito tempo que fora possuída por um homem,
e não tentou esconder o quanto se sentia excitada, pronta para o
amor. Rapidamente, abriram o sofá-cama.
Em seguida deu-se o desastre. Miles desejava Juanita com sua
mente e, havia acreditado, com todo seu ser. Mas, quando chegou o
momento em que devia provar que era homem, seu corpo não
correspondeu. Miles lutou como denodo, tentou concentrar-se,
fechou os olhos e esperou, mas nada ocorreu. O que deveria ser,
naquela hora, o membro viril, rígido e ardente de um jovem...
estava flácido, mole.
Juanita tentou consolá-lo, ajudá-lo:


— Deixe de se preocupar, Miles querido! Tenha paciência; deixe que
eu coopere e nós conseguiremos.
E tentaram tudo, os dois. Mas sem êxito. Miles desistiu envergonhado,
e quase chorou. Agora sabia que, por desgraça, atrás
daquela impotência estava a realidade de sua homossexualidade.
Acreditara e desejava que isto não chegasse a inibi-lo com uma
mulher, mas a verdade era bem outra. Ele, pura e simplesmente, já
não era mais homem.
Por fim, exaustos, infelizes, frustrados, dormiram.
Durante a noite Miles acordou, virou-se para um lado e para o
outro, depois levantou-se. Juanita percebeu quando ele acendeu o
abajur ao lado do sofá, e perguntou:
— O que é, agora?
— Fiquei pensando e não consegui dormir.
— Pensando em quê?
Então Miles contou-lhe tudo, com todos os detalhes: a curra que
sofrera na prisão; depois a existência de seu amante Karl, como
meio de proteger-se; sua mudança para a cela daquele; sua

passividade que se transformara em prazer. Falou-lhe de seus
sentimentos ambivalentes em relação a Karl, de cuja gentileza e
carinho Miles ainda se lembrava com afeição?... com amor? Mesmo
agora, ele não o sabia ao certo.
Nesta altura, Juanita interrompeu-o.

— Nem mais uma só palavra! Já ouvi o bastante. Você me põe
doente.
Na maior tristeza Miles perguntou:
— E como é que você acha que eu me sinto?
— No quiero saber. Não quero e nem me importo.
Sua voz traduzia bem o horror e desgosto que sentia.
Assim que se fez dia, Miles vestiu-se e saiu.


Duas semanas mais tarde. Outra tarde de sábado, momento mais
aconselhável, Miles já sabia, para dar uma fugida do clube sem ser
notado. Ainda estava cansado de sua viagem a Louisville na noite
anterior, e sentia-se decepcionado por não ter feito nenhum
progresso.
Não sabia se devia ou não procurar Juanita outra vez. Décidiu-se,
porém, que pelo menos mais uma visita se fazia necessária. Quando
chegou lá, ela o recebeu como se tratasse apenas de negócios, e nada
falou sobre a frustrada experiência anterior.
Ouviu o relatório de Miles, bem como suas dúvidas.

— Não estou descobrindo nada de importante. Está certo, lido com
LaRocca e com o sujeito que me vendeu aquelas notas falsas de 20
dólares, mas ambos são arraia-miúda. E quando tento arrancar algo
de LaRocca, como, por exemplo, de onde veio a carteira de
motorista ele se mostra desconfiado. Não sei nada mais do que
sabia quando comecei, com referência aos chefões, nem mesmo o
que o Double-Seven procura encobrir.
— Você não pode descobrir tudo em um mês — disse Juanita.
— Talvez nem mesmo haja nada a ser descoberto, pelo menos no
sentido que Wainwright quer.

— Talvez não. Mas a culpa não será sua. Depois, é bem provável
que já tenha descoberto mais do que pensa: temos o dinheiro falso
que você me deu, o número da licença do carro que dirigiu...
— Provavelmente roubado...
— Deixe que o Sr. Sherlock Holmes Wainwright apure isso.
— De repente Juanita perguntou:
— E sua passagem aérea? A passagem de volta?
— Eu a usei.
— Mas a gente sempre fica com...
— Talvez eu...
Miles procurou no paletó que era o mesmo que vestia durante a viagem
a Louisville. Lá estava o canhoto da passagem, dentro do
envelope da companhia aérea.
Juanita guardou-os.
— Talvez sirva para alguma coisa. E vou lhe reembolsar pelos 40
dólares que pagou pelo dinheiro falso.
— Você até que está cuidando bem de mim.
—Por qué no? Me parece que alguém tem que cuidar de você. Estela,
que voltava de um apartamento vizinho, perguntou logo:
—Você vai ficar?
—Hoje, não; já estava de saída... Juanita
interrompeu-o com rispidez: Você precisa
mesmo ir embora?
—Não, apenas pensei...
— Pois jantará conosco: Estela vai gostar.
— Que bom, mamãe — exclamou a menina que. dirigindo-se a Miles.
perguntou: — Você quer ler uma história para mim?
Tendo ele respondido afirmativamente, ela foi buscar o livro e
instalou-se sem cerimônia em seu colo.
Após o jantar, Miles leu para a menina mais um pouco, até que ela
foi para a cama.
— Você é uma pessoa bondosa. Miles — disse Juanita quando regressou
do quarto de dormir, fechando a porta atrás de si. Enquanto

punha a filha para dormir. Miles levantara-se para partir mas ela lhe
disse: — Não, quero conversar um pouco com você.
Como antes, sentaram-se juntos no sofá da sala. Juanita falava devagar,
procurando escolher as palavras.


— Da última vez, quando você foi embora, arrependi-me demais
das coisas ásperas e rudes que então lhe disse. Ninguém tem o
direito de julgar ninguém. E exatamente o que fiz foi julgar. Sei o
que sofreu na prisão. Nunca estive presa; talvez possa imaginar o
quanto deve ser horrível. Mas como pode alguém saber de fato... a
não ser que também tenha estado lá... Como reagiria? E quanto ao
homem sobre quem você fatou, Karl, ele foi bondoso e gentil com
você, quando todo o mundo lhe era hostil e cruel. Isto sim, é o mais
importante.
Juanita parou, pensou um pouco, e continuou:
— Para uma mulher é difícil entender como homens possam amar
homens da maneira que você contou que fazem. No entanto, sei que
existem mulheres que amam mulheres dessa mesma forma, e fazem
as mesmas coisas, ou parecidas. Pensando bem. pesando tudo,
algum amor, qualquer espécie de amor. é melhor do que não ter
amor nenhum. E é muito melhor do que odiar. Por isso, Miles, peço
que você esqueça tudo que eu disse, esqueça-se das palavras duras
e da maneira rude como lhe falei, e continue a lembrar-se de Karl,
assumindo a inteira responsabilidade de que você o amava. — Ela
levantou os olhos e fixou-os em Miles. — Você de fato o amava,
não?
— Sim. eu o amava — disse Miles em voz muito baixa.
— Uma vez que você o admita, você verá que é melhor assim. Talvez,
agora, você possa vir a amar outros homens. Não sei. Não compreendo
essas coisas, mas posso lhe afirmar que a melhor coisa no
mundo ainda é o amor. não importa onde ele se encontre!
— Obrigado. Juanita.
Miles percebeu que ela estava chorando e que as suas próprias faces
também estavam molhadas.

Ficaram calados durante muito tempo, ouvindo o barulho do
tráfego lá fora, de vozes na rua. De repente, ambos começaram a
falar ao mesmo tempo: como amigos, sobre todo tipo de assunto, e
nunca se sentiram tão próximos um do outro. Falaram e falaram,
esquecendo o tempo e o lugar. Falaram até tarde da noite, sobre si
mesmos, suas experiências, as lições que haviam aprendido na vida.
seus sonhos frustrados, suas esperanças.

os objetivos que algum dia pudessem vir a alcançar. Falaram tanto
que o sono começou abaixar o tom de suas vozes e, finalmente,
ainda ao lado um do outro, de mãos dadas, adormeceram. I
Miles foi o primeiro a acordar. Sentia-se inconfortável, qualquer
coisa o perturbava... e o que ele percebeu encheu-o de alegria.
Com delicadeza acordou Juanita, levando-a do sofá para o tapete
em frente, onde pôs almofadas servindo de travesseiro. Meiga e
carinhosa, ela tirou a roupa, depois a dele. Beijaram-se, abraçaram-
se e, afinal, ele a possuiu, de maneira gloriosa e triunfante, enquanto
Juanita o agarrava, apertava e gritava de felicidade.

— Eu te amo, Miles! Carino mio, eu te amo!
E foi assim que Miles, através de Juanita, reencontrou a masculinidade.
9


Vou lhe fazer duas perguntas — disse Alex Vandeivoort. As idéias
baralhavam-se em sua mente e sentia-se chocado com o que acabara
de ler. — Primeiro, em nome de Deus, como é que você conseguiu
todas essas informações? Segundo, até que ponto elas são válidas?

— Se o senhor permitir, responderei às perguntas, mas na ordem
inversa — disse Jax.

Os dois encontravam-se no escritório de Alex, no FMA, pelo fim da
tarde. O expediente já se encerrara e a maioria dos funcionários do
36° andar tinha partido.
O investigador particular, que há um mês Alex incumbira de fazer a
pesquisa sobre a Supranational, permanecera lendo jornal
vespertino enquanto Alex estudava o relatório que ele trouxera, de
70 páginas, com um anexo de documentos fotocopiados.
Mais do que nunca, Vernon Jax parecia uma figura inexpressiva. O
terno azul que estava usando poderia ter sido doado ao Exército de
Salvação — e rejeitado. As meias caíam-lhe por cima dos sapatos,
que combinavam com o terno velho. O pouco que lhe restava de
cabelo estava despenteado. Mas Alex constatava, pela leitura do
relatório secreto, que, se lhe faltava classe, sobrava-lhe muito talento
para a espionagem e levantamento de dados.
—Quanto à validade de minhas informações, se o Senhor está me
perguntando se os fatos poderiam, eventualmente, servir de prova
num tribunal, respondo-lhe que não. Mas posso lhe garantir que as
informações são autênticas e que não incluí nada que eu não tivesse
conferido pelo menos em duas fontes diferentes, e em alguns casos
até mesmo em três.
Além disso, a coisa mais preciosa com que conto em minha
profissão é a minha reputação de chegar à verdade em todos os
casos. Orgulho-me desta reputação, e pretendo apurá-la cada dia
mais. Como chego a tais resultados? Em geral as pessoas para as
quais trabalho me fazem essa pergunta e acho que têm direito a
uma explicação, conquanto não lhes possa contar tudo, pois
algumas informações são o que poderia ser chamado de "troca de
segredos" e "fontes protetoras". Trabalhei para o Departamento do
Tesouro dos Estados Unidos durante 20 anos, quase sempre como
investigador do IRS, e mantive meus contatos em boa ordem, não
apenas naquele Departamento, como em todos os outros lugares
que freqüentei. Nem todo mundo sabe disso, Sr. Vandervoort, mas
uma das maneiras de operar de um investigador é a troca de


informações confidenciais. E na minha espécie de negócio a gente
nunca sabe quando vai precisar da colaboração de alguém, ou
quando alguém vai precisar da nossa. Ajuda-se esta semana e mais
cedo ou mais tarde tem-se a retribuição. O mesmo se aplica com
referência a informações de débitos, créditos, pagamentos e tudo
mais. Assim sendo, o que lhe vendo quando me contrata, não é
apenas o meu conhecimento. E muito mais. E o resultado colhido
numa verdadeira rede de contatos. Alguns deles o surpreenderiam.

— Já tive todas as surpresas que poderia ter num só dia — disse
Alex e deixou o relatório à sua frente.
— Bem — retrucou — foi assim que eu consegui parte das informações
contidas neste relatório; o resto foi uma luta, misto de astúcia e
paciência, para saber exatamente embaixo de que pedras procurar o
que se quer achar.
— Percebi.
— Existe mais uma coisa que gostaria de esclarecer, Sr.
Vandeivoort; creio que o senhor chamaria de orgulho pessoal.
Observei que, nas duas vezes que nos encontramos, o senhor me
olhou como se não me visse, ou mesmo me desprezasse. Bem; esta é
exatamente a maneira pela qual quero ser visto. Compreenda, um
homem tão inexpressivo e insignificante como eu não é notado ou
levado a sério com facilidade pelos que ele está tentando investigar.
E também é válido sob outro aspecto, porque as pessoas com quem
falo não acreditam que eu seja importante e, assim, não ficam na
defensiva. Se eu, por exemplo, tivesse uma aparência que chegasse
mesmo de longe a lembrar a sua, seu modo de vestir, sua elegância,
todos estariam alertados contra mim. Era isso que queria lhe dizer, e
acrescento: no dia que o senhor me convidar para o casamento de
sua filha, estarei tão bem vestido como qualquer outro convidado.
Se algum dia eu tiver uma filha, pode deixar que não esquecerei —
respondeu Alex sorrindo.
Quando o investigador partiu, Vandervoort releu com cuidado o
relatório. Era chocante e surpreendente. Implicava os mais graves

perigos para o First Mercantile American Bank, pois a poderosa
estrutura da SuNatCo estava se reduzindo a pó, e a ponto de se
desfazer.

Lewis D'Orsey citara rumores de grandes prejuízos comentados,
práticas contábeis tendenciosas entre as subsidiárias. Big George
Quartermain procurando obter um subsídio tipo Lockheed. Vernon
Jax confirmara tudo e descobrira ainda muito, muito mais.
Era tarde demais para que Alex pudesse fazer qualquer coisa ainda
hoje. Decidiu pensar mais sobre o caso durante a noite, tentando
encontrar uma forma de usar as terríveis informações que acabava
de receber.

10


O rosto de Jerome Patterton estava rubro de cólera. Protestava:

— Impossível! O que você está me pedindo é simplesmente
absurdo! A voz de Alex Vandervoort era, porém, enérgica quando
retrucou:
— Não estou pedindo; estou lhe dizendo: faça-o!
— Pedindo, dizendo, que diferença faz agora? O que você quer é
que eu tome uma atitude arbitrária, sem uma razào de fato
substancial.
— Posso dar-lhe um monte de razões mais tarde, razões fortíssimas.
Mas, agora, nào há tempo.
Os dois estavam na suíte do presidente do FMA, para onde Alex se
dirigira cedo, esta manhã, antes mesmo do próprio Patterton
chegar.

— A Bolsa de Valores de Nova Iorque já abriu há 50 minutos —
avisou Alex. — Portanto, já perdemos 50 minutos e o tempo
continua a correr, pois só você pode dar a ordem para que sejam
vendidas todas as ações da Supranational, de nossa propriedade.

— Mas não vou fazer isso! — Patterton gritava. — Além do mais,
que diabo, quem você pensa que é, para entrar aqui como um
furacão e me dar ordens?
Verificando que a porta do escritório estava aberta, Alex dirigiu-se a
ela, fechou-a e voltou.
— Pois vou lhe dizer quem sou, Jerome. Sou aquela pessoa que avisou
a você, avisou à assembléia, à diretoria, a todos, do perigo que
representava o envolvimento, em proporções descomunais, do FMA
com a SuNatCo. Fui aquele que lutou contra a compra maciça pelo
nosso Departamento de Administração de Carteiras, dessas ações.
Mas ninguém, nem mesmo você, me deu a menor atenção, ou
sequer quis me ouvir. Agora, a Supranational está desmoronando!
— Alex inclinou-se. aproximando-se de Jerome e deu um soco na
mesa. Seus olhos fixaram-se nos olhos incrédulos de Patterton. —
Você não consegue entender? A Supranational pode arrastar o
Banco para o fundo, com ela.
Patterton tremia. Sentou-se pesadamente na cadeira reclinada.
— Mas, de fato, a Supranational está em grandes dificuldades? Você
tem certeza?
— Se não tivesse, você acha que estaria aqui, comportando-me
desta maneira? Não vê que estou lhe dando uma oportunidade de
salvar alguma coisa nossa daquilo que, de qualquer maneira, será
uma catástrofe?— Alex apontou com o dedo para seu relógio de
pulso. — Jerome. já se passou uma hora, desde que o mercado
abriu. Jerome. decida-se de uma vez. pegue o telefone e dê a ordem.
O rosto do presidente tremia. Nunca fora muito forte ou apto a tomar
decisões rápidas. Situações como a presente deixavam-no

inseguro. Mas quando alguém sabia impor-se ele se deixava
impressionar, como agora.

— Por Deus! Alex, em seu próprio benefício, espero que saiba exatamente
o que está fazendo! — Patterton pegou um dos telefones
sobre a mesa, ainda hesitou, mas afinal tirou-o do descanso.
— Ligue-me com Mitchell, na Custódia. Não, eu espero... Mitch?
Aqui é Jerome. Escute com toda atenção: quero que você venda
imediatamente todas as nossas ações da Supranational. Sim. ordem
de venda. Exato, de todas as ações. — Patterton ouviu um pouco o
que o outro tentava dizer, depois interrompeu-o com impaciência:
— Sim, eu sei o que isto fará ao mercado; sei que o preço já está em
baixa. Claro que vi a cotação de ontem... sei que perderemos
dinheiro. Mas mesmo assim, venda! Sim, sei que é irregular. — Seus
olhos procuraram os de Alex. pedindo ajuda. A mão que segurava o
telefone tremia quando ele disse: — Sei; mas não há tempo para
nenhuma reunião. Portanto, faça-o! Execute minha ordem! Não
perca um segundo sequer! — Patterton teve uma expressão de
desespero enquanto escutava e respondeu, pondo fim ao diálogo: —
Sim, assumo a inteira responsabilidade.
Quando desligou o telefone, bebeu uns goles de água e disse a Alex:
— Você ouviu tudo que eu disse. As ações estão em baixa. Nossa
venda fará que caiam mais ainda. Vai ser uma pancada para nós!
— Você está errado — corrigiu-o Alex. — Quem vai levar a pancada
são os nossos clientes da Carteira Administrada, gente que confiava
em nós. E o prejuízo seria maior ainda se esperássemos. Mesmo
agora não estamos sãos e salvos. Dentro de uma semana, talvez, o
SEC venha a proibir a venda destas ações.
— Proibir por quê?
— Pode argumentar que tínhamos conhecimento do que se passava
e que deveríamos ter-lhe informado, o que, por certo, teria levado a
uma suspensão das operações.
— Que espécie de conhecimento?
— Que a Supranational está quase falindo.

Jesus! — Patterton levantou-se da mesa e deu uma volta pela sala.
resmungando: — A SuNatCo! Jesus Cristo! A SuNatCo!— Depois
perguntou: — E o que você diz do nosso empréstimo? 50 milhões de
dólares?

— Já procurei saber. Foi usado até quase o limite máximo da linha
de crédito.
— Qual a retenção?
— Abaixo de um milhão.
Fez-se um silêncio durante o qual Patterton suspirou fundo. Já mais
calmo, indagou:
— Você afirmou que tem razões fortes. Evidentemente, sabe alguma
coisa. É melhor que me diga tudo.
— Será mais simples se você se der ao trabalho de ler isto aqui —
Alex pôs o relatório de Jax em cima da mesa do outro.
— Deixe que depois eu leio — disse Patterton. — Mas, agora, você é
que vai me dizer o que está escrito aqui e o que não está.
Alex explicou tudo sobre os rumores acerca da Supranational, que
Lewis D'Orsey lhe contara, e sobre sua decisão de empregar um
investigador. Vernon Jax.
— Tudo que Jax relatou, todos os dados que colheu, juntos fazem
sentido — declarou Alex. Ontem à noite e hoje de manhã dei
milhares de telefonemas, confirmando algumas de suas declarações
em separado. Todas estavam corretas. A verdade. Jerome, é que
grande parte do que Jax descobriu poderia ter sido descoberto por
qualquer pessoa que quisesse apurar os dados, coisa que ninguém
até agora fez. Se o fizesse, era só somar dois mais dois e armar o
quebra-cabeça. Além disso, Jax conseguiu obter informações
confidenciais, incluindo documentos, provavelmente...
Patterton interrompeu-o com o desespero na voz.
— Está bem, está bem. Agora, realmente, nada disso nos interessa.
Quero saber os fatos concretos.
— Pois vou lhe dar os fatos concretos: a Supranational está sem
dinheiro. Nos últimos três anos vem sofrendo enormes prejuízos e

sobreviveu apenas por seu prestígio e seu crédito. Então, tudo foi-se
acumulando: empréstimos novos para pagar dívidas antigas; novos
empréstimos e mais outros para pagar os anteriores. O que eles não
têm. na realidade, é dinheiro em espécie.

— Mas a SuNatCo apresentou lucros excelentes, ano após ano, e
nunca deixou de pagar dividendos — protestou Patterton.
— Ao que tudo indica, os últimos dividendos foram pagos já com
dinheiro emprestado. O resto, Jerome, é simplesmente contabilidade
fantasma. Todos nós sabemos como tudo isto pode ser e é feito.
Muitas das maiores companhias, de melhor reputação, usam tais
métodos.
O presidente do Banco ficou calado durante algum tempo, depois
disse da maneira mais sombria:
— Houve tempo em que a assinatura de um contador num relatório
financeiro significava integridade. Mas isso já passou!
— Se você consultar o relatório encontrará exemplos específicos do
que lhe digo. Entre eles está o da Horizon Land Development.
Trata-se de uma subsidiária da SuNatCo.
— Eu sei, eu sei.
— Então, talvez também saiba que a Horizon tem grandes
propriedades de terras no Texas, Arizona e no Canadá. Mas
acontece que a
maioria dessas terras são localizadas em lugares tão remotos que
talvez
nem mesmo dentro de uma geração o desenvolvimento chegue até
lá. O que a Horizon tem feito é efetuar vendas a especuladores,
aceitando pequenos pagamentos à vista, com contratos limitados,
deixando o pagamento integral do preço total para muito mais
tarde, para um futuro remoto. Em apenas duas vendas, os
pagamentos finais totalizam 80 milhões
de dólares, vencíveis em 40 anos, a partir de hoje —já no século
vinte e um. Estes pagamentos talvez nunca sejam efetuados. No
entanto, nos balanços da Horizon e da Supranational, esses 80

milhões são apresentados como lucros realizados. Isto, Jerome,
apenas no que se refere a duas
vendas. Existem muitas outras, apenas menores, também
contabilizadas com essa espécie de alquimia. E, além de tudo, o que
ocorre com essa subsidiária que mencionei ocorre com várias outras
subsidiárias da SuNatCo.
Alex fez uma pausa, depois acrescentou:

— O resultado final é claro: fizeram que tudo parecesse gigantesco,
no papel, e provocasse uma alta irreal do preço das ações da
Supranational no mercado.
— Alguém deve ter feito uma fortuna mas, por desgraça, não fomos
nós. Você tem alguma idéia da extensão do empréstimo total da Su-
NatCo? — perguntou Patterton com azedume.
— Tenho. Parece que Jax conseguiu dar uma olhadela nos registros
de alguns impostos que apresentam deduções referentes a juros. A
estimativa dele. para uma dívida a curto prazo, incluindo as
subsidiárias, é de um bilhão de dólares. Desse bilhão, 500 milhões
parecem se referir a empréstimos bancários. O resto é
principalmente em promissórias (day commercial paper)' que eles não
pararam de emitir.
Promissória, como ambos sabiam, era uma espécie de IOU-com juros,
mas lastreada apenas na reputação do devedor. A medida que o
negócio ia se tornando mais difícil, emitiam-se mais IOUs para
pagar os primeiros, acrescentando-se juros.
— Mas eles estavam perto do limite máximo de levantar dinheiro —
disse Alex. — Ou pelo menos é o que pensa Jax. Uma das coisas que
eu mesmo confirmei foi que os investidores de promissórias estão
começando a ser alertados.
Nos EUA é permitido a uma empresa lançar promissórias no mercado
(Commercial paper) sem intervenção de instituições bancárias. No Brasil,
corresponderia ao "mercado paralelo".


lOUI: abreviação fonética de / owe you (Eu lhe devo): trata-se de um
reconhecimento de divida, uma espécie de vale (N. T.)
Patterton lembrou-se de casos anteriores ocorridos nos Estados Unidos
e disse:


— Foi assim que a Penn Central desmoronou. Todo mundo acreditava
que a ferrovia era bine chip — a coisa mais segura para comprar
e guardar, enfim, para possuir, assim como ações da IBM e da
General Motors. De repente, um belo dia, a Penn Central se acabou.
— Você pode acrescentar mais alguns nomes, desde então —
lembrou-o Alex.
O mesmo pensamento ocorreu a ambos: depois da Supranational,
seria o First Mercantile American Bank acrescentando à lista?
O rosto corado de Patterton tornou-se pálido. Ele apelou para Alex:
— Em que pé estamos?
Alex percebeu que, agora, não havia nenhuma pretensão de liderança
por parte do presidente do Banco. Jerome Patterton dependia
exclusivamente dele, Alex.
— Muita coisa vai depender do tempo que a Supranational ainda se
agüentará à deriva. Se conseguirem se manter por alguns meses,
nossas ações de hoje podem ser ignoradas, e a violação do Federal
Reserve Act que o empréstimo representou talvez não chegue a ser
investigada a fundo. Se o tesouro for rápido, então estaremos em
sério perigo perante o SEC, por havermos ocultado o que sabíamos
para com o Comptroller of Currency por abuso de confiança, e para
com o FEDJ, devido ao empréstimo. Mas é preciso não esquecer,
Jerome, que estaremos enfrentando uma perda imediata de 50
milhões de dólares, e você sabe muito bem o que isto representará
para o nosso relatório financeiro do ano que vem. Além disto, pode
imaginar como os acionistas prejudicados estarão caçando nossas
cabeças. Nossos diretores poderão mesmo vir a ser acionados.
' Não existe correspondente no Brasil. Sena o superintendente da Moeda (N. T.) 4
FEED: corresponde ao nosso Banco Central (N. T.)


— Jesus Cristo! — disse Patterton. E repetia: — Jesus Cristo! —
Tirou um lenço do bolso e passou-o pelo rosto molhado de suor.
Alex continuou, sem admitir interrupções:

— Existe mais alguma coisa que temos que levar em consideração:
publicidade. Se a Supranational falir, serão feitas diversas
investigações. Mesmo antes que o fato seja divulgado, a imprensa já
terá conhecimento de tudo e fará suas próprias pesquisas. Você sabe
como os repórteres são ótimos nisso. E uma vez começado o
trabalho de pesquisa, evidentemente não podemos esperar que o
Banco lhes escape à atenção. O total de nossos prejuízos se tornará
conhecido do público e esse tipo de notícia poderá tornar nossos
depositantes desconfiados e como conseqüência, na aflição, fazerem
grandes saques.
— Por favor, Alex, você está querendo prever uma corrida? Isto é
coisa que não quero nem pensar!
— Pois acho que devemos começar a pensar nela. Já aconteceu em
outros casos. Lembre-se, por exemplo, do caso Franklin, em Nova
Iorque. Para o depositante, a única coisa que lhe importa é saber
que seu dinheiro está a salvo. Se pensar que talvez não esteja, sua
primeira providência é sacar, o mais depressa possível.
Patterton bebeu mais um pouco de água, encolhendo-se na cadeira.
Parecia ainda mais pálido.
_ Minha sugestão — disse Alex — é que você convoque o comitê
de política monetária do Banco, imediatamente, e que o comitê se
dedique, durante os próximos dias, a conseguir a máxima liquidez.
Desta maneira, estaremos preparados caso haja corrida imediata.
Patterton concordou.
_ Além disso, só nos resta rezar. — Pela primeira vez desde que
entrara no escritório de Jerome, Alex sorriu. — Acho que, para isso,
a pessoa indicada seria Roscoe.



— Roscoe! — exclamou Patterton, como se de repente um quadro
inteiro lhe viesse à cabeça. — Foi ele que estudou os números, as
cifras da Supranational, foi ele que recomendou o empréstimo,
assegurando a todos que seria um grande negócio para o Banco!
— Mas Roscoe não estava sozinho nisto; você e toda a diretoria o
apoiaram. E muitos outros que olharam, ou pareciam olhar ou
estudar os números, chegaram à mesma conclusão — retrucou Alex.
— Mas você, não.
— Eu não me sentia confiante. Talvez suspeitasse de alguma coisa.
Mas, de fato, não fazia idéia de que a SuNatCo pudesse estar na
situação em que se encontra.
Patterton pegou o telefone:
— Mande chamar o Sr. Heyward. — Depois de uma pausa, Patterton
acrescentou: — Não me importa se é o próprio Deus que se
encontra com ele agora. Que venha imediatamente! — Desligou o
telefone com violência e mais uma vez enxugou o rosto suado.
A porta do escritório abriu-se de mansinho, e Heyward entrou. E
disse:
— Bom dia,, Jerome — e acenou com a cabeça, friamente, para Alex.
Patterton berrou:
— Feche a porta.
Apanhado assim de surpresa, Heyward obedeceu.
—É que me disseram que era urgente. Porque, se não for, gostaria
de...
Alex, diga o que você sabe agora sobre a Supranational para que
Heyward ouça — disse Patterton. Heyward sentiu-se gelar.
Da maneira mais simples e controlada possível Alex repetiu a essência
do relatório de Jax. Sua raiva da noite anterior e desta manhã,
devida a imprevidência e à ganância que haviam levado o Banco à
beira do desastre já o haviam abandonado. Sentia-se apenas triste ao
pensar em tudo que teriam a perder e em como foram inúteis os
esforços que fizera. Lembrou-se lamentando, que outros projetos



dignos haviam sido postos a o, a fim de que o dinheiro do Banco
pudesse ser canalizado para o
empréstimo à Supranational. De repente, lembrou-se de Ben
Rosselli e pensou: pelo menos a morte livrou-o deste momento.
Roscoe Heyward surpreendeu Alex. que esperava antagonismo,
mesmo uma explosão. Nada disso aconteceu. Ao contrário,
Heyward ouviu tudo sem interromper apenas fazendo uma
pergunta aqui e ali, sem nenhum comentário. Alex passou a
suspeitar que estava apenas dando-lhe uma informação detalhada
sobre dados que eleja possuía.
Quando Alex terminou, fez-se um silêncio.
Patterton. que afinal conseguira sair do seu estado de pasmo, disse:


— Teremos uma reunião do comitê de política monetária hoje à
tarde a fim de discutir o problema da liquidez. Nesse meio tempo,
Roscoe, você fica encarregado de entrar em contato com a
Supranational para ver. se ainda for possível, o que poderemos
salvar do nosso empréstimo.
— É um demand louri — disse Heyward. — Poderemos suspendê-lo
à hora que quisermos, isto é, poderemos exigir seu resgate à hora
que nos convier.
— Pois então faça-o logo, logo. Faça-o hoje verbalmente e amanhã
por escrito. Não acredito que haja muita chance da SuNatCo ter 50
milhões de dólares à mão. Nem mesmo uma empresa sólida
conserva uma importância tão vultuosa em caixa. Mas, talvez eles
tenham alguma coisa, embora eu não acredite muito. De qualquer
maneira, você é que se encarregará do assunto.
— Telefonarei para George Quartermain imediatamente. Posso levar
esse relatório comigo? — perguntou Heyward.
Patterton olhou na direção de Alex.
— Por mim. não faço objeção alguma, mas sugiro que não sejam feitas
cópias. E quanto menos pessoas tiverem conhecimento disto,
tanto melhor — respondeu este.

Heyward acenou com a cabeça, concordando. Parecia inquieto, ansioso
para sair.

11


Alex Vandervoort acertara ao supor que Roscoe Heyward estivesse
a par de certos fatos ligados à SuNatCo. Já haviam chegado a seus
ouvidos rumores que aquela companhia enfrentava problemas.
Tomara mesmo conhecimento, dias antes, que algumas
promissórias da SuNatCo começavam a encontrar resistência por
parte dos investidores. Ele já participara de uma reunião de
diretoria da empresa — a primeira a que fora e lá apercebera-se de
que as informações fornecidas pelos diretores
não eram inteiramente completas e honestas. Mas não fizera
nenhuma pergunta, pois pretendia vir a realizar uma espécie de
devassa. Em seguida a essa reunião, Heyward observara uma queda
nos preços das ações da Supranational e decidira-se, exatamente na
véspera, a aconselhar o Departamento de Administração de
Carteiras do Banco1 a sair de sua posição acionária, vendendo suas
ações, como medida de precaução. Por infelicidade, quando
Patterton o convocara, ele ainda não pusera em prática aquela
intenção. No entanto, nada daquilo que tivesse até então ouvido ou
mesmo suposto, poderia levá-lo a pensar que a situação da Supranational
fosse tão perigosa e tão má como dizia o relatório que
tinha em mão.
Ao ouvir os pontos essenciais do relatório Heyward não o discutira.
Por pior que este fosse, o instinto lhe dizia, como Vandervoort
previra, que tudo fazia sentido.
Por esta razão, Heyward se mantivera calado no gabinete de Patterton.
Mas durante todo o tempo sua mente trabalhava, pesando as
idéias, as eventualidades, percebendo certos sinais de alarme, e já
pensando em possíveis saídas para ele próprio. Eram várias as


Demand loan: empréstimo sobre o qual o cliente paga somente os juros. Pode ser
liquidado pelo cliente ou suspenso pelo banco a qualquer hora. (Conta garantida).
(N.T.) 7 IA

providências que teria de tomar com urgência, tão logo tivesse
conhecimento detalhado dos fatos, através do relatório apresentado
por Jax. De volta a seu escritório, ele livrou-se rapidamente dos
clientes que o esperavam, depois sentou-se e começou a estudar o
famigerado relatório.
Reconheceu que Vandervoort fora cuidadoso e exato quando
sintetizara os pontos mais importantes, bem como das provas
anexas. O que ele não mencionara eram alguns detalhes como, por
exemplo, a tentativa de Big George Quartermain de conseguir de
Washington um empréstimo garantido pelo Governo, que viesse a
evitar a insolvência. Seus apelos tinham sido dirigidos aos membros
do Congresso, à Câmara de Comércio e à própria Casa Branca. O
relatório prosseguia: consta até que Quartermain levou o Vice-
Presidente, Byron Stonebridge, às Bahamas com o único objetivo de
tentar conseguir apoio do mesmo para a obtenção desse empréstimo
e que, depois, Stonebridge discutiu tal possibilidade em seu próprio
gabinete, mas que a opinião dos seus assessores fora totalmente
contrária.
Com amargura, Heyward pensou que só agora ficara sabendo o que
Big George e o Vice-Presidente discutiam aquela noite nas Bahamas.
E era obrigado a constatar que, enquanto a máquina política de
Washington tomara decisões acertadas, prudentes, rejeitando a
ajuda à Supranational, o First Mercantile American Bank, sob
pressào sua, concedera o empréstimo sem mais delongas. Big
George agira como um maestro de orquestra, regendo todos os
instrumentos. Heyward se lembrava de tê-lo ouvido dizer: Se acha
que 50 milhões é demais para vocês do FMA, pode esquecer o
assunto. Procurarei o Chase. Era um artifício, um meio de trapacear
tão antigo entre os homens! E no entanto ele, Heyward, o banqueiro
experiente, duro, tinha caído naquela armadilha infantil.


Mas, pelo menos, havia uma coisa a seu favor. Na referência ao fim
de semana do Vice-Presidente nas Bahamas, os detalhes estavam
resumidos. Evidentemente, pouco tinha chegado ao conhecimento
de qualquer pessoa sobre a viagem e seus incidentes. E para alívio
maior o relatório não se referia ao Q-Invesments.
Ele se perguntava se Patterton já tinha conhecimento do
empréstimo adicional de dois milhões de dólares, concedido pelo
FMA ao Q-Investments, ou seja, ao grupo especulador particular
encabeçado por Big George. Talvez ainda nâo. Pelo que tudo
indicava, Alex Vandervoort ignorava isso também, embora viesse a
conhecê-lo a qualquer momento. Mas, o que era mais importante
para Heyward era assegurar-se de que o seu próprio aceite nos
bónus" do Q-lnvestments jamais fosse descoberto. Amargurava-se
por não tê-los devolvido a Big George, como pensara fazer. Agora
era tarde. A única coisa que lhe restava era retirar os certificados
das ações do seu cofre particular, no Banco, e rasgá-los. Isto, sim,
seria uma medida sábia, ainda mais que se tratava de certificados
nominativos mas não registrados em seu próprio nome.
No momento, Heyward não dava qualquer atenção à competição
que sempre houvera entre ele e Alex Vandervoort, e concentrava-se
apenas em pensar na própria sobrevivência. Não tinha a menor
ilusão sobre as conseqüências do colapso da Supranational, do que
isto representaria para ele próprio, para seu próprio status no
Banco, na diretoria e na assembléia. Seria considerado um pária, o
foco de toda e qualquer culpa. Mas talvez, mesmo agora, se agisse
com rapidez e com alguma sorte, talvez não fosse tarde demais para
conseguir se recuperar. Se o dinheiro emprestado fosse devolvido,
até poderia tornar-se uma vez mais um herói.

No Brasil existe a Custódia e a Carteira Administrada. Quando o cliente deixa
suas ações ou valores em custódia, a empresa (corretora, banco, etc.) apenas
recebe dividendos, cuida de subscrições, etc, como se fosse uma simples prestação
de serviços. Já numa Carteira Administrada, ao contrário, o cliente entrega suas


ações, dinheiro ou valores para que a corretora ou banco faça com eles o que
melhor lhe parecer: vender, vender umas ações e trocar por outras, liquidar todas,
mudando a posição, comprar novas, tudo sem consulta ao cliente, já que tem
plena autorização para isso. (N. T.)

A primeira instrução que Jerome lhe dera era para que entrasse em
contato com a Supranational. Assim, ele instruiu sua secretária, Sra.
Cal-laghan, para que localizasse G. G. Quartermain pelo telefone.
Alguns minutos depois esta o informou:

— O Sr. Quartermain está fora do país; sua secretária foi bastante
evasiva quanto ao local onde possa ser encontrado. Não quis me dar
nenhuma informação.
Era um começo nada auspicioso e ele respondeu:
— Pois então me consiga Inchbeck.
Já tivera várias conversas com Stanley Inchbeck, tesoureiro da Supranational,
depois daquele primeiro encontro nas Bahamas, o que
criara uma certa intimidade entre os dois.
A voz de Inchbeck, com seu sotaque nasal típico dos
novaiorquinos respondeu do outro lado da linha:
_ Roscoe, em que posso servi-lo?
_ Estou tentando localizar George. Tenho impressão que seu
pessoal não está muito interessado em...
_ Ele está na Costa Rica.
— Pois gostaria de falar com ele. Em que telefone posso
alcançá-lo?
— Lamento. Ele me avisou que não atenderia nenhum
telefonema.
_ Mas trata-se de um assunto extremamente urgente.
—Pois. então fale comigo.
—Pois bem: vamos exigir o resgate do nosso empréstimo.
Estou lhe dando este aviso verbal. Amanhã pela manhã
receberá a confirmação por escrito, que seguirá no correio
desta noite.
Fez-se um silêncio. Inchbeck então disse:

—Você deve estar brincando.

bónus é uma espécie de debênlure (N. T.)

—Ao contrário, meu caro, nunca falei mais sério em minha
vida.
—Mas por quê?


— Tenho a impressão de que você pode imaginar. E tenho
também a impressão de que não gostaria de que eu descesse a
detalhes pelo telefone.
Inchbeck manteve um longo silêncio, muito significativo.
Então protestou:
— Seu Banco está sendo absurdo e agindo sem razão. Ainda a
semana passada, Big George me disse que estava propenso a
deixar que vocês aumentassem seu empréstimo em 50 por
cento.
A audácia do comentário aturdiu Heyward, mas logo se
lembrou de que a audácia sempre fora um item lucrativo para
a Supranational, como estava comprovado. Agora, não o seria
mais.
— Se o empréstimo fosse resgatado imediatamente — disse
Heyward — quaisquer informações que tivéssemos seriam
mantidas em segredo. Isso eu posso garantir.
O que, no fundo, Heyward queria saber era se Big George,
Inchbeck e os outros que realmente sabiam a verdade sobre a
SuNatCo estariam inclinados a ganhar tempo. Se assim fosse, o
FMA poderia tirar vantagem sobre os outros credores.
—50 milhões de dólares! — exclamou Inchbeck. — Nós nunca
temos tanto dinheiro disponível.
—O Banco poderia até concordar com um pagamento em
parcelas, desde que fossem pagas imediatamente, uma após
outra.

O que ele queria saber, ao certo, era onde a SuNatCo poderia
conseguir 50 milhões de dólares na situação presente.
Heyward suava, num misto de nervosismo, ansiedade e
esperança.
Vou tentar falar com Big George — disse Inchbeck — mas sei
que ele nao vai gostar desse papo.
-Pois quando falar com ele, diga-lhe que eu gostaria de
discutir, ambem, nosso empréstimo ao Q-Investments.


Heyward nào tinha absoluta certeza, mas teve a impressão de
ter ouvido um gemido quando Inchbeck desligou o telefone.
No silêncio do escritório, ele recostou-se na poltrona, deixando
que por um momento a tensão o abandonasse um pouco.
Agora sua reação começava a ser diferente: sentia-se rejeitado
e sozinho. Queria sumir, ficar distante de tudo por algum
tempo. Se pudesse escolher, bem sabia qual a companhia que
desejava: a de Avril. Mas ela não mais o procurara. Antes,
sempre lhe telefonava.


Não controlando seu impulso, Heyward pegou a caderneta de
telefones e procurou um número que se lembrava de ter escrito
a lápis, o do telefone de Avril em Nova Iorque. Usando uma
linha direta, ligou para lá.


Ouviu o telefone tocar, e logo a voz macia e agradável de Avril:
"Alô". Seu coração parecia querer sair do peito quando ouviu
aquela voz.


— Alô, Rossie — disse Avril quando reconheceu a voz dele.
— Há muito tempo que nada sei de você e que não nos
encontramos, querida. Estive pensando quando é que
poderíamos estar juntos outra vez.
Ele percebeu uma certa hesitação por parte da moça.

—Mas Rossie, querido, você já não consta mais da minha lista.
—Que lista?
Mais uma vez sentiu que a moça parecia hesitar.



—Talvez eu não devesse ter dito isso.
—Não, por favor, me diga. Fica entre só nós dois.


— Bem, é uma lista muito confidencial que a Supranationai
emite sobre quem merece toda espécie de atenções às suas
expensas.
Heyward tinha a impressão que uma corda em volta do seu
pescoço ia sendo pouco a pouco apertada.
— E quem recebe essa lista?
— Não sei ao certo. Sei que nós, as garotas, recebemos. Quem
mais recebe não sei.
Heyward parou, com os pensamentos se embaralhando numa
verdadeira convulsão. Afinal raciocinou: o que estava feito,
estava feito. Ele deveria estar satisfeito de já não mais constar
da lista agora, embora perguntasse a si mesmo, com uma ponta
de ciúme, quem ocuparia sua vaga. De qualquer maneira,
esperava que as cópias das listas antigas fossem sempre
cuidadosamente destruídas. Então, perguntou:
— Isso quer dizer que você não vai mais vir aqui me encontrar?
— Não; não é isso! Mas, se nos encontrássemos, seria por sua
conta, Rossie.
— E quanto isso me custaria?
Ao fazer a pergunta duvidava se era ele próprio que falava.
— É claro, querido, que você teria que pagar minha viagem
aérea e a despesa de hotel. E, só para mim, 200 dólares.
Heyward lembrou-se que várias vezes se perguntara quanto a
Supra-national estaria gastando em proveito dele. Agora sabia.
Pesou as coisas: a sensatez contra o desejo: sua consciência
contra o fato de que a única coisa que desejava era estar com
Avril. O dinheiro, é claro, era bem mais do que poderia gastar;
mas ele a desejava. Demais.
—Quando é que você poderia estar aqui — perguntou a ela.
—Terça-feira próxima.
—Antes, não?

—Receio que não, querido.
Ele sabia que estava agindo como um tolo, que entre hoje e
terça-feira outros homens estariam na fila, homens cujas
prioridades, quaisquer que fossem as razões, eram maiores que
as suas. Mas, de fato, não podia resistir e disse:

— Bem, então que seja terça-feira.
Combinaram de se encontrar no Colúmbia Hílton e que ela
telefonaria assim que chegasse.
Heyward começou a saborear de antemão a felicidade que o
esperava.
Lembrava-se, ao mesmo tempo, de outras coisas que teria de
fazer como, por exemplo, destruir os certificados das ações da
Q-Investments.
Ao descer do 36.° andar fez uso do elevador expresso que o
levava ao térreo, de onde atravessaria o túnel para chegar à
agência central do Banco. Gastou apenas alguns minutos até
chegar a seu cofre pessoal. Retirou os quatro certificados, cada
qual representando 500 ações. Levou-os de volta ao 36.° andar,
onde pretendia jogá-los, ele mesmo, numa máquina de triturar
papéis.
Mas, quando chegou ao escritório vieram-lhe outras idéias. A
última vez que ele conferira, as ações valiam 20 000 dólares.
Não estaria agindo com precipitação? Afinal, se fosse de fato
necessário, poderia destruir os certificados num gesto que não
levaria mais que dez minutos.
Assim, fechou-os numa gaveta de sua mesa, junto com outros
papéis estritamente pessoais.

12


A grande oportunidade para Miles chegou quando ele menos
esperava. Dois dias antes, frustrado e deprimido, convencera-
se de que todo seu esforço no Double-Seven Health Club só
produziria o resultado de imiscui-lo mais a fundo no mundo
da criminalidade. Asombrada prisão pesava terrivelmente
sobre ele. Miles contara a Juanita suas preocupações e
conquanto se sentisse aliviado por haver recuperado a
masculinidade, o pessimismo permanecia.
Encontrara-se sábado com Juanita. Segunda-feira, já tarde da
noite, no Double-Seven, Nate Nathanson, o gerente do clube,
mandou chamá-lo para que, como de hábito, ajudasse no
serviço de levar bebidas e sanduíches para os jogadores de
cartas e de dados no terceiro andar.
Quando Miles entrou no escritório do gerente, ali se
encontravam mais dois homens. Um era o agiota, Ominsky; o
outro era um homem pesado, forte, que Miles já vira várias
vezes no clube, e a quem todos se referiam como Tony Bear
Marino. O Bear (Urso) casava muito bem com sua aparência:
Marino era enorme de corpo, pesado, tinha movimentos lentos
mas que sugeriam uma selvageria dominada. Que ele
representava autoridade era evidente, pois todos os tratavam
com respeito. Chegava ao Double-Seven em sua limusine
Cadillac, acompanhado por um outro homem, além do
motorista, ambos com aparência de guarda-costas.
Nathanson parecia nervoso enquanto falava.

— Miles, contei ao Sr. Marino e ao Sr. Ominsky o quanto você
tem sido útil. Eles estão querendo que você lhes preste um
serviço...
Em tom seco. Ominsky cortou:

— Espere lá fora.
— Sim, Senhor. — Nathanson desapareceu.
Dirigindo-se a Miles, Ominsky disse:
—Um velho está no carro lá fora; os homens de Marino
ajudarão você. Traga-o para dentro e mantenha-o isolado de
qualquer pessoa. Leve-o para um dos quartos perto do seu e
tenha a certeza de que ele ficará sozinho. Não o deixe, a menos
que seja absolutamente necessário. Assim mesmo, quando
tiver que se ausentar por minutos, tranque a porta. Você vai
ser o responsável por ele. Se deixá-lo escapar...
—Mas, será preciso mantê-lo aqui à força? — indagou Miles inquieto.
— Não, não haverá necessidade de força.
— O velho sabe muito bem onde está pisando. Não provocará
nenhum barulho — disse-lhe Tony Bear. Para uma pessoa de
seu tamanho, sua voz era surpreendentemente em falsete. —
Por favor, não se esqueça de que, para nós, ele é muito
importante. Trate-o muito bem, mas não deixe que beba uma
gota de álcool. Será a primeira coisa que ele vai pedir. Não lhe
dê nada. Compreendeu?
— Acho que sim — disse Miles. — Por acaso, ele está
inconsciente?
—Está quase morto de bêbado. Ficou bebendo toda a semana
— disse Ominsky. — Sua tarefa é cuidar dele e deixar que
enxugue a carraspana. Enquanto ele estiver aqui, digamos três,
quatro dias, seus outros trabalhos ficam suspensos. — Depois
acrescentou: — Trate bem dele, com toda responsabilidade, e
será recompensado.
—Vou me esforçar — disse Miles. — E o velho tem um nome?
Tenho de chamá-lo de alguma coisa.
Os dois se entreolharam e Ominsky respondeu:

_Danny. É tudo que você precisa saber.
Poucos minutos depois, do lado de fora do Double-Seven, o
motorista cuspiu de desgosto na calçada e queixou-se:
_ Por Deus! Esse cara fede mais que um monte de bosta.
Os guarda-costas de Marino e Miles olhavam para a figura
inerte jogada no banco traseiro do carro. Abriram a porta.
_Vou tentar limpar esse cara — disse Miles, enquanto fazia
uma
careta involuntária ante o fedor insuportável de vômito que se
exalava.
_Antes de mais nada, precisamos tirá-lo daí.
Um dos guarda-costas gritou:
_ Porra! Vamos acabar com isto de uma vez.
Juntos, conseguiram carregar o velho. Na rua mal iluminada
tudo que se distinguia era um fardo, com um pouco de cabelo
grisalho, rosto com a barba por fazer, olhos fechados e uma
boca aberta mostrando gengivas desdentadas. As roupas do
bêbado estavam sujas e amarrotadas.


— Você acha que ele está morto? — perguntou o segundo
guarda-costas.
Neste momento, talvez pelo movimento que fizeram com ele, o
velho vomitou em cima de Miles. O motorista começou a rir.
— Ele não está morto; ainda não.
Miles também sentia tremendas ânsias de vômito, que se
esforçava por controlar.
Com a chave que trouxera, ele abriu a porta de um dos
cubículos, conforme as instruções que recebera. Era
semelhante ao que ele próprio habitava, tendo como móveis
uma cama de solteiro, uma cômoda, duas cadeiras, uma pia e
umas prateleiras. As paredes de madeira que formavam o
cubículo não iam até o teto. Miles olhou para dentro e disse aos
outros:
— Esperem aí.

Desceu ao ginásio e trouxe de lá um lençol de borracha
plástica, que colocou sobre a cama. Em seguida, deitaram o
velho inconsciente.

— Agora ele é todo seu, Milesy — disse o guarda-costas chofer.
— Vamos nos mandar daqui antes que eu também comece a
vomitar.
Dominando o mal-estar, Miles despiu o velho e, com ele ainda
sobre o lençol de borracha plástica, lavou-o com uma esponja.
Uma vez acabada a operação, levantou o corpo, movendo-o de
um lado para outro, e conseguiu remover o plástico, deixando
na cama uma figura já menos fedorenta e mais limpa.
Enquanto cuidava do velho, este gemeu dando a impressão de
que ia vomitar, mas não chegou a fazê-lo. Afinal, Miles cobriu-
o com um lençol e um cobertor e o bêbado deu a impressão de
estar descansando confortavelmente.
Pouco antes, enquanto o despia, Miles foi deixando que a
roupa suja se amontoasse no chão. Agora com o velho já
dormindo, pôs a roupa em dois sacos plásticos destinados à
lavanderia, à proporção que ia esvazindo os bolsos. Em um
deles, do paletó, encontrou a dentadura postiça.
Nos demais, vários objetos: pente, óculos, caneta de ouro e
lapiseira, várias chaves num chaveiro, e, num bolso interno,
três cartões de crédito Keycharge bem como uma carteira
recheada de dinheiro.
Miles lavou a dentadura postiça e colocou-a em um copo
d'água, ao lado da cama. Limpou os óculos, deixando-os
também à mão. Depois dedicou-se a examinar os cartões de
crédito e a carteira.
Os cartões eram emitidos a favor de Fred W. Riordan, R. K.
Ben-nett e Alfred Shaw. Cada cartão estava assinado no verso,
mas apesar dos nomes diferentes, a letra, em todos três, era a
mesma. Miles conferiu as datas de validade e constatou que os

três estavam devidamente em dia. Pelo que ele podia ver,
pareciam genuínos.
Voltou então a atenção para a carteira de dinheiro. Numa de
suas divisões estava uma licença estadual de motorista. O
plástico já estava amarelado e Miles, para melhor examiná-la,
tirou-o deste invólucro e constatou que, embaixo, haviam mais
duas licenças, cujos nomes correspondiam aos dos cartões de
crédito, mas a fotografia em todas as três licenças eram
idênticas. Examinando-as com cuidado, concluiu que, apesar
de certa diferença, as fotografias, sem dúvida, eram do velho
bêbado.
Miles contou o dinheiro, pois ia pedir a Nate Nathanson para
guardá-lo, bem como os cartões de crédito, no cofre do clube e
precisava saber o quanto lhe entregava. A soma era
inesperadamente elevada: 512 dólares, cerca de metade em
notas novas de 20 dólares. Essas notas gelaram seu sangue.
Examinou-as com cuidado, sentindo a textura do papel com as
pontas dos dedos. Então olhou o homem deitado e que parecia
dormir profundamente. Sem fazer barulho, Miles saiu,
atravessou o corredor e foi ao seu próprio cubículo. Voltou
segundos depois, com uma lupa de bolso com a qual examinou
cuidadosamente as notas. Sua intuição estava correta: eram
falsas, e idênticas às que comprara ali mesmo no Double-
Seven, há uma semana.
Miles raciocinou: o dinheiro ou, pelo menos parte dele, era
falso, bem como as licenças de motorista. Era provável que
tudo proviesse da mesma fonte, como sua própria licença,
dada por Jules LaRocca. Sendo assim, era quase certo que os
cartões de crédito Keycharge também fossem falsos. Talvez,
afinal, ele estivesse chegando perto da fonte dos cartões que
Wainwright tanto queria localizar. A excitação de Miles era
enorme; seu coração batia forte.


Ele precisava tomar algumas notas, pelo que copiou numa
toalha de papel os dados constantes nos cartões de crédito e
nas licenças de motorista, sempre se certificando de que o
homem dormia profundamente.
Em seguida, Miles desligou a luz, passou a chave na porta por
fora e levou a carteira e os cartões para guardar no cofre, no
andar térreo. Voltou e dormiu inquieto, com a porta do quarto
entreaberta, acordando várias vezes, consciente de sua
responsabilidade para com o ser imóvel que dormia do outro
lado do corredor. Antes de adormecer, ficou a imaginar qual
seria a identidade do velho Danny, que papel representaria em
toda aquela trama e quais as suas relações com Ominsky e
Tony Bear Marino.
Por que o tinham trazido? Tony Bear tinha dito: Ele é muito
importante para nós. Por quê?
Miles acordou ao raiar do dia e olhou o relógio: 6h45min.
Levantou-se lavou-se depressa, fez a barba e se vestiu. Do
corredor não vinha o mínimo ruído. Atravessou-o e abriu, com
a chave, a porta do cubículo de Danny. Este havia apenas
mudado de posição durante a noite, mas ainda dormia,
roncando. Miles pegou os sacos plásticos com a roupa suja,
chaveou outra vez a porta por fora, e desceu as escadas.
Retornou vinte minutos depois com uma bandeja com café,
torradas e ovos mexidos.
_ Danny! — Miles sacudia os ombros do velho. — Danny,
acorde!
Depois de várias tentativas sem êxito, afinal dois olhos
abriram-se, inspecionaram-no e logo se fecharam
—Vá embora, vá embora! Ainda não estou pronto para
enfrentar o mundo — resmungou o velho.
—Mas eu sou seu amigo. Tony Bear e Russo Ominsky me
disseram para cuidar de você — disse Miles.
Danny voltou a abrir os olhos.


—Então os filhos da puta me acharam, não é? É sempre assim.
Sempre me acham. — O rosto do velho contorcia-se de dor. —
Oh, Jesus! Que dor de cabeça!
—Eu lhe trouxe café. Vamos ver se ajuda. — Miles passou um
braço em volta dos ombros de Danny, ajudando-o a sentar-se e
serviu-lhe o café. O velho tomou um pouco, fazendo caretas.
De repente, ele pareceu despertar, tomar consciência de si e
disse para Miles:
—Ouça, meu filho, a única coisa que me ajudará é você me dar
uma dose. Pegue esse dinheiro... — Olhou em volta
procurando pela carteira.
—Seu dinheiro está guardado no cofre do clube. Levei-o lá
para baixo ontem à noite — disse Miles.
—Então estamos no Double-Seven?
—Estamos.


— Já me trouxeram para aqui, antes. Bem, agora você sabe que
posso pagar, meu filho, portanto dê um pulinho lá embaixo até
o bar...
Com firmeza, Miles respondeu:
— Nada disso. Para nenhum de nós.
— Você não se arrependerá. Dou-lhe, digamos, 40 dólares por
uma simples dose. Que tal? — Os olhos do velho chegaram a
adquirir certo brilho.
Lamento muito, Danny. Eu apenas cumpro ordens. — Miles
pesou bem o que iria dizer a seguir, depois resolveu correr o
risco. — E também, se eu usasse aquelas suas notas de vinte,
poderia ser preso.
Foi como se tivesse disparado uma metralhadora. Danny
levantou-se depressa, alarmado, com a desconfiança
estampada no rosto. . Quem disse que você pode... — seu
movimento fora rápido demais, ele fez uma careta e gemeu,
pondo a mão na cabeça, que doía.



—Alguém tinha que contar o dinheiro. Foi o que eu fiz. O
velho disse num tom de voz muito fraco:
—Mas são notas de vinte dólares, das boas.


— Claro que são. São as melhores que já vi. Quase tão boas
quanto as notas da própria Casa da Moeda dos Estados Unidos
— concordou Miles.
Danny olhou-o. Lutava entre a suspeita e a curiosidade, depois
disse:
—Como é que você sabe tanto?
—Antes de ir para a prisão trabalhei num banco.
Fez-se o mais profundo silêncio. Depois o velho perguntou:


— E por que foi para as grades?
— Desfalque. Estelionato. Agora estou sob liberdade
condicional. Danny sentiu-se visivelmente mais tranqüilo.
—Acho que você é dos bons. É. você deve ser legal. De outro
modo, não estaria trabalhando para Tony Bear e para o Russo.
—É isto mesmo, pode crer, sou legal. E o que tenho que fazer
agora é caprichar para que você se sinta bem. Neste exato
momento nós dois vamos para a sala de banhos turcos — disse-
lhe Miles.
—Não é bem de banho turco que eu preciso. O que preciso
mesmo é de uma dose. Uma só, filho — implorava Danny. —
Juro que será tudo. Não negue esse pequeno favor a um velho!
Não. antes acabe de suar tudo que já bebeu. O
velho murmurou:


— Você não tem coração! Nenhum coração!
De certa forma, era como cuidar de uma criança. Ignorando-lhe
os protestos. Miles envolveu-o num robe e levou-o à sala de
banhos turcos onde fez com que ele entrasse nas sucessivas
estufas, depois embrulhou-o numa toalha, e finalmente deitou-
o numa mesa e ele próprio lhe fez uma massagem
surpreendentemente boa. Era ainda muito cedo e o ginásio e as

salas de banho turco estavam desertas; poucos dos
empregados do clube haviam chegado. Sem ninguém mais à
vista, Miles levou o velho até o andar de cima.


Depois de fazer a cama com lençóis limpos, Miles obrigou
Danny a se deitar, o que ele fez sem reclamar, logo
adormecendo, mas agora já com outra aparência, tranqüila,
quase angelical. De um modo estranho, pois mal o conhecia,
Miles sentia certa simpatia por ele. Com o maior cuidado,
enquanto o velho dormia, Miles pôs uma toalha embaixo de
sua cabeça e lhe fez a barba.
Mais tarde, ainda de manhã, enquanto estava lendo em seu
cubículo, do outro lado do corredor, Miles acabou
adormecendo um pouco.


— Ei, Milesy! Garoto, levante o rabo! — A voz áspera, era de
Jules LaRocca.
Miles acordou e levantou-se imediatamente olhando para a
figura familiar parada à entrada de sua porta. As mãos de
Miles procuravam a chave do cubículo onde se encontrava
Danny e felizmente ela estava no mesmo lugar.
_ Trouxe umas roupas para esse velho traste — disse LaRocca,
mostrando uma pequena maleta de plástico. — Ominsky me
disse para entregar a você.
LaRocca, o mensageiro de sempre.
_ Está bem. — Miles foi até a pia e lavou o rosto com água fria.
Depois, seguindo o outro abriu a porta do cubículo do outro
lado do corredor. Quando entraram, Danny estava sentado na
cama, ainda macilento, mas parecia melhor do que quando
chegara. Pusera a dentadura e
os óculos.
— Seu velho inútil! Sempre dando trabalho aos outros! — disse
LaRocca.
Danny endireitou mais o corpo, enquanto olhava seu acusador
com desgosto.

— Tanto você quanto os demais sabem que eu posso ser tudo,
menos inútil. Se trouxe minhas roupas, faça o que lhe
mandaram e pendure-as para mim — disse Danny.
LaRocca sorriu:
—Parece que você está começando a se animar, seu nojento.
Acho que Milesy cuidou bem de você.
—Jules, você pode ficar aqui um momento enquanto eu vou lá
embaixo apanhar uma lâmpada infravermelha? Acho que fará
bem a Danny.
—Claro, meu chapa.
—Antes, quero falar com você.
Miles fez um gesto com a cabeça e LaRocca seguiu-o para fora
do cubículo.
Falando baixo, Miles perguntou:
— Jules, afinal do que se trata? Quem vem a ser este velho?
— Apenas um bêbado. De vez em quando escapole e entra
numa verdadeira orgia. Então, alguém tem que encontrá-lo, e
fazer que gaste todo o álcool que bebeu.
— Por quê? E de onde é que ele escapole?
LaRocca parou um pouco, e seus olhos cheios de desconfiança
examinaram Miles.
— Você anda fazendo muitas perguntas, garoto. Que lhe
disseram Tony Bear e Ominsky?
— Nada, exceto que o nome do velho é Danny.
Se eles quiseram dizer mais alguma coisa, eles que digam. Não
eu.
Quando LaRocca se foi, Miles ligou a lâmpada infravermelha e
deixou Danny embaixo dela por meia hora. Durante o resto do
dia. o velho ormia e acordava. De noitinha Miles trouxe-lhe o
jantar e Danny comeu quase tudo, fazendo sua primeira
refeição de fato desde que chegara há 24 horas. Na manhã
seguinte, quarta-feira, Miles repetiu o tratamento de o turco e



lâmpada de infravermelho e'. mais tarde, os dois jogaram
xadrez. O velho tinha um raciocínio rápido e o jogo entre os
dois teve lances interessantes. Nesta altura, Danny parecia
demonstrar que estava cordial e relaxado, demonstrando
também que gostava da companhia de Miles.
Durante a segunda tarde, Danny perguntou:

— Ontem, aquele cretino do LaRocca disse que você conhece
tudo a respeito de dinheiro.
— Ele gosta de dizer isto a todo mundo.
E Miles explicou-lhe sua mania e referiu-se ao interesse que
isso provocara entre seus companheiros de prisão.
Danny fez mais algumas perguntas, depois disse:


— Se você não se incomoda, gostaria de recuperar meu
dinheiro
agora.
—Vou buscá-lo. Mas, me desculpe, tenho que trancá-lo por
fora, mais uma vez.
—Se você está preocupado com a bebida, descanse. Já venci a
crise. Uma interrupção como essa resolve tudo. Talvez agora
eu leve meses sem tocar numa gota de álcool outra vez.
—Assim é que se fala! — Miles trancou a porta pelo lado de
fora, por precaução.
Uma vez de posse de seu dinheiro, Danny espalhou-o sobre a
cama, depois dividiu-o em dois montes. As notas novas de 20
dólares estavam de um lado; o resto, notas mais velhas, do
outro. Do segundo grupo ele separou três notas de dez dólares
e passou-as para Miles.


— Isto é para você, Miles, por ter pensado em pequenas coisas
que representam muito, filho, como cuidar dos meus dentes,
fazer minha barba, trazer a lâmpada. Fico-lhe grato pelo que
fez.
— Escute, você não precisa fazer isso.

— Por favor, aceite. E, a propósito, estas são legítimas. Agora
diga-me uma coisa.
—Se eu puder, digo.
—Como é que você conseguiu perceber que aquelas notas de 20
eram feitas em casa?
—Logo de cara não percebi. Mas usando uma lupa, algumas
das linhas na fotografia de Andrew Jackson parecem um pouco
borradas.
Danny concordou.


—Esta é a diferença entre uma gravação feita em aço, como usa


o Governo, e uma simples placa de fotografia em offset. Mesmo
assim, um impressor que trabalhe bem com offset pode chegar
quase a igualar o trabalho do Governo.
—Neste caso, ele conseguiu; em certas partes da nota as linhas
estão quase perfeitas — disse Miles.
O rosto do velho parecia adquirir mais vida.


— E o que me diz do papel?
— Me enganou por completo. Em geral, a gente conhece uma
nota
falsa apenas pelo tato. Mas não estas.
Danny então disse-lhe baixinho e cheio de orgulho:


— É exatamente o tipo apropriado. As pessoas pensam que não
se pode conseguir o papel adequado. Mas não é verdade. Não,
se a gente
sabe onde procurar.
— Se você está tão interessado no assunto, tenho alguns livros
no meu quarto, todos sobre moedas e notas. Tenho até um
publicado pelo próprio Serviço Secreto dos Estados Unidos —
disse Miles.
— Você se refere a Know Your Money? (Conheça Seu Dinheiro) —


Vendo o olhar de surpresa de Miles, o velho riu. — Esse livro é
a própria bíblia dos falsificadores. Diz onde você deve olhar
para ver se identifica uma nota falsa. Diz todos os erros que os
falsificadores cometem. Mostra até fotografias!

— É isso mesmo, eu sei — disse Miles.
Danny continuava a rir.
— Veja só! É o,próprio Governo que imprime tal livro. Tudo
que você precisa fazer é escrever a Washington... e eles
mandam pelo correio, diretamente, para o contraventor. Foi
um falsificador chamado Mike Landress quem escreveu o
livro, no qual, aliás, ele diz que Know Your Money é algo sem o
qual nenhum falsificador poderia passar.
— Mas Landress foi apanhado — lembrou Miles.
— Porque trabalhava com um bando de idiotas; ele não tinha
nenhuma espécie de organização.
— Você parece saber um bocado a respeito do assunto.
— Um pouco. — Danny parou, pegou uma das notas boas, uma
das notas falsas e comparou-as. A comparação o satisfez e ele
sorriu. — Você sabia, filho, que o dinheiro dos Estados Unidos
é o mais fácil de copiar? Na realidade, foi desenhado de modo
que os gravadores do século passado não o pudessem
reproduzir com as ferramentas de que então dispunham. Mas,
desde aqueles dias muitas máquinas novas foram inventadas e
novas offset, de modo que, hoje em dia, com um bom equipamento,
paciência e habilidade um homem entendido no
assunto pode apresentar um trabalho que só os especialistas
são capazes de descobrir.
— E isso que tenho ouvido; mas a quanto monta o total, Danny?
— perguntou Miles.
Vou lhe dizer uma coisa. — Danny parecia divertir-se ao falar
sobre seu tema favorito. — Ninguém sabe ao certo qual o
montante de


dinheiro falso feito cada ano, que passa despercebido, mas na
verdade é um monte. O Governo diz que é cerca de 30 milhões
de dólares, dos quais apenas dez por cento entra em
circulação. Mas isso são números a os pelo Governo. A única
coisa que qualquer pessoa pode ter certeza a respeito de
qualquer Governo é que ele usa os números da maneira que
mais lhe convém, aumentando-os ou diminuindo-os, conforme
seus interesses. Neste caso ele quer que não pareça tanto.
Minha impressão é, para cada ano, 70 milhões em notas, talvez
até mais, chegando perto de um bilhão de dólares.

— É, acho que é bem possível — disse Miles.
Lembrava-se da quantidade de dinheiro localizado no FMA e
pensava em quantas outras notas lhe teriam passado
despercebidas.
—Mas você sabe qual é o dinheiro mais difícil de imitar?
—Não, não sei.
—São os cheques de viagem da American Express. E sabe por
quê? Miles disse que não.


—Porque são impressos em cyan-blue, o que torna quase
impossível fotografar em placa de offset. Ninguém, com um
mínimo de conhecimento, se daria ao trabalho de perder tempo
tentando falsificar um cheque de viagem American Express;
assim, eles são a coisa mais segura, muito mais do que o
dinheiro americano.
—Existem certos rumores de que vai ser lançado novo
dinheiro, novas notas, com cores específicas para calores
diferentes, como se faz no Canadá — disse Miles.
—Não são apenas rumores, são fatos. E muitas cédulas
coloridas nessas novas cores já foram impressas e estão
armazenadas no Tesouro. Essas serão mais difíceis ainda de
copiar. Mas o dinheiro antigo ainda vai circular durante muito


tempo. Talvez por tanto tempo quanto eu — disse Danny


sorrindo maquiavelicamente.
Miles manteve-se calado, assimilando tudo que acabara de
ouvir. Depois, devagar, disse:
—Você me faz perguntas, Danny, e eu respondo. Agora eu é
que vou lhe fazer umas.
—Não lhe asseguro que vá responder, filho, mas vou tentar.
—Quem é você e o que faz?
O velho pensou, passou a mão pelo queixo e olhou para Miles.
Seus pensamentos transpareciam-lhe no rosto: debatia-se entre
a vontade de ser franco e o receio de ser imprudente. Seu
orgulho se misturava ao desejo de manter-se discreto. De
repente Danny decidiu-se.


— Tenho 73 anos de idade e sou um artífice-mestre. Fui
impressor durante toda minha vida, e, nisto, sou um
verdadeiro artista. Ainda sou o melhor que existe. Na
realidade, o que faço é uma arte. — Ele indicou com o dedo as
notas de 20 dólares espalhadas em cima da cama. — São
trabalho meu. Fiz as placas e as imprimi.
Miles perguntou:
—E as licenças de motorista, e os cartões de crédito?
—Comparado com a impressão de dinheiro, licenças e cartões
são coisas tão fáceis quanto fazer xixi num barril. Mesmo
assim, fáceis, fui eu sim, fui eu que fiz tudo.
13


Uma febre de impaciência dominava Miles; ele não podia mais
esperar a oportunidade de comunicar-se com Juanita, para que


ela transmitisse a Nolan Wainwright as descobertas que fizera.
Mas era impossível sair do Double-Seven, e o risco de
transmitir pelo telefone do Clube uma informação desse teor
era demasiado grande.
Na quinta-feira pela manhã, quando tudo lhe revelara, Danny
mostrava-se recuperado da embriaguez e apreciando de fato a
companhia de Miles, bem como as partidas de xadrez que
disputavam.
Se, pelo menos, Danny partir... mas, mesmo que pudesse,
mostrava-se, pelo menos no momento, satisfeito naquela
reclusão num cubículo do quarto andar do Health Club,
gozando a companhia de Miles.
Durante suas últimas conversas, quarta e quinta-feira, este
tentara obter mais detalhes a respeito das atividades do
falsário e, mesmo, onde eram feitas as falsificações. Mas Danny
evitou o assunto e o instinto de Miles lhe dizia que o velho já se
arrependera da franqueza anterior. Lembrando-se do conselho
de Wainwright, não se apresse, tenha paciência, decidiu não forçar a
barra.
Apesar da excitação, um certo pensamento o deprimia. Tudo o
que descobrira resultaria na prisão de Danny, a quem ele
passara a estimar e tinha pena do que lhe viria a acontecer. Em
contrapartida, tinha que pensar em si mesmo, em sua única
oportunidade de reabilitação.
Ominsky e Marino estavam ambos envolvidos com Danny sem
que Miles soubesse com exatidão de que maneira. Mas, no que
se referia aos dois, ele só sentia medo de que algum dia
viessem a descobrir, como poderia ocorrer, seu papel de
espião.
Ao fim da tarde de quinta-feira Jules LaRocca apareceu e disse
a Danny:

— Tenho um recado do Tonny. Ele vai trazer um carro para
você amanhã cedo.

Danny concordou, mas foi Miles quem perguntou:

— Para levá-lo aonde?
Tanto Danny quanto LaRocca olharam-no sem responder, e
Miles percebeu que errara mais uma vez.
Naquela mesma noite, decidindo-se a correr um certo risco,
Miles telefonou a Juanita. Depois de ter fechado Danny em seu
cubículo, um pouco antes de meia-noite, desceu e usou um
telefone público, instalado no andar térreo do clube. Pôs a
moeda, discou e Juanita atendeu logo.
Era um telefone de parede, localizado perto do bar, e Miles
falou baixinho, para que não pudesse ser ouvido.
— Sabe quem está falando. Não use nomes.
— Certo — disse Juanita.
— Comunique ao nosso amigo que descobri coisas muito
importantes. Importantíssimas. Tudo que ele queria saber. Não
posso falar mais. Amanhã à noite irei aí.
— Está bem.
Miles desligou e, ao mesmo tempo, também se desligou um
gravador instalado no porão do clube que começara a
funcionar quando o fone fora tirado do suporte.
14


Alguns versículos do Génese, como uma espécie de propaganda
subliminar, atravessavam a cabeça de Roscoe Heyward a
intervalos: Comei de todos os frutos das arvores do Paraíso. Mas
não comei do fruto da árvore da ciência do Bem e do Mal. Porque em
qualquer tempo que dele comerdes, certamente morrereis.


Nestes últimos dias, ele perguntava-se, preocupado: teria seu
caso com Avril, ilegal e pecaminoso, que tivera início naquela
memorável noite de luar nas Bahamas, se transformado na
árvore da ciência do Bem e do Mal? E os fatos adversos de
agora, como a derrocada da SuNatCo, que liquidaria suas
pretensões no Banco, não seriam uma prova do castigo divino?
Por outro lado. Heyward pensava: se cortasse todos os laços
com Avril imediatamente, expulsando-a de seus pensamentos,
poderia Deus perdoá-lo? Poderia ele restaurar a força da
Supranational e. assim, dar mais uma oportunidade a Seu
servo? E Neemias lhe vinha à memória... Sois um Deus sempre
pronto a perdoar, cheio de graça e compaixão e de grande caridade...

Heyward acreditava que Ele pudesse...
Mas não tinha certeza.
Contra a hipótese do afastamento de Avril estava o fato de que
ela chegaria terça-feira, como haviam combinado. E, acima de
toda sua confusão de sentimentos e da diversidade de
problemas, ele a desejava. Precisava estar com ela.
Segunda-feira e na manhã de terça, vacilou, sabendo que podia
telefonar para Nova Yorque e cancelar o encontro. Mas a meio-
dia, conhecedor dos horários dos aviões, chegou à conclusão
de que era tarde demais e ficou satisfeito por não mais dispor
de tempo para tomar qualquer decisão em contrário.
Ao final da tarde Avril telefonou para seu número direto, que
não constava da lista telefônica.

— Alô Rossie! Já estou no hotel; suíte 432. O champanha já está
gelado... e eu já estou quente.
Heyward pensou que poderia ter sugerido um quarto e não
uma suíte, já que agora as despesas corriam por sua conta e
também que champanha era desnecessário; não passava de
uma extravagância. Encarou a possibilidade de mandar


suspender a bebida. Mas, pensando bem, julgou ser uma
deselegância.

— Já, já, estarei aí, minha querida — respondeu ele.
Para fazer economia, pediu o carro do Banco, dando ao
motorista o endereço do Hotel Colúmbia Hilton e. ao chegar,
disse a este:
— Não precisa esperar.
Quando entrou na suíte 432, imediatamente os braços de Avril
envolveram-lhe o pescoço, e seus lábios cheios e famintos
buscaram os dele. Roscoe apertou-a contra si, e sentiu o corpo
reagir imediatamente com aquela excitação e aquele desejo que
ele viera a conhecer e a ansiar. Por cima das calças, sentia as
pernas longas e macias de Avril, movendo-se de um lado para
outro, provocando, prometendo, até que todo ele se resumia a
uns poucos centímetros de seu corpo. Após vários minutos.
Avril descolou-se dele tocando-lhe o rosto e afastou-se.
— Rossie, por que não resolvemos desde já a parte comercial?
Depois disso poderemos relaxar e não nos preocuparmos mais.
Aquelas maneiras práticas surpreenderam Roscoe. que pensou:
"Teria acontecido sempre assim, primeiro dinheiro, depois
prazer?" Achava que sim. De fato, um freguês, se deixado para
depois, com o apetite satisfeito e pressa de ir embora, poderia
não se sentir inclinado a pagar.
— Está bem.
E Roscoe pôs os 200 dólares num envelope, que entregou a
Avril. Ela tirou o dinheiro e começou a contá-lo. Roscoe
perguntou-lhe:
— Você não confia?
Deixe que eu lhe faça uma pergunta — retrucou a moça. —
Supondo que eu levasse dinheiro para fazer um depósito em
seu banco, alguém não o contaria?
— Certamente que sim.

— Bem. Rossie, as pessoas têm tanto direito quanto os bancos
de cuidarem de si mesmas. — Ela acabou de contar e disse: —
Estes são os meus 200 dólares. Falta ainda minha passagem
aérea, o táxi, que soma 120; o preço da suíte é 85; e o
champanha, mais a gorjeta, 25. Digamos então que você me
deve 230 dólares. Assim, as despesas estariam todas cobertas.
Chocado pelo total, ele protestou:
—É um bocado de dinheiro!
— Mas eu sou um bocado de mulher. E isto não é mais do que a
Supranational me pagava. Depois, quem quer o melhor tem
que pagar caro.
Sua voz era fria. num tom que ele jamais ouvira naquela
criatura sempre pronta a agradar. Com relutância, Heyward
tirou da carteira mais 230 dólares, entregando-os a Avril.
Ela guardou tudo numa divisão interna de sua bolsa.


— Agora sim! Acabou a parte comercial; podemos nos dedicar
ao amor.
Avril voltou-se para ele e beijou-o da maneira mais ardente,
enquanto passava de leve os dedos compridos e finos no seu
cabelo. O desejo dele, que por um breve momento havia
esfriado, voltou a pleno vapor.
— Rossie, querido — murmurou Avril — quando você entrou
me pareceu um pouco cansado. E preocupado.
— De fato. Ultimamente tenho enfrentado alguns problemas no
Banco.
— Então vamos relaxar. Antes tomaremos um pouco de
champanha, depois você me possuirá.
Com a habilidade proverbial, ela abriu a garrafa que estava
num balde de gelo e serviu duas taças. Beberam juntos e desta
vez Heyward sequer mencionou o fato de ser abstêmio. Pouco
depois, Avril começou a despir-se, e ele também.
Quando foram para cama ela foi a mesma de sempre,
ajudando-o, encorajando-o...

— Oh Rossie! Você é tão grande e tão forte!... Você é tão
macho!... Vá com calma, querido; devagar meu anjo... Assim
você nos leva. a ambos, até o paraíso... Se isso pudesse durar
para sempre!
A habilidade de Avril não se resumia apenas em excitá-lo
fisicamente, mas em fazê-lo mais homem do que ele jamais se
sentira. Nunca, em suas relações íntimas, débeis, com Beatrice,
tão insossas, ele sonhara que existisse uma sensação como a
que sentia agora, e uma realização, que viria em seguida, tão
completa e tão absoluta.
— Está chegando a hora, Rossie... Quando você estiver
pronto... Sim, meu amor! Oh, sim por favor, agora!
Roscoe pensava que, talvez, certas atitudes ou reações de
Avril, fossem pura encenação. Suspeitava, mas isso não o
interessava. O que, de fato, contava era a sensualidade
profunda, rica que, através dela, ele descobrira em si mesmo.
O crescendo passou. E ficaria para sempre, Roscoe pensava,
como mais uma lembrança inesquecível. Agora estavam
sentados langorosamente na cama, enquanto lá fora a noite se
tornava escura e as luzes da cidade piscavam. Avril foi a
primeira a levantar-se. Saiu do quarto em direção à sala,
voltando com duas taças de champanha que ambos beberam
sentados na cama, conversando.
Após um certo tempo Avril disse:
— Rossie, preciso lhe pedir um conselho.
— Com referência a quê? — indagou ele, julgando tratar-se de
qualquer confidência feminina.
— Você acha que eu deveria vender minhas ações da
Supranational? Surpreendido, ele perguntou:
— Você tem muitas?
— Quinhentas. Sei que para você isto não é nada. mas para
mim
corresponde a um terço de todas as minhas economias.

Rapidamente Roscoe calculou que o que Avril chamava de
"economias'* eram aproximadamente sete vezes mais do que as
suas próprias.

— Mas o que sabe você sobre a SuNatCo? Por que me fez esta
pergunta?
— Um dos motivos é que cortaram as despesas dos seus
divertimentos. Também me disseram que estão com pouco
dinheiro e que não estão pagando contas. Algumas de nós
foram aconselhadas a vender as ações
que tivessem. Eu ainda não vendi as minhas porque estão
valendo bem menos do que quando as comprei.
— Você já perguntou a Quartermain?
— Ninguém consegue vê-lo ultimamente. Moonbeam... você se
lembra dela?
— Claro. — Heyward até se lembrava de que Big George
oferecera a ele a linda e estranha garota japonesa.
— Moonbeam disse que George partiu para Costa Rica e pode
ficar lá muito tempo. E me disse que ele vendeu um monte de
suas ações da SuNatCo antes de partir.
"Oh Deus! Por que não se lembrar de procurar Avril como
fonte de informação semanas atrás?" pensou Roscoe. Ela
suspirou.
— É duro perder dinheiro. Mais duro ainda do que economizálo.
— Minha querida, você acaba de pronunciar uma verdade
fundamental nos círculos financeiros.
Fez-se um silêncio, então Avril disse:
— Eu sempre vou pensar em você como uma boa pessoa,
Rossie.
— Obrigado. Eu também pensarei em você de um modo muito
especial.
Ela chegou-se a ele e disse:
— Vamos brincar um pouco mais?

Roscoe fechou os olhos de prazer, enquanto Avril o acariciava.
Ele bem sabia que se tratava de uma profissional. E, naquele
momento, percebeu que ambos se tinham dado conta de que
esta seria a última vez que se encontrariam. Primeiro, pelo
lado financeiro, pois ele próprio não poderia arcar com Avril.
Mas, afora isso, ambos sentiam que acontecimentos futuros,
mudanças iminentes, uma crise que se aproximava, acabariam
com seu relacionamento. Quem poderia saber exatamente o
que viria a acontecer?
Antes de fazerem amor mais uma vez, Roscoe lembrou-se da
sua preocupação sobre a cólera de Deus. Bem, talvez Deus — o
Pai de Cristo, d'Aquele que assumiu toda a fraqueza humana,
que tudo perdoou, que andou e falou com pecadores e acabou
morrendo entre ladrões — pudesse compreender.
Compreender e perdoar a seguinte verdade: na vida de Roscoe
Heyward os poucos momentos de felicidade haviam sido
passados em companhia de uma prostituta.
Ao deixar o hotel, Heyward comprou um vespertino que trazia uma
manchete de duas colunas, bem ao centro da primeira página, que
atraíra sua atenção:

SUPRANATIONAL CORPORATION INQUIETA A TÉ QUE
PONTO VAI A SOLVÊNCIA DESSE GIGANTE?

15


Ninguém sabia ao certo o que, na realidade, fora o estopim do colapso
da Supranational. Talvez um simples incidente, ou o excesso
de compromissos e investimentos, provocando alterações graduais
nos balanços, uma falta de equilíbrio. Tal como uma pressão


demasiado forte nas colunas que sustentam uma laje de repente faz
que o telhado inteiro ou o prédio todo venha abaixo.
Como em todos os casos de derrocada financeira de uma
companhia muito importante e muito conhecida, sinais isolados de
fraqueza já eram perceptíveis há semanas e meses. Mas apenas
observadores mais atentos, estudiosos, como Lewis D'Orsey, os
percebiam e comunicavam a clientes ou a alguns amigos.
Os que estavam perfeitamente a par da situação, isto é, os que faziam
parte ÜO conglomerado — incluindo Big George Quartermain
que, conforme se soube mais tarde, vendera a maioria de suas ações
da Su-NatCo através de testas-de-ferro quando estavam em alta —
souberam livrar-se do desastre e foram vendendo suas ações em
lances mais altos. Outros, aconselhados por especialistas ou por
amigos que queriam retribuir um favor, tomaram conhecimento da
informação e discretamente foram fazendo o mesmo.
Depois destes, vinham alguns, como Alex Vandervoort que, agindo
em nome do First Mercantile American Bank, graças a informações
exclusivas, logo tratou de livrar-se de todas as ações da SuNatCo, na
esperança de que, na confusão, nada fosse investigado. Outras
instituições — bancos comerciais, bancos de investimento,
corretoras, fundos — vendo o preço das ações se alterar e
observando que muita gente bem informada estava vendendo,
pesaram bem as circunstâncias e seguiram o exemplo.
Mas existem leis federais contra a troca interna de ações entre pessoas
da mesma organização — no papel. Na prática, essas leis eram
infringidas diariamente e suas penalidades nunca aplicadas. Vez
por outra, num caso flagrante, para impor um certo respeito, fazia-
se uma acusação e aplicava-se uma penalidade insignificante. Mas
mesmo isto era raro.
O investidor individual, o grande público, o público inocente,
esperançoso, confiante, sofredor, era, como sempre, o último a
saber que alguma coisa andava errada.


A primeira divulgação pública das dificuldades da SuNatCo
foi um comunicado da AP. reproduzido nos vespertinos, o
mesmo que Heyward leu ao deixar o Colúmbia Hílton. Na
manhã seguinte, outros comentários foram publicados pela
imprensa e repetidos em artigos nos jornais do dia seguinte,
incluindo The Wall Street Journal. Mesmo assim eram resumidos,
e muita gente custava a acreditar que uma empresa,
aparentemente tão sólida, como a Supranational Corporation
pudesse, de fato. estar enfrentando dificuldades.
Mas às 10 horas da manhã de certo dia. na Bolsa de Valores de
Nova Iorque, as ações da Supranational não foram a pregão, ao
lado das demais. A razão apresentada foi a existência de um
certo desequilíbrio. Na realidade.isso significava que o
operador que lidava com a SuNatCo estava tão assoberbado de
ordens de "venda" que não podia manter um mínimo de
disciplina nessas operações.
Por volta das 11 horas o mercado da SuNatCo foi reaberto com
uma grande ordem de "compra" de 52 000 ações. Mas, a essa
altura as ações, que estavam a 48,5 cada uma. há um mês.
tinham caído para 19. A cotação de fechamento foi de 10.
Era quase certo que a Bolsa de Valores de Nova Iorque viesse a
suspender suas operações com a SuNatCo no dia seguinte mas.
durante a noite, a decisão foi tirada de suas mãos. The
Securities and Exchange Commission anunciou que estava
investigando os negócios da empresa e que enquanto tal
investigação não fosse completada, as transações com aquelas
ações ficariam suspensas.
Decorreram 15 dias de grande ansiedade para os acionistas e
credores da SuNatCo. cujos investimentos e empréstimos
totalizavam cinco bilhões de dólares. Entre estes — nervosos,
preocupados e roendo as unhas — encontravam-se os
executivos e diretores do First Mercantile American Bank.


Contra as esperanças de Alex Vandervoot e Jerome Patterton, a
Supranational não se agüentou por muitos meses. Assim, havia
a possibilidade de que as últimas transações efetuadas com as
suas ações, incluindo a venda maciça por parte do FMA
viessem a ser revogadas. Isso poderia acontecer — ou por
ordem do SEC, após uma queixa, ou pelos compradores de
ações, acusando o FMA de. tendo conhecimento real da situação,
não os terem avisado, quando as ações foram a venda. Em
qualquer dos dois casos, isto representaria uma perda ainda
maior para os clientes Urust clients do que podiam ter esperado
e o próprio Banco seria provavelmente acusado de abuso de
confiança.
Ainda existia uma outra possibilidade a ser enfrentada e. esta,
mais provável: o empréstimo de 50 milhões de dólares feito
pelo FMA à SuNatCo se tornaria proscrito, isto é, cancelado, o
que representaria perda total. Se isto acontecesse, pela
primeira vez em sua história, o FMA sofreria um prejuízo
substancial durante o ano. E trazia a possibilidade de que os
próximos dividendos a seus acionistas viessem a ser
suspensos, o que também seria um caso inédito.
Os responsáveis pelo Banco viviam, pois, entre a depressão e a
incerteza.

Vandervoort previra que, quando o caso da Supranational se
tornasse conhecido, a imprensa iniciaria investigações e o First
Mercantile American Bank seria envolvido. Dava isto como
certo.

Os repórteres, que nos anos recentes tinham sido motivados
pelo exemplo de Bernstein e Woodward — os heróis do
Washington Post que descobriram o caso Watergate — entraram
de rijo. E viram seus esforços coroados de êxito. Durante
vários dias, obtiveram informações dentro e fora da
Supranational, e começaram mesmo a surgir dados referentes


tanto ao próprio Quartermain. à sua habilidade quase,
diríamos, de pres-tigitador, como em relação à contabilidade
fantasma do conglomerado.

Os débitos elevadíssimos da SuNatCo foram divulgados,
incluindo o empréstimo feito pelo FMA de 50 milhões de
dólares.
Quando o noticiário Dow Jones fez a primeira referência da
ligação entre o FMA e a Supranational, o chefe de relações
públicas do Banco, Dick French, convocou uma reunião
urgente. Dela participaram Jerome Patterton. Roscoe
Heyward, Alex Vandervoort e o próprio Dick French, com o
seu charuto apagado de sempre, pendendo da boca.

Formavam um grupo extremamente sério e preocupado:
Patterton melancólico, macambúzio, como se mostrava há dias;
Heyward fatigado, alheado, evidenciando tensão
nervosa:Alextransmitindo em suas atitudes a raiva por ter sido
envolvido num desastre que ele previra e que poderia não ter
ocorrido.

— Dentro de uma hora, talvez menos — disse French — vou
ser acossado para dar detalhes das nossas transações com a
SuNatCo. Portanto, preciso saber de vocês qual vai ser nossa
atitude oficial e que espécie de respostas devo dar.
Patterton indagou:

— Mas, temos alguma obrigação de dar explicações?
— Não — disse French. — Mas também ninguém é obrigado a
cometer haraquiri.
— Por que não admitir apenas que a Supranational tem um
débito para conosco, e parar aí? — sugeriu Roscoe Heyward.
— Porque não estamos lidando com simplórios; só por isso.'
Algumas das pessoas que me interrogarão serão repórteres
experientes, especializados em assuntos financeiros, e com
grande conhecimento da legislação bancária. Portanto, a

pergunta imediata seria: E como é que o FMA aceitou um
compromisso tão grande, usando o dinheiro dos depositantes,
para com um único devedor?


Não era um único devedor. O empréstimo estava distribuído
entre a Supranational e cinco de suas subsidiárias —
respondeu Heyward.

— Preciso dizer-lhes que. seja qual for a declaração que tenha
que fazer, terei de me forçar, me violentar para fingir que
acredito nela — disse French. Tirou o charuto da boca e pegou
um bloco e um lápis. — Bem. agora dêem-me os detalhes. Tudo
virá à tona, mas será pior se tornarmos o assunto mais
doloroso ainda.
— Antes de prosseguirmos — disse Heyward — quero lembrarlhes
que o FM A não foi o único banco a quem a Supranational
deve dinheiro. Deve também ao First National City e ao Bank
of America e Chase Manhattan.
— Mas todos eles dirigiam consórcios, e assim os prejuízos
serão divididos com outras organizações bancárias. Pelo que
sabemos, o nosso Banco é o que tem o maior compromisso
individual — disse Alex.
Julgou desnecessário acrescentar que ele alertara a todos,
incluindo a diretoria de que tal concentração de risco era
perigosa e possivelmente ilegal. Silenciou a esse respeito, mas
seus pensamentos continuavam amargos.
Afinal minutaram uma declaração reconhecendo que o FM A
estava envolvido a fundo com a Supranational. Transparecia
na declaração uma certa esperança de que o conglomerado
pudesse ser reformulado, talvez com uma nova administração,
pela qual o FMA se bateria, o que, talvez, diminuísse o
montante dos prejuízos. Mas era apenas uma vaga esperança e
todos reconheciam isso.
Dick French ficou com autoridade e liberdade suficientes para
ampliar a declaração se o julgasse necessário. Estabeleceu-se
também que apenas ele falaria em nome do Banco.
— A imprensa tentará entrar em contato com todos vocês,
individualmente. Se querem que a história seja uma só e

consistente, respondam sempre que procurem a mim, e avisem
a todos os seus funcionários para que façam o mesmo —
alertou French.
Naquele mesmo dia Alex Vandervoort reviu os planos de
emergência que estabelecera, para serem usados em caso de
emergência.


— Existe qualquer coisa de mórbido na atenção que desperta
em todo mundo um banco em dificuldades — declarou Edwina
D'Orsey.
Ela estava folheando os jornais no escritório de Alex
Vandervoort. Era no dia seguinte àquele em que Dick French
fizera suas declarações à imprensa.
O Times-Register, dedicou ao assunto uma página:
BANCO LOCAL ENFRENTA GRANDE PREJUÍZO EM
CONSEQUÊNCIA DA RUÍNA DA SUNATCO
De forma mais discreta, o New York Times informou a seus
leitores:

FMA: SÓLIDO APESAR DOS PESADOS ENCARGOS DOS EM


PRÉSTIMOS
O assunto também fora mencionado nos noticiários em cadeia
da televisão na parte da manhã.
De todos os noticiários constava uma declaração feita pelo
Federal Reserve de que, sendo o FMA solvente seus
depositantes não tinham motivo para alarme. Mas. na
realidade, o FMA constava agora do "listão" do Federal
Reserve e exatamente nesta manhã um grupos de auditores
daquele órgão tinha entrado calma e tranqüilamente no Banco,
dando início a uma série de inspeções a serem estendidas às
suas agências.
Tom Straughan, o economista do Banco, respondeu à
observação de Edwina.


— Não é nada de mórbido ou de doentio que excita, que
provoca a atenção do povo, quando um banco está em perigo.
Creio que, na realidade, o maior motivo é o medo. Medo entre
aqueles que têm conta no banco, de que este seja forçado a
interromper suas atividades, prejudicando seus clientes. E o
medo ainda maior de que, se um banco falir, outros sigam seu
caminho e sobrevenha o desastre total e o sistema financeiro
caia aos pedaços.
— O que eu temo é o efeito da publicidade — disse Edwina.
— Eu também não me sinto nada à vontade. Por isso é que
vamos continuar alertas para ver quais os resultados dessa
crise — concordou Alex Vandervoort.
Este convocara uma reunião para o meio-dia. Entre os
presentes estavam os chefes de departamento responsáveis
pela administração das agências, pois todos sabiam que
qualquer desconfiança do público logo se faria através das
agências do Banco. Tom Strauhgan. há pouco, comentara que
as retiradas da tarde anterior e da manhã haviam sido acima
do normal e os depósitos abaixo do normal, embora ainda
fosse cedo para um julgamento definitivo. Por outro lado, não
havia sinal de pânico entre os clientes do banco, mas os
gerentes das 84 agências do FMA tinham instruções para
comunicar imediatamente à matriz qualquer alteração. Um
banco sobrevive de sua reputação e confiança dos outros; é
planta muito frágil, a quem a adversidade e a má publicidade
podem matar.
Um dos objetivos da reunião de hoje fora assegurar que as
providências a serem tomadas, em caso de uma crise repentina,
fossem compreendidas por todos e que o sistema de
comunicação estabelecido funcionasse da maneira devida.
Todos pareciam perfeitamente instruídos.


— Por enquanto, é tudo. Teremos outra reunião amanhã, à
mesma hora — disse Alex para o grupo.
Mas esta reunião não ocorreu.
Às 10hl5min da manhã seguinte, sexta-feira, o gerente da
agência de Tylersville, a cerca de 25 quilômetros ao norte do
Estado, telefonou para o escritório central e sua ligação foi
logo transferida para Alex Vandervoort.
Alex perguntou:


— Qual é o problema?
—Uma corrida, Senhor. Minha agência está cheia de gente —
mais
de uma centena de nossos clientes habituais, em fila, com
cadernetas e talões de cheques. E a cada instante, chega mais
gente. Estão retirando tudo, limpando as contas, fechando-as,
pedindo até o último centavo. — A voz do gerente era a de um
homem alarmado, tentando manter-se calmo.
Alex sentiu-se gelar. Uma corrida num banco constituía um
pesadelo que qualquer banqueiro temia. Na realidade, era o
que o próprio Alex e outros mais temiam nestes últimos dias.
Uma corrida implicava pânico por parte do público, em
histeria coletiva, na perda total de fé. Pior ainda, tão logo se
propalasse a notícia de uma corrida em apenas uma agência, o
rumor se espalharia através de todo o sistema, como fogo na
palha, impossível de apagar, tornando-se uma catástrofe.
Nenhuma instituição bancária, mesmo as maiores e mais
sólidas, jamais conseguira ter liquidez suficiente para
reembolsar a maioria de seus depositantes de uma só vez.
Assim, se a corrida persistisse, as reservas em dinheiro seriam
exauridas e o FMA obrigado a fechar as portas, talvez para
sempre.



Isto já ocorrera a outros bancos. Bastava uma combinação de
má administração, falta de timing e pouca sorte. Poderia voltar
a acontecer em qualquer lugar, a qualquer banco.
O essencial agora, Alex sabia, era assegurar aos clientes que
queriam sacar essa possibilidade. Em segundo lugar, localizar

o estouro.
— Fergus, você e todos os empregados têm de agir como se
nada demais estivesse acontecendo. Pague, sem qualquer espécie
de pergunta, tudo quanto as pessoas queiram retirar e que
tenham, de fato, em suas contas. E não deixe transparecer
qualquer preocupação. Finja, mas tente parecer jovial.
— Não será nada fácil, Senhor. Mas tentarei.
— Faça mais que tentar. Neste exato momento o FMA está sobre
seus ombros.
— Compreendo, Senhor.
— Você receberá ajuda o mais depressa possível. Qual é sua
posição de caixa?
— Em cofre, temos cerca de 150 000 dólares. Do modo que as
coisas estão correndo, acho que poderemos nos agüentar por
mais uma hora, não muito mais — respondeu o gerente.
— Não se preocupe, você receberá dinheiro de alguma fora —
assegurou Alex. — Até lá, retire o dinheiro que tem em cofre e
empilhe as notas em mesas onde todo mundo possa vê-las.
Então, caminhe entre os clientes; fale com eles; assegure-lhes
que o Banco está em excelente estado, apesar daquilo que
possam ter lido. Afinal, assegure-lhes que todos receberão seu
dinheiro.
Alex desligou. Imediatamente telefonou para Straughan.
— Tom, a catástrofe começou em Tylersville. A agência precisa
de nossa ajuda e de dinheiro imediatamente. Ponha logo o Plano
de Emergencia Número Um em ação.

16


A muncipalidade de Tylersville, como tantos seres humanos,
estava tentando "firmar-se". Na realidade, era um subúrbio
recente, misto de cidade movimentada e de zona rural, agora
parcialmente engolida pela cidade usurpadora. Embora
conservasse alguns de seus traços originais, sua população era
um misto do antigo e do moderno: agricultores conservadores
ali radicados e famílias de comerciantes que, desgostosos com
a decadência dos valores morais da cidade, tinham vindo à
procura de hábitos e costumes mais pacíficos já banidos dos
grandes centros. Como resultado, Tylersville era uma aliança
heterogênea de verdadeiros habitantes do campo e de pessoas
que aspiravam a isso, todos reagindo contra negócios e
iniciativas ao estilo dos grandes centros, incluindo as agências
bancárias.
No caso da corrida à agência local do FMA, foi um carteiro
boateiro quem espalhou a notícia. Durante a quinta-feira,
enquanto fazia as entregas postais, ia logo indagando a cada
um dos destinatários:

— Já soube que o First Mercantile Bank vai quebrar? Andam
dizendo por aí que quem tenha dinheiro lá e não o retirar até
amanhã, vai perder até o último níquel.
Poucos levaram a sério o boato, no momento. Mas a história
foi-se espalhando, reforçada pelos repórteres, incluindo o
noticiário da televisão, à noite. E de um dia para o outro, entre
os agricultores, os comerciantes e os novos residentes a
ansiedade cresceu a tal ponto que na manhã de sexta-feira a
opinião geral era: por que arriscar? Vamos retirar nosso
dinheiro agora.
Uma cidade pequena tem sua espécie de telégrafo sem fio. As
decisões circulam depressa e, por volta do meio-dia, uma parte
cada vez maior da população se dirigiu para a agência local do

FMA. E assim, de pequenos fios, que são tecidos os grandes
tapetes.

No escritório central do FMA as poucas pessoas que mal
conheciam Tylersville estavam agora completamente
familiarizadas com aquela comunidade. E viriam a conhecê-la
ainda mais, à medida que o Plano de Emergência Número Um
de Alex Vandervoort tentava controlar os acontecimentos que
ali se precipitavam.
Segundo instruções de Tom Straughan, o computador do
Banco foi consultado. Um programador bateu a pergunta no
teclado: quais são os totais de depósitos e de retiradas na
Agência de Tylersville? A resposta foi instantânea, pois aquela
agência estava ligada ao computador.

Cadernetas de Poupança —$26,170,627.54
Depósitos —$15,042,767.18


Total —$41,213,394.72
O computador foi então instruído: deduza deste total uma
parte para as contas não-movimentadas e os depósitos
municipais. (Era quase certo que nem um nem outro desses
itens seria atingido, mesmo numa corrida.)
Veio a resposta:
Contas não-movimentadas e depósitos municipais


—$21,430,964.61

S a l d o —$19,782,430.11
Vinte milhões de dólares mais ou menos, que os depositantes
na área de Tylersville poderiam provavelmente retirar.
Um assessor de Straughan já alertara o cofre-forte central,
espécie de fortaleza subterrânea sob o edifício da matriz. O
supervisor deste cofre logo confirmou:

— Vinte milhões de dólares para a Agência de Tylersville,
imediatamente.

Esta importância excedia um pouco a que poderia ser
necessária. Mas o objetivo, conforme os planos de Alex, era dar
uma prova de força, conforme suas próprias palavras:
"Quando quiser exterminar um incêndio, certifique-se de que
tem mais água do que possa vir a necessitar".
Nas últimas 48 horas, levando em conta o que agora ocorria, o
suprimento normal de dinheiro no cofre central tinha sido
aumentado por meio de retiradas especiais do Federal Reserve,

o qual tinha aprovado os planos de emergência.
Uma verdadeira fortuna em notas e moedas, já contadas e
guardadas em sacos rotulados, estava sendo transportada para
os caminhões blindados, enquanto um grupo de guardas
armados patrulhava a esteira de carga. No total, seriam seis
caminhões blindados, alguns convocados pelo rádio e
retirados de outros afazeres. Cada um deles viajaria separadamente,
com a proteção da polícia, precaução necessária devido
à vultosa quantia transportada. Na realidade, apenas três
caminhões levavam dinheiro; os demais estavam vazios,
constituindo mais uma proteção contra assaltos.
Vinte minutos depois do aviso dado pelo gerente da agência, o
primeiro caminhão blindado preparava-se para deixar o
escritório central e logo após atravessava o tráfego do centro
da cidade, em direção a Tylersville.
Antes disso, já outros funcionários do Banco para lá se
encaminhavam em carros particulares.
Edwina D'Orsey ia à frente, como a encarregada da operação
de apoio.
Ela deixou seu posto na Agência Central logo depois de haver
determinado que seu primeiro assistente selecionasse três
funcionários para acompanhá-la, a saber: um encarregado de
empréstimos e dois caixas, alem de Cliff Castleman. Um dos
caixas escolhido foi Juanita Núñez.


Na mesma ocasião, determinou-se que alguns funcionários de
duas outras agências se dirigissem para Tylersville, onde
ficariam sob as ordens de Edwina. Parte da estratégia consistia
em não desguarnecer uma

só agência, para que todas estivessem aptas a enfrentar
qualquer corrida que pudesse ocorrer. Neste caso, já se
encontravam prontos outros planos de emergência, havendo
ainda limite para o total de prováveis corridas a serem
contornadas de uma só vez. A conclusão era de que não
poderiam contornar mais que duas ou três.

O quarteto encabeçado por Edwina movia-se depressa
atravessando o túnel que ligava a Agência Central ao escritório
da Matriz. Lá chegando tomaram um elevador que levou-os
diretamente à garagem do Banco, onde já lhes esperava um
carro, dirigido por Cliff Castleman.
Enquanto entravam no carro, cruzaram com Nolan Wainwright
que se encaminhava às pressas para seu próprio Mustang.
Informado sobre a operação de Tyíersville, envolvendo 20
milhões de dólares em espécie, ele tomou sob sua
responsabilidade pessoal a segurança do transporte. Seguindo-
o, estaria uma camioneta com meia dúzia de guardas de segurança,
armados. A polícia local e estadual, em Tyíersville, já
havia sido alertada.
Tando Alex Vandervoort quanto Tom Straughan
permaneceram na matriz do FM A. O escritório de Straughan,
perto do Centro de Operações Financeiras tornara-se posto de
comando. A preocupação de Alex era controlar o resto do
sistema da agência, tomando conhecimento imediato de
qualquer confusão que surgisse.

Ele mantinha Patterton informado de tudo. Agora enquanto
aguardavam com ansiedade o desenrolar dos acontecimentos,
ambos faziam perguntas irrespondíveis. A situação em


Tyíersville seria controlada? Poderia o FM A atravessar aquele
dia sem que surgissem corridas em outras agências?
Fergus W. Gatwick, gerente da Agência de Tyíersville,
esperava que os poucos anos que lhe faltavam para a
aposentadoria passassem sem pressa e de maneira uniforme.
Ele já andava pelos sessenta anos, apresentando uma figura
saudável, bochechas rosadas, olhos azuis, cabelo branco.
Rotariano convicto, em sua mocidade chegara a conhecer a ambição,
mas logo a esquecera, decidindo que o seu papel na vida
seria sempre o de um seguidor, nunca o de um líder. Gerenciar
uma pequena agência bancária estava exatamente dentro da
sua competência e limitações.

Tinha sido feliz em Tyíersville, onde apenas uma crise alterara
sua irresponsável atuação. Anos atrás, uma mulher, julgando-
se prejudicada pelo FMA, alugara naquela agência um cofre
individual, no qual guardou um objeto embrulhado em jornal,
partindo em seguida para a Europa, sem deixar endereço.
Após alguns dias, um cheiro pútrido invadiu a agência. Os
encanamentos de esgoto foram vistoriados, sem apresentarem

o menor defeito. Mas o mau cheiro aumentava. Os clientes
queixavam-se; os empregados sentiam-se nauseados. Afinal, a
fonte do fedor, sempre crescente, foi localizada no setor dos
cofres individuais, o que fez surgir a questão crucial: qual
deles?
E coube a Fergus W. Gatwick, por força do cargo, cheirar um
por um até certificar-se de qual vinha o mau cheiro. Quatro
dias foram necessários até que a -burocracia legal concedesse
autorização para que o Banco pudesse mandar abrir aquele
cofre. Mesmo agora, ao lembrar-se do episódio, Gatwick ainda
sentia o fedor horripilante do peixe que a mulher guardara no
cofre.
Mas a emergência de hoje, ele sabia, era muito mais séria do
que um peixe podre encerrado num cofre. Conferiu o relógio:


decorrera uma hora e dez minutos desde que telefonara ao
escritório central. Mesmo com quatro caixas fazendo
pagamentos sem interrupção, o número de pessoas que se
acumulavam dentro e fora do Banco aumentava a cada
instante, enquanto a ajuda da matriz tardava.

— Sr. Gatwick! — chamou uma voz feminina.
— Sim? — Ele dirigiu-se à caixa que o chamara.
Do outro lado do balcão, frente aos dois, encabeçando a fila
estava um avicultor, cliente da agência, e que Gatwick
conhecia bem. O gerente dirigiu-se a ele com amabilidade:
— Bom dia, Steve.
Em troca recebeu um frio cumprimento de cabeça ao mesmo
tempo em que a caixa lhe mostrava os cheques apresentados
pelo cliente, totalizando 23.000 dólares.
— Estes são bons — disse Gatwick ao rubricá-los. Em
voz baixa, porém audível, a caixa disse:
— Não temos esse dinheiro todo para pagar.
Gatwick sabia disso, é claro. As retiradas, desde o início do
dia, tinham sido contínuas e vultosas. Mas o comentário fora
inoportuno. As pessoas que estavam na fila começaram a
murmurar, zangadas, e a declaração da caixa era repetida de
um para outro.
— Você ouviu isto! Eles dizem que não têm dinheiro!
— Meu Deus do céu! — o granjeiro inclinou-se para a frente,
com o punho batendo no balcão. — Pois é melhor que você
pague estes cheques, Gatwick, ou eu quebro este banco em
pedaços.
— Não há necessidade de nada disso, Steve. Nem para ameaças
ou gritos. — Fergus W. Gatwick elevou a voz, tentando ser
ouvido no meio do tumulto. — Senhoras e senhores, estamos
passando por uma temporária falta de caixa devido a retiradas
excepcionais, mas posso assegurar-lhes que um monte de
dinheiro está a caminho e chegará em seguida.

Em meio aos protestos, suas últimas palavras não foram
ouvidas.

— Como é que um banco fica sem dinheiro?... Pois arranje-o
agora!... Chega de papo furado! Onde é que está a grana?...
Ficaremos acampados aqui até que paguem tudo que devem.
Gatwick levantou as mãos e falou em voz alta:
Mais uma vez posso lhes dar a certeza...
— Não estou interessado em suas afirmações idiotas. — Quem
falava agora era uma mulher bem vestida, que o gerente
reconhecia como nova residente. Ela insistia: — Quero meu
dinheiro, e agora.
— É isso mesmo! — disse um homem atrás dela. — É o que nós
todos queremos.
Mais gente foi surgindo, as vozes tornaram-se mais altas, as
faces revelaram raiva e alarma. Alguém jogou uma maço de
cigarros que atingiu Gatwick no rosto. Ele se perguntou como
um grupo comum de cidadãos, muitos dos quais conhecia bem,
tinham-se transformado numa multidão hostil. Era o dinheiro,
claro: o dinheiro que faz coisas estranhas aos seres humanos,
tornando-os gananciosos, levando-os ao pânico, e, às vezes,
transformando-os em desumanos. E havia também um
tremendo e genuíno medo: a possibilidade que alguns
anteviam de perder tudo que tinham, juntamente com a
segurança. Violência, coisa que há poucos minutos parecia
remota, agora parecia próxima. Pela primeira vez em muitos
anos Gatwick sentiu medo físico.
— Por favor! — ele implorava. — Por favor, ouçam!
Mas sua voz perdia-se no tumulto crescente.
De repente, o clamor cessou. Parecia que alguma coisa se
passava do lado de fora, na rua. Logo todas as portas do banco
se abriram de para a par e uma verdadeira procissão entrou.
Edwina DOrsey liderava-a, seguida por Cliff Castleman e as
duas jovens caixas, uma das quais era a figura pequena de

Juanita Núfiez. Atrás, vinha uma fila de guardas de segurança,
carregando nos ombros fortes sacos de lona, escoltados por
outros guardas armados. Cerca de meia dúzia de outros
funcionários também chegaram de outras agências. Entre eles,

o vigilante e cauteloso Nolan Wainwright.
Edwina falou alto à multidão que lotava a agência e que se
tornara menos barulhenta.
— Bom dia, Sr. Gatwick. Lamentamos a demora, mas o tráfego
estava horrível. Creio que irá precisar de 20 milhões de
dólares: Um terço desse montante veio conosco, o resto está a
caminho.
Enquanto Edwina falava, Cliff Castleman, Juanita, os guardas
e os funcionários começaram a trabalhar. Pouco depois,
cédulas eram separadas e distribuídas aos caixas.
A multidão que se comprimia na agência ficou em volta de
Edwina. Alguém perguntou:
— É verdade? Vocês têm mesmo dinheiro para pagar a todos?
— Claro que sim! — Ela levantou a cabeça e falou em voz alta:
— Sou a Sra. D'Orsey, vice-presidente do First Mercantile
Bank. Apesar de quaisquer rumores que os senhores possam
ter ouvido, nosso Banco é sólido, solvente, e não tem nenhum
problema insolúvel. Temos grandes reservas de caixa para
pagar qualquer depositante em Tylersville ou em qualquer
outra parte.
A mulher bem vestida que protestara antes, disse:
— Talvez seja verdade, mas pode ser que a senhora só esteja dizendo
isso na esperança de que acreditemos. Seja lá como for,
quero o meu dinheiro agora.
— É o seu direito — retrucou Edwina.
Fergus W. Gatwick sentia-se aliviado por não ser mais o foco
da atenção. Percebia que a anterior atmosfera pesada havia
melhorado; já se viam até sorrisos entre os que esperavam
receber dinheiro. A tensão diminuíra, mas o objetivo



permanecia. Os pagamentos continuaram rápidos e eficientes.
No entanto estava claro que a corrida ao Banco não fora
sustada.
Como verdadeiros legionários de César os guardas e toda a
escolta, que haviam voltado para os carros blindados,
entraram mais uma vez trazendo outra provisão de sacos de
dinheiro.
Quem estivesse naquele dia na agência do FM A de Tylersville
jamais se esqueceria das imensas importâncias em dinheiro
mostradas ao público. Mesmo os funcionários do Banco nunca
tinham visto tanto dinheiro junto de uma só vez. Seguindo
instruções de Edwina, conforme o plano de Alex, a maior parte
dos 20 milhões de dólares trazidos para enfrentar a corrida
estava bem à vista. Em todas as mesas acumulavam-se grandes
montes de cédulas e moedas, enquanto funcionários de outras
agências ajudavam a contar e a separar os valores.
Como Nolan Wainwright disse mais tarde, a operação inteira
fora o que se poderia chamar de "o sonho de um assaltante de
banco e o pesadelo de um homem da segurança". Por sorte, se
os assaltantes fossem informados do que ocorria, o saberiam
tarde demais.
Com sua proverbial competência Edwina supervisionava tudo,
auxiliada por Gatwick.
Foi ela quem instruiu Cliff Castleman para oferecer
empréstimos aos clientes.
Pouco antes do meio-dia, com a agência ainda cheia e uma
enorme fila lá fora, Castleman subiu numa cadeira para ser
melhor visto e ouvido.

— Senhoras e senhores — falou ele — permitam que me
apresente: sou um funcionário encarregado de empréstimos da
agência central, o que não significa muito a não ser que tenho
autoridade para aprovar empréstimos acima dos que são
normalmente transacionados nesta agência. Assim, se alguns

dos senhores estiver pretendendo um empréstimo e desejar
uma resposta rápida, esta é a hora certa. Gosto de ouvir o que
os outros têm a dizer e ajudo-os a resolver seus problemas. O
Sr. Gatwick, ocupado em outro setor, deixou-me usar sua
mesa, onde estarei a partir de agora. Espero que os
interessados venham falar comigo.
Um homem com a perna engessada gritou:

— Vou já procurá-lo, tão logo receba meu dinheiro. Acho que,
se o banco vai falir, será uma boa oportunidade de fazer um
empréstimo. Assim eu nunca teria de que pagá-lo.
— Nada vai fracassar ou falir aqui — disse Cliff Castleman. E
perguntou ao homem:
O que aconteceu com sua perna?
— Tropecei no escuro.
Pelo que acaba de dizer, o senhor permanece no escuro. O
Banco esta em melhor situação do que qualquer um de nós. E
ainda mais, se pedir dinheiro emprestado terá que pagá-lo ou
nós é que lhe quebraremos a outra perna.
Quando Castleman desceu da cadeira, algumas pessoas
sorriam e, a seguir, um pequeno número delas dirigiu-se a ele
a fim de discutir empréstimos. Porém as retiradas
continuavam. O pânico passara mas parecia que nada, nem
uma mostra de força, nem a declaração de que tudo estava bem
ou a psicologia aplicada — cessariam a corrida.
Na parte da tarde, ainda cedo. os responsáveis pelo FMA e até
seus empregados se faziam apenas uma pergunta: Quanto
tempo levaria para que o vírus se espalhasse?
Alex Vandervoort, que já telefonara várias vezes para Edwina,
partiu ele próprio para Tylersville ao meio-dia. Encontrava-se
mais alarmado agora do que pela manhã, quando sentira uma
certa esperança de que a corrida pudesse ser sustada com
rapidez. O prosseguimento significava que durante o fim de


semana o pânico entre os depositantes se espalharia, e as
demais agências do FMA por certo estariam inundadas de
gente segunda-feira pela manhã. No momento, embora as
retiradas em algumas agências fossem bem elevadas, nada se
comparava com a de Tylersville. Mas, claro, ele tinha que
esperar o pior.

Alex foi para Tylersville no carro do Banco e Margot acompanhou-
o. Ela terminara um caso no tribunal mais cedo do que
esperava e fora ao Banco para almoçarem juntos. Aceitando a
sugestão dele resolvera ficar, partilhando das tensões que
todos sentiam no 36° andar do FMA.

No carro, Alex recostou-se bem, aproveitando o intervalo de
relaxamento, que bem sabia ser de curta duração.

— Este ano foi duro para você — disse Margot.
— A tensão está assim tão visível?
Margot chegou-se a ele e passou o indicador por sua fronte,
com suavidade:
— Mais algumas linhas aqui. E seu cabelo está ficando grisalho
nas têmporas.
Ele fez uma careta.

— Também, querida, estou mais velho.
— Não tão velho.
— É o preço que pagamos por termos que viver sob pressões.
Você também vive sob pressões, Bracken.
— É mesmo. O que importa, no entanto, é saber quais as
pressões importantes e cujo preço merece ser pago... o preço
pago através do que damos de cada um de nós.
— Acho que salvar um banco merece alguma tensão pessoal.
Neste momento, se não conseguirmos salvar o nosso, muita
gente será atingida, pessoas que nada têm a ver com isso —
disse Alex com firmeza.
— E os que têm a ver?

— Numa operação de salvamento a gente tenta salvar todo o
mundo.
Metade do trajeto a Tylersville já fora percorrido.
— Alex, as coisas estão realmente tão negras?
— Se tivermos mais uma corrida incontrolável na segunda-
feira, teremos que fechar. Um consórcio de outros bancos
talvez se reúna para fazer um lance, após o que eles pegariam o
que porventura ainda tivéssemos e. com o tempo, creio que
todos os depositantes receberiam seu
dinheiro. Mas o FMA. como entidade, estaria acabado.
— A coisa mais incrível é como tudo aconteceu tão de repente
—disse Margot.
— Ocorre que as pessoas que deveriam entender do assunto
nada entendem — respondeu Alex. — Os bancos e o sistema
monetário, que representam grandes dívidas e grandes
empréstimos, são como uma máquina delicada. Brinque com
ela, deixe que apenas uma de suas partes fique fora do
necessário equilíbrio, devido a ganância ou a política, ou por
pura estupidez, e você põe em perigo todas as outras peças. E
uma vez enguiçada a máquina, o sistema todo, ou um banco
apenas, o boato vai-se espalhando como sempre acontece. Com
isso, a confiança do público vai diminuindo e faz o resto. É ao
que estamos assistindo agora.
— Pelo que você me contou, e por outras coisas que ouvi. a
ganância foi a única razão para o que está ocorrendo no seu
banco — disse Margot.
Alex respondeu com amargura:
— Existe uma elevada percentagem de idiotas em nossa
diretoria. Ele estava sendo franco como nunca o fora. mas, ao
falar, sentiu-se
mais aliviado.
Fez-se um silêncio, até que Alex exclamou:

— Meu Deus! Como sinto falta dele!
— De quem?
— De Ben Rosselli. Margot segurou-
lhe a mão.
— Esta sua operação de salvamento, não seria exatamente o
que Ben teria feito?
— Talvez — Alex suspirou. — Só que não está dando certo. Por
isso. é que gostaria de que Ben estivesse aqui.
O motorista abaixou o vidro divisório entre seu banco e a parte
traseira do carro. Por cima do ombro, dirigiu-se a Alex:
— Estamos chegando à Tylersville, Senhor.
— Boa sorte, Alex — disse Margot.
Alguns quarteirões antes de chegar à agência do Banco eles já
podiam ver uma fila de gente esperando do lado de fora. E a
fila aumentava sempre. Quando a limusine estacionou, uma
camioneta também parou do outro lado da rua, dela saindo
vários homens e uma moça. Na carroceria do veículo, em
grandes letras, estava pintado: WTLC-TV.


— Jesus Cristo! — exclamou Alex. — Ainda mais esta!
No interior da agência, enquanto Margot olhava em volta com
curiosidade, Alex inteirou-se por Edwina e Gatwick que pouco
ou quase nada havia a fazer. Alex deu-se conta de que sua
viagem fora inútil mas. de qualquer maneira, um impulso o
dirigira. Além do mais, não prejudicaria e talvez pudesse
prestar alguma colaboração, como, por exemplo, conversando
com algumas pessoas que esperavam na fila. Dirigiu-se para lá
e de vez em quando parava para se apresentar aos clientes.
Ele calculou que a fila devia ter. pelo menos. 200 pessoas,
bastante gente para um lugar pequeno com Tylersville.
Juntavam-se ali velhos, moços, gente de meia-idade; alguns
bem vestidos, outros não; mulheres com crianças, homens com
roupas de trabalho e alguns vestidos com roupas



domingueiras. A maioria recebeu-o com cordialidade, outros
não, e um ou dois lhe foram abertamente hostis. Alex sentia
que quase todos aparentavam um certo nervosismo. Os que
saíam, após receberem seu dinheiro, mostravam-se mais
aliviados. Uma mulher idosa, ignorando que ele fazia parte do
Banco, disse-lhe:

— Graças a Deus, o pesadelo acabou! Foi o dia mais
angustiante que passei em toda minha vida! Aqui está tudo
que tenho, todas as minhas economias. — E mostrava na mão
cerca de uma dúzia de notas de 50 dólares. Outros saíam com
importâncias maiores ou menores.
A impressão que todos transmitiam a Alex era a mesma: talvez

o FM A fosse ainda sólido, talvez não fosse. Mas ninguém
queria arriscar seu dinheiro numa instituição que poderia
entrar em colapso. A publicidade ligando o FMA à Suprational
era o motivo básico. Todos sabiam que o First Mercantile
American Bank estava arriscado a perder uma soma fabulosa,
pois ele próprio o admitira. O resto eram detalhes. Ninguém
acreditava quando Alex mencionava que o Federal Deposit
Insurance ajudaria o Banco; ninguém confiava nisso. Alguns
até mencionavam que os fundos do seguro federal eram
limitados, e que os recursos do FDIC seriam insuficientes para
enfrentar qualquer falência maior.
E havia mais ainda, Alex bem o percebia, um aspecto mais
profundo: o povo não mais acreditava no que lhe era dito, pois
fora enganado e iludido demasiadas vezes. Nos últimos anos,

o próprio presidente da República, altas autoridades, políticos,
homens de negócios, da indústria, todos haviam mentido ao
povo. Os empresários e os sindicatos haviam mentido ao povo.
A propaganda mentia ao povo. Os próprios relatórios das
corretoras sobre títulos e valores, os relatórios das companhias
de auditoria, toda espécie de transação financeira eram

mentiras para o povo. O povo era enganado muitas vezes pelos
meios de comunicação através de declarações tendenciosas ou
omissas. A lista de mentiras era interminável. As decepções
acumulavam-se umas sobre as outras até que a mentira, a
destorção, a omissão em dizer a verdade transformara-se em
um modo de viver.
Então, por que iria alguém acreditar quando Alex assegurava
que o FMA não era um navio naufragando e que o dinheiro dos
depositantes.
se eles lá o deixassem, estava garantido? À medida que o
tempo corria, tornava-se claro que ninguém acreditava mais
em nada.
Ao final da tarde, Alex já se resignara. O que tinha que ser
seria; tanto para as pessoas quanto para as instituições.
Concluía que há um ponto em que o inevitável tem que ser
aceito. Foi exatamente quando ele já se resignara, mais ou
menos às 5h30min que Nolan Wainwright veio comunicar-lhe
que havia uma nova preocupação por parte dos que esperavam.


— As pessoas estão ficando preocupadas, porque o expediente
encerra-se às 18 horas; estão com medo de que nesses 30
minutos nem todos possam ser atendidos.
Alex pensou que seria simples fechar a agência no horário
normal, medida legal contra a qual ninguém poderia objetar.
Sentiu um impulso, nascido da raiva, frustação e do desejo de
vingança de dizer aos que esperavam na fila: vocês negaram-se a
acreditar em mim, pois então que fiquem suando até segunda-feira, e
aos diabos com todos! Mas dominou-se ao lembrar que Margot
lhe perguntara se o que ele estava fazendo seria o mesmo que
Ben Rosselli faria. Alex indagou-se a respeito da atitude que
Ben tomaria quanto ao horário do encerramento do expediente.
Mas, no fundo, bem o sabia.

— Vou fazer uma declaração — respondeu ele a Wainwright.
Antes, procurou por Edwina e deu-lhe certas instruções.
Depois, dirigindo-se à porta principal, falou em voz alta para
ser ouvido não só pelas pessoas que estavam dentro da agência
como também por aquelas que se encontravam na fila, do lado
de fora. Sabia que as câmaras de televisão o focalizavam. Outra
emissora achava-se a postos e há uma hora atrás ele dera uma
declaração a ambas. Mas o pessoal das TVs não se retirara. Um
dos repórteres dissera mesmo que estava colhendo excelente
material que daria assunto para o fim de semana inteiro,
mesmo porque "uma corrida em banco não acontece todos os
dias".
— Senhoras e senhores — a voz de Alex se fez ouvir, forte e
clara.
— Acabo de saber que alguns dos presentes estão preocupados
a respeito
do nosso horário de encerramento. Não precisam se preocupar.
Em nome
da gerência do Banco, dou-lhes minha palavra de que
permaneceremos
abertos ao público, aqui em Tylersville, até que todos tenham
sido atendidos.
Houve um murmúrio de satisfação e até mesmo algumas
palmas.

— No entanto, quero chamar a atenção de todos para um fato
— acrescentou ele. Mais uma vez os presentes ficaram quietos
e atentos. — Recomendo a todos que, durante o fim de semana,
não guardem grandes importâncias em suas casas. Não seria
uma medida prática, mas perigosa em muitos aspectos. Por
isso, recomendo que cada um escolha outro banco qualquer e
deposite lá o dinheiro que retirar daqui. Para isto. minha
colega, Sra. D'Orsey, está telefonando a outros bancos da área.

Perguntando se concordariam em manter-se abertos até mais
tarde, a fim de atender a todos.
Mais uma vez fez-se ouvir um murmúrio de satisfação.
Wainwright aproximou-se e disse ao ouvido de Alex:


— Dois bancos já concordaram com o nosso pedido. Outros
estão sendo consultados.
Entre os que esperavam na fila externa, um homem perguntou
bem
alto:
— O Senhor pode recomendar um bom banco?
— Claro. A minha própria sugestão seria o First Mercantile
American Bank. É o banco que conheço melhor, que me inspira
a maior confiança, pois sua ficha vem sendo, há longos anos,
limpa e honrada. Gostaria que todos os senhores pensassem da
mesma maneira.
Pela primeira vez sentiu-se na voz de Alex uma certa emoção.
Algumas das pessoas riram, outras sorriram um tanto
emocionadas, mas a grande maioria não se manifestou.
— Eu também já pensei assim — disse uma voz.
Alex voltou-se. Quem falara fora um velho, entre 70 e 80 anos
de idade, encarquilhado, com cabelos brancos e apoiado numa
bengala. Mas tinha os olhos vivos, inteligentes, penetrantes e a
voz firme. Acompanhava-o uma senhora da mesma idade.
Ambos estavam vestidos decentemente, embora suas roupas
fossem fora de moda e muito usadas. A mulher segurava uma
sacola de compras, na qual se podiam ver vários pacotes de
dinheiro. Acabavam de ser atendidos pelo caixa.
— Minha mulher e eu temos uma conta neste banco há mais de
30 anos. Não me sinto muito à vontade em retirar o dinheiro
daqui — disse o velho.
— Então por que o senhor o retirou?
— Porque a gente não pode ignorar esses rumores. É fumaça
demais para que não haja fogo em algum lugar.

— Existe alguma verdade e nós já a admitimos — disse Alex. —
Devido a um empréstimo que fizemos à Supranational
Corporation, nosso Banco poderá vir a sofrer um enorme
prejuízo. Mas, por maior que seja. podemos enfrentá-lo!
O homem respondeu:

— Se eu fosse mais jovem e ainda tivesse um emprego, talvez
me arriscasse. Mas o meu tempo já passou. O que está aqui — e
apontou para a sacola de compras — é tudo que temos até o dia
de nossa morte. Não é muito. Hoje em dia o dinheiro não dura
o que durava antes e já não se compra tanto quanto se
comprava.
— Isto é verdade — disse Alex — a inflação atinge gente boa
como o senhor da pior maneira. Mas infelizmente, o simples
trocar de banco não vai lhe ajudar em nada.
— Deixe que eu lhe faça uma pergunta, meu jovem. Se o senhor
fosse eu e isto aqui fosse todo seu dinheiro no mundo, tomaria
a mesma atitude que acabo de tomar?
Alex sentia que todos o olhavam, aguardando o que
responderia, inclusive Margot e mais algumas pessoas
conhecidas. Ao lado, as câmaras de TV o filmavam. Um
repórter aproximou dele um microfone.
—Sim, acho que tomaria — admitiu Alex.
O velho mostrou surpresa:
—O senhor, pelo menos, é honesto. Há pouco ouvi um
conselho que nos deu para depositarmos nosso dinheiro em
outro banco e reconheço que foi uma boa idéia. Acho que nós
vamos à agência de outro banco e depositamos lá nosso
dinheiro, seguindo seu conselho.
—Espere. O Senhor está de carro? — perguntou Alex.


— Não, mas moro pertinho daqui. Vamos a pé.
—Não com todo este dinheiro na mão poderiam ser assaltados.

Providenciarei para que alguém aqui do Banco os leve até o
outro. — Alex explicou o caso a Nolan Wainwright e disse ao
casal: — Este é o chefe do nosso serviço de segurança.

— Tenho o maior prazer em levá-los pessoalmente — disse
Wainwright.
O velho, estupefato, olhava de Alex para Nolan.
— E os senhores fariam isto por nós, que estamos retirando
nosso dinheiro do seu banco? Agora que acabamos de
demonstrar que não confiamos nem um pouco nos senhores?
Alex respondeu:
— Digamos que faz parte do nosso serviço. Além do mais, o
Senhor esteve conosco durante mais de 30 anos: portanto, é
justo que nos separemos como amigos.
O velho, perplexo, não sabia o que dizer. Depois, falou:
— Talvez não precisemos ir. Deixe que lhe faça mais uma
pergunta de homem para homem. — Seus olhos honestos e
perspicazes fixaram-se em Alex.
— Pode falar — disse este.
— O Senhor já me disse a verdade, meu jovem. Agora, diga-
me, levando em consideração o que lhe disse sobre o fato de eu
ser velho, não trabalhar mais, e sabendo bem o que essas
economias significam para mim. Estaria meu dinheiro a salvo
em seu Banco? Absolutamente a salvo?
Durante alguns segundos, que lhe pareceram uma eternidade.
Alex pesou a pergunta e tudo que ela implicava. Sabia que
estava sendo observado nao apenas pelo velho casal, que
aguardava com ansiedade sua resposta, mas por muitas
pessoas mais. As onipresentes câmaras e os microfones da TV
aguardavam. Ele relanceou os olhos em direção a Margot,
também na expectativa, com uma expressão estranha. Pensou
em todos que ali se encontravam e em tantas outros que.
embora ausentes, seriam afetados pelo ocorrido. Pensou



também naqueles que confiavam nele: Jetorne Patterton. Tom
Straughan, a diretoria, a assembléia, Edwina. Anteviu o que
ocorreria se o FMA falisse e o grande efeito negativo que
atingiria não apenas Tylersville, mas muito além. Seus
pensamentos eram esencontrados e dúvidas o assaltavam mas,
apesar de tudo, Alex respondeu com firmeza:

— Dou-lhe minha palavra que este Banco está firme e que
suportará a crise que enfrenta.
— Ora bolas, Freda — disse o velho à esposa — parece que
fizemos uma tempestade num copo d'água. Vamos devolver ao
banco o nosso dinheiro.
Durante as semanas que se seguiram todas as análises feitas
terminavam num ponto indiscutível: a corrida à Agência de
Tylersville encerra-se, de fato. quando o casal de velhos tornou
a depositar todas as suas economias no Banco. As pessoas que
esperavam para fazer retiradas e que haviam presenciado o
diálogo franco entre o velho e Alex evitavam se olharem ou, se

o faziam, sorriam desajeitadas. E a história foi sendo
divulgada entre os que se encontravam fora e mesmo entre os
que estavam dentro da Agência. A seguir, as filas começaram a
se dispersar tão rápida e misteriosamente quanto se haviam
formado. Como alguém disse mais tarde, foi uma espécie de
instinto gregário ao inverso. Quando, afinal, os últimos
clientes foram atendidos, a Agência encerrou o expediente
apenas dez minutos após o horário normal das sextas-feiras.
Algumas pessoas, tanto na matriz do Banco como em
Tylersville, passaram o fim de semana preocupados, pensando
na segunda-feira. O povo voltaria? A corrida recomeçaria?
Nada disso aconteceu.
E não houve mesmo qualquer outra corrida em outros pontos
do país. A razão, conforme o consenso geral, fora uma cena
comovente, clara, honesta, passada entre um velho casal e um

vice-presidente do FMA, simpático, de boa aparência, franco,
conforme divulgaram os noticiários da televisão, logo
intercambiados entre diversas emissoras e divulgados de costa
a costa. Servia como um exemplo da técnica eficiente de
"cinema verdade" que a TV pode fazer tão bem, mas que
poucas vezes emprega. Muitos telespectadores chegavam às
lágrimas, de emoção.
Durante o fim de semana, Alex viu o programa na televisão,
mas não teceu comentários, em especial porque só ele sabia os
pensamentos que lhe cruzaram a mente no momento decisivo
quando o velho lhe indagara se o seu dinheiro estava, de fato,
garantido no Banco. Outra razão, era que ele bem sabia as
dificuldades que o FMA teria de enfrentar.
Margot também pouco comentou a respeito dos
acontecimentos de Tylersville, quando, domingo, foi ao
apartamento de Alex. Ela gostaria de lhe fazer uma pergunta
muito importante, mas achava que a ocasião não era oportuna.
Entre os dirigentes do FMA que assistiram ao programa na TV
estava Roscoe Heyward. Ele ligara a televisão ao regressar a
casa de uma reunião paroquial, mas logo desligou, tomado de
raiva e de ciúme. Heyward já tinha problemas pessoais muito
sérios a enfrentar, para que ainda tivesse de aguentar o sucesso
de Vandervoort. Além da corrida no Banco, vários assuntos
viriam à tona durante a semana seguinte, deixando-o nervoso
por antecipação.

Mas naquela mesma sexta-feira houve outra ocorrência em
Tylersville. esta relativa a Juanita Núhez.
Ela vira Margot chegar e ficara em dúvida se devia procurá-la
para nor lhe seus problemas. Mas decidiu não o fazer, pois
preferia não ser surpreendida por Nolan Wainwright. A
oportunidade que aguardava chegou quando o chefe da
segurança, após a corrida, achava-se ocupado tomando
providências relativas à garantia da agência no fim de semana.


Juanita deixou seu guiché e dirigiu-se a Margot que estava
sozinha, esperando Alex.

— Srta. Bracken — disse a moça. falando suavemente — certa
vez a
senhora me disse que se eu tivesse algum problema deveria
procurá-la e que poderia contar com sua ajuda.
— Claro. Juanita! Qual o seu problema?
A face da moça transformou-se e ela respondeu:
— Sim, tenho um problema.
— Diga-me qual é.
— Se a senhora puder, eu preferia falar sobre o assunto fora
daqui
— disse Juanita enquanto observava Wainwright, que se
encontrava perto do cofre-forte, do lado oposto da Agência.
Ele parecia estar acabando de conversar com alguém.
— Então venha ao meu escritório. Quando poderá ir? —
perguntou Margot.
E concordaram em encontrar-se na noite de segunda-feira.
17


O carretel da fita do gravador instalado no Double-Seven
Health Club, estivera durante seis dias numa prateleira da casa
de Wizard Wong.

Ele olhara para a fita várias vezes, relutando em desgravá-la e
hesitante em comunicar o que continha. Hoje em dia, gravar
qualquer conversa telefônica era arriscado e mais arriscado
ainda fazer alguém ouvir a gravação.
No entanto, Wizard tinha certeza de que Marino se interessaria
por um trecho da gravação e que pagaria bom preço por ela,


pois, apesar de seus defeitos, era generoso nos pagamentos por
serviços prestados.
Wizard, cujo primeiro nome era Wayne embora ninguém o
conhecesse como tal, era um jovem muito esperto,
sinoamericano. Técnico em audío-eletrônica, um verdadeiro
gênio em matéria de gravações clandestinas, seu apelido
(Wizard: feiticeiro) lhe viera dessa capacidade.
Entre sua longa lista de clientes, contava com alguns que
apenas queriam estar garantidos de que seus negócios e suas
casas não estavam sendo interceptados por aparelhos de escuta
e que seus telefones não estavam sendo gravados. No entanto,
com uma frequência acima do esperado, Wizard descobria
aparelhos, ligações e interceptações clandestinas e, quando isto
ocorria, as pessoas mostravam-se chocadas, mas muito gratas a
ele. É que, apesar das declarações oficiais em contrário, incluindo
as do próprio gabinete da Presidência da República, a
interceptação e gravação clandestina de telefonemas
continuava a se espalhar e a florescer nos Estados Unidos.

Vários chefes de empresas usavam os serviços de Wong. bem
como banqueiros, editores de jornais, candidatos à
presidência, alguns advogados de renome, uma ou outra
embaixada estrangeira, grande número de senadores, três
governadores estaduais e um juiz da Corte Suprema. Depois
vinham outros tipos de clientes: o Don da família da Máfia,
seus conselheiros (consigliori), e vários outros do meio, de nível
inferior, entre os quais Tony Marino.

Para seus clientes do mundo do crime, Wizard Wong logo
tornou uma coisa clara: não queria participação em suas
atividades ilícitas, pois vivia muito bem dentro da lei. No
entanto, não via razões para lhes negar seus serviços, uma vez
que a interceptação clandestina era ilegal e mesmo os
criminosos tinham direito a se proteger através de meios


legais. Esta era a sua regra, seu regulamento, por todos aceito.
E funcionava bem.
Mas seus clientes criminosos insistiam para que ele lhes
comunicasse qualquer informação que obtivesse em seu
trabalho, mediante farta recompensa. Pequenas informações
em troca de dinheiro, cedendo à mais antiga e mais simples das
tentações: a ganância.
No momento, ele sentia-se tentado.


Há cerca de uma semana e meia, Wizard fizera uma pesquisa
rotineira nos telefones e instalações de Marino, inclusive no
Double-Seven Health Club. Durante essa pesquisa, que
comprovou estar tudo certo, a barra absolutamente limpa,
Wizard resolveu divertir-se interceptando os telefones do
clube, pois raciocinava que devia aperfeiçoar sempre seus
conhecimentos e aparelhamento técnico. Para tal, escolheu um
telefone público instalado no andar térreo do clube. Durante 48
horas, deixou um gravador conectado ao circuito desse
telefone, estando a aparelhagem escondida no porão. Era um
tipo de gravador que ligava e desligava automaticamente, cada
vez que o telefone era usado. Embora fosse um ato ilegal,
Wizard não se preocupou, já que apenas ele ouviria essa
gravação. No entanto, ao ouvi-la, uma certa conversa
despertou sua curiosidade.
Agora, nesta tarde de sábado, sozinho em sua oficina, ele
colocou a fita num gravador e voltou a ouvir a parte que o
impressionara.


O barulho de uma moeda inserida, um número discado, um sinal de


chamada. Apenas um.
Uma voz de mulher (macia, com ligeiro sotaque): Alô.
A voz masculina (sussurrando).Sabe quem está falando. Não use
nomes.
A voz da mulher: Certo.



A voz do homem (ainda sussurrando): Comunique ao nosso amigo
que descobri coisas importantes. Importantíssimas. Tudo que ele
queria saber. Não posso falar mais. Amanhã à noite irei aí.
A voz da mulher: Está bem.


Um ruído de telefone desligando.
Wizard Wong não tinha certeza, mas achava que isto poderia
interessar. Não passava de uma impressão, mas suas
impressões geralmente se confirmavam. Consultou ser
caderninho particular de telefones e ligou para um número.
Marino só poderia ser encontrado na tarde de segunda-feira.
Wizard marcou hora e, então, resolveu analisar melhor a
gravação para obter maiores informações.


— Por Judas! — As feições de Tony Bear Marino tornaram-se
duras. Sua estranha voz de falsete tornou-se ainda mais aguda.
— Você ficou com esta fita esse tempo todo e limitou-se a
sentar a bunda em cima dela durante uma semana antes de vir
aqui!
Wizard Wong disse, defendendo-se:
— Eu sou um técnico, Sr. Marino. A maior parte das vezes as
coisas que escuto nada têm a ver com meu negócio. Mas,
depois de um certo tempo, pensei melhor e achei que se tratava
de um caso diferente. — De certa maneira sentia-se aliviado,
pois não fora recriminado pela interceptação telefônica no
clube.
— Da próxima vez pense mais depressa — resmungou Marino.
Era segunda-feira. Estavam num terminal de caminhões onde
Marino
tinha uma espécie de escritório. Na mesa, em frente a eles,
estava um gravador portátil que Wong acabara de desligar. Ele
regravara a parte significativa da fita original, transferindo-a
para uma fita cassette.

Tony Bear Marino, em mangas de camisa, no escritório abafado
e quente, tinha uma aparência ainda mais gigantesca. Seus
ombros pareciam os de um lutador de boxe, os bíceps enormes.
Todo ele era puro musculo. Wizard Wong tentou não se
intimidar, nem pelo tamanho de Marino nem por sua
reputação de crueldade. Mas, talvez pelo calor reinante, ou por
outras razões, começou a suar.
E contestou:
Não perdi tanto tempo, Sr. Marino. Descobri outras coisas que

o senhor vai gostar de saber
— Quais?
— Já posso informá-lo qual o número que foi chamado. Usando
um relógio automático que marca a duração de cada número
discado, gravadora fita, depois comparando...
Deixe de papo furado. Me dê logo o número do telefone.
— Aqui está. — E Wizard passou-lhe um pedaço de papel por
cima da mesa.
— Você o localizou? De quem é este número?
— Preciso lhe explicar que localizar um número não é fácil. Em
especial quando é como este, de um telefone que não consta da
lista. Felizmente tenho certos contatos na companhia
telefônica...
Tony Bear explodiu. Deu um soco na mesa e o impacto parecia
um tiro de metralhadora.
— Não brinque comigo, seu filho da puta! Se você tem a
informação dê logo!
— O que quero dizer — insistiu Wizard — é que tudo isso
envolve muita despesa. Tive de pagar a meu contato na
companhia telefônica.
— Mas decerto pagou muito menos do que vai tirar de mim.
Portanto, continue falando.

Wizard sentiu-se mais tranquilo ao constatar que marcara um
ponto e que Tony Bear pagaria o preço que ele pedisse, ambos
sabendo que poderiam vir a precisar um do outro.

— Este telefone pertence a uma senhora J. Núfiez, que mora no
Fórum East. Eis o número do prédio e o do apartamento. —
Wong entregou a Tony outro pedacinho de papel, que Marino
leu e guardou.
— Tenho mais um dado que lhe interessa: os registros indicam
que este telefone foi instalado há apenas um mês, num
trabalho de emergência. Em geral, existe uma longa lista de
espera para telefones no Fórum East, mas este, que não fora
sequer pedido, foi instalado com prioridade.
O rosto de Marino espelhava um misto de impaciência e ódio,
enquanto Wizard Wong continuava a dizer:
— Houve, sem dúvida, um pedido muito forte. Meu contato
disse que conforme o memorando arquivado na telefônica, o
pedido foi feito por Nolan Wainwright, que é o chefe do
Serviço de Segurança do First Mercantile Bank. Disse que o
telefone era da maior urgência. E quem paga as despesas é o
banco.
As revelações do técnico deixaram Marino surpreso e
alarmado, mas controlou-se. Sua mente trabalhava,
relacionando o que acabava de ouvir com certos fatos que
conhecia. O nome Wainwright era a ligação. Marino sabia que
seis meses atrás haviam arrancado informações de um sujeito
chamado Vic, depois de lhes terem arrebentado os escrotos.
Lembrava-se que o torturado pronunciara o nome
"Wainwright", pessoa a quem ele. Marino, conhecia de
reputação.
Que mais haveria agora? Tony Bear fazia uma idéia do que
Wainwright queria, pois existia tal diversificação de atividades
ilícitas através do Double-Seven que seria difícil saber

exatamente pela qual ele se interessava. Mas não perdeu tempo
em especulações. A voz de quem fizera a ligação era um
murmúrio, não identificável. Mas a mulher que atendera fora
localizada. O que eles precisavam saber saberiam através dela.
Teria que falar, por bem ou por mal.
Marino pagou a Wizard o que este queria e voltou a pensar.
Durante algum tempo seguiu seu procedimento normal de não
apressar uma decisão e deixar que seus pensamentos
tomassem forma durante algum tempo, embora já tivesse
perdido toda uma semana desde que o fato se dera.
Naquela mesma noite, convocou dois guarda-costas dandolhes
um endereço em Fórum East e uma instrução:
—Tragam a dona. essa tal de Núnez.

18


— Se o que você acaba de dizer for verdade — assegurou Alex
a Margot — eu. pessoalmente, darei em Wainwright o maior
pontapé no rabo que eleja levou. Margot respondeu:
— Claro que é verdade! Então você acha que a Sra. Núhez ia
inventar isso? De que maneira?
— Creio que não poderia mesmo — concordou Alex.
— E lhe digo mais uma coisa Alex. vou querer muito mais que a
cabeça de Wainwright numa travessa, ou que o seu rabo. Um
bocado mais.
Eles estavam no apartamento de Alex, para onde Margot se
dirigira logo depois da conversa que tivera com Juanita Núhez.
Esta, nervosa, tinha-lhe descrito o acordo que fizera, há um
mês, pelo qual se tornara o vínculo entre Wainwright e Eastin.

Mas começara a perceber o tremendo risco que estava correndo
e ficou muitíssimo preocupada por si mesma e em especial por
Estela. Margot lhe fizera inúmeras perguntas e depois fora
para o apartamento de Alex.

— Na verdade, eu sabia que Eastin estava agindo como
agente secreto. — A expressão de Alex era conturbada, como
vinha acontecendo nos últimos tempos: caminhava pela sala,
de um lado para outro, segurando um copo de uísque do qual
ainda não bebera. — Nolan me comunicou seus planos. De
inicio me opus; depois cedi porque seus argumentos pareciam
convincentes. Mas juro que nunca mencionou o nome de
Juanita Núhez.
Acredito. Por certo ele calou-se porque sabia que você vetaria o
nome da moça — disse Margot.
— Edwina sabia?
Ao que tudo indica, não. Alex.concordou que, também nesse
ponto, Nolan tinha agido mal. orno podia ter sido tão
chefes de

imprevidente, tão estúpido? Em parte, porque

ar

departamento, como Wainwright, às vezes se deixam Por
seus objetivos limitados, esquecendo-se dos aspectos gerais.
Alex estacou e indagou:

— Você disse há pouco que queria muito mais, um bocado mais.
O que quer dizer com isso?
— A primeira coisa que quero é a segurança imediata para
minha constituinte e sua Filha, e quando digo segurança me
refiro a proteção, a levá-la para algum lugar onde fique livre
de perigo. Depois disso, poderemos discutir preços.
— Sua constituinte?
— Aconselhei Juanita, hoje à noite, a recorrer à proteção legal.
E ela me pediu que a representasse.
Alex começou a rir e tomou um gole do uísque.
— Então agora você e eu somos adversários, Bracken.

— É isso mesmo. — A voz de Margot tornou-se mais meiga. —
Mas você bem sabe que não vou me aproveitar de nossas
conversas particulares.

— Claro que sei! Por isso, posso lhe dizer, aqui entre nós, que
faremos imediatamente alguma coisa pela Sra. Núfiez. Se isto
implicar em mandá-la pará fora da cidade durante um certo
tempo, para que tenhamos certeza de que está a salvo, tomarei
as necessárias providências. Quanto a preços, não vou discutir
o assunto agora, mas só depois de ouvir Wainwright. E, se a
história dele concordar com a dela, pensarei no caso.
O que Alex não disse foi sua intenção de chamar Nolan logo na
manhã seguinte e dar-lhe ordem de suspender imediatamente
a operação do agente secreto. Isto incluiria a proteção de
Juanita conforme prometera a Margot. Também Eastin seria
pago e sairia da jogada. Alex arrependia-se amargamente por
não ter-se mantido firme em sua oposição inicial e de ter
cedido aos argumentos do chefe da Segurança. Os riscos, sob
todos os aspectos, eram demasiado grandes. Felizmente, não
era tarde demais para remediar o erro, uma vez que nada de
perigoso ocorrera ainda, nem para Eastin nem para a Sra.
Núfiez.
Margot olhou para Alex.
— Uma das coisas que aprecio em você é o fato de ser um
homem justo. Portanto, concorda que o Banco tem uma
obrigação para com Juanita Núfiez?
— Claro! No momento, inclusive, já temos tantas obrigações a
cumprir, que diferença faz mais uma?

19


Apenas mais uma pequena peça. Faltava apenas mais uma para
completar o torturante quebra-cabeça. Com um pouquinho de sorte
poderia resolvê-lo e responder à pergunta: onde era a base de
operações dos falsários?
Quando Nolan Wainwright pensou em um novo agente
secreto, não tinha realmente esperado resultados tão
espetaculares. Julgara que Miles levasse muito tempo até
conseguir qualquer pequena informação, talvez meses. Ao
contrário, agira depressa, pulando de uma revelação a outra.
Teria ele idéia do quanto fora bem sucedido?
Ao meio-dia de terça-feira, sozinho em sua sala na matriz do
FM A, Wainwrigth mais uma vez reviu os dados obtidos.

No primeiro relatório, Eastin dissera que havia "penetrado" no
Douhle-Seven Health Cluh. Em vista de acontecimentos posteriores,

o simples fato de ter sido aceito no clube fora muito importante. Em
seguida, veio a confirmação de que o Doublé Seven servia de
esconderijo para criminosos, incluindo o agiota Ominsky e Tony
Bear Marino.
Ao conseguir acesso ás salas de jogo ilegal, Eastin dera mais um
importante passo.
Pouco depois, conseguira "comprar" dez cédulas falsas de 20 dólares
que, examinadas por Wainwright e outros, provaram ser idênticas e,
por conseqüência, da mesma fonte das demais em circulação na área,
nos últimos meses. Eastin tinha também conseguido o nome do
falsicador, que estava sendo seguido.

A seguir, um relatório com três dados preciosos: a carteira de motorista,
falsificada; o número da placa falsificada do Impala no qual ele
fora a Louisville, aparentemente levando na mala do carro uma
previsão de notas falsas: e o bilhete da companhia aérea, que usara na
viagem de volta. Dos três itens, o talão da passagem fora o mais útil,
por ter sido esta e outras, compradas com um cartão de crédito


Keycharge, falsificado. Por último, o chefe da Segurança procurou
fixar-se em seu objetivo principal: a organização que, cada vez mais,
defraudava o Keycharge em importâncias vultuosíssimas. A licença
de motorista falsificada confirmava a existência de uma organização
eficiente e versátil, a respeito da qual havia agora mais uma pista, na
pessoa do ex-convicto Jules LaRocca. O Impala fora roubado e dias
após ter sido usado por Eastin fora encontrado abandonado em
Louisville.

Por fim, e mais importante que tudo, fora a identificação do falsificador
Danny, juntamente com uma verdadeira cornucópia de
informações, inclusive o fato de que a fonte de falsificações dos
cartões de crédito Keycharge tornara-se conhecida, com a mais
absoluta certeza.

A medida que Wainwright acumulava tais informações por
Miles Eastin, vira-se na obrigação de partilhá-las com outros.
Assim, há uns sete dias, chamara agentes do FBI e do Serviço
Secreto para uma reunião no Banco. O Serviço Secreto fora
incluído porque a falsificação de dinheiro era uma das
atribuições que lhe cabiam, nos termos da Constituição. Os
agentes do FBI que compareceram. Innes e Dalrymple, eram os
mesmos que haviam investigado o furto do dinheiro no Banco
e detido
Miles Eastin. Os agentes do Serviço Secreto, Jordan e Quimby,
Wainw-right ainda não conhecia.
Innes e Dalrymple agradeceram a informação que Wainwright
lhes dera, mas os agentes do Serviço Secreto mostraram menos
entusiasmo. Queixavam-se de que Wainwright devia tê-los
notificado mais cedo, tão logo recebera as primeiras notas
falsificadas enviadas por Eastin e que este, através de
Wainwright, deveria tê-los avisado da viagem que faria a
Louisville.


Um deles, Jordan, pesado, baixinho e de olhos frios cujo
estômago roncava constantemente, reclamou:

— Se tivéssemos sido notificados, poderíamos ter interferido.
Agora seu homem pode até ser acusado de felonia, e você
como cúmplice.
Com delicadeza, Wainwright respondeu:
— Já expliquei que não tinha oportunidade de avisar a
ninguém. Ele sabia o risco que corria, mas creio que agiu bem.
Quanto a felonia, nós nem sequer temos certeza de que
houvesse dinheiro falso na mala do carro.
— O dinheiro estava lá, sim. Notas falsas já estão circulando em
Louisville. O que não sabíamos era como haviam chegado até
lá — resmungou Jordan.
— Bem, agora o Senhor sabe — argumentou Innes. — E, graças
a Nolan, estamos bem adiantados.
O chefe da Segurança acrescentou:
— Se os senhores tivessem interferido, é claro que teriam em
suas mãos um monte de dinheiro falso. Mas não tanto, e a
utilidade de Eastin estaria liquidada.
De certa maneira, Wainwright compreendia o ponto de vista
do Serviço Secreto. Os agentes trabalhavam demais, viviam
exaustos, não contavam com a ajuda suficiente e, enquanto
isso, a quantidade de dinheiro falso em circulação tinha
aumentado de modo assustador nos últimos anos. Lutavam
contra um monstro de sete cabeças. Mal conseguiam localizar
uma fonte de fornecimento, logo surgia outra, sendo que
muitas permaneciam desconhecidas. Eles tentavam levar ao
público a imagem enganosa de que os falsificadores eram
sempre apanhados, que seu crime não compensava. Mas
Wainwright sabia que, na verdade, compensava e muito.
Apesar do mal-estar inicial, Nolan estava certo de que obtivera
um dado positivo ao trazer o Serviço Secreto para o caso, pois
haveria a possibilidade de consultar seus arquivos. Pessoas

que Eastin mencionara foram logo identificadas e seus dossiês
estavam completos. Por exemplo, o falsificador Danny foi
identificado como Daniel Kerrigan. de 73 anos de idade.
Anos atrás, Kerrigan havia sido preso por três vezes e
sentenciado por falsificação, mas há mais de quinze anos que
não se ouvia falar nele.
Ou ele tem andado direito ou tem tido sorte, ou tem sido muito
esperto esclareceu Innes.

Wainwright citou então as palavras de Danny, quando dissera
a Eastin que ele agora trabalhava para uma organização
eficiente.
_ Pode ser — concordou Innes.
Após esta primeira reunião. Wainwright e os quatro agentes
mantiveram contatos freqüentes e prometeram informar uns
aos outros tão logo houvesse fatos novos.
Todos concordavam que o mais importante agora era saber
onde estava a base de operações dos falsificadores. Até o
momento não tinham a menor idéia a esse respeito mas tão
logo obtivessem uma pista segura tanto o FBI quanto o Serviço
Secreto estariam prontos para entrar em ação.
Enquanto Nolan rememorava esses fatos uma de suas
secretárias informou-o pelo telefone que o Sr. Vandervoort
queria vê-lo imediatamente.

Wainwright não queria acreditar. Olhando para seu
interlocutor exclamou:

— Você não pode estar falando sério!
— Estou falando sério, sim — respondeu Alex — embora me
custe acreditar que você estivesse falando sério ao fazer uso da
Sra. Núhez da maneira como o fez. — E acrescentou: — de
todas as loucuras...
— Loucura ou não, deu certo.
Alex nem deu atenção ao comentário e prosseguiu.

— Você pôs a moça em perigo e não consultou ninguém. Em
conseqüência, somos obrigados a protegê-la, e talvez tenhamos
que enfrentar um processo contra nós.
— Agi na suposição de que quanto menos pessoas soubessem,
tanto mais a salvo ela ficaria.
— Qual nada! Isto é o que você esta raciocinando agora, Nolan.
O que de fato pensou foi que se eu ou Edwina D'Orsey
soubéssemos, nós o impediríamos de agir assim. A respeito de
Eastin, eu sabia. Mas você deve ter-se perguntado: Será que
Alex concordará com o uso da moça?
Wainwright concordou:
— E, acho que você tem razão.
— Claro que tenho!
— Mas isso não é motivo para que abandonemos toda a
operação. Pela primeira vez nas investigações que tentamos
fazer quanto aos cartões Keycharge, estamos chegando perto
do final. Concordo, errei em usar a Sra. Núnez. Mas não errei
quanto a Eastin, e os resultados estão aí para prová-lo.
Alex meneou a cabeça com decisão.
— Nolan, já deixei que você me convencesse uma vez. Mas não
desta. O nosso negócio é Banco e não combate ao crime.
Pediremos ajuda dos órgãos legais. Mas não faremos, nós
mesmos, programas agressivos de luta contra o crime. Por isso
digo: termine seu acordo com Eastin, se possível ainda hoje.
— Olhe bem, Alex...
— Já olhei, e não gostei do que vi. Não farei o FMA responsável
por vidas humanas, nem mesmo a de Eastin. Isto é definitivo.
Portanto, não percamos mais tempo em discussões.
Wainwright parecia desanimado e descontente, mas Alex
continuou:
— Outra coisa que exijo é uma reunião para esta tarde entre
você, Edwina D'Orsey e eu a fim de discutirmos o que pode ser

feito para proteger a Sra. Núnez. Você pode começar a ter
umas idéias.
Na porta do escritório surgiu uma secretária. Alex disse
irritado:


— Seja quem for... mais tarde! A moça disse:
— Sr. Vandervoort. é a Srta. Bracken. Ela diz que é assunto
urgentíssimo e que o senhor deveria ser interrompido, não
importa o que estivesse fazendo.
Alex suspirou e pegou o telefone:
— Sim, Bracken?
— Alex, é sobre a Juanita Núnez — disse Margot.
— O que houve com ela?
— Desapareceu?
— Espere um pouco. — Ele acionou um botão para que a
conversa pudesse ser ouvida por Wainwright. — Continue.
— Estou preocupadíssima! Quando a deixei ontem à noite,
sabendo que ia vê-lo mais tarde, combinei que telefonaria para
ela no Banco, hoje. Achava-a muito preocupada e esperava
poder confortá-la.
— E daí?
— Alex. ela não foi trabalhar. — A voz de Margot estava aflita.
— Bem, talvez...
— Por favor, Alex preste atenção. Estou no Fórum East. para
onde vim tão logo soube que ela não fora ao banco, ainda mais
porque seu telefone não respondia. Desde que cheguei, já falei
com várias pessoas do prédio. Duas me disseram que Juanita
saiu de casa pela manhã na hora habitual e. como sempre, com
sua filha, que ela leva à escola, a caminho do banco. Indaguei o
nome da escola e telefonei. Estela não chegou lá; nem ela nem a
mãe.
Fez-se um silêncio. A voz aflita de Margot perguntou:
— Alex. você está escutando?
— Estou, sim.

— Depois disso, telefonei para Edwina, que foi, ela própria,
certificar-se. Juanita não foi trabalhar e nem sequer telefonou
avisando, o que não é de seu feitio. Por isso é que eu estou
preocupada e certa de que alguma coisa terrível aconteceu.
— Você tem alguma idéia?
— Sim. a mesma que você — respondeu Margot.
— Espere um pouco. Nolan está aqui — disse Alex.
Wainwright, que escutara toda a conversa, respondeu:
— A Sra. Núnez foi seqüestrada. Não há dúvida alguma.
— Por quem?
— Por alguém da turma do Double-Seven. Provavelmente
agora pegarão Eastin também.
— Você acha que eles a levaram para o clube?
— Não. Seria a última coisa que fariam. Ela deve estar em
qualquer outro lugar, não lá.
— Tem alguma idéia desse lugar?
— Não.
— E os que a seqüestraram levaram também a menina, não
acha?
— Receio que sim. — Havia angústia nos olhos de Wainwright.
— Lamento muito, Alex.
— Você nos meteu nisso, agora, pelo amor de Deus, tem que
libertar Juanita e a criança! — gritou Alex.
Wainwright concentrou-se, depois falou:
— A primeira coisa a fazer é ver se podemos alertar Eastin. Se
conseguirmos retirá-lo da jogada, isto é, retirá-lo do Double-
Seven, talvez ele saiba alguma coisa que nos leve até a moça. —
Nolan pegou sua caderneta de endereços, abriu-a e
imediatamente discou o telefone.

20


Tudo aconteceu tão depressa e de maneira tão inesperada, as
portas do carro se fecharam com barulho, a limusine preta deu
partida, antes que ela conseguisse cair em si e gritar. Mas já
então Juanita sabia por instinto que era tarde demais. De
qualquer maneira gritou como qualquer pessoa o faria:
"Socorro! Socorro!" — até que de repente alguém lhe deu um
soco que lhe partiu os lábios. Mesmo assim, ouvindo os gritos
de Estela ao seu lado, Juanita continuou lutando até que um
segundo soco atingiu-a com mais força, a visão se apagou por
alguns segundos e os sons pareceram ficar amortecidos.
O dia, fresco, claro e lindo do início de novembro, começara
normalmente. Juanita e Estela haviam acordado com tempo
suficiente para o desjejum, depois ouviram o noticiário da
NBC na televisão preto e branco, portátil. Logo após, olharam
para o relógio que marcava tempo suficiente havia para que
Juanita levasse Estela até a escola, antes de tomar o ônibus
para o centro da cidade e chegar ao banco. A menina sempre
gostara de acordar cedo, e ficar com a mãe de manhã era a
maneira que considerava gloriosa de começar o dia.
Ao sair do edifício. Estela dava saltos e ria, divertindo Juanita.
Foi só depois de alguns instantes que esta notou vagamente
uma limusine com vidros escuros estacionada um pouco à
frente tendo uma porta aberta.

Quando se aproximavam a moça percebeu que dirigiam a
palavra à menina. Estela sempre pulando e correndo chegou ao
alcance da porta do carro, tendo sido puxada para dentro.
Juanita correu ao encontro da filha mas, ao alcançar a porta foi
empurrada pelas costas para dentro do veículo, caindo e
arranhando as pernas. Antes que se desse conta do que ocorria,
já se encontrava no chão do automóvel abraçada à filha. A
porta fechou-se e o carro partiu.


Quando começou a unir as idéias, ouviu uma voz que dizia:

— Mas, pó, para que trazer a criança?
— Tive de trazer. Ela ia fazer um barulho danado, a polícia
logo apareceria. Assim, conseguimos sair limpos, sem uma
gota de suor.
Juanita ficou muda. Fora espancada e a dor começava na
cabeça e ia até o estômago. Limitou-se a gemer.
— Preste atenção, sua puta! — disse uma terceira voz. — Se
provocar confusão, vai apanhar muito mais. E não pense que
ninguém vai vê-la pelo lado de fora. O carro tem uma espécie
de vidro que você desconhece: só quem está do lado de dentro
vê quem está do lado de fora.
Juanita permaneceu imóvel, lutando contra o pânico,
procurando coordenar os pensamentos. Eram ao todo três
homens no carro, dois no banco traseiro perto dela, e o
motorista. O comentário sobre o vidro explicava porque ela
tivera a impressão de um carro grande com janelas escuras.
Compreendeu que seria tolice tentar atrair a atenção. Do exterior,
ninguém a veria. Para onde as estariam levando? E por
quê? Deduziu que o motivo ligava-se a Miles. Tudo que ela
previra estava acontecendo: corria o maior perigo de sua vida.
Mas, Mãe de Deus! Por que Estela? As duas estavam emboladas
no chão do carro e o corpo da menina sacudia-se em soluços
desesperados. Juanita tentou confortá-la.
— Assim, amorcito! Seja valente, minha pequena.
— Cale a boca! — disse um dos homens.
Outra voz, que ela julgou ser a do motorista, disse:
— É melhor amordaçá-las e vendá-las.
Juanita, que não podia ver direito, percebeu movimentos e
ouviu o rasgar de um tecido. Ela implorou:
— Por favor, não! Eu... — Suas últimas palavras foram
interrompidas por um esparadrapo largo que lhe passaram
pela boca. A seguir, um pano escuro cobriu seus olhos e foi

manietada com cordas que lhe cortavam os pulsos. A poeira do
chão entrava-lhe pelas narinas e ela tentava freneticamente
respirar. Logo percebeu, pelos ruídos, que também amordaçaram
e vendavam sua filha. Desesperada, Juanita chorava e
se contorcia. Deus o amaldiçoe, Wainwright! E a você também,
Miles! Onde é que estão agora? Por que tinha ela concordado...
tornado possível esta situação! Oh, por quê? Por quê? Mãe de
Deus, por favor, me ajude! Se não conseguir ajudar a mim, por favor
ajude Estela!

Enquanto o tempo passava, sentindo crescer sua dor e
impotência, os pensamentos de Juanita ficaram
desencontrados. Percebia que o carro andava, parava e
recomeçava, como em lugar de grande tráfego: depois, que não
mais se detinha, fazendo curvas vagarosas. O trajeto parecia
interminável. Depois de talvez uma hora — seria muito mais
ou muito menos? — percebeu que o carro diminuía a marcha.
O motor roncou alto e parou. A porta da limusine abriu-se:
mãos a seguraram. E alguém disse:

— Merda! Procure caminhar!
Ainda com os olhos vendados, movendo-se aos tropeções, todo
seu terror concentrava-se em Estela. Ouvia barulho de passos
no chão de cimento, talvez os dela própria. Tropeçou outra vez
e foi em parte segura e em parte jogada ao chão. Caiu.
levantou-se. tentou caminhar. Afinal foi atirada em uma
cadeira, à qual se agarrou. Ouviu a voz anterior, que dizia:
— É melhor tirar logo a mordaça e a venda.
Ela sentiu um movimento de mãos. e uma dor violenta quando
arrancaram com brutalidade o esparadrapo que lhe tapava a
boca magoada. Afrouxaram a venda e ela ficou cega pela luz
que lhe caía diretamente nos olhos.
Conseguiu apenas dizer:
— Por Dios! onde está minha... — e levou um soco no rosto.

— Não abra a boca — disse-lhe uma das vozes que já ouvira no
carro. — Quando quisermos que fale, você vai falar muito mais
do que quer.
Tony Bear Marino gostava de certas coisas. Uma delas era o
sexo erótico. Segundo seus padrões, erótico significava coisas
que as mulheres faziam e que o levavam a sentir-se superior e,
a elas, humilhadas. Adorava também uma briga de galos:
quanto mais sangrenta, melhor. Tinha grande prazer em
receber relatórios detalhados, com gráficos, do que sua gang
fazia em matéria de torturar ou matar quem ele mandasse,
embora tivesse o máximo cuidado em manter-se a distância.
Outra coisa de que gostava, essa muito mais suave, era de usar
em seus automóveis aqueles vidros especiais que lhe
permitiam ver o exterior sem ser visto.
Tony Bear Marino gostava tanto daqueles vidros espelhados
(one-way glass) que mandara instalá-los nos mais diversos
lugares: carros, estabelecimentos, esconderijos, incluindo o
Double-Seven Health Club e até em sua própria casa escondida
e bem protegida, onde o banheiro e o lavabo que as convidadas
usavam tinham uma parede inteira desse material. Do lado
interno, a aparência era de um espelho, mas o outro lado dava
para uma saleta onde ele se sentava fumando um charuto e
gozando de espetáculos tão íntimos que de outra forma jamais
lhe seriam revelados.
Era tal sua obsessão, que os instalara na oficina de
falsificações, onde ia poucas vezes. Mas valera a pena. como
agora.
No caso presente, o vidro era apenas uma tela, através da qual
podia ver Juanita olhando-o. amarrada numa cadeira.
Desgrenhada, tinha o rosto inchado do qual o sangue escorria.
A seu lado, amarrada a outra cadeira, estava uma menina
branca como cal. Quando Marino soube que a criança também
fora seqüestrada, tivera um acesso de raiva. Não por gostar de

crianças, aliás não gostava, mas porque crianças cheiravam a
confusão. Um adulto podia ser eliminado sem que houvesse
grande risco, mas assassinar uma criança era diferente.
Poderia, até mesmo entre os de sua gang, provocar uma certa
emoção. Portanto, já tomara a precaução de fazê-las amordaçar
e vendar. Agora, gozava o espetáculo, certo de que não era
visto.
Acendendo um charuto, passou a observar.
Angelo, um dos responsáveis pelo seqüestro, inciinou-se para
a moça. Tratava-se de um ex-lutador que jamais ganhara um
prêmio. Parecia um rinoceronte. Bestial, violento, gozava com
seu papel de torturador.

— Vamos, vagabunda, comece a falar!
Juanita. que tentava ver a filha, virou a cabeça e perguntou:
— Falar o quê?
— Diga logo o nome do cara que ligou para você do Double-
Seven. Juanita logo percebeu o sentido da pergunta. Marino
viu em sua cara
que ela sabia de tudo e que era apenas uma questão de tempo,
até que falasse.
— Seu filho da mãe!... Seu animal! — Juanita cuspiu em
Ângelo. — Canalla*. Nunca ouvi falar de nenhum Double-
Seven.
Angelo esmurrou-a e o sangue começou a correr de seu nariz
entrando na boca. Angelo agarrou-lhe os cabelos e repetiu:
— Quem era o cara que ligou para você do Double-Seven?
Juanita, com os lábios machucados, conseguia dizer:
— Maricón, maricón, não digo nada até que você solte minha garota.
Tony Bear pensava: o diabo da mulher tem coragem. Se fosse
seu tipo talvez ele tivesse prazer em arrebentá-la de outras
maneiras. Mas era magra demais para seu gosto: cadeiras
muito estreitas, sem nádegas e de seios mínimos.

Angelo recuou o braço e socou-a na boca do estômago. Juanita
soluçou, dobrou-se para a frente tanto quanto lhe permitiam os
braços manietados. A seu lado. Estela gritava histericamente, o
que não agradava a Tony Bear. Estava demorando demais;
havia um método mais rápido. Chamou Lou, o outro guarda-
costas, e segredou-lhe algumas palavras. Este pareceu não
gostar muito da idéia, mas concordou. Tony Bear deu-lhe o
charuto que estava fumando.
Enquanto Lou dirigia-se a Ângelo, falando em tom baixo. Tony
Bear Marino olhou a seu redor. Encontravam-se num porão, à
prova de som, de uma casa construída há 50 anos, localizada
numa zona residencial da classe alta, protegida como se fora
um forte. Um grupo que Marino dirigia comprara-a há oito
meses, ali instalando sua base de operações. Em breve, como
medida de precaução, venderiam a casa e se mudariam para
qualquer outro lugar. Na realidade, ele já havia até escolhido
um novo local. Teria a mesma aparência inexpressiva e
inocente deste. Marino às vezes pensava com grande orgulho
que isto representava o segredo de sua longa e bem sucedida
carreira: mudanças freqüentes, sempre paia locais respeitáveis,
com um tráfego limitado, entre o centro e a periferia. Tal
precaução tinha duas vantagens: poucas pessoas sabiam ao
certo onde ficavam as instalações e, tudo funcionando com
discrição, os vizinhos de nada suspeitavam. Havia mesmo
tomado precauções especiais para as freqüentes mudanças.
Uma delas: máquinas camufladas em móveis, de modo que,
quando transportadas, se alguém as observasse pensaria
tratar-se de uma mudança doméstica. E um furgão apropriado,
pertencente a uma de suas próprias companhias, era sempre
destacado para a tarefa. Existiam até instruções já
preestabelecidas para casos de emergência, com caminhões
mais rápidos.


O disfarce das máquinas em móveis fora idéia de Danny
Kerrigan. O velho, que pertencia à organização há 12 anos,
sempre dera boas sugestões. Marino ouvira falar de sua
reputação com artífice, depois soube que ele se tornara um
alcoólatra, um bêbado irresponsável. Ordenou que o velho
fosse localizado, recuperado, e depois posto a trabalhar... com
resultados espetaculares.
Marino chegara à conclusão de que não existia nada que Danny
não pudesse imprimir da maneira mais perfeita: dinheiros,
selos postais, certificados de ações, cheques, licenças de
motorista, cartões de previdência social, qualquer coisa. E
tinha sido idéia de Danny falsificar cartões de crédito aos
milhares. Por meio de uma gorjeta aqui, outra ali, e um plano
cuidadosamente elaborado, eles tinham conseguido localizar o
fabricante e apoderar-se das folhas de plástico nas quais eram
impressos os cartões Keycharge; o estoque que possuíam era
suficiente para durar anos. E o lucro até o momento era
colossal.
A queixa única contra o velho era que, periodicamente, voltava
a beber e deixava de trabalhar uma semana ou mais. Quando
isto acontecia, Marino tinha medo de que ele soltasse a língua
e, assim, mantinha-o confinado, embora ele fosse bastante
esperto para escapar às vezes, como da última. No entanto,
essas ausências eram agora menos freqüentes, em especial
porque Danny estava guardando sua parte de dinheiro num
banco da Suíça. Sonhava aposentar-se dentro de um ano ou
dois e ir para lá, gozar sua riqueza. Só que Marino não o
deixaria. Danny estava em suas mãos, e pretendia fazer uso do
velho enquanto este vivesse. Além disso, Danny sabia demais
para que Marino o deixasse partir.
Quem, de fato, lucrava com o trabalho do velho era a
organização, sem a qual ele não passaria de mais um
falsificador solitário; sem uma rede distribuidora. Marino


tinha, pois, razão quando se preocupava, mesmo com a
simples ameaça à sua organização. Existiria nela um espião?
Em caso afirmativo, vindo de onde? E até que ponto teria ele.
ou ela. conseguido saber?
Sua atenção voltou-se para o que acontecia do outro lado do
vidro. Angelo estava segurando o charuto aceso. Seus lábios
grossos contraíam-se num sorriso. Tirou uma baforada até que
a ponta do charuto ficou incandescente. Da maneira mais
casual possível dirigiu-se à cadeira onde estava a criança
amarrada.
Estela olhou-o, trêmula horrorizada. Sem a menor pressa.
Angelo pegou a pequena mão direita da menina e, devagar,
esmagou nela o charuto, como se estivesse fazendo uso de um
cinzeiro. Estela lançou um grito lancinante de agonia. Juanita a
tudo assistia, frenética, chorando, gritando, lutando
desesperadamente contra as cordas que a prendiam.
O charuto não se apagara de todo. Angelo tirou outra baforada
até que ele voltou a incandescer e levantou a outra mão de
Estela.
Juanita então gritou:
—No, no, déjala quieta. Eu falo.
Ângelo esperou, com o charuto ainda na mão e Juanita falou
sofregamente:
—O homem que vocês querem... é Miles Eastin.
—Para quem ele trabalha?
A voz dela saiu num sussurro desesperado:


— Para o First Mercantile American Bank.
Ângelo jogou o charuto no chão, esmagando-o com o salto do
sapato. Olhou interrogativamente para a parede espelhada e
dirigiu-se ao encontro de Marino.
— Vá atrás dele. Vá pegar aquele espião-delator. Traga-o aqui!

21


Milesy — disse Nate Nathanson hoje ainda mais rude que de
costume — seja lá quem for esse seu amigo que telefona tanto
para você, diga-lhe que isto aqui é um estabelecimento para
uso dos clientes, não dos empregados.
—Que amigo? — Miles Eastin, que estivera fora durante
grande parte da manhã tomando providências relacionadas ao
clube, olhou desconfiado para o gerente.
—Como é que vou saber? E um cara, sempre a mesma voz, que
telefonou quatro vezes, à sua procura. Não deixou nome, nem
recado. — Mudando de assunto Nathanson perguntou
impacientemente: — onde é que está o livro de estoque?
Miles passou-o às suas mãos.

— Acaba de chegar um carregamento de conservas — disse
Nathanson. — As caixas estão no depósito. Confira-as com as
faturas. — Deu a Miles uns papéis e uma chave.
— Claro, Nate. Desculpe pelos telefonemas.
Mas o gerente nem ouviu a resposta, dirigindo-se ao escritório,
no terceiro andar. Miles sentia uma certa pena de Nate, pois
sabia que Marino e Ominsky, sócios proprietários do clube,
haviam-se queixado da maneira pela qual ele vinha
administrando o negócio.
A caminho do depósito, situado ao fundo do andar térreo,
Miles pensava nos telefonemas. Quem o teria chamado de
modo tão insistente? Apenas três pessoas relacionadas com sua
vida anterior sabiam onde ele trabalhava: o funcionário que
fiscalizava sua atuação como liberado condicional, Juanita e
Wainwright. O primeiro não deveria ser, pois na última visita
obrigatória que lhe fizera, mostrava-se interessado apenas em
saber que ele não se metera em nenhuma confusão. Anotou
onde Miles estava trabalhando, e só. Então, Juanita? Não. Ela


sabia que não deveria chamá-lo; além do mais Nate dissera que
era voz de homem. Assim, só restava Wainwright.
Mas este também não o chamaria... ou será que chamaria? Talvez
Wainwright se arriscasse, desde que se tratasse de algo
realmente urgente... como uma espécie de aviso?
Um aviso de quê? De que ele, Miles, estava em perigo? Que fora
descoberto como espião? O medo gelou-lhe o sangue; seu coração
batia depressa. E Miles verificou que nos últimos tempos
acreditara possuir uma certa invulnerabilidade, mas na
realidade nunca esteve nem estaria em segurança. Tudo que
poderia esperar, para sempre, era perigo. Agora maior do que
no começo, porque sabia demais.
Ao aproximar-se do depósito, suas mãos tremiam de medo e
teve dificuldade para fazer a chave entrar na fechadura.
Procurou acalmar-se, julgando-se medroso sem motivo,
reagindo covardemente à própria sombra. Talvez. Mas um
pressentimento sinistro dizia-lhe que não. Mas,o que deveria
fazer? Quem telefonou provavelmente tentaria mais uma vez.
Seria prudente esperar? Miles decidiu-se: mesmo com risco,
telefonaria para Wainwright.
Acabara de abrir a porta do depósito, mas voltou a fechá-la e
dirigiu-se à porta do depósito, mas voltou a fechá-la e dirigiu-
se àquele mesmo telefone, do qual chamara Juanita, dias antes.
Foi quando percebeu uma atividade fora do normal no saguão
do clube e no corredor do andar térreo, com passos de pessoas
vindas de fora. Todos pareciam estar com pressa.
Instintivamente, Miles recuou e ocultou-se no depósito. Ouviu
uma mistura de vozes, dentre as quais uma que indagava:

— Onde está aquele traste do Eastin?
Ele reconheceu a voz de Ângelo, um dos guarda-costas de
Marino.
—Acho que está lá em cima, no escritório — respondeu Jules
La-Rocca. — O que é que...

—Tony Bear quer...
As vozes foram-se distanciando à medida que os homens
subiam a escada. Mas Miles ouvira o suficiente para saber que
seus temores eram justificados. Dentro de instantes, Nate
Nathanson lhes diria onde ele se encontrava. Então, viriam
buscá-lo.
Trêmulo de pavor, forçou-se a pensar. Sair pela frente era
impossível. Mesmo que não encontrasse os que desceriam do
andar superior, por certo estaria alguém montando guarda do
lado de fora. A saída dos fundos? Era muito pouco usada e
dava para um prédio abandonado, atrás do qual havia um
terreno baldio e depois uma passarela sobre a ferrovia. Do
outro lado, entrava-se em um verdadeiro labirinto de ruelas.
Tentaria escapulir por ali. mesmo sabendo que a possibilidade
de escapar fosse mínima. Os perseguidores deveriam ser
muitos; alguns certamente de carro, enquanto que ele não
dispunha de um. Pela cabeça dele passou um pensamento: Sua
última chance! Não a perca! Fuja agora! Bateu a pesada porta do
depósito e guardou a chave. Talvez assim conseguisse ganhar
minutos preciosos, enquanto eles o procurassem forçando a
porta.
Começou então a correr em direção à portinha dos fundos,
tropeçando no trajeto. Ao sair, fechou-a pelo lado de fora; não
lhe interessava fazer propaganda do seu trajeto. Desceu por
uma viela que ladeava o edifício abandonado da antiga fábrica,
cheia de latas e caixas velhas e muito lixo. Era como se
estivesse fazendo uma corrida de obstáculos; ratos passavam-
lhe entre as pernas... No terreno baldio, depois de tropeçar em
tijolos e lixo, ainda deu com um cachorro morto. Pouco depois,
tropeçou de novo e torceu o tornozelo. Doía terrivelmente, mas
não podia parar. Até agora não percebera sinais de
perseguição. Afinal, aproximou-se da passarela, que


representava a possível segurança nas ruelas além. Foi quando
ouviu o grito:

— Lá vai o filho da puta.
Correu mais depressa, agora pelas ruas e calçadas. Virou na
esquina que lhe surgiu, à esquerda; depois à direita; em
seguida, mais uma vez à esquerda. Atrás de si, ouvia o som de
pés correndo... Não sabia bem para onde se dirigia, mas
julgava que fosse para o centro da cidade. Se conseguisse
atingi-lo, seria mais fácil perder-se entre a multidão e, quem
sabe, até telefonar para Wainwright, pedindo socorro.
Entrementes, continuava a correr e muito, pois seu fôlego era
bom. A dor no tornozelo atenuara-se. O tempo que empregara
no handball do Double-Seven estava rendendo seus frutos. O
barulho de passos dos seus perseguidores diminuiu, mas ele
não se deixou enganar. Sabia que um carro não poderia tê-lo
seguido pelo terreno baldio e pela passarela. Se o carro desse
volta pela ferrovia, perderia tempo. Mas havia outros meios de
alcançá-lo. Virou à esquerda, à direita outra vez, esperando
encontrar algum meio de transporte. Um ônibus; um táxi seria
o ideal. Mas não conseguiu nem um nem outro... Quando você
precisa de um táxi com urgência, acaso já lhe surgiu algum? Ou um
guarda, um policial? Gostaria que as ruas tivessem maior
movimento. Correr chamava a atenção, mas não podia dar-se
ao luxo de caminhar devagar. Cruzou com algumas pessoas
que apenas o olharam com curiosidade. Numa grande cidade,
cada um cuida de si.
O ambiente começou a mudar. Passou por várias lojas de
tamanho razoável e, mais ao longe, lobrigava edifícios altos
cujas silhuetas recortavam-se contra o céu.
De repente, viu o Cadillac preto com as janelas espelhadas,
andando devagar. O carro de Marino! Não havia tempo para se
esconder. Teria sido visto? O medo gelava-lhe as veias. Mesmo


suando, exausto, prosseguiu. Nada mais havia a fazer, a não
ser continuar a fuga.
Miles sabia que sua sorte terminara. Os que estivessem no
carro, provavelmente Angelo e outros, não deixariam de vê-lo,
se é que já não o tinham localizado. De que adiantava resistir?
Não seria mais simples entregar-se? No entanto, ele bem sabia
tudo que teria de enfrentar quando caísse nas mãos de seus
perseguidores. As histórias das vinganças desencadeadas
contra os traidores que ouvira na prisão e mesmo no clube. O
carro preto aproximava-se cada vez mais. Eles já o tinham
visto! Desespero!
Mudando de direção, Miles virou à esquerda, abriu uma porta
de vidro e entrou numa loja que, constatou, era de artigos
esportivos. Um vendedor cadavérico, mais ou menos da sua
idade, saudou-o.
—Bom dia, Senhor. Em que posso servi-lo?
—Queria ver umas bolas de boliche.
—Pois não! Para que preço e peso?
—O melhor. Cerca de 18 libras.
—De que cor?
—Não importa.
Pela vitrina, Miles vigiava a rua, onde apenas passavam alguns
pedestres alheios aos acontecimentos.


— Se o Senhor me acompanhar, posso lhe mostrar o que temos.
Ele seguiu o vendedor através de pilhas e pilhas de esquis,
artigos de
basquetebol, rúgbi, etc. De repente, olhando para trás, viu a
silhueta de um homem que olhava para dentro através da
vitrina. Uma segunda silhueta juntou-se à primeira. Seria
possível fugir pelos fundos? Mas logo deu-se conta de que seus
perseguidores não cometeriam o mesmo erro duas vezes.
Qualquer saída nos fundos, se houvesse, já estaria cercada.
—Eis uma bola excelente; custa 42 dólares.

—Está bem.
—Preciso da medida de suas mãos para...
—Não se preocupe.
Deveria tentar telefonar a Wainwright daqui mesmo? Mas
Miles sabia que os homens invadiriam a loja tão logo ele se
aproximasse do telefone.
O vendedor estava perplexo.
—O Senhor não quer?...
—Não, não se preocupe.
—Como queira Senhor. E que tal uma sacola para a bola? E,
talvez, uns sapatos próprios?
—Boa idéia. — Miles queria demorar ao máximo sua volta à
rua. Sem mesmo saber o que fazia, começou a examinar as
sacolas que o vendedor punha à sua frente. Escolheu uma ao
acaso, sentando-se depois Para experimentar os sapatos. Foi
então que uma idéia ocorreu-lhe: o cartão Keycharge que
Wainwright tinha enviado através de Juanita... o cartão em nome de


H. E. Lyncolp... H-E-L-P (SOCORRO).
Juntando, num gesto, os artigos que escolhera, ele perguntou:
— Quanto?
O vendedor consultou os preços e informou:
— 86 dólares e 95 centavos, mais o imposto.
— Vou pagar com meu cartão de crédito. — Tirou da carteira o
cartão do LYNCOLP, controlando o tremor das mãos.
— Está bem, mas...
— Eu sei, é necessário uma confirmação. Por favor telefone
para saber.
O empregado pegou o cartão e a nota de compra e dirigiu-se ao
escritório. Regressou logo depois.
Miles perguntou ansiosamente:
—Tudo bem?
—Claro, Sr. Lyncolp.

Miles calculou o que estaria ocorrendo agora na central dos
cartões de crédito Keycharge e no FMA. Receberia alguma
ajuda? Poderia fazer qualquer coisa? Então lembrou-se da
segunda instrução que Juanita lhe dera: depois de fazer uso do
cartão, prolongue ao máximo sua permanência no local, para
dar tempo a Wainwright de tomar providências.

— Assine aqui, por favor, Sr. Lyncolp. — O talão de conta do
Keycharge fora preenchido com o total da despesa. Miles
inclinou-se sobre o balcão e assinou.
De repente, sentiu uma mão tocar de leve em seu ombro. Uma
voz suave chamava-o:
— Milesy.
Quando se virou, Jules LaRocca lhe disse:
— Não adianta tentar qualquer golpe. Não lhe faria nenhum
bem, ao contrário!
Atrás de LaRocca, rostos impassíveis, estavam Angelo e Lou, e
mais um homem, o ex-pugilista que Miles não conhecia. Os
quatro dirigiram-se a ele, agarraram-no e dobraram seus
braços para trás.
— Ande, seu merda. — A ordem partira de Ângelo, em voz
baixa. Miles quis gritar, mas quem poderia ajudá-lo? Não
aquele empregado
cadavérico, pateta. A caçada terminara. A pressão em seus
braços aumentava. Sentiu que o levavam porta afora. O
vendedor correu atrás deles.
— Sr. Lyncolp! O senhor esqueceu a bola de boliche!
LaRocca respondeu:
— Pode guardá-la, idiota. Este cara já não precisa nem mesmo
de suas próprias bolas.
O Cadillac preto encontrava-se perto da loja. Miles foi atirado
para dentro dele, já em movimento.
No centro de autorização dos cartões Keycharge, o movimento
chegava ao clímax. Um grupo de 50 operadores estava de

plantão, na penumbra daquela espécie de auditório, cada qual
sentado à frente de um teclado encimado por uma tela
semelhante às de televisão.
A jovem operadora que recebeu a pergunta a respeito H. E.
LYN-COLP não deu importância ao fato, já que para ela era
apenas um dos milhares de consultas de rotina, todas
impessoais. Nem ela nem os demais operadores sabiam de
onde vinham os chamados, nem mesmo de que cidade ou
Estado. O crédito solicitado poderia ser para pagar a despesa
de uma dona de casa de Nova Iorque numa mercearia, ou a
roupa de um fazendeiro no Kansas; destinar-se à compra de
jóias desnecessárias feita por uma rica viúva de Chicago; pagar
a mensalidade de um universitário de Princeton: ajudar um
alcoólatra a comprar a quantidade de bebida que o mataria.
Mas a operadora ignorava estes detalhes. Se viesse a ser
necessário as especificações de uma compra poderiam ser
solicitadas, mas isso era raro. não interessava. O que
importava era o dinheiro, sempre o dinheiro mudando de mão.
E o posterior pagamento do crédito concedido. E era tudo.
O chamado começou com uma luz piscando na mesa da
operadora. Ela apertou um botão e falou pelo seu microfone:

— Qual o seu número, por favor?
O empregado que vendera os artigos de esporte a Miles Eastin
deu seu número. A operadora bateu as teclas correspondentes
e ele foi aparecendo na tela luminosa.
Ela perguntou:
—O número do cartão e a data da validade, por favor.
Outra vez, os detalhes apareceram na tela.
—Total da compra?
—90 dólares e 43 centavos.
Mais uma vez. o número surgiu na tela. A operadora apertou a
tecla correspondente ao computador, vários andares abaixo.

Numa fração de segundos este digeriu a informação, consultou
seus registros e apresentou a resposta:
APROVADO.
AUTORIZAÇÃO N.° 7 416 984
URGENTE. EMERGÊNCIA. NÃO. REPITO. NÃO DÊ CONHECIMENTO
VENDEDOR. AVISE SEU SUPERVISOR.
PONHA IMEDIATAMENTE EM AÇÃO INSTRUÇÃO DE
EMERGÊNCIA NÚMERO 17.


— A compra está aprovada — disse a operadora ao vendedor.
— Autorização número...
Ela agora falava mais devagar, tendo, ao mesmo tempo,
acionado um sinal conectado com a cabina do supervisor. Na
cabina outra moça. uma das seis supervisoras de plantão,
tomava conhecimento da informação que se reproduzia
simultaneamente em sua própria tela. Procurou no fichário a
instrução número dezessete.
De propósito, a primeira operadora hesitou ao dizer o número
da autorização e passou a repeti-lo. Os sinais de emergência
eram raríssimos mas, quando ocorriam, as operadoras sabiam
como agir. Um dos modos era ganhar tempo dando a
informação devagar. A experiência comprovava que
criminosos já haviam sido detidos ao usarem cartões de crédito
roubados ou falsificados, pelo simples fato de um computador
ser alertado. Através desse sistema, a vítima de um seqüestro
fora libertada, pessoas desaparecidas localizadas, recuperadas
obras de arte roubadas, e um filho trazido ao leito de morte de
sua mãe. Em casos assim, enquanto outros entravam em ação,
o atraso de alguns segundos por parte da operadora era de
extrema importância.
A supervisora, através da instrução 17, ficou sabendo que
Nolan Wainwright, vice-presidente, chefe da Segurança do FM
A devia ser imediatamente avisado por telefone que um cartão
Keycharge, em nome de H. E. LYNCOLP fora apresentado, e

onde. Batendo no teclado, ela obteve do computador mais uma
informação:
PETE'S SPORTING GOODS e o endereço. Entrementes, já telefonara
a Wainwright, que atendeu pessoalmente, manifestando
um interesse que não passou despercebido à supervisora.
Terminou aí a participação dela no caso.
Mas para Nolan Wainwright dava-se o oposto. Agora, sim, é
que começaria a agir.
A partir da discussão que tivera fazia uma hora e meia com
Alex Vandervoort, durante a qual fora informado do seqüestro
de Juanita Nú-hez e de sua filha, Wainwright mantivera
contatos telefônicos contínuos, às vezes dois ao mesmo tempo.
Por quatro vezes tentara alcançar Miles Eastin no Double-
Seven, para avisá-lo do perigo que corria. Consultara o FBI e o
Serviço Secreto. De maneira que, agora, o FBI investigava a
fundo o que parecia ser o seqüestro da Sra. Núhez, tendo dado
às polícias municipal e estadual uma descrição minuciosa dela
e de sua filha. Estabeleceu-se que um grupo de vigilância do
FBI vigiaria o Double-Seven tão logo fosse recrutado o pessoal
necessário.
No que se referia ao clube, as providências se limitaram a isso,
pelo menos no momento. Conforme explicou Innes:

— Se entrarmos lá e fizermos perguntas, mostraremos que já
desconfiamos de alguma coisa. Quanto a uma devassa, não
temos base para conseguir o devido mandado. Além do mais,
conforme o próprio Eastin informou, o Double-Seven não
passa de um local de encontro, sem muito de ilegal, exceto um
pouco de jogo.
Innes concordou com a opinião de Wainwright de que Juanita
Núhez e sua filha não estariam no clube.
O Serviço Secreto, com menores facilidades que o FBI,
ocupava-se em descobrir o local da oficina gráfica, entrando
em contato com alcagüe-tes e procurando qualquer centelha de

informação ou rumor que pudesse ser uma pista. No momento,
a rivalidade e o ciúme entre aqueles órgãos haviam sido postos
de lado.
Quando Wainwright recebeu o aierta sobre o cartão Keycharge
de H. E. LYNCOLP, comunicou-se logo com o FBI.
Informaram-lhe que


Innes e Dalrymple estavam ausentes mas que poderiam ser
encontrados pelo rádio. Wainwright ditou um recado e
esperou. A resposta veio logo: aqueles agentes estavam no
centro da cidade, não muito longe do endereço da loja e já se
dirigiam para lá. Poderia ele também ir?
Wainwright sentiu-se aliviado por entrar em ação.
Do lado de fora da Pete's Sporting Goods. Innes pedia
informações às pessoas que se encontravam por perto,
enquanto esperava Wainwright. Dalrymple, no interior,
completava a declaração feita pelo vendedor. Quando
Wainwright chegou, eles lhe relataram o pouco que conseguiram
saber.
O chefe da Segurança indagou:


— Nenhuma descrição dos tipos?
Innes meneou a cabeça.
— O cara que atendeu Eastin se borrara de medo. Nem sabia
dizer ao certo se eram três ou quatro homens que entraram na
loja. Disse que tudo aconteceu tão depressa que não pode
descrever e nem mesmo identificar qualquer deles. E ninguém,
dentro ou fora da loja, se lembra de ter visto um carro.
O rosto de Wainwright mostrava ansiedade.
— E agora?
— Você já foi policial — disse Innes. — Sabe como é na vida
real. Ficamos à espera que alguma coisa venha a acontecer.

22


Juanita ouviu barulho de briga e som de vozes. Agora tinha
certeza de que haviam apanhado Miles.
Ela perdera a noção do tempo. Não tinha a menor idéia de
quando dera o nome de Miles Eastin, traindo-o para terminar
com o horror da tortura de Estela. Logo após. fora amordaçada
de novo. Vez por outra os homens vinham verificar as cordas
que a amarravam e magoavam.
Durante algum tempo, adormecera, ou melhor, caíra numa
espécie de torpor, já que qualquer descanso era de fato
impossível. O barulho fez que voltasse a si. Suas pernas
imobilizadas protestavam de dor. Queria gritar, mas a
mordaça a impedia. Procurou dominar-se, evitando lutar
contra os laços que a prendiam, pois seria inútil e apenas
tornaria pior a sua situação.
A sua frente, estava Estela também amordaçada e amarrada à
cadeira. Tinha os olhos fechados; parecia dormir, com a cabeça
tombada Para frente. O barulho que acordou Juanita não
perturbou a menina. A mãe só desejava que a exaustão
mantivesse a criança tão longe quanto possível daquilo tudo.
A mão direita de Estela apresentava uma grande e feia
queimadura feita pelo charuto. Pouco depois que os homens
saíram, um deles, que os demais chamavam de Lou. voltou
com uma bisnaga de unguento com que cobriu a queimadura
de Estela, olhando de viés para Juanita como se quisesse dizer
que era tudo o que ele podia fazer. Então, também ele se foi.
Estela contorcera-se quando ele lhe aplicou o remédio,
tentando falar alguma coisa através da mordaça: em seguida
caíra num sono profundo.
Os sons que Juanita ouvira, aproximavam-se. Provavelmente
provinham da sala ao lado e ela achava que a porta de


comunicação estava aberta. Em seguida, ouviu um protesto de
Miles: depois um baque surdo, um gemido e silêncio total.
Talvez houvesse passado um minuto. Ouviu de novo a voz de
Miles, agora mais distinta. "Não! Oh, Deus, não! Por favor!
Eu..." Ela ouviu um barulho semelhante ao de marteladas. A
voz de Miles transformou-se num grito frenético, angustiante,
dilacerante, o mais terrível grito que ela ouvira em toda a vida.
Parecia não ter fim...

Se Miles tivesse podido se matar no carro, ele o teria feito de
bom grado. A partir de seu acordo com Wainwright, sabia que
uma morte fácil não era nada. comparada com o que esperava
um delator, um espião apanhado. Ainda assim, tudo que
esperava não se comparava à punição incrivelmente cruel que
lhe estava sendo aplicada.
Suas pernas e coxas foram apertadas cruelmente uma à outra.
Os braços forçados de encontro a uma mesa de madeira
rústica. As mãos e pulsos estavam sendo presos à mesa... presos por
pregos de carpinteiro... presos com martelo... Um prego já estava
penetrando no seu pulso esquerdo, e mais dois na parte larga da mão.
aquela que fica entre o pulso e os dedos... as ultimas pancadas do
martelo haviam estilhaçado seus ossos... Um prego fora-lhe enterrado
na mão direita cortando, rasgando a pele e os músculos... Nenhuma
dor poderia ser igual, jamais... Oh. Deus. me ajude!... nenhuma dor
poderia ser maior. Miles estremeceu, gritou implorou, gritou
outra vez. Mas as mãos que prendiam seu corpo apertavam-no
ainda mais. As marteladas, após uma ligeira pausa,
recomeçaram.

— Ele não está gritando bastante — Disse Marino
dirigindo-se a Angelo, o torturador. — Quando você acabar
com isto tente também pregar alguns dedos das mãos desse
filho da puta.

Tony Bear. que mastigava o charuto enquanto tudo
presenciava, desta vez não se procupara em ficar oculto.
Mesmo que fosse identificado. Eastin seria em breve um
homem morto. Mas. antes que morresse, era necessário
lembrá-lo, e a quem viesse a ter conhecimento do ocorrido, que
a morte de um delator nunca é uma morte rápida.

— Agora, sim — disse Marino.
Os gritos de agonia de Miles aumentavam de volume enquanto
mais um prego atravessava o dedo médio de sua mão
esquerda, entre as duas falanges. Podia-se ouvir o barulho dos
ossos estilhaçados. Quando Ângelo se preparava para repetir o
mesmo processo com o dedo médio da mão direita de Miles.
Tony Bear ordenou:


— Pare!
E dirigindo-se 'a Eastin disse:
— Agora acabe com esse barulho! E comece a falar.
Os gritos de Miles se transformavam em soluços e urros, sob a
tortura. Ninguém o segurava mais; não havia necessidade
disso.
— Muito bem — disse Marino a Ângelo —já que ele não quer
falar
prossiga.
— Não! Não! Eu falo! Eu falo! Eu falo!
Miles conseguiu engolir os soluços. O som mais alto que se
ouvia eram seus estertores.
Tony Bear fez um gesto para que Ângelo saísse. Os outros
permaneceram na sala, em volta da mesa. Eram: Lou; Punch
Clancy, o guarda-costa extra que participara do seqüestro de
Miles na loja; LaRocca, preocupado em saber até que ponto
seria acusado por ter descoberto e introduzido Miles no meio, e
o velho falsário Danny Kerrigan, que se sentia nervoso e
indisposto. Encontravam-se na oficina de impressão. O velho

preferia, em ocasiões como esta, ausentar-se mas Tony Bear
exigira dessa vez que ele ficasse.
Dirigindo-se a Eastin, Marino disse:


— Quer dizer então que durante todo esse tempo você não
passou de um pombo-correio, de um espião, para aquele banco
nojento?
— Sim.
— First Mercantile?
— Sim.
— E a quem dava as informações?
— A Wainwright.
— E você descobriu o quê? Relatou tudo que sabia?
— Sobre... o clube... os jogos... sobre quem freqüenta o clube.
— Incluindo a mim?
— Sim.
— Filho da puta!
Marino aproximou-se de Miles e deu-lhe um tremendo soco na
cara.
O corpo do prisioneiro chegou a erguer-se com a força do
golpe, mas a pressão dos pregos em suas mãos forçaram-no a
voltar à posição inicial. Seguiu-se um silêncio interrompido
apenas pelos soluços e gemidos. O outro continuava com o
charuto na boca. Em seguida voltou ao interrogatório:
— E o que mais você descobriu, seu merdinha?
— Nada... nada!
O corpo de Miles tremia incontrolavelmente.
— Você está mentindo. — Tony Bear virou-se para Danny
Kerrigan. — Me dê aquele líquido que você usa no trabalho de
impressão das notas.
Desde que o interrogatório começara e até agora, o velho
Danny olhava para Miles com ódio. Agora, sentia-se satisfeito.
— Claro, Sr. Marino.

Ele alcançou, numa prateleira, uma botija com tampa de
plástico. O rótulo dizia: ÁCIDO NÍTRICO USADO APENAS
PARA GRAVAÇÃO. Retirando a tampa. Danny verteu com
perícia um pouco do líquido para uma caneca de louça. Com o
maior cuidado para não derramar o líquido, pousou-a na mesa
próxima de Marino, que continuava a fitar Miles. Ao lado, pôs
um pincel.

Marino pegou o pincel e molhou-o no ácido. Depois, da
maneira mais casual possível, passou-o em um dos lados do
rosto de Eastin. Durante um ou dois segundos, enquanto o
ácido penetrava na pele, não houve reação; a seguir, Miles
começou a gritar, numa agonia nova e diferente, à medida que
a queimadura se espalhava e se aprofundava. Enquanto os
outros observavam fascinados, a carne, sob o efeito do ácido,
começava a arder, a derreter-se; de rosa tornou-se marrom
escuro, quase preta.

— Tony Bear molhou o pincel outra vez na caneca.
— Vou-lhe perguntar somente mais uma vez, seu puto. Se não
me responder, vou pintar o outro lado. Que mais você
conseguiu descobrir e relatar?
Os olhos de Miles tomaram um aspecto selvagem, como o de
um animal acuado. E ele mal conseguiu dizer:
— O dinheiro... falso.
— E depois?
— Eu comprei algum... mandei-o ao banco... depois dirigi o
carro... e levei o resto para Louisville.
— E depois?
— Cartões de crédito... carteiras de motorista também falsas.
— E você sabe quem é o responsável? Quem imprimiu o
dinheiro falso.
Miles mexeu com a cabeça, na medida que podia, indicando
Danny e disse:



— Danny.
— Quem lhe disse.
— Ele mesmo.
— E, depois disso, você cuspiu tudo que sabia para aquele
policial do banco? Ele sabe tudo isso?
— Sabe.
Tony Bear virou-se. como um selvagem para Danny.
— Seu bêbado estúpido, seu velho idiota! Você não é nada
melhor que ele!
O velho tremia.
— Sr. Marino, eu não estava bêbado. Apenas pensei que ele...
— Cale a boca! — Tony Bear parecia pronto a bater no velho;
depois mudou de idéia. Voltou para Miles.
— E que mais eles sabem?
— Nada mais!
— Sabem onde é feita a impressão das notas? Sabem este
endereço?
— Não.
Tony Bear voltou a segurar o pincel, levou-o ao ácido e retirou-
o molhado. Miles, com os olhos, seguia cada movimento. A
experiência lhe dizia o que tinha de responder. Então gritou:
— Sim! Sim, sabem!
— Você mesmo contou àquele vagabundo encarregado da
Segurança do banco?
Dentro do maior desespero, Miles mentiu:— Sim, sim!
— E como é que você veio a saber? — Ele continuava
segurando o pincel.
Miles sabia que teria que encontrar uma resposta qualquer.
Qualquer resposta que viesse a satisfazer seu torturador.
Inclinou a cabeça em direção a Danny e disse:
— Ele me contou.

— Você é um mentiroso! Seu mentiroso, nojento, cretino! — O
rosto do velho se transtornara, sua boca se abria e fechava e o
queixo tremia de emoção. Ele tentou apelar para Tony Bear. —
Sr. Marino, esse cara está mentindo! Juro que está mentindo.
Isto não é verdade. — Mas o que viu nos olhos do outro
aumentou seu desespero. Então Danny dirigiu-se a Miles. —
Diga-lhe a verdade, seu filho da puta! Diga!
Desesperado, já sabendo o que viria a sofrer, Danny olhou em
volta, procurando uma arma. E viu a caneca de ácido.
Segurando-a, ele jogou o resto no rosto de Miles.
Ouviu-se um novo urro, interrompido repentinamente. A
medida que o cheiro de ácido misturado ao de carne queimada
se fazia sentir. Miles tombou para frente, inconsciente, por
cima da mesa à qual estavam pregadas suas mãos sangrentas,
laceradas, mutiladas.
Mesmo se entender com exatidão o que estava acontecendo
com Miles, Juanita sofria, ouvindo seus gritos, seus pedidos,
até que não ouviu mais a voz dele. Então começou a pensar
com frieza — porque nessa altura seus sentimentos estavam a
tal ponto entorpecidos que nenhuma emoção conseguia afetála
— que talvez ele tivesse morrido. Indagava se ela e Estela
continuariam vivas.
Apesar de tudo, sentia-se recompensada por uma só coisa:
Estela não ficara desesperada. Talvez o sono não só
conseguisse atenuar seus sofrimentos, mas também a fizesse
esquecer o que estava vivendo. Juanita começou a rezar para
Nossa Senhora, como não o fazia há muitos anos, implorando
para que lhe desse e a Estela uma morte rápida.

Logo depois, julgou perceber uma nova espécie de atividade
na sala ao lado. Assemelhava-se ao arrastar de móveis. Ouviu

o barulho de gavetas sendo abertas e fechadas, e de coisas
pesadas sendo carregadas com dificuldade. Em certo

momento, ouviu um barulho de metal caindo no cimento, bem
como os xingarnentos que se seguiram.
Então, para sua surpresa, o homem que agora sabia chamar-se
Lou, acercou-se dela e começou a desembaraçá-la rapidamente
das cordas que a prendiam. Ela supôs que ia ser levada dali,
trocando um inferno por outro. Quando acabou de desamarrála,
Lou fez o mesmo com Estela.

— Levantem-se! — ele ordenou.
A menina, meio adormecida, obedeceu e começou a chorar
baixinho, os soluços passando através da mordaça. Juanita
queria ampará-la, mas ainda não conseguia se mexer; tinha as
pernas entorpecidas, paralisadas pela cãibra.
— Escute bem — disse-lhe Lou. — Você teve muita sorte. O
chefe vai deixar que vocês sejam soltas. Claro, irão vendadas e
levadas dê carro para muito longe. Depois largadas. Você não
sabe onde esteve, de modo que nunca poderá trazer ninguém
até aqui. Mas se der com a língua nos dentes, se falar com qualquer
pessoa, nós vamos descobri-la onde quer que esteja e, antes de
você, mataremos sua filha. Estou sendo claro?
Mal entendendo o que ele dizia, Juanita concordou com a
cabeça.
— Pois então, ande!
Lou indicou-lhes uma porta. Ainda não era sua intenção
vendá-las. Juanita, apesar do terror que a possuía, percebeu
que sua memória privilegiada poderia ser-lhe útil.
Ao subir alguns degraus de cimento, ela apoiou-se na parede e
sentiu ânsias de vômito. Na sala que acabara de atravessar
havia visto Miles, ou o que restava dele, com o corpo jogado
numa mesa, as mãos feitas uma pasta sangrenta, tendo rosto,
cabelo e couro cabeludo queimados de modo irreconhecível.
Lou levara-as depressa através da sala, mas ela teve uma
rápida visão daquela terrível realidade. Percebeu que Miles

ainda não morrera, mas que pouco faltava para isso. Quis
deter-se, mas Lou empurrou-a dizendo:
—Vamos, em frente! E continuaram a subir a escada.
A visão de Miles fixara-se em sua mente. Que poderia fazer para
ajudá-lo? Nada, claro. Mas se fossem libertadas, talvez surgisse
um meio de trazer-lhe auxílio. Duvidava disso, pois não tinha
a menor idéia de onde se encontravam nem havia a menor
possibilidade de descobrir. No entanto, sabia que alguma coisa
teria que fazer. Alguma coisa para servir como uma espécie de
expiação, por pequena que fosse, de seu terrível sentimento de
culpa: traíra Miles. Fosse qual fosse o motivo, dissera seu
nome. Devido a isso ele fora localizado, trazido até ali e tivera

o fim que ela acabava de ver.
Aos poucos surgiu-lhe a semente de uma idéia. Juanita
procurou coordená-la, eliminando outros pensamentos, até
mesmo Estela. Todo o
sucesso dependeria da acuidade de seus sentimentos e de sua
memória, bem como de não estar vendada, até entrar no carro.
Quando chegaram ao último degrau, viraram à direita e
entraram numa garagem. Com suas paredes nuas, parecia com
tantas outras, para dois carros, de uma casa ou pequeno
negócio. Voltou a ouvir os ruídos anteriores, semelhantes ao
arrastar de móveis. Havia ali um carro, não o grande que as
transportara pela manhã, mas um Ford verde escuro, do qual
não conseguiu ver a placa de licença.
Olhando disfarçada mas atentamente em volta, Juanita viu
encostada a uma das paredes uma cômoda de madeira escura,
envernizada, mas em tudo diferente das que conhecia. Parecia
ter sido serrada pelo meio, no sentido vertical. Ao lado da
cômoda estava uma espécie de aparador de sala de jantar,
serrado do mesmo modo peculiar. Uma de suas metades era
carregada para fora por dois homens.
Lou abriu a porta traseira do carro e ordenou:

— Entrem.
Na mão, trazia duas tiras de pano escuro e grosso: as vendas.
Juanita entrou em primeiro lugar, mas, de propósito, tropeçou
e caiu, segurando-se ao encosto do banco dianteiro do carro,
para ter a oportunidade que buscava para ver o marcador das
distâncias percorridas pelo veículo. Teve apenas uma fração de
segundo para ler os números que ele marcava: 25714.8. Fechou
os olhos, tentando fixá-los na memória.
Estela seguiu-a; Lou vendou-as e sentou no banco traseiro,
empurrando-as para o chão.
— Vocês vão sentadas aí. Não façam barulho, nem procurem
confusão, ou vão se arrepender.
Agachando-se, abraçada à filha, Juanita dobrou as pernas e
conseguiu ficar virada para a frente. Ouviu quando alguém
mais entrou no carro. O motor deu partida e as portas da
garagem abriram-se com barulho. Começaram a rodar.
No momento em que o carro começou a andar, Juanita
concentrou-se, como nunca o fizera, pois queria memorizar o
tempo do percurso e, se possível, a direção seguida. Começou
a contar os segundos, de modo que lhe ensinara um fotógrafo
amigo: Mil e UM; mil e DOIS; mil e TRÊS; mil e QUATRO...
Sentiu que o carro dava marcha a ré; a seguir, contou oito
segundos enquanto ele seguia em linha reta; depois, diminuiu
a velocidade, quase parando. Seria uma estrada? Talvez. Uma
estrada longa? O carro movia-se devagar, como se fosse entrar
numa rua... Vira à esquerda. Agora anda mais rápido. Juanita
recomeçou a contar. Dez segundos. Diminuiu a marcha. Virou à
direita... Mil e UM; mil e DOIS; mil e TRÊS... Vira à esquerda...
Anda mais depressa... Um trecho mais largo... Mil e QUARENTA E
NOVE; Mil e CINQÜENTA... Marcha constante... Sim, anda mais
devagar. Uma espera de quatro segundos, de novo em movimento.
Talvez um sinal de trânsito... Mil e OITO...


Deus meu! Para o bem de Miles, fazei que eu consiga me
lembrar!

Mil e NOVE; Mil e DEZ. Vira à direita...

Deixe de lado todo e qualquer pensamento! Concentre-se nos
movimentos do carro! Conte o tempo, rezando, desejando que
sua memória tão fiel que já lhe ajudou a descobrir que houvera
roubo de dinheiro no Banco, bem como a escapar da armadilha
de Miles, sirva agora para salvar a ele próprio!

... Mil e VINTE; Mil e vime dólares. Não!... Mãe de Deus! Por favor,
não deixe que meus pensamentos fujam...
Mais um longo trecho, numa estrada asfaltada, em alta velocidade...
Sentia seu corpo balançar... A estrada estava virando para a esquerda;
uma longa curva suave... A marcha diminuindo,
diminuindo, quase parando. Juanita contava: sessenta e oito
segundos... Vira a esquerda. Recomeça outra vez. Mil e UM; mil e
DOIS... E assim prosseguia ela lentamente.
À medida que o tempo passava, a possibilidade de que viesse a
se lembrar, a reconstituir tudo que procurava fixar na memória,
parecia cada vez mais remota.


23


— Fala o Sargento Gladstone, do Setor Central de
Comunicações, Polícia Municipal — anunciou ao telefone a
voz anasalada e monótona. — Tenho instruções para lhe
notificar imediatamente se Juanita Núhez ou sua filha Estela
forem localizadas.
O Agente Especial Innes ficou tenso e, por instinto, curvou-se
para o telefone.

— E qual a informação que o senhor tem, Sargento?
— O rádio do carro-patrulha acaba de informar que uma
mulher e uma criança, correspondendo à descrição feita, foram
encontradas vagando perto do cruzamento de Cheviot
Township e Shawnee Lake Road. Estão sob custódia. Os
policiais vão levá-las agora para a 20.a Delegacia.
Innes cobriu o bocal do telefone com a mão e disse baixinho a
Nolan Wainwright, que se achava sentado do outro lado da
mesa, no escritório central do FBI:
— Polícia Municipal; acharam a Núnez e a filha.
Wainwright apertou com as mãos a ponta da mesa.
— Pergunte em que condições foram encontradas.
— Sargento — disse Innes — elas estão bem?
— Já lhe disse tudo que sei, chefe. Se quiser mais detalhes,
telefone para a 20a.
Innes anotou o número da delegacia e ligou para lá.
Respondeu-lhe o Tenente Fazackerly.
— Claro. Espere um pouco, pois está chegando um relatório
pelo outro telefone — disse Fazackerly rapidamente.
Innes e Wainwright aguardaram com ansiedade.
— Segundo nossos homens, a mulher apanhou um bocado —
disse Fazackerly. — Tem o rosto machucado e cortado. A
menina tem uma horrível queimadura em uma das mãos. Os
policiais já lhes prestaram os primeiros socorros. Não foram
mencionados outros ferimentos.
Innes transmitiu as informações a Wainwright, que cobriu o
rosto com as mãos, como se estivesse rezando. O tenente
continuava a falar.


— Há qualquer coisa de esquisito aqui.
— O que é?
— Os policiais no carro dizem que a mulher, Núhez, recusa-se
a falar. Tudo que ela pediu foi lápis e papel. Eles lhe deram e

ela está fazendo mil rascunhos, como uma louca. Disse
qualquer coisa a respeito de registros que guardara de
memória e que precisava passar para o papel.

O agente Innes suspirou:

— Jesus Cristo!
Lembrava-se do dinheiro roubado no FM A e da incrível
precisão que era quase uma anomalia da memória de Juanita
Núhez.
— Escute — disse ele. Preste atenção; mais tarde eu lhe explico
em detalhes, pois já estamos a caminho. Avise aos policiais do
carro para que todos se mantenham no mais absoluto silêncio e
que não dirijam a palavra à Sra. Núnez. E que a ajudem da
maneira que precisar. E quando ela chegar à Delegacia, tentem
animá-la. Mas deixem que continue a escrever enquanto
quiser. Diga-lhes que cuidem dela como se fosse algo muito
especial. — Fez uma pausa e acrescentou: — o que, de fato, ela
é.
Curta marcha á ré. Da garagem.
Para a frente. 8 segundos. Uma quase parada (Estrada?) Vil 'a à
esquerda. 10 segundos. Velocidade média. Vira à direita. 3 segundos.
Vira à esquerda. 55 segundos. Primeiro devagar, depois mais rápido.
Para. 4 segundos (sinal de tráfego?)
Em frente. 10 segundos. Velocidade média.
Vira á direita. Estrada acidentada (distância curta), depois suave. 18
segundos.
Diminui a marcha. Pára. Recomeça logo. Curva à direita. Pára e recomeça.
25 segar dos.
Vira á esquerda. Linha reta, suave, 47 segundos.
Diminui a marcha. Vira á direita...


Assim Juanita acabou seu sumário do ocorrido, que ocupou
sete páginas manuscritas.


Eles trabalharam, conjunta e intensamente, durante uma hora.
na sala dos fundos da delegacia, usando mapas em escala
grande, mas o resultado não levava a nenhuma conclusão.
As anotações de Juanita surpreenderam a todos. Estavam
presentes Innes e Dalrymple. Jordan e Quimby do Serviço
Secreto, que se haviam juntado aos outros no chamado de
emergência, e ainda Nolan Wainwright. As anotações eram
minuciosas e Juanita sustentava: absolutamente corretos.
Afirmava que nunca pedira tanto à sua memória como desta
vez. E tinha certeza de que mesmo nas horríveis circunstâncias
em que se encontrava, tudo que memorizara era exato.
Além das anotações, eles tinham mais um dado em que se
basear: a distância percorrida.

As mordaças e as vendas foram removidas dos rostos de
Juanita e de Estela pouco antes que fossem jogadas do carro
numa rua deserta do subúrbio. Juanita fingiu titubear e
conseguiu dar outra olhadela no marcador da quilometragem:
25 738.5. Portanto, haviam andado 23.7 milhas.

Teria o carro andado numa direção certa ou teria feito curvas
para que o trajeto parecesse mais longo a fim de confundi-la?
Mesmo com todos os dados fornecidos pela moça. não era
possível ter certeza. Fizeram o melhor trabalhando com afinco
e rapidez, cobrindo toda a área de um lado a outro, da frente
para trás, na suposição que o carro tivesse ido para este lado
ou para aquele, virado para cá ou para lá. andado até este ou
aquele ponto da estrada. Mas todos sabiam o quanto a
velocidade indicada pode ser inexata, em termos de distância
percorrida. Além do mais. as velocidades haviam sido
calculadas por Juanita estando ela vendada. Este fator poderia têla
enganado a tal ponto que o primeiro erro levasse ao
segundo, e assim por diante, tornando aquele trabalho de uma
absoluta perda de tempo. Mas havia uma possibilidade de que


conseguissem traçar a ^ota ao inverso desde o local onde ela
tinha sido capturada, ou pelo menos aproximadamente. E,
incrível como pudesse parecer, existiam possibilidades de que,
afinal, um dos planos tivesse êxito.

A melhor idéia partiu do agente do Serviço Secreto Jordan.
Sobre um mapa da área ele desenhou uma série de linhas que
representavam as direções mais prováveis de terem sido
seguidas pelo carro que transportava Juanita e Estela. Então,
no lugar que julgou o mais apropriado, fez um círculo.

— Deve ser por aqui. — E indicou com o dedo. — Em algum
lugar dentro desta área.
No silêncio que se seguiu. Wainwright ouvia o estômago de
Jordan roncar, como já ouvira de outras vezes, e cogitou se ele
seria admitido em tarefas que demandassem silêncio absoluto.
Dalrymple indicou com o dedo.
— A área a que você se refere abrange pelo menos cinco milhas
quadradas.
— Pois então, vamos vasculhá-la — respondeu Jordan. — Em
grupos de carros. Sua organização, a nossa e. claro, com ajuda
da polícia local.
O Tenente Fazackerly. que se juntara a eles. disse:
— Mas afinal de contas, o que estaremos procurando?
— Se você quer saber a verdade, juro que eu, pelo menos, não
sei — disse Jordan.
Juanita rodou no carro do FBI com Innes e Wainwright,
dirigido por este último, enquanto Innes manipulava uma
unidade portátil com dois rádios que podia comunicar-se
diretamente com os demais carros, e que integrava os cinco
fornecidos pelo FBI, além de outro rádio transmissor-receptor
sintonizado na faixa daquele órgão.
Antes da busca sob a direção do tenente da polícia local eles
setorizaram a área marcando-a com uma cruz e lançaram cinco

carros na cobertura: dois do FBI, um do Serviço Secreto e dois
da polícia local. Jordan e Dalrymple dirigiam cada um seu
carro, ao lado de um detetive local, dando os detalhes
necessários. Caso fosse preciso, outras patrulhas da força
municipal seriam chamadas para apoio adicional.
De uma coisa todos tinham certeza: o local onde Juanita e sua
filha estiveram confinadas era o centro de falsificação. A
descrição geral, e alguns detalhes que ela observara, levavam a
esta quase certeza. Em vista disto, as instruções para todas as
unidades especiais eram as mesmas: procurem, achem e
relatem qualquer atividade fora do comum que possa ser
relacionada com um centro de crime organizado, especializado
em falsificação. As pessoas convocadas concordavam que as
instruções eram vagas, mas ninguém fora capaz de dar algum
dado, alguma sugestão mais específica. Conforme disse Innes:

— Só podemos contar com isso.
Juanita ia no banco traseiro.
Havia decorrido quase duas horas desde que ela e Estela foram
jogadas do carro, com a ordem de não olharem, enquanto o
Ford verde escuro partia veloz. Desde então. Juanita recusara
qualquer tratamento exceto um curativo de emergência no
rosto contundido e nas lacerações das pernas. Sabia que estava
horrível, com o vestido rasgado e imundo, mas sabia também
que se conseguissem encontrar Miles a tempo de salvá-lo tudo
o mais poderia esperar, até mesmo a sua preocupação por
Estela, que fora internada em um hospital para tratamento da
queimadura e para ficar em observação clínica. Margot
Bracken, que chegara à delegacia pouco depois de Wainwright,
acompanhara a menina ao hospital.
Já era meio-dia.
Juanita sentia-se exausta, em especial devido ao tremendo
esforço mental que fizera para escrever tudo aquilo que
guardara na memória. No entanto, conseguira ainda responder

a interrogatórios que pareciam sem fim, feitos pelo FBI e pelo
Serviço Secreto, cujos homens insistiam em descer aos menores
detalhes de sua experiência, na esperança de que algum
fragmento ainda não levado em Consideração pudesse levá-los
ao que queriam: um local específico. Até então, não haviam
conseguido muito.
Agora Juanita. sentada ao lado de Wainwright. só conseguia
pensar em Miles. ou melhor, no que tinha visto dele. O quadro,
de mistura com remorso e angústia, ficara gravado em sua
mente. Duvidava se algum dia viria a esquecê-lo. Uma
pergunta martelava seu cérebro: se eles conseguissem localizar

o centro de falsificação, não seria tarde demais para salvar
Miles?
A área compreendida pelo círculo que o agente Jordan havia
delimitado, a leste da cidade, era bastante diversificada.
Tratava-se de uma zona comercial, com depósitos e uma
grande parte ocupada pela indústria leve. Esta última era onde
mais se concentrava a busca e a vigilância das patrulhas. O
resto era residencial, numa gama que ia de pequenos bangalôs
a mansões.
Aos olhos dos patrulha dores. que se comunicavam entre si
pelos rádios dos carros, a atividade em toda a área era normal
e rotineira. Até mesmo certos acontecimentos extraordinários
tinham aspectos normais. Um homem, ao comprar um
equipamento de pintura, tropeçara nele e quebrara a perna.
Não muito longe, um carro perdera os freios e entrara de frente
pelo saguão de um teatro vazio.
— Talvez o motorista pensasse que se tratava de um drive-in —
disse Innes: mas ninguém estava para graças.
Na parte industrial, o corpo de bombeiros debelara o início de
incêndio numa fábrica de colchões de água. tendo um dos
detetives municipais feito a devida inspeção. Numa mansão


realizava-se um chá de caridade. Em outra, um caminhão da
Alliance Van Lines carregava uma mudança. Entre dois
bangalôs, operários consertavam o vazamento de uma adutora
de água. Dois vizinhos, após violenta discussão, socavam-se na
calçada; o agente secreto Jordan separou-os.
E assim por diante.
Isso. durante uma hora. Findo esse tempo, permaneciam na
estaca zero.

— Estou tendo uma impressão esquisita — disse Wainwright.
— Uma impressão que costumava ter quando trabalhava na
polícia, de que tinha passado por cima de alguma coisa muito
importante, sem se dar conta.
Innes retrucou:
— Sei o que quer dizer. As vezes eu também tenho a impressão
de que há alguma coisa bem debaixo do meu nariz; só que eu
não a vejo.
— Juanita — perguntou Wainwright — será que existe mais
alguma coisa, qualquer coisa, por mínima que seja, que você
deixou de nos dizer?
Ela respondeu com segurança:
— Já lhes contei tudo, tudo.
— Pois então tenha paciência, mas vamos repetir de novo.
A seguir, o chefe da Segurança do FM A indagou:
— Quando Miles parou de gritar, você nos disse que ouviu
uma espécie de barulho.
Juanita corrigiu-o:
— No, una conmoción; barulho e movimento de gente. Ouvia
pessoas andando, móveis sendo mudados de lugar, gavetas
sendo abertas e fechadas. Ruídos dessa espécie.
— Talvez estivessem procurando qualquer coisa — sugeriu
Innes. — Mas o quê?
— Quando você estava saindo — perguntou Wainwright. —
teve alguma idéia de que espécie de atividade se tratava?

— Por ultima vez, yo no sé. Já lhes disse que fiquei horrorizada
com o que tinha visto de Miles para poder observar outras
coisas. — Ela hesitou. — Bem, havia os homens na garagem
carregando aqueles móveis esquisitos.
— Sim. você nos contou: mas não conseguimos encontrar uma
explicação para isso — disse Innes.
— Espere! Talvez haja uma explicação — exclamou
Wainwright. Innes e Juanita olharam-no interrogativamente.
Ela cerrara as sobrancelhas e parecia concentrado ao extremo.
— Os ruídos que Juanita ouvira... não estariam eles procurando
alguma coisa, enquanto encaixotavam objetos, para se
mudarem?
— Poderia ser — concordou Innes. — Mas talvez não
estivessem mudando verdadeiros móveis e sim máquinas,
quem sabe se máquinas de impressão. E não móveis.
— A menos que os móveis fossem uma espécie de camuflagem
— disse Wainwright. — Móveis falsos.
Olharam-se um ao outro e, na mesma hora. ambos tiveram a
mesma idéia.
— Pelo amor de Deus — gritou Innes. — Aquele caminhão de
mudança!
Wainwright já estava dando marcha à ré no carro e fazendo
uma virada relâmpago.
Innes falou pelo microfone, numa voz tensa e nítida:
— Do grupo-líder, a todas as unidades especiais! Dirijam-se
para uma casa grande, cinza, que fica perto do final da
Earlham Avenue. Localizem um furgão de mudanças da
Alliance Van Lines. Interceptem o veículo e detenham seus
ocupantes. Esta é a unidade local convocando todos os carros
na vizinhança. Código 10-13.
Código 10-13 significava: velocidade máxima, luzes, e sirenes
ao máximo. Wainwright pisou no pedal até o fundo.

— Cristo — lamentava-se Innes — nós já passamos duas vezes
por este lugar e, da última, o caminhão já estava quase lotado!
Quando você sair daqui — disse Marino ao motorista do caminhão
— dirija-se para a costa oeste. Vá com calma, como se
estivesse apenas levando uma carga comum; descanse cada
noite. Mas comunique-se comigo; sabe onde me encontrar. Se
não receber ordens em contrário, continue até Los Angeles.

— Está bem, Sr Marino — respondeu o motorista, um homem
de confiança que sabia de tudo e que estava certo de receber
uma excelente gratificação pelos riscos que enfrentaria.
Aliás, ele já tinha feito a mesma coisa outras vezes, quando
Tony Bear abandonara uma casa, deixando toda a maquinaria
de impressão armazenada no caminhão rodando pela estrada,
fora de perigo, de um lado para outro do país. até que
desaparecesse qualquer suspeita.
— Já está tudo arrumado; acho que podemos partir. Até breve,
Sr. Marino — disse o motorista.
Este ficou mais tranqüilo. Nunca participara dessas operações,
mantendo assim a impunidade. Desta vez. porém, ficara à
frente de tudo, o que constituía um perigo evidente.
Para enfrentar riscos, outros eram pagos, e muito bem. No
entanto, sentia verdadeiro orgulho pelo impulso que dera à
falsificação, insignificante no início e que, de repente, tornara-
se uma grande fonte de dinheiro, constituindo-se no mais
importante setor de todas as suas atividades. Isto devido a
uma boa organização e às superprecauções. como ele gostava
de dizer, tais como mudar de ponto com freqüência.
Com franqueza, ele não acreditava que a presente mudança
fosse necessária, pelo menos ainda não, pois tinha certeza que
Eastin mentira ao dizer que Danny lhe dera aquele endereço e
que o passara a Wainwright. Marino, neste ponto, acreditava
em Danny. embora aquele velho traste tivesse realmente falado


demais, e estava resolvido a lhe aplicar umas surpresas
bastante desagradáveis que o curariam para sempre de ter uma
língua frouxa. Se Eastin de fato tivesse sabido e passado a
informação adiante, a polícia e os detetives do Banco já teriam
vindo em enxame, há muito tempo. Mas a mentira não o
surpreendia. Sabia que as pessoas submetidas a tortura
passavam por sucessivos processos mentais de desespero,
mudando de mentiras para verdades, para depois voltarem a
mentir, caso pensassem que. deste modo. agradariam a seus
torturadores. Para Tony Bear isto era um verdadeiro gozo;
adorava aquela espécie de diversão.
Mesmo assim, voltar a mudar-se, usando o furgão de
emergência da empresa de transporte pertencente à quadrilha,
era a atitude mais inteligente a tomar. Quando se sentir em
dúvida, mude-se. E agora, a mudança quase ultimada, já era
hora de se livrar do que tivesse restado de Eastin, aquele
alcagüete nojento. Mas este detalhe ficaria a cargo de Angelo.
Tony Bear decidira que devia cair fora e depressa. Evadir-se do
local. Riu, com orgulho, por sua grande espeiteza.
De repente, suas gargalhadas foram interrompidas pelo som
distante mas crescente de sirenas que convergiam naquela
direção. Minutos depois reconhecia que não estava sendo tão
esperto quanto supusera.

— Ande rápido, Harry — falou o jovem plantonista da
ambulância.
— O cara não tem muito tempo a perder.
— Pela aparência dele — respondeu o motorista enquanto
vigiava a rua, usando a sirena e os faróis, ziguezagueando
entre os carros naquela hora do pique — pela aparência dele,
repito, acho que lhe faríamos um grande favor se parássemos
para tomar uma cerveja.

— Não seja idiota, Harry — disse o outro, cujas qualificações
eram inferiores às de um enfermeiro, enquanto olhava para
Juanita. Esta, estava num banquinho de dobrar, expressando
no rosto todo seu desespero.
— Desculpe, moça: nem lembramos que estava aqui. Nessa
espécie de trabalho, a gente acaba ficando um tanto insensível.
Juanita, que não prestara atenção à conversa, indagou:


— Como vai ele?
— Em péssimo estado. Não adianta querer enganá-la —
respondeu o plantonista. Ele injetara um pouco de morfina no
doente, verificara a pressão arterial e agora passava-lhe no
rosto um chumaço de algodão com água. — Está em estado de
choque — prosseguiu. — Isso pode matá-lo, se as queimaduras
não o fizerem antes. A água é só para tentar lavar o ácido, mas
não adianta nada. E quanto aos olhos, não garanto, mas ...
calma, moça!
Juanita, mais desesperada ainda, estava tentando alcançar
Miles, tocá-lo mesmo através do cobertor que o envolvia. Sem
saber se era ouvida, ela implorava:
— Me perdoe! Me perdoe!
— É seu marido? — indagou o plantonista enquanto fixava as
mãos dilaceradas de Miles com talas.
— Não.
— Namorado?
— Sim.
Seria ele ainda seu namorado? Fora, de fato. necessário traí-lo.
Mas naquele momento ela só queria perdão, aquele mesmo
perdão que ele lhe pedira, parecia há tanto tempo, embora não
fosse. Mas ela julgava que já fosse tarde!
— Segure isto aqui — pediu o plantonista, dando-lhe uma
pequena botija de oxigênio, enquanto aplicava sobre o rosto de
Miles a respectiva máscara. Ela ouviu um som tênue, à medida

que o oxigênio saía da garrafa, através do seu toque, como se
ela pudesse comunicar-se com Miles, como ansiava, desde que
este fora encontrado inconsciente, sangrento, queimado,
pregado na mesa daquela casa. Dizer-lhe tudo que pensava.
Juanita. no carro dirigido por Wainwright, atingira afinal,
juntamente com os agentes federais e a polícia local, a mansão
cinzenta. O chefe da Segurança do FMA cercava-a de cuidados,
devido a possibilidade de reação armada por parte dos
bandidos. Mas estes entregaram-se sem a menor resistência, os
que já estavam fora do prédio denunciando os que se
encontravam em seu interior.
Foi o próprio Wainwright, com o rosto mais tenso que nunca,
quem com o maior cuidado possível, arrancou os pregos que
fixavam as mãos de Miles à mesa, enquanto Dalrymple,
procurando dominar os nervos, amparava o ferido. Juanita a
tudo assistia e quando a ambulância chegou, acompanhou
Miles seguindo para o hospital, sem que ninguém pudesse
convencê-la a tratar-se ela própria.
Durante o trajeto, ela lembrou-se de rezar. As palavras das
orações em sua língua materna, que julgava esquecidas,
vieram-lhe aos lábios. Acórdãos, oh piadosíssima Virgem Maria...
de que ninguém jamais pediu a Sua proteção, implorou o Seu auxilio
ou pediu Sua interferência sem ser atendido. Inspirada pela
confiança que eu tenho em Vós...

Subitamente Juanita deu-se conta do comentário a respeito dos
olhos de Miles. Aquilo ficou girando em sua mente como um
interminável disco de vitrola. Os olhos de Miles: estavam
queimados juntamente com o rosto todo. Com voz trêmula,
indagou:

— Ele vai ficar cego?
— Os especialistas é que poderão dizer. Tão logo chegarmos à
sala de emergência, ele receberá o melhor tratamento possível.
Aqui, pouco se pode fazer.

Juanita pensou: também eu nada posso fazer, exceto ficar ao
lado dele, tratá-lo com amor e devoção, enquanto ele o desejar
e precisar. Só me resta rezar... Oh! Virgen Madre de las Virgines!
A Vós recorro, perante Vós me apresento, pecadora e infeliz. Oh!
Mãe, não desprezai meus pedidos, mas atendei-me. Amém!

Nessa altura, a ambulância passava por uns edifícios de
arquitetura moderna, sobre pilotis.

— Estamos quase chegando — disse o estagiário enquanto
tomava o pulso do ferido. — Graças a Deus. pelo menos ele
ainda está vivo.
24


Durante aqueles 15 dias em que tivera início a investigação oficial
pelo SEC nas complicadas finanças da Supranational,
Roscoe Heyward rezava apenas por um milagre que o salvasse
da catástrofe total. Ele próprio participava de reuniões com
outros credores do conglomerado, todos com o mesmo
objetivo: manter a gigantesca multinacional funcionando e
viável, na medida do possível. Mas isso logo se mostrara
impossível. Quanto mais os investigadores pesquisavam,
maior parecia a derrocada. Também era provável que
acusações de fraude pudessem vir a ser lançadas contra alguns
dos executivos da Supranational, incluindo G.

G. Quartermain, se é que algum dia ele ousasse voltar de seu
refúgio na Costa Rica, perspectiva impossível, no momento.
Afinal, no início de novembro, foi requerida a falência da
empresa, conforme a Seção 77, do Ato de Falências. Era o

esperado, mas ainda assim teve repercussões tremendas, que
atingiram o país inteiro. Credores de vulto, companhias
associadas e inúmeras pessoas desapareceram na enxurrada de
SuNatCo. Só persistia uma dúvida: o First Mercantile
American Bank também soçobraria ou conseguiria sobreviver?
Para Heyward, sua própria carreira era assunto liquidado, bem

o sabia. No FMA, como autor e responsável pela maior
calamidade dos cem anos de sua história, estava praticamente
liquidado. Restava saber o que restaria dele, como pessoa,
faces os regulamentos do Federal Reserve, do Comptroller of
the Currency e do SEC. Muito pensavam assim. No dia
anterior, aliás, um funcionário do SEC, que ele conhecia muito
bem o avisara:
— Roscoe, na qualidade de amigo, aconselho-o a tomar um
advogado.
Em seu escritório do Banco, logo pela manhã, Heyward lia,
trêmulo, o Wall Street Journal, que, em página inteira, noticiava
a falência da SuNatCo, quando foi interrompido pela Sra.
Callaghan:
— Sr . Heyward, o Sr. Austin está aqui.
Sem esperar resposta, Harold Austin entrou. Hoje, o playboy
envelhecido nada mais era que um velho bem vestido. Seu
rosto estava tenso e pálido; sob as pálpebras, as bolsas e as
rugas indicavam insónia e velhice.
Ele não gastou tempo com preliminares.


— Você teve alguma notícia de Quartermain?
Heyward indicou o Journal:
— Apenas o que li.
Durante as duas semanas anteriores, ele tentara em vão, por
várias vezes, comunicar-se com Big George na Costa Rica.
Constava que este vivia num esplendor feudal, com um
verdadeiro exército de assassinos servindo-lhe de guarda

costas e proclamava sua intenção de jamais voltar aos Estados
Unidos. Sabia-se que aquele país não atenderia a um pedido de
extradição, pois já o negara em casos anteriores de vigaristas e
fugitivos.

— Roscoe, vou entrar pelo cano — disse Harold, em voz
trêmula. — Apliquei quase todo o capital da firma na
SuNatCo, além do que eu, pessoalmente, comprei de Q-
Investments.
— E o que sabe você sobre a Q-lnvestiments?
— Heyward procurava saber a situação do grupo privado da
Quartermain que devia dois milhões de dólares ao FMA além
dos 50 milhões devidos pela Supranational.
— Você quer dizer que não sabe nada de positivo — indagou
Austin.
— Se eu soubesse, estaria lhe perguntando?
— Eu soube ontem à noite através de Inchbeck. O filho da mãe,
Quartermain, vendeu tudo que tinha da Q-Investiments,
especialmente ações das subsidiárias da SuNatCo, quando os
preços dos papéis do grupo estavam na maior alta. Deve ter
ganho uma montanha de dinheiro.
"Incluindo os dois milhões do FMA", pensou Heyward. E
perguntou:
— E daí?
— O cretino transferiu tudo para companhias suas no exterior;
o que resta da Q-Investiments está em ações nessas
companhias subsidiárias aqui: apenas papel que nada vale. —
Para desgosto de Heyward, Austin continuou. — O dinheiro
real... meu dinheiro... pode estar na Costa Rica, nas Bahamas,
na Suíça... Roscoe, você tem que me ajudar a obtê-lo... Caso
contrário, estou liquidado.
De modo sério, Heyward respondeu:
— Não há nenhuma maneira de ajudá-lo, Harold.

Ele próprio tinna preocupações bastantes no Q-Investments
para se preocupar com Austin.

— Se você souber alguma novidade... Quem sabe exista alguma
esperança?...
— Conte comigo! Imediatamente lhe direi o que souber.
Logo que pôde, Heyward livrou-se de Austin. Dirigiu-se à Sra.
Cal-laghan, mas antes que falasse esta lhe disse:
— Um repórter do Newsday, Endicott, quer saber a respeito da
Supranational; diz que é importante falar com o senhor, em
pessoa.
— Diga que nada tenho a declarar e que ele telefone para o
Departamento de Relações Públicas — respondeu Heyward,
lembrando-se do que, conforme o estabelecido, apenas Dick
French devia falar. A imprensa tentará entrar em contato com
vocês, individualmente... digam que todos falem comigo. Ele se
livrava pelo menos disso.
Pouco depois, a Sra. Callaghan voltou a ligar:
— Lamento, Sr. Heyward.
— Mas, afinal, de que se trata?
— O Sr. Endicott continua na linha. Pediu para lhe perguntar se
o senhor prefere que ele indague a respeito da Srta. Avril
Deveraux no Departamento de Relações Públicas, ou se prefere
falar sobre ela, o senhor mesmo.
Imediatamente Heyward pegou o telefone e perguntou em tom
agressivo:
— De que se trata?
— Bom dia, Senhor — respondeu-lhe uma voz tranqüila. —
Peço desculpas por incomodá-lo. Aqui fala Bruce Endicott, do
Newsday.

— O senhor disse à minha secretária...
— Disse a ela que certos assuntos o Senhor talvez preferisse
discutir comigo pessoalmente, em vez de que eu os expusesse a
Dick French.

Heyward ficou em dúvida; teria havido uma ênfase sutil na
palavra " expusesse"? E respondeu:

— Estou terrivelmente ocupado. Posso apenas lhe dedicar uns
poucos
minutos.
— Obrigado. Sr. Heyward. Serei tão rápido e sucinto quanto
possa.
Nosso jornal está efetuando uma investigação a respeito da
Supranational Corporation. Como sabe, é assunto de grande
interesse do público e publicaremos uma extensa matéria sobre
o assunto amanhã. Entre outras coisas, temos conhecimento do
grande empréstimo feito por seu Banco à SuNatCo. Já falei com
Dick French sobre isso.
— Então, já tem todas as informações de que necessita.
— Não todas. Senhor. Através de outras fontes soubemos que o
Senhor, pessoalmente, negociou o empréstimo da
Supranational, e temos apenas uma dúvida quanto ao dia em
que o assunto foi mencionado pela primeira vez. O que desejo
saber é quando foi que a SuNatCo, pela primeira vez, falou em
pedir-lhes um empréstimo. O Senhor se lembra?
— Acho que não. Afinal, lido com tantos empréstimos grandes.
— Mas não muitos de 50 milhões de dólares.
— Creio que, de certa forma, já respondi à sua pergunta.
— Não exatamente. E talvez eu possa cooperar. Não teria sido
numa viagem às Bahamas, em março? Uma viagem que o
Senhor fez em companhia do Sr. Quartermain, do Vice-
Presidente Stonebridge. e mais outras pessoas?
Heyward hesitou:
— É. talvez tenha sido.
— O senhor não poderia ser mais explícito a tal respeito? — O
tom de voz do repórter era profissional, mas denotava que ele

não desistiria, que não se daria por satisfeito com respostas
evasivas.

— Sim, lembro-me agora. Foi sim.
— Obrigado, Senhor. Naquela viagem, creio que o senhor
viajou no jato particular do Sr. Quartermain. um 707, não?
— Sim.
— Acompanhado de lindas moças?
— Eu não diria exatamente que fomos acompanhados. Apenas
me lembro, por alto, que havia várias comissárias a bordo.
— Uma delas chamava-se Avril Deveraux? O senhor esteve
com ela nas Bahamas e também em outras oportunidades após
o primeiro encontro?
—É, talvez sim; o nome me soa familiar.
— Sr. Heyward. desculpe-me por fazer uma pergunta tão
franca, mas a Srta. Deveraux lhe foi oferecida... sexualmente,
em troca do seu patrocínio ao empréstimo à Supranational?
— Certamente que não!
Heyward agora suava; a mão que segurava o telefone, tremia.
E ele começou a pensar até a que ponto o repórter sabia. O
prudente seria dar a conversa por terminada naquele instante.
Era o que devia fazer, mas não sabia como.
— Por favor, Sr. Heyward, me diga com franqueza, depois da
viagem às Bahamas seu contrato com a Srta. Deveraux
transformou-se em amizade?
— Acho que se pode chamar assim. Ela é uma pessoa
agradável, encantadora.
— Então o Senhor de fato se lembra dela?
Heyward sentiu que havia caído numa armadilha: e
concordou:
— Sim.
— Obrigado, Senhor. A propósito, tem-se encontrado com a
Srta. Deveraux ultimamente?

A pergunta fora feita de maneira casual. Mas, Heyward tinha
certeza de que o repórter estava a par de tudo. Tentando controlar

o tremor de sua voz, Heyward insistiu:
— Já respondi tudo que pretendia responder. Como lhe disse,
estou muitíssimo ocupado.
— Como queira, Senhor. Mas, para sua ciência, já nos
comunicamos com a Srta. Deveraux e que ela nos prestou
extensas declarações.
Extensas declarações. Heyward não duvidava de que Avril
fosse bem capaz disso. Em especial se o jornal lhe pagasse,
como ele supunha que tivesse feito. Mas não sentia
ressentimento contra a moça. Avril era aquilo que era; nada,
jamais, poderia alterar a felicidade que ela lhe dera.
O repórter continuava.
— Ela nos deu detalhes de seus encontros com o Senhor. Temos
até certas contas do Colúmbia Hilton, contas suas, pagas pela
Supranational. O senhor não quer reconsiderar sua declaração,
de que nada disso influiu na concessão ao empréstimo?
Heyward ficou em silêncio. Que poderia dizer? Maldita fosse a
imprensa e seus repórteres, com a sua obsessão de invadir
vidas privadas, em sua eterna busca e investigação!
Obviamente alguém, dentro da Su-NatCo, falara, furtara ou
copiara certos documentos. Ele se lembrava que Avril fizera
referência a uma "lista" confidencial com os nomes daqueles
que se divertiam à custa da Supranational. Durante certo
tempo, seu próprio nome constara dessa lista. Provavelmente o
jornal tinha a informação. A ironia estava em que Avril não
exercera qualquer influência em sua decisão a respeito do
empréstimo à SuNatCo. Ele já se decidira a recomendá-lo
muito antes da ligação entre os dois. Mas, quem acreditaria?
— Apenas mais uma coisa. Senhor. — O tom de Endicott era de
dúvida quanto à possibilidade de uma resposta. Pode o Senhor
me informar a respeito da companhia particular de

investimentos denominada Q-lnvestments? Para não levá-lo a
perder tempo, esclareço-lhe que já conseguimos cópias de
vários registros, segundos os quais o Senhor possui duas mil
ações. Este dado é correto?

— Não tenho comentário a fazer.
— Sr. Heyward, essas ações lhe foram dadas como uma espécie
de agradecimento por ter o Senhor conseguido o empréstimo
para a Supranational, além de outros que totalizam dois
milhões de dólares, à Q-Investments?
Sem sequer responder. Roscoe Heyward desligou o telefone.
O jonud de amanhei. Foi o que dissera o repórter. Publicariam
tudo. uma vez que, por certo, tinham provas. E quando um
jornal dava a partida, todos os demais meios de comunicação o
imitavam. Heyward já não tinha ilusões sobre o que se
seguiria. Um único artigo de jornal, um único repórter,
significava desgraça — total e absoluta. Não apenas no Banco,
mas entre os amigos, entre a família, em sua igreja, em toda
parte. Seu prestígio, influência, orgulho, tinham-se acabado.
Pela primeira vez na vida deu-se conta de como tudo não
passava de uma máscara frágil. O pior era a certeza de que
iriam acusá-lo de aceitar suborno, além da probabilidade de
outras acusações e, ao final, a prisão.
Em certas ocasiões, ele pensara como se sentiriam os excapangas
de Nixon, antes tão orgulhosos, agora enfrentando a
lei, acusados como criminosos, sendo fichados; sua dignidade
espezinhada, julgados por júris e jurados que há pouco tempo
os tratavam com o máximo respeito. Agora ele sabia; ou viria a
saber em breve.
Vieram-lhe então à lembrança as palavras do Génese:
Minha punição é maior do que eu posso suportar.
O telefone tocou; ele ignorou-o. Não havia mais nada a fazer
ali. Nunca mais.


Quase sem sentir, Heyward levantou-se e saiu da sala,
passando pela Sra. Callaghan que olhou-o de modo estranho e
lhe fez uma pergunta, que não obteve resposta. Andou pelo
corredor do 36.° andar, passou pela sala de reuniões, até há
pouco a própria arena de suas grandes ambições. Várias
pessoas dirigiam-lhe a palavra, mas ele não respondeu a
ninguém. Perto da sala de reuniões havia uma portinha pouco
usada. Ele abriu-a e subiu por uma escada, sem correr, mas
sem se deter.
Certa vez, quando a Torre, ou seja, o edifício sede do FM A era
novo, Ben Rosselli trouxera seus executivos até ali. Heyward
era um deles. Tinham saído por uma outra portinha, que ele
logou abriu, dando para um estreito terraço de onde se
descortinava a cidade.
Um vento forte de novembro batia-lhe no rosto. Gostou do
vento, sentindo-se como que envolvido por ele. Heyward
lembrou-se de que, naquela outra ocasião, Ben Rosselli abrira
os braços, abrangendo a cidade e dizendo: "Cavalheiros, antes

o que havia aqui era o país prometido de meu avô. O que nós
vemos hoje é o nosso país. Lembrem-se. como ele sempre se
lembrou, de que era para se obter lucro no sentido real, nós
temos que dar. tanto quanto receber." Tudo aquilo parecia tão
remoto! Heyward começou a olhar para baixo. Podia ver os
edifícios menores, o rio onipresente, o tráfego, as pessoas que
andavam como formigas minúsculas na Rosselli Plaza. Os sons
chegava-lhe atenuados pelo vento.
Ele passou uma perna por cima do parapeito do terraço; depois
passou a outra perna. Até aquele momento, não sentira medo,
mas agora seu corpo tremia de terror e suas mãos agarraram-se
ao corrimão que antecedia o parapeito.
Aos ouvidos de Heyward, como se viesse de muito longe,
chegava o ruído de passos subindo a escada, o som de vozes
agitadas e o grito de alguém chamando: "Roscoe!"

Seu último pensamento foi para as palavras de Samuel 1: Vá, e
que Deus o acompanhe. Em seguida, lembrando-se de Avril: Vós,
a mais bela entre as mulheres... Levantai-vos, meu amor, minha bela,
e vinde comigo...

Então, enquanto as pessoas tentavam chegar a ele, Heyward
fechou os olhos e lançou-se no vazio.

25


Na vida de cada pessoa, pensava Alex Vandervoort, existem
certos dias tão dolorosos que é impossível vir a esquecê-los. O
dia, há pouco mais de um ano, em que Ben Rosselli comunicara
sua morte iminente fora um deles. Hoje, o outro.
Já era noite. Alex estava em seu apartamento, ainda chocado
com o ocorrido, em péssimo estado de espírito. Esperava
Margot, que logo chegaria. Serviu-se do segundo uísque com
soda e jogou uma acha na lareira.
De manhã, ele fora o primeiro a ver, através da porta que
levava ao terraço, que alguém subia pela escada e, sabendo o
estado de espírito de Roscoe, logo deduziu que seria ele. Alex
gritou e correu para lá; mas era tarde demais.
A visão de Roscoe, parecendo balançar-se no ar por um
instante e depois desaparecer no vazio com um grito terrível
que ia se amortecendo à medida que o corpo caía, deixara-o
mudo de horror, incapaz de um gesto sequer. Coube a Tom
Straughan, que chegara imediatamente depois, tomar as
providências, exigindo ainda que todos se retirassem do
terraço, inclusive Alex.


Mais tarde, no que para ele parecia providência tardia,
chavearam a porta que levava ao terraço.
De regresso ao 36.° andar, conseguira controlar-se e,
juntamente com Jerome Patterton, passou a tomar
providências. A vida tinha de continuar. O resto do dia
decorreu numa série de decisões, detalhes os mais diferentes,
misturando-se uns aos outros, resumindo-se, afinal, num epitáfio
para Heyward, difícil de redigir e que não fora concluído.
Tinham resolvido deixá-lo para o dia seguinte. No momento, a
única medida tomada, triste porém prática, fora a comunicação
à viúva de Roscoe e a seu filho, feita de modo cauteloso e
compassivo. As perguntas da polícia foram respondidas, pelo
menos em parte. Detalhes sobre o funeral foram
providenciados. Como o corpo estava irreconhecível, o caixão
só poderia ser fechado quando o legista determinasse. Foi
distribuída uma declaração à imprensa, rascunhada por Dick
French e aprovada por Alex. E tudo mais ficou transferido para
depois.
Alex teve maiores informações quando Dick French, no final
da tarde, lhe disse para atender o telefonema de Endicott, o
repórter do Newsday. Este que parecia fora de si, explicou-lhe
que há apenas poucos minutos tomara conhecimento, pelo
noticiário extraordinário, do aparente suicídio de Roscoe
Heyward. Tentou justificar a conversa telefônica que tivera
com o suicida, dando, inclusive, alguns detalhes da mesma.

— Se eu tivesse a mínima idéia... — e ficou sem saber o que
dizer. Alex não fez qualquer esforço para confortar o repórter.
A moral de
sua profissão, só ele próprio poderia delimitar. Limitou-se a
indagar:
— Seu jornal ainda vai publicar o tal artigo?
— Vai, sim, Senhor. Mas a redação está refazendo a matéria.
Sairá na edição de amanhã, como previsto.

— Então, diga-me, a troco de que o Senhor está me
telefonando?
— Com franqueza, creio que senti uma terrível necessidade de
dizer a alguém que lamento muito.
— Está certo, também eu lamento — respondeu Alex.
Agora, em seu apartamento, ao rememorar o fato, ele sentiu
uma terrível pena de Roscoe, pela agonia que sofrera em seus
últimos instantes.
Por outro lado, não havia dúvida de que o artigo do Newsday
prejudicaria muito o Banco. Seria desgraça em cima de
desgraça. Mesmo sua vitória ao superar a corrida à agência de
Tylersville, bem como a ausência de outras corridas não
eliminara uma certa falta de confiança do público no FMA,
resultando em uma verdadeira erosão de depósitos. Cerca de
40 milhões de dólares haviam sido retirados nos últimos dez
dias. E os depósitos não chegavam sequer ao seu nível normal.
Ao mesmo tempo, a grande baixa das ações do Banco na Bolsa
de Valores de Nova Iorque agravava as dificuldades.
O FMA, é claro, não estava sozinho. Tão logo foi tornada
pública a insolvência da SuNatCo, a apreensão passou a reinar
entre os investidores, nos meios ligados às finanças e, lógico,
entre o próprio público. De tudo isso resultara uma baixa
espetacular, o valor do dólar fora posto em questão e muitos
pensavam que uma iminente recessão mundial poderia
ocorrer.
Era como se, pensava Alex, a derrubada de um gigante
arrastasse consigo as colunas do templo ou pelo menos as
abalasse. Permitia pensar que outros gigantes, considerados
até então invulneráveis, pudessem também ruir e que nem
pessoas físicas, empresas, sociedades, governos poderiam
escapar para sempre da mais simples lei da contabilidade do
mundo: a que diz que cada pessoa tem de pagar o que deve.

Lewis D'Orsey que já havia lançado e defendido essa doutrina
durante anos, escrevera muito sobre o assunto na última
edição do Newsletter. Alex recebera o último número desta
publicação pelo correio. Após uma vista d'olhos, guardara-o
para uma leitura mais cuidadosa, à noite. Agora, resolveu ler o
que Lewis D'Orsey dizia.
Não acreditem na fábula corrente de que existe qualquer coisa
misteriosa, ou mesmo complexa, no funcionamento de grandes
empresas financeiras, nacionais ou internacionais.
Tudo se resume numa questão de simples administração, como
se fosse uma administração doméstica, administração de uma
casa, digamos, a contabilidade de uma dona de casa, apenas
numa escala bem maior.
As complicações alegadas, as confusões e sinuosidades são
produtos da imaginação. Na realidade, não existem; foram
criadas por políticos de votos comprados (o que quer dizer
todos os políticos), por manipuladores, e "economistas"
absolutamente dominados pela doutrina keynesiana.
O que esses homens de bastidores, boateiros, temiam era o
simples escrutínio de suas atividades, sob a luz clara e honesta
do senso comum.
Porque sabiam, os políticos em especial, que haviam criado
verdadeiros Himalaias de dívidas que nem mesmo eles, nem
nós, nem os nossos netos poderemos, todos juntos, algum dia
pagar. Por outro lado, eles haviam emitido, como se estivessem
fabricando papel higiênico, uma verdadeira torrente de moeda,
enfraquecendo o nosso até antão bom e sólido dinheiro,
especificamente o honesto dólar americano, lastrado em ouro,
que os americanos alguma vez possuíram.
Repito portanto: não passa de uma simples contabilidade, de
uma simples economia doméstica. Só que, no caso, trata-se da
mais flagrantemente incompetente e desonesta economia
doméstica em toda a história humana.


Isto, e apenas isto, é a razão básica de toda esta inflação.
E havia muito mais. Porque o estilo de escrever de Lewis era o
uso de palavras demais, em vez de palavras de menos.
Também, como de hábito, Lewis oferecia a todos uma solução
para a situação financeira.
Existe uma solução absolutamente disponível e pronta, quando
qualquer pessoa quiser, como sempre existiu, e como sempre
existirá, como se fora o caso de dar uma caneca de água para
um andarilho moribundo, de boca ressequida. Ouro.
Ouro como base, mais uma vez. para todos os sistemas
monetários mundiais.
Ouro, o mais antigo, o único baluarte da integridade monetária.
Ouro, a única fonte, incorruptível, da disciplina fiscal.
Ouro, que os políticos não podem emitir, ou produzir, ou
falsificar, ou enfraquecer.
Ouro, que devido à sua fonte e suprimento limitados,
estabelece um valor real e durável.
Ouro, que devido ao seu valor consistente, usado como base
para dinheiro, protege a poupança honesta de todo o povo
contra a pilhagem por velhacos, charlatães, incompetentes, e
sonhadores que dominam a nossa administração pública.
Ouro, que durante vários séculos demonstrou ser a base
monetária que impediria a inflação seguida da anarquia.
Ouro, com o qual a inflação podia ser contornada e curada por
completo e a estabilidade restaurada.
Ouro, que Deus, em Sua sabedoria, criou com o único
propósito de restringir os excessos do homem.
Ouro, a que os americanos até um certo tempo atrás se referiam
sempre dizendo: "meu dólar é tão bom quanto ouro". Ouro,
para o qual em breve a América terá que honrosamente regressar,
usando-o como seu padrão de câmbio. A alternativa,
que se tornava cada dia mais clara, era a desintegração fiscal e
nacional. Felizmente, mesmo agora, apesar de todo cepticismo


e apesar de todos os fanáticos contra o ouro, já se sentiam uns
certos sinais de maturidade do ponto de vista do Governo,
sinais de que a saúde estava voltando ao organismo doente...

Alex deixou de lado o boletim. Como muitos do mundo das
finanças ele várias vezes tinha sofrido ouvindo os entusiastas
do ouro falarem destacando-se Lewis D'Orsey, Harry Schultz,
Dines, o Congressista Crane, Exter Browne, Pick e tantos
outros. No entanto, de uns tempos para cá, ele próprio
indagava-se se o ponto de vista deles, tão simples na
aparência, não estaria certo. Eles acreditavam no ouro, tanto
quanto no laissez-faire, na ação livre, no mercado. No caso de
companhias ineficientes, quanto a estas era até permitido falir,
e o diabo que se lixasse, e que pegasse as sobras. Em oposição,
estavam os teóricos de Keynes, que odiavam o ouro e, ao
contrário, acreditavam em brincar, em jogar com a economia,
incluindo os subsídios e os controles, no que eles chamavam
define tuning. Alex então começou a pensar se os keynesianos
seriam, digamos, heterodoxos, e os D'Orsey, Schultz, etc, os
verdadeiros profetas. Talvez. Em outras eras, profetas haviam
sido postos de lado e ridicularizados, no entanto muitos
tinham chegado a viver o suficiente para ver suas profecias
realizadas. No entanto, o ponto de vista de Lewis e de outros,
até de Alex, era que tempos sinistros e cruéis se aproximavam
com rapidez vertiginosa. E para o FMA já tinham chegado.
Alex ouviu a volta da chave na porta; Margot entrava. Ela tirou

o casaco de couro de camelo e jogou-o numa cadeira.
— Oh, Deus, Alex! Não consigo tirar Roscoe da cabeça! Como é
que ele pôde fazer uma coisa daquela? E por quê?
E, dirigindo-se diretamente ao bar, preparou para si um copo
de bebida.
— Parece que existem certas razões — disse Alex devagar —
que estão se formando em minha cabeça. Se você não se



incomodar, Bracken querida, não tenho a mínima vontade de
falar sobre o assunto agora.

— Compreendo.
Ela aproximou-se, beijou-o e abraçou-o, afastando-se em
seguida. Após um silêncio Alex disse:
— Conte-me você sobre Eastin, Juanita e a garota.
Desde a. véspera do dia anterior. Margot cuidara dos três,
tomando todas as providências necessárias.
Margot, após um gole, respondeu:
— Alex, é coisa demais para meu gosto. Tudo junto, de uma só
vez!
—Querida, é sempre assim que acontece, em geral as coisas
ruins vêm todas juntas.
—Começando por Miles — disse Margot. — Está fora de perigo
e a melhor novidade é que, por milagre, não ficará cego. O que
os médicos acreditam é que ele, na hora que lhe jogaram ácido
no rosto, o seu medo era tanto que fechou os olhos e as
pestanas os protegeram. Tem a face desfigurada por completo,
mas uma série de operações plásticas, a longo prazo, o trarão
de volta ao normal.
— E o que me diz das mãos?
Margot retirou de sua bolsa um caderno de anotações e o abriu.
— O hospital onde ele está internado tem um cirurgião da
costa oeste, um tal de Dr. Jack Tupper, de Oakland, que tem a
reputação de ser um dos melhores especialistas em ortopedia
de mãos do país. Já foi consultado por telefone e concordou em
voar até aqui para operá-lo no meio da próxima semana.
Suponho que o seu Banco pagará as despesas.
— Sim, sem dúvida — concordou Alex. — O Banco pagará.
— Tive uma conversa muito útil com o agente Innes do FBI: em
troca do testemunho de Miles Eastin perante um tribunal,
aquele órgão lhe dará toda proteção possível e uma nova

identidade. — Ela pôs de lado seu livrinho de anotações. —
Nolan falou com você hoje?
Alex abanou a cabeça:


— Não houve oportunidade.
—Ele vai lhe pedir para que use sua influência a fim de obter
um emprego para Miles. Disse que, se for preciso, dará murros
em sua mesa para que você faça isso.
—Não vai ser preciso — disse Alex. — Nosso grupo tem
agências de crédito no Texas e na Califórnia. Arranjaremos
alguma coisa para Eastin, de uma maneira ou de outra.
—Talvez contratem Juanita, pois ela afirma que irá para onde
Miles for, levando a filha.
Alex suspirou. Estava contente porque pelo menos esta parte
acabava bem. Perguntou:
— O que disse Tim McCartney sobre a garota?
Alex mandara Esteia Núhez ao psiquiatra-chefe do Centro de
Terapia. Que perigo mental, pensava ele, ameaçaria a criança,
devido às torturas que sofrera?

Mas a idéia do Centro de Terapia para ele era ao mesmo tempo
uma recordação triste de Célia.

— Vou lhe dizer uma coisa — prosseguiu Margot. — Se você e
eu fôssemos sãos e equilibrados como a pequena Estela,
seríamos, ambos, gente melhor. O Dr. McCartney diz que
discutiram a história toda. Como resultado, ela não vai
recalcar a experiência no subconsciente; lembrará claramente
de tudo, como se fosse um pesadelo, nada mais.
Alex sentiu as lágrimas saltarem dos olhos.
— Ainda bem — disse baixinho. — Estou feliz.
—Foi um dia muito ocupado. — Margot espreguiçou-se e tirou
os sapatos. — Outra coisa que eu fiz foi pleitear junto ao
Departamento de Pessoal do Banco uma indenização para

Juanita. Creio que resolveremos o assunto de comum acordo,


sem demandas.
—Obrigado, Bracken — disse Alex, enquanto levava os dois
copos para reenchê-los. Nisso, tocou o tejefone, Margot
atendeu:


— E Leonard Kingswood; para você.
Alex atravessou a sala, levou o fone ao ouvido:
— Sim, Len?
— Sei que você está descansando depois de um dia duro —
disse o presidente da Northam Steel — eu também estou
arrasado. Mas o que tenho a dizer não pode esperar.
Alex, com expressão contraída, falou:

— Diga.
— Houve uma reunião dos diretores; tivemos duas
conferências além de diversas chamadas telefônicas. Uma
reunião de toda a diretoria do Banco foi convocada para
amanhã ao meio-dia.
— E então?
— O primeiro item na agenda será aceitar a demissão de
Jerome da presidência. Alguns de nós exigiram isso e ele
concordou com verdadeiro alívio, creio eu.
De fato, pensou Alex, Patterton sentiria alívio, pois não tinha
estofo para agüentar essa avalancha inesperada de problemas e
das decisões dramáticas que a seguiriam.

— E então — Kingswood prosseguiu com sua costumeira
franqueza — você será eleito presidente, para posse imediata.
Enquanto ele falava, Alex segurou o telefone com o ombro,
acendeu o cachimbo e tirou uma baforada. Em seguida,
respondeu:
— A esta altura, Len, não tenho certeza se quero o cargo.
Calculamos que você talvez dissesse isso e por esta razão fui o

escolhido para lhe telefonar. Considere que estou lhe
suplicando, Alex; por mim e pelo resto da diretoria.
Kingswood fez uma pausa, e Alex sentiu que quanto o assunto
lhe era penoso. Súplicas não eram fáceis para um homem do
estofo de Leonard L. Kingswood, mas ele continuou.
—Sabemos que você nos avisou sobre a Supranational, mas
pensamos que nós éramos mais experientes. Bem, não fomos.
Ignoramos seu conselho e aconteceu aquilo que você predisse.
Então estamos lhe pedindo. Alex, muito tarde, para nos ajudar
a sair do buraco em que nos metemos. Posso até lhe dizer que
alguns diretores estão preocupados a respeito das suas
próprias responsabilidades. E não nos esquecemos que você
nos alertou também para isso.
—Deixe-me pensar um minuto, Len.
—O tempo que quiser.
Alex julgou que talvez devesse sentir uma satisfação pessoal e
uma sensação de superioridade por ver suas opiniões, afinal,
acatadas. Poderia mesmo gabar-se: "eu os avisei" conforme os
fatos vieram comprovar. Agora tinha, sem dúvida, todos os
trunfos na mão.

Mas não sentiu nada disso; apenas uma grande tristeza pela
futilidade e desperdício, quando o melhor que poderia
acontecer a longo prazo, se tivesse êxito, seria fazer que o FM
A um dia voltasse à situação em que Ben Rosselli o deixara.

Valeria a pena? Será que todo o extraordinário esforço a ser
despendido, o envolvimento pessoal, os sacrifícios, as
pressões, teriam justificativa? E por que razão? Para salvar um
banco da falência. Uma loja de dinheiro. Uma máquina de
dinheiro. Nada mais que isso. O trabalho de Margot entre os
desprotegidos não representava uma contribuição muito maior
para sua época? No entanto, as coisas não eram assim tão
simples, de vez que os bancos, o sistema bancário, eram


necessários, de certa forma tão essenciais quanto os alimentos.
A civilização se desmoronaria se não houvesse um sistema
monetário. Os bancos, embora imperfeitos, eram uma das
bases do nosso sistema de vida.
Mas, essas eram considerações abstratas. De concreto existia o
fato de que, se aceitasse a direção do Banco nas atuais
circunstâncias, não haveria a menor garantia de êxito. Ele
poderia ir presidindo reuniões da diretoria até a vergonhosa
derrocada do FMA. Se tal ocorresse, sua imagem ficaria para
sempre ligada a esse desastre, sua reputação como banqueiro
estaria destruída para sempre. Por outro lado, se alguém poderia
salvar o FMA, Alex também sabia, era ele. Além de
competência, possuía conhecimentos que um estranho não
teria tempo de assimilar. E mais importante que tudo: apesar
de todos os problemas, mesmo agora, ele se julgava capaz de
vencer a crise.


—Se eu aceitar, Len — acabou ele por dizer — precisarei de
plena liberdade para fazer qualquer alteração, incluindo
alterações na diretoria.
—Você terá toda liberdade — respondeu Kingswood. — Eu
garanto isso pessoalmente.
Alex deu uma cachimbada, e pôs o cachimbo na mesa.


— Deixe-me pensar um pouco; darei minha decisão a você
amanhã de manhã.
Desligou o telefone e pegou seu copo no bar. Margot olhou-o
interrogativamente.
—Por que você não aceitou? Ambos sabemos que quer aceitar.
—Você entendeu a conversa? _ Claro!
—Por que tem certeza que vou aceitar?
— Porque você não pode resistir ao desafio. Por que sua vida
toda é o Banco. As outras coisas vêm em segundo lugar.

— Não estou certo disso — ele disse devagar — e nem quero
que isso seja verdade.
Mas, pensou, tinha sido verdade durante o período em que
vivera com Célia. Seria ainda? Era quase certo que a razão
estivesse com Margot. Provavelmente, também, ninguém
muda sua natureza básica.
— Existe uma coisa que quero lhe perguntar há tempos —
falou Margot. — Acho que agora é o momento.
Ele acenou.
— Diga.
—Aquela tarde em Tylersville, no dia da corrida à agência,
quando o casal de velhos, com todas as suas economias dentro
de um saco de papel, lhe perguntou se o dinheiro deles ficaria
seguro no Banco, você respondeu que sim. Estava certo disto?
—Eu me perguntei isso — disse Alex. — Logo após o incidente
e muitas vezes depois. Para ser sincero, acho que, de fato, não
tinha certeza.
—Mas estava procurando salvar o Banco. Certo? E isso era o
mais importante. Mais importante que o casal de velhos e
todos os outros; mais importante que honestidade porque "os
negócios" têm primazia. — Emocionada, Margot prosseguiu:
— É por isso que você continuará a procurar salvar o Banco,
Alex, acima de qualquer outra coisa. Foi o que aconteceu entre
você e Célia e — ela disse bem devagar — e o que aconteceria
entre você e eu, se a oportunidade viesse a surgir.
Alex não respondeu. O que poderia dizer, o que poderia
qualquer pessoa dizer, quando confrontado com a verdade
nua?
— No fundo — continuou Margot — você não é tão diferente
de Roscoe ou de Lewis. — Ela pegou no The DOrsey Newsletter
com desdém. — Negócios estáveis, ouro, preços altos das
ações, dinheiro, dinheiro. É o que vem em primeiro lugar.
Pessoas, em especial pessoas anônimas, sem importância, vêm

muito depois. Eis o grande abismo que existe entre nós, Alex. E
que sempre existirá.
Ele viu que Margot chorava.
Soou uma campainha na saleta de entrada.
Alex disse um palavrão.


— Diabo de interrupções!
Aproximou-se do interfone e indagou do porteiro, no andar
térreo.
— Sim, o que há?
—Senhor Vandervoort, uma pessoa pergunta se o Senhor pode
recebê-la, a Sra. Callaghan.
—Eu não conheço nenhuma... — Ele parou. "Seria a secretária
de Heyward?" — Pergunte se é do Banco?
Pausa.
— Sim, Senhor. É.
—Muito bem. Mande subir. Ambos esperaram com
curiosidade.
—Por favor entre, Sra. Callaghan, — disse Alex abrindo a
porta. Dora Callaghan era uma mulher atraente, muito bem
vestida, com
cerca de 60 anos de idade. Alex sabia que ela trabalhava no
Banco há muitos anos, pelo menos dez deles com Roscoe
Heyward. Em geral, evidenciava grande classe e muita
autoconfiança, mas agora parecia cansada e insegura.
Usava um casaco de couro debruado de pele e carregava uma
pasta, que Alex reconheceu como pertencente ao Banco.
—Senhor Vandervoort, desculpe interrompê-lo...
—Estou certo de que a Senhora tem uma razão forte para vir
aqui. — Apresentou Margot, e perguntou: — Quer tomar
alguma coisa?
—Seria bom.
Um martíni. Margot preparou a bebida; Alex pegou o casaco de
couro. Os três sentaram-se perto da lareira.

—Pode falar com toda franqueza na presença da Srta. Bracken

— disse Alex.
—Obrigada. — Dora Callaghan tomou um gole do martini e
pôs o copo na mesa. — Sr. Vandervoort, hoje à tarde resolvi
por em ordem a mesa do Sr. Heyward. Pensei que haveria
certas coisas a providenciar, a expedir. — A sua voz
enrouqueceu e finalmente parou. E ela quase sussurrou. —
Desculpe.
Alex disse-lhe com carinho:
— Não tenha pressa. Acalme-se.
Dominando-se ela continuou:
— Algumas gavetas estavam chaveadas, mas eu tinha
duplicatas, as quais eu quase nunca usava. Hoje usei.
Novo silêncio.
— Numa das gavetas... — ela hesitou — Sr. Vandervoort, ouvi
dizer que irão investigadores amanhã de manhã... julguei que
talvez fosse melhor se o Senhor visse o que encontrei, que
saberia o que fazer.
A Sra. Callaghan abriu a pasta de couro e tirou dois grandes
envelopes. Quando os passou para Alex, este observou que
ambos haviam sido abertos. Com grande curiosidade, retirou
os conteúdos.
O primeiro envelope continha quatro certificados de ações,
cada um de 500 ações ordinárias do Q-Investments assinadas
por G. G. Quarter-main. Embora não sendo nominativos, não
havia dúvida de que tinham pertencido a Heyward, pensou
Alex. Lembrou-se das alegações do repórter do Newsday. Ali
estava uma confirmação. Seria preciso mais provas
naturalmente, se o assunto fosse levado ao fim, mas parecia
certo que Heyward, homem de confiança, alto funcionário do
Banco, aceitara um suborno sórdido. Se estivesse vivo e fosse
descoberto, seria processado criminalmente.

A depressão anterior de Alex aumentou. Ele jamais gostara de
Heyward. Chocaram-se desde sua admissão no Banco. No
entanto, até hoje, nem por um momento, duvidara da
integridade moral do outro. Isso provava, pensou, que por
mais que se julgasse conhecer alguém, na realidade nunca o
conhecia.
Alex retirou o conteúdo do segundo envelope. Eram
fotografias de um grupo de pessoas ao redor de uma piscina:
quatro mulheres e dois homens, nus, e Heyward vestido. Logo
deduziu que as fotografias eram da famosa viagem de
Heyward às Bahamas, para visitar Big George Quartermain.
Contou 12 cópias, enquanto as espalhava pela mesa e Margot e
a Sra. Callaghan olhavam. Olhou rapidamente para Dora
Callaghan, que ficou rubra de vergonha. Enrubescer? Ele
pensava que ninguém mais o fazia hoje em dia.
Seu primeiro impulso foi rir. Todo mundo nelas, não havia
outra palavra, parecia ridículo. Numa fotografia Roscoe olhava
fascinado as mulheres nuas; noutra ele estava sendo beijado
por uma delas enquanto alisava-lhe os seios. Harold Austin
aparecia com o corpo flácido, o pênis murcho, um sorriso
estúpido. Outro homem, de costas para a máquina, defrontava
com as mulheres. E as mulheres talvez fossem atraentes. Mas
ele preferia Margot, mesmo vestida, em qualquer dia, a
qualquer delas.
Não riu, entretanto, por consideração a Dora Callaghan que, ao
terminar a bebida, se levantara.

— Sr. Vandervoort, acho melhor ir embora.
—A Senhora agiu bem ao me trazer essas coisas — ele lhe
disse. — Agradeço muito; cuidarei pessoalmente do assunto.
—Acompanho-a — disse Margot. Tomou o casaco da Sra.
Callaghan e levou-a até o elevador.
Alex estava perto da janela, olhando as luzes da cidade,
quando ela voltou.

— Muito simpática — disse Margot. — E muito leal.
—É — ele respondeu, enquanto pensava que tomaria todas as
medidas para que a Sra. Callaghan fosse tratada com a máxima
consideração.
Haveria outras pessoas com que se preocupar também.
Promoveria Tom Straughan para seu próprio posto de vicepresidente
executivo; Orville Young poderia ocupar o lugar de
Heyward muito bem; Edwina D'Orsei deveria ser promovida a
vice-presidente encarregada do Departamento de Custódia.
Era um posto que ele guardava há muito tempo para Edwina.
Esperava, em breve, promovê-la mais alto ainda, mas desde
logo deveria integrar a diretoria.
De repente, Alex deu-se conta de que já aceitara a presidência
do Banco. Bem, Margot já o dissera.
Virou as costas para a janela e para a escuridão do lado de fora.
Margot, ao lado da mesa, olhava as fotografias e de repente,
desatou a rir, no que ele a acompanhou.
— Oh, Deus! — disse Margot. — É o próprio tragicómico!
Depois, repuseram as fotografias no envelope. Alex sentiu-se
tentado a jogá-las no fogo, mas sabia que isto era errado, pois
representaria a destruição de uma evidência que poderia vir a
ser necessária. Resolveu guardá-las, protegendo-as de olhos
alheios — em benefício de Roscoe.
—Tragicómico — repetiu Margot. — E não é isto a vida?
—Exato — concordou Alex e naquele momento sentiu que
precisava dela, mais do que nunca.
Segurou-lhe as mãos, dando prosseguimento à conversa que a
chegada da Sra. Callaghan interrompera.
— Querida, não se preocupe com nenhum abismo entre nós.
Temos inúmeras coisas em comum. Você e eu fazemos bem um
ao outro. Vamos viver juntos, para sempre, Bracken, a partir de
agora.
Margot argumentou:

— Provavelmente não vai dar certo, nem durar. Tudo está
contra
nós.
—Então vamos tentar provar que o mundo todo está contra
nós.
—Então, vamos tentar provar que o mundo está errado.
—Mas temos uma coisa a nosso favor. — E os olhos de Margot
brilharam de malícia. — Muitos casais que juram amar-se e
respeitar-se até que a morte os separe, terminam se
divorciando em um ano. Quem sabe se nós, que começamos
sem acreditar em nada e sem nada esperar, quem sabe se não
nos sairemos melhor?
Ele abraçou-a dizendo:
— Sabe de uma coisa? Às vezes, acho que banqueiros e
advogados falam demais.
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  O Dinheiro - Arthur Hailey

 
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Sinopse:

Dinheiro. Gente. Transação bancária. Inquietante e surpreendente romance, O Dinheiro, de Arthur Hailey, é a verda­deira história dessas três coisas terríveis, esses monstros que exigem cada vez maior número de vítimas na sociedade americana — o dinheiro, as transações bancárias e as pessoas do alto e baixo mundo que se envolvem no dinheiro e com o dinheiro.

Este romance mostra o cotidiano das finanças no maior centro de decisões fi­nanceiras de todos os tempos: a América do Norte.



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