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[MISTURANDO-IDEIAS] LANÇAMENTO Livros Loureiro: Amor e Ambição - Maria Nazareth Dória

AMOR E AMBIÇÃO
PELO ESPÍRITO HELENA
PSICOGRAFIA DE
MARIA NAZARETH DÓRIA


Loretta era uma jovem nascida e criada na corte de um grande reino
europeu entre os séculos XVII e XVIII. Determinada e romântica,
desde a adolescência guardava um forte sentimento em seu coração:
a paixão por seu primo Raul. Um detalhe apenas os separava: Raul
era padre, convicto em sua vocação.

Sem esperanças de conquistar o coração de Raul, Loretta perde
irremediavelmente o seu grande amor para a Igreja. Começa aí a
sua saga: inconformada com seu destino, jura vingança, não
medindo esforços para isso. Entre novos amores e desencantos, o
tempo vai passando, e Loretta se apaixona pelo rei Henrique em
uma das festas da realeza. O relacionamento de ambos se inicia, e
seu sentimento é correspondido...

Loretta, então, torna-se rainha de um império rico e próspero,
amada pelo povo, poderosa e enérgica. Mas a Lei de Ação e Reação
é implacável e se fará presente ainda nesta vida. As conseqüências
de seus atos repercutirão até no Brasil-colônia, onde o fazendeiro
Arquimedes, um grande exportador de cacau, trará fatos novos
escondidos em um passado de amor e ambição. Loretta ficará diante
de seus próprios erros... Como JBfc tentar obter o perdão de tantos a
quem prejudicou?

Neste Amor e Ambição, o espirito Helena, pela psicografia de Maria
Nazareth Dória, nos traz valiosas reflexões acerca da
responsabilidade de nossos próprios atos, ensinando-nos que, acima
de tudo, devemos compreender o funcionamento da Lei de Causa e
Efeito para a conquista eterna da paz de espírito.


A médium Maria Nazareth Dória nasceu no dia 28 de fevereiro em
Canhoba, no interior do estado de Sergipe, mais precisamente em
uma aldeia indígena. Lá Permaneceu até os 9 anos de idade, quando
foi matriculada em um colégio interno freiras na capital, Aracaju,
completando s estudos até o segundo grau.

Aos 17 anos, casou-se e mudou-se para São Paulo. Teve duas filhas.
Nesse período, deu seqüência aos estudos e iniciou sua carreira
profissional, trabalhando durante 30 anos, dos quais 22 como
funcionária da Petrobras, empresa ela qual se aposentou.

A mediunidade de Maria Nazareth Dória se manifestou desde cedo,
por volta dos 7 anos. Sendo descendente de índios, Nazareth
sempre foi orientada sobre a existência da vida espiritual e a
importância da natureza em nossas vidas, sobretudo no campo da
medicina alternativa. Graças a esse aprendizado, Maria Nazareth
Dória tem se dedicado hoje exclusivamente às atividades espirituais
e à pesquisa de plantas medicinais, obtendo excelentes resultados
alternativos com essências naturais.

É fundadora e dirigente de instituição sem fins lucrativos há 15
anos, atendendo e orientando centenas de pessoas (inclusive
jovens), contando com o apoio de médicos, dentistas, advogados,
enfermeiras, psicólogos e professores. O atendimento à população
carente estende-se em diversas áreas, do apoio às necessidades
básicas da família até o trabalho de afirmação de cidadania daqueles
que vivem à margem da sociedade.


Além das atividades filantrópicas Maria Nazareth Dória ministra
cursos e palestras sobre a Doutrina Espírita e exerce sua
mediunidade há mais de 30 anos, psicografando diversos romances
sobre o mundo espiritual, mensagens de auto-ajuda e pensamentos
espirituais notadamente sob a ótica da Lei de Ação e Reação, um
dos pilares básicos dos ensinamentos trazidos pelos amigos do
Além que trabalham com a médium.

AMOR E AMBIÇÃO


Romance do espírito HELENA
Psicografia de


MARIA NAZARETH DÓRIA

DEDICATÓRIA

Dedico este livro às minhas filhas Eliane e Carla. E a você, Lya, com
todo amor e carinho, pela alegria que me tem dado.

Enfim, a todos os amigos por apoiarem o meu trabalho, em
particular a Boanéris da Silva, por estar de mãos dadas comigo.


SUMÁRIO

Palavras da Médium

Amarga prova

As bodas

A armadilha

A nova rainha

Declarada a guerra

O desencarne do rei

Fatos inesperados

O peso da culpa

A dor da separação

O novo herdeiro

A vida toma novos rumos

O paraíso perdido

A força do passado

Do outro lado do continente

Nada fica oculto

O cortejo real

O encontro

A colheita obrigatória Inimigos espirituais De volta à

terra natal Encontrando o rei Tudo tem seu tempo

A verdade vem à tona
A cada um segundo suas obras
Tal pai, tal filho
Há sempre uma nova oportunidade
Um amor impossível
Nada fica sem resposta
Transformações
Os males que vêm para o bem
A vitória do espírito
Diana, a nova rainha
0 desencarne de Loretta


A revelação
A reencarnação

PALAVRAS DA MÉDIUM

Pretendemos divulgar cada vez mais a verdadeira ideologia dos
trabalhos inspirados pelos espíritos de luz, mentores estes que nem
sempre fazem questão de sua identificação, mas apenas de nos
ajudar a enfrentar as duras realidades de nossa trajetória como
encarnados.
O transporte das palavras dos mentores espirituais é sempre claro,
objetivo e transparente, mas não é um trabalho fácil para nenhum
médium! Por isso, torna-se necessário o empenho e a boa vontade
dos instrumentos (médiuns) em estudar, pesquisar e desenvolver-se
espiritualmente, afim de compreender a seriedade dos trabalhos a
eles confiados.
Alguns autores se propõem a escrever dignamente sobre
personalidades que abriram e construíram as estradas que trilhamos
nos dias de hoje. Damos como exemplos os nossos cientistas,
engenheiros, inventores, etc. Quantas maravilhas deixadas para
nós!!!
Devemos mostrar ao mundo as grandes obras que herdamos destes
sábios. E só temos um jeito de mostrar... Escrevendo e retratando
tudo aquilo que nos foi confiado por eles.
Não é fácil receber e transmitir os ensinamentos ou as mensagens
com a mesma perfeição com que eles nos passam, pois ainda somos
instrumentos imperfeitos... mas tenho plena convicção de que todos
os médiuns que trabalham psicografando pelas inspirações dos
espíritos de luz tentam fazer o melhor possível em cada obra
confiada.


Em todas as obras psicografadas, precisamos da ajuda de outras
pessoas, pois nenhum médium trabalha sozinho, sem o auxílio de
outros irmãos; torna-se necessário corrigir as falhas nas escritas,
falhas estas não dos mentores espirituais, mas nossas, como
instrumentos humanos.
Falando dos sábios mentores, será que estes "Mestres" nos
abandonaram?
Em hipótese alguma! Continuam trabalhando tanto quanto antes
para nos ajudar, não se descuidaram de sua maior obra, que é a
"Instrução Divina" entre todos os povos.
O mundo mudou, as pessoas também mudaram! Estamos passando
por uma transformação íntima, buscando um conhecimento mais
profundo sobre nosso próprio "EU".
Nessa Nova Era, 90% da população mundial hoje se questiona:
Quem sou eu? Essa pergunta cria uma ansiedade...
De onde vim? Fica uma dúvida...
Para onde vou? Paira um medo pelo futuro.
A inquietação do mundo moderno nos obriga cada vez mais a
fazermos uma avaliação diária sobre nossas atitudes e ações, nossos
medos e carências, nossos sonhos e metas.
As pessoas buscam cada vez mais o conforto na espiritualidade,
estudando, pesquisando e crendo que a morte não existe; e a certeza
de que temos um caminho a seguir após esta breve passagem física
nos anima na prática do bem, pois temos consciência de um novo
amanhã, em novo mundo, em uma nova vida.
Como seres encarnados e conscientes daquilo que somos, só
podemos abrir estes caminhos atendendo fielmente à chamada dos
nossos mentores espirituais, que nos apontam a direção da luz para
uma conquista gloriosa: elevação espiritual!!!
Helena mostra neste livro que Deus não abandona nenhum de seus
filhos, e que todos os dias recebemos grandes oportunidades de
mudar e melhorar a rota de nossas vidas.


Deus nos deu a Lei do Livre-Arbítrio, concedendo-nos o poder de
conhecer a força do bem e do mal para escolhermos um caminho e,
sendo ele escolhido, já sabermos do nosso destino.

Nesta vida, como encarnados, há dois caminhos, como já sabemos: o
do bem e o do mal. Um deles nos levará ao destino escolhido, e a
justiça do Criador é justa e reta para cada um de nós.
Helena nos mostra claramente que muitos sofrimentos em nossas
vidas foram gerados pela nossa teimosia em não ouvir a voz de
Deus clara e nítida dentro de nós. Retrata o que faz o orgulho e a
paixão em nossas vidas.
"O orgulho e a paixão" são um par de algemas que aprisiona o
espírito do homem, fazendo dele um escravo do mundo, um
desertor da Mansão Divina.

Maria Nazareth Dória

AMARGA PROVA

A primavera desabrochava caprichosa naquele recanto do mundo,
enfeitando e perfumando o palácio D'armis.
O sol brilhava aquecendo as rosas que começavam a abrir-se. O
jardineiro Manuel ajeitava a terra em torno das roseiras e respondia,
muito orgulhoso, às perguntas da sobrinha do patrão, o Conde
D'armis.
Debruçada no peitoril da varanda, Loretta olhava para o imenso
jardim e fazia perguntas ao jardineiro sobre as rosas vermelhas e
aveludadas. Nunca tinha visto flores iguais àquelas em lugar
algum.



Enquanto o jardineiro continuava cuidando das rosas, Loretta
viajava em pensamento. Seus olhos se perdiam no azul do
horizonte. Quanta beleza, quanta fartura, e seu coração tão solitário,
ferido e magoado... Era injusto, muito injusto!
Em silêncio, rezava, pedindo a Deus: "Afaste de mim esse
sentimento, Senhor. Sei que estou cometendo um grande pecado
amando a quem não posso amar. Como posso amar um padre?
Como posso ter esse sentimento por um de seus pastores? E se
alguém descobrir? Antes a morte; seria melhor morrer...".
Ela não tinha coragem de pedir aos tios notícias do primo; temia
que descobrissem seu segredo. Somente com Deus podia falar e
abrir o coração. Há muito tempo fugia do confessionário, não podia
mentir para Deus, e estava sempre arrumando uma desculpa, a fim
de despistar a mãe.


Quando ouvia qualquer comentário sobre seu secreto amor, seu
coração parecia partir-se ao meio. Alegando um pretexto qualquer,
fugia para chorar às escondidas. A saudade era demais!
O simpático jardineiro falava e falava sobre as rosas, sem nenhuma
malícia, mas Loretta não ouvia uma palavra do que ele dizia.
Com o coração batendo forte, arriscou uma pergunta:


— Senhor Manuel, o filho do conde tem aparecido por aqui?
— Não, senhorita. Estou aqui há dois anos e ainda não o vi uma só
vez — respondeu, sorridente. — Sempre trabalhei para o conde.
Trabalhava antes na fazenda, mas com a idade que tenho e sozinho,
pois enviuvei e não quero incomodar meus filhos, o senhor conde
trouxe-me para trabalhar no castelo. Passei mais de quinze anos na
fazenda e nunca o vi, ele nunca apareceu por lá. A senhora também
foi à fazenda poucas vezes, não é mesmo? — E continuou falando:
— Fico pensando, senhorita, como se sente o senhor conde tendo
um único filho e este ser padre... Tanta riqueza o pai tem, e o filho
não tira proveito nenhum! Vive em conventos e igrejas, trabalhando
e convivendo com pobres e doentes. As vezes sinto pena. O senhor
conde tem um filho, mas vive tão solitário...

Ainda debruçada no parapeito da janela que dava para o jardim
principal, Loretta viu uma carruagem de aluguel aproximar-se do
portão de entrada do castelo D'armis. O jardineiro também parou o
que fazia para ver quem chegava.
A carruagem parou em frente ao portão. O cocheiro desceu, abriu a
portinhola, e um homem alto, moreno, de cabelo escuro, vestido
com uma batina preta, desceu com um pequeno baú na mão.
Loretta empalideceu, seu coração começou a bater acelerado.
Emocionada, gritou para o jardineiro:

— É ele! É ele!
Correu para dentro de casa, arrumou o vestido e o cabelo, suas
pernas tremiam, suas mãos suavam; era tudo o que ela queria, mas
a surpresa fora demais!
Ele entrou na varanda e, vendo Loretta, abriu os braços e
disse:


— Loretta! Que surpresa agradável encontrá-la aqui! — Abraçou e
beijou a prima no rosto.
— Para mim também é uma grande surpresa; não esperava
encontrá-lo — disse isso controlando os impulsos do coração. —
Meus tios não comentaram nada sobre sua chegada — comentou,
corada.
— Eu realmente não os avisei, vim de surpresa. Vou ficar uma
semana com eles. E graças a Deus fui premiado com sua presença.
Como estão meus pais e sua mãe?
— Sua mãe não está bem, por isso vim com minha mãe ficar uns
tempos fazendo-lhe companhia. Estão conversando no andar de
cima. Acho melhor prepará-los, sua mãe não pode se emocionar.
Por favor, Loretta, faça isso. Parece que nem saí e já faz três anos —
que estive aqui. No ano passado, quando a vi em Roma, você me
pareceu menor. Seu cabelo mudou, está brilhante e bonito, e você
está linda, querida prima — comentou ele.

Com as faces coradas pelo elogio, Loretta subiu as escadas
correndo. Chegando onde estavam os tios e a mãe, disse,
emocionada:
—Acabamos de receber uma ilustre visita; vocês vão gostar de vêlo.
Minha tia, fique sentada onde está que meu primo vem até aqui.
A condessa pôs-se a rir e a chorar ao mesmo tempo.


— Meu filho está aqui! Peça-lhe que venha, minha filha. Quero
abraçá-lo.
O conde desceu rapidamente para cumprimentar o filho.
Emocionados, subiram as escadas. Loretta entrou em seu quarto
chorando. Ele estava mais bonito que antes! Ainda sentindo o
perfume do corpo dele próximo ao seu, fechou os olhos, e as
lágrimas desceram sem que pudesse contê-las.
— Meu Deus, o que vou fazer de minha vida?
Ele era seu primo e o mais grave: era padre! Quando crianças,
brincaram juntos, mas agora eram dois jovens com destinos
diferentes.
Raul nunca lhe tinha falado sobre a vontade de ser padre, mas,
quando foi para o convento estudar, descobriu a vocação pela
Igreja. No dia em que o viu vestido com a batina branca, sua alma
perdeu-se para sempre. Ficou oito anos sem vê-lo. Guardava dele
uma imagem infantil, mas, vendo-o como homem, algo explodiu
dentro de seu coração.
Faria qualquer coisa para estar a seu lado. Chegou a pensar em
tornar-se freira para ficar próxima dele. Mas era tolice sua; as freiras
ficavam enclausuradas, longe dos padres. Depois, ela o queria como
homem, não como padre.
Trancada no quarto, chorando, pensava: "Não vou suportar ficar
aqui! Ele me vê como uma criança; dentro dele não existe maldade,
eu é que peco todas as vezes que olho para ele".



Deitada, ficou olhando o vazio e começou a se lembrar da infância.
Ela, de trança, correndo no gramado do jardim, escondendo-se atrás
dos arbustos, enquanto Raul a procurava, brincando:

— Vou caçar uma coelhinha branca de cabelo loiro!
Ela tinha apenas cinco anos, e ele parecia um caçador de verdade,
pois era cinco anos mais velho.
Tomou uma decisão: levantou-se e começou a arrumar seus
pertences. "Amanhã logo cedo partirei; não vou suportar ficar aqui.
Prefiro morrer a ele perceber que não o vejo como padre ou primo.
Não vou descer para o jantar, inventarei uma desculpa... Não quero
mais vê-lo."
Loretta só se deu conta de que escurecia quando ouviu pancadas na
porta do quarto. "Deve ser a criada", pensou. Levantou-se, arrumou
o cabelo e respondeu:
—Pode entrar.
Raul estava na penumbra da porta. Ela sentiu as pernas tremerem e
começou a gaguejar como uma criança pega fazendo algo errado.
—Loretta, você desapareceu por toda tarde! Não gostou de me ver?
Vim buscá-la para o jantar. — Vendo a mala pronta, perguntou: —
O que significa isso?
—Preciso resolver algo em nossa casa. Minha mãe poderá fazer
companhia para a sua até minha volta — respondeu, entre lágrimas.
— Loretta, eu lhe peço, fique mais um pouco. — Abraçou-a,
puxando-a de encontro ao peito. — O que está acontecendo com
você? Confie em mim, por favor.
— Você não pode entender o que se passa comigo, pois nem eu
mesma entendo. Sofro demais, já pedi tanto a Deus que tire isso de
dentro de mim, mas a cada dia que passa meu sofrimento aumenta
mais. Amo alguém que nem em sonho poderia pensar em me amar.
— Minha pequena, não fique assim. Preste atenção ao que vou falar:
eu a amo de todo o coração, sempre a amei e a amarei eternamente.
Vou estar ao seu lado e ajudá-la a conhecer o verdadeiro amor do
Mestre. Amo-a com o mais sublime e digno amor. Ouça o que tenho

para dizer-lhe: Loretta, o amor nunca traz sofrimento para a alma.
Quando amamos verdadeiramente, basta respirar o mesmo ar, basta
olhar para o céu e sentir o olhar de Deus sobre nós para nos
alegrarmos em saber que existe alguém especial em nossa vida. Sua
alma me ama, e seu corpo físico não entende o que isso significa,
mas vou mostrar-lhe o que é o verdadeiro e cristalino amor entre
duas almas. Somos duas almas separadas por um breve tempo para
nos unirmos na eternidade. — E disse por fim: —Arrume-se,
enxugue as lágrimas. Vamos descer para o jantar. Não se culpe pelo
amor que carregamos no coração um pelo outro; nada fizemos de
errado perante Deus. Não tenha medo de amar e ser feliz, apenas
procure saber o que é o verdadeiro amor. Estou em você como você
está em mim. Penso que nós dois somos uma só alma que se
desmembrou por um tempo.

— Mas o que realmente sente por mim?
— Eu a amo, Loretta. Um dia saberá quanto.
Loretta sentiu uma alegria imensa invadir-lhe o coração. Então ele a
amava! Parecia um sonho... Abraçada a ele, sentia o cheiro das rosas
que penetrava pela janela do quarto e via uma estrela apontando no
céu. Naquele momento, era a pessoa mais feliz do mundo! Raul
também a amava. Pouco importava o resto.
Tomando-lhe a mão, Raul lhe disse:
—Após o jantar, vamos nos sentar na varanda, olhar para o céu e
procurar nossas estrelas. Lembra-se de quando éramos crianças?
Você brigava comigo, queria todas as estrelas grandes para você, e
eu sempre concordava em ficar com as menores. O amor é isso,
minha querida: renunciamos até mesmo a um espaço no céu por
quem amamos. Aceitamos ficar com os pequeninos espaços aqui na
terra em troca de um espaço maior no céu ao lado de quem
amamos.
A mesa, sentaram-se frente a frente. Agora ela o olhava e sorria-lhe
sem medo ou culpa. Se Deus não existisse, Raul seria todo seu, mas


o primo era fiel a Ele, jamais O trairia. Só de pensar que, depois de
Deus, era ela a quem ele mais amava dava-lhe uma alegria muito
grande. No íntimo, pensava: "Por que ele não me ama em primeiro
lugar? Ele poderia deixar a batina e casar-se comigo, seríamos
felizes para sempre...".
O céu estava limpo e estrelado. Após os outros se recolherem, Raul
e Loretta foram até a varanda. Deitaram-se em bancos separados,
como na infância, e puseram se a rever suas estrelas prediletas. Elas
estavam lá, no mesmo lugar de antes, lindas e brilhantes.
Ele começou a falar de uma forma de amor da qual até então ela
nunca ouvira falar. Não soube quanto tempo ficaram olhando para
o céu, ele lhe descrevendo o grande amor de Deus pela
humanidade, e ela sonhando não com o amor de Deus, mas com o
amor carnal dele.
Já era tarde quando se levantaram. O perfume das rosas molhadas
pelo orvalho da noite envolvia Loretta num clima de paixão e amor.
A moça sentia o coração dilacerar-se.
—Raul, por que, por que, por que escolheu esse caminho? Como
poderei viver sem você? Eu o amo, não me deixe, leve-me contigo,
deixe-me apenas ficar ao seu lado. Sem você a vida não tem sentido
para mim.
Com muito carinho, Raul tentou explicar a Loretta o grande amor
que os unia, o amor espiritual, não o fogo da paixão ou o desejo da
carne. Ele iria ajudá-la a cumprir a missão: ela precisava se curar da
doença e recomeçar o trabalho na carne. Devia casar-se, ter filhos,
renunciar a diversos sonhos e trabalhar para completar sua tarefa na
terra. Ele jamais poderia lhe dar o amparo da matéria, mas daria o
amparo espiritual, que era o mais importante.
Afastou-se da prima, ajoelhou-se de mãos postas e orou em voz alta:
—Pai Misericordioso, tende compaixão de vossos filhos. Pai de
Misericórdia, amparai-nos neste momento tão difícil de nossas
vidas. Pai, dai-nos a fé e a razão para que possamos alcançar o
caminho de nossos objetivos.

Loretta cobriu o rosto com as mãos, soluçando. Numa explosão de
dor, gritou:

— Que pai é o seu Deus que faz as pessoas sofrerem? Eu odeio esse
Deus! Você prefere Ele, esse Deus que não tem compaixão da dor de
ninguém.
Pálido, na penumbra, o padre continuou a orar, agora em silêncio:
"Pai, em vossas mãos entrego minha vida. Se for para salvar Loretta,
tirai-me a vida do corpo para que o espírito possa ajudá-la".
Loretta saiu correndo em direção às escadas. Parecia outra pessoa,
estava transtornada, chorava, e de seu coração parecia sair sangue
vivo, tamanha a dor que sentia. Queria poder morrer e acabar com
todo aquele sofrimento.
Raul correu atrás dela, tentando acalmá-la. Ela avançou sobre ele
proferindo ofensas, com os olhos vermelhos, faiscando pela ira que
lhe vinha da alma:
—Então você sempre soube que eu o amava, mas ficou quieto,
fazendo-me sentir a pior das criaturas, divertindo-se com meu
sofrimento. Hoje encheu meu coração de alegria e esperança para
depois acabar com minha vida. Vá, siga seu estúpido Deus! O
amante dos homens! Com certeza Ele não criou as mulheres, Ele as
odeia, por isso sofremos tanto! Lutarei contra Ele com todas as
minhas forças. Seu Deus tirou você de mim e de seus pais. Sua mãe
está morrendo, e você é o culpado; largou tudo por esse Deus que
nem mesmo sabemos se existe. Melhor que exista mesmo para que
saiba o quanto O odeio! Não vou esquecê-lo, Raul, juro que não vou
esquecê-lo! Quero viver para odiá-lo tanto quanto ao seu Deus.
Afastou-se rapidamente, deixando o padre ainda de joelhos
invocando proteção e perdão para a criatura sofrida e magoada:
—Perdoai, Pai, ela não sabe o que faz! Meu Senhor e meu Deus,
tende de nós compaixão!
Chegando ao quarto, Loretta pegou tudo que lhe pertencia. Seu
coração ardia, um novo sentimento crescia dentro dela: o desprezo
pela hóstia consagrada. Num ímpeto, quebrou tudo que havia

ganhado do primo: crucifixo, medalhas, terços, rosário. Rasgou o
livro sagrado. Não queria nada que a lembrasse Deus.
Invocou com toda sua ira e ignorância espiritual: Se realmente
existissem demônios e espíritos maus, gostaria de filiar-se a todos
eles, contanto que a ajudassem a ter Raul e todos os padres e
religiosos que cultuassem Deus a seus pés. Que viessem até ela;
estaria disposta a fazer tudo o que lhe mandassem.
Deitou-se na cama e fechou os olhos. Parecia que algo a suspendia
no ar. De repente, seu peito arfava, um calor intenso percorria-lhe
todas as veias do corpo. Teve a impressão de que várias pessoas
entravam no quarto; podia ver nitidamente sombras humanas na
parede. Depois, viu-se no meio delas, acompanhando um grupo de
pessoas estranhas, quando uma delas, que parecia comandar as
outras, lhe perguntou:

— Você nos chamou e fez um pedido. Tem certeza do que
quer?
— Quem são vocês? — perguntou, ao mesmo tempo dizendo para si
mesma: "Estou sonhando".
— Somos aqueles que podem ajudá-la. Você quer atormentar o
padre, estou certo? Se realmente é isso o que deseja, estou aqui para
negociar.
—Vocês são demônios?
—Que bobagem, não existem demônios! Somos espíritos como você
e temos os mesmos sentimentos: ódio por aqueles que nos
desprezam.
Relembrando tudo e a humilhação de ter sido rejeitada por Raul,
assentiu:

— Desejo de todo o coração trazer Raul para junto de mim. Quero
me casar com ele, ser feliz e nunca mais pensar que acreditei em
Deus.
— Se quer mesmo nossa ajuda, terá de assinar um contrato com
nossa associação.

Loretta acompanhou o grupo, disposta a dar início ao seu plano.
Assinou um contrato, prometendo trabalhar arduamente enquanto
estivesse encarnada. Consentiu em emprestar o corpo e os
pensamentos para a organização. Comprometeu-se a ser resgatada
imediatamente à associação filiada e continuar o trabalho depois do
desencarne.
O chefe da organização assegurou-lhe que ela desposaria Raul, que
podia confiar nele, era homem de palavra. O grupo era tão alegre e
simpático que Loretta nem sentiu medo de segui-lo.
Quando abriu os olhos, estava suando. Não sentia mais vontade de
chorar e lembrava-se de todas as palavras ouvidas no "sonho".
Levantou-se, bebeu um copo com água. Estava completamente
refeita na matéria. O primeiro pensamento de vingança veio-lhe à
mente. Como não pensara naquilo antes?!
Pegando a caneta, escreveu uma carta ao tio explicando que não
poderia permanecer nem mais um dia na casa. Pedia-lhe que ele
mesmo verificasse a verdade. Maliciosamente, colocou no papel
que, naquela noite, quando todos se recolheram, inocentemente ela
acompanhou o padre até a varanda. Ele prometeu ensinar-lhe lindas
orações e mostrar-lhe o rosário de Maria nas estrelas, e ela confiou
nele. Afinal de contas, além de ser seu primo e amigo de infância,
também era padre.
Ao ficarem a sós, ele abusou de sua inocência. Ali mesmo, sem dó
nem piedade, violentou-a. Ela narrou seu desespero e revolta com o
acontecimento da noite. Recomendava poupar a mãe e a tia da
desgraça e implorava ao tio que contasse à mãe que precisara voltar
ao castelo para resolver alguns problemas.
Saiu cautelosamente e foi até o chalé onde morava o jardineiro.
Aparentava haver sofrido uma grande agressão. O homem
assustou-se com a moça batendo em sua casa àquela hora,
desalinhada e com o rosto transfigurado.


— Senhor Manuel, por favor, ajude-me! Preciso sair daqui antes que
outra desgraça aconteça. Prepare o cocheiro, temos de seguir
viagem com os primeiros raios do dia! E tudo que lhe peço.
— Aconteceu alguma desgraça, senhorita? — perguntou o
jardineiro, tremendo.
— Sim, Senhor Manuel, mas só eu posso resolver.
Em silêncio, ele pegou os pertences de Loretta, ajudou-a a colocá-los
na carruagem, e, assim que os primeiros raios de luz apareceram no
céu, ela subiu no veículo e colocou-lhe nas mãos a carta que
escrevera ao tio, com a seguinte recomendação:
—Ninguém pode ler esta carta a não ser meu tio. Assim que o dia
clarear, procure-o e entregue-lhe a carta. Não deixe meu primo
perceber nada. Converse apenas com meu tio, conte-lhe que pedi
ajuda. Por favor, Senhor Manuel, vá agora até a varanda do
segundo andar e coloque tudo em ordem por lá. Muito obrigada
pela ajuda. Até um dia.
O velho jardineiro ficou com os olhos cheios de lágrimas. O que
teria acontecido com Loretta? Ela estava em péssimo estado. Foi até
a varanda e viu que as plantas e as cadeiras estavam viradas para
cima, como se tivesse acontecido uma luta por lá. Arrumou tudo e
ficou imaginando o que teria ocorrido.
O padre ficou em penitência até altas horas, quando por fim
adormeceu. Acordou com os primeiros raios do sol iluminando o
quarto. Com uma sensação de tristeza no coração, orou fervorosamente
ao Pai, agradecendo pelas bênçãos e o despertar.
Tomou banho e vestiu cuidadosamente a batina negra. Desceu as
escadas pensando em Loretta; precisava ajudá-la. Após o café da
manhã, conversaria seriamente com ela. Daria a vida para vê-la
feliz, mas não da maneira como ela se comportava diante de Deus.
Chegando ao salão principal, percebeu uma agitação fora do
comum. Algo tinha acontecido. A tia chorava, amparada por uma
de suas acompanhantes. Aproximou-se dela e, tomando-lhe as
mãos, perguntou:

— Por que está chorando?
— Não sei o que houve de tão sério para que Loretta partisse sem ao
menos se despedir de mim. Seu pai me disse que ela foi resolver um
problema em nossa casa, mas o que poderá ser, meu filho, se
deixamos tudo em ordem?
Uma dor imensa invadiu o coração de Raul. Então Loretta partira
magoada, revoltada e em pecado. "Deus, inspirai-me o caminho que
devo seguir para ajudá-la", suspirou a si mesmo.
Consolou a tia por um instante e saiu à procura do pai no escritório.
Bateu na porta apenas uma vez e ouviu-lhe a voz:
—Pode entrar!
Raul notou o conde pálido, parecia ter envelhecido dez anos. Com
os lábios tremendo e a voz embargada pelas lágrimas, falou:
—Raul, você acabou com nossa família, desonrou o próprio sangue
e cometeu um crime para com a Igreja!!!
Tomado de surpresa, o padre perguntou:
— Meu pai, pode me explicar o que está acontecendo?
— Como vou explicar o que não posso entender? Você violentou sua
prima em nossa própria casa! Aceitei sua escolha de ser padre por
respeito a Deus e à Igreja, mas vejo que me enganei com você. Não
vou mais permitir que use a batina e proclame o sacerdócio. Tenho
por dever e obrigação denunciá-lo ao bispo e assinar como uma das
testemunhas seu desligamento da Igreja, em que será julgado e
provavelmente excomungado para sempre. Seu crime não tem
perdão.
O padre sentou-se em frente à escrivaninha; estava pálido. Suas
mãos estavam geladas.
—Meu pai, pode me explicar melhor o que está acontecendo?
Tremendo, o conde levantou a cabeça e gritou:
— Você se recorda de que esteve ontem à noite na varanda com sua
prima após todos irem para a cama?
— Sim, fui com Loretta até a varanda e ficamos apreciando as
estrelas, conversamos e...

O conde cortou-lhe:
—... abraçou Loretta, beijou-a e fez coisas que não tenho coragem de
acreditar.
Raul sentiu um aperto no coração: "Deus, como posso explicar a
meu pai o que está acontecendo?". Ficou em silêncio, esperando que

o conde falasse o que acontecera. Este se levantou e ficou andando
de um lado para o outro. Depois, parou em frente ao filho e disse-
lhe:
—Você vai subir agora mesmo, tirar essa batina e vestir-se como um
homem comum. Aliás, um homem comum não faria o que você fez.
Vou em busca de Loretta, e você, em busca do bispo. Dentro de no
máximo um mês vocês estarão casados. A vergonha e o escândalo
serão menores assim. Quanto à sua posição perante a Igreja, você
conhece melhor do que eu o que pode acontecer.
O conde ia saindo, sem esperar resposta, mas na porta voltou-se e
disse, quase gritando:
—Quando voltar com sua prima, quero encontrá-lo vestido de
homem e a Igreja já informada de sua renúncia. — Fechou a porta
com violência e saiu com passos rápidos.
O padre ajoelhou-se. "Meu Senhor e meu Deus, tende piedade de
mim; afastai de mim este cálice, Pai! Senhor, não sou digno de
entrar em vossa morada, mas necessito de vossa palavra para minha
alma ser salva. Pai, que estais no céu, sejam quais forem Vossos
desígnios para comigo, não me abandoneis. Perdoai-me, Senhor,
por ter deixado minha morada, que é a Santa Igreja, para vir a esta
casa onde nada já me pertence, pois Vós, Senhor, sois minha vida,
meus olhos, meu caminho. Nada temerei, porque estais comigo."
Orou fervorosamente, e a paz tomou conta de seu coração. Jamais
tiraria a veste sagrada, jamais cairia nas mãos dos inimigos do
Senhor. Levantou-se e foi até o quarto. Lá, pegou seu pequeno baú,
desceu as escadas tranqüilamente e encaminhou-se para a saída sem
olhar para trás. Chegando ao portão, encontrou uma carruagem
parada com três senhores a postos. Um deles falou:

—Entre, padre. Temos ordem do conde de levá-lo até o bispo e
trazê-lo de volta ao castelo.
Raul subiu na carruagem pedindo em oração que Deus não o
abandonasse. Quando pararam em frente à casa paroquial, um deles
estendeu um baú, dizendo-lhe:
—Senhor padre, aí tem tudo de que vai precisar, roupas e calçados,
assim que entregar a batina. Foi ordem do conde. Esperaremos pelo
senhor.
Logo estava à frente do santo bispo, que o recebeu amorosamente.
Entre lágrimas, relatou desde sua chegada ao palácio até os últimos
acontecimentos, o bispo segurando-lhe as mãos, orando em silêncio
e ouvindo sua confissão.
Ao final, o santo bispo lhe disse:
—O caso está nas mãos de Deus. Troque sua batina e vista-se como
homem comum. Assim também foi Cristo, levado a julgamento tão
inocente quanto você, meu bom filho. Volte para seu calvário e
espere a vontade do Pai. Deus, nosso Pai, fala através de Seus filhos.
Apenas Ele poderá livrá-lo, e que seja feita a Sua vontade. Se assim
Ele achar que é o preço de sua alma nesta terra, sustente o peso da
cruz com muita dignidade.
Oraram juntos. O bispo confortou-o, deu-lhe a hóstia consagrada e
abençoou-o, recomendando que aceitasse os desígnios de Deus.
Acreditava em sua inocência, mas Deus sabia sempre o que era
melhor para Seus filhos.
Uma esperança surgiu no coração de Raul: Loretta desmentiria todo
aquele mal-entendido; talvez algum criado tivesse visto os dois
abraçados, a moça chorando, e entendido mal. Iria esperar a
vontade do Pai Maior.
Ajoelhou-se diante de seu pai espiritual, tomou-lhe a bênção e
entregou-lhe as vestes sacerdotais. As lágrimas escorreram pelas
faces de ambos. O bispo beijou-lhe a fronte e animou-o:
—Confie na vontade de Deus, meu filho. Estarei sempre coontigo.


Sem a batina, Raul se sentiu completamente despido. Imaginou
como Cristo se sentira ao ser despido de suas vestes. "Senhor, estejai
comigo", pediu. Sentou-se em silêncio. Sabia que dali em diante sua
vida como homem estava nas mãos de Deus. Uma sensação de paz
e calma tomou conta de seu espírito. Estava preparado para aceitar
qualquer caminho que Deus lhe tivesse reservado.

Ao entrar em casa, encontrou um clima de apreensão. A mãe estava
acamada, e a tia recusou-se a recebê-lo. Subiu para o quarto e ficou
à espera do porvir. Um criado trouxe-lhe uma bandeja com
alimento, mas ele não tocou em nada.
Anoitecia, quando ouviu o barulho de carruagens se aproximando.
Correu até a janela, estava escuro, mas pôde ver Loretta saltando de
uma delas.
Estremeceu, imaginando o sofrimento dela. Faria tudo para ajudála...
Pediu perdão a Deus. Será que não estava sendo castigado por
amar tanto Loretta? Não, sabia que não, era o mais puro amor o que
sentia por ela, jamais faria qualquer mal àquela criatura.
Naquela noite o pai não o procurou. Assim que amanheceu, desceu
e sentou-se no grande salão de refeições. Logo chegaram os pais e a
tia, acompanhados de Loretta, que o olhou de cima a baixo,
admirando a beleza do jovem, agora vestido normalmente. Sem a
batina, ele estava mais alto e mais bonito.
Por nada retrocederia em sua decisão; casaria-se com ele, sim;
queria ver se o Deus dele iria se interpor entre eles. Sentia-se
vitoriosa: arrancou-lhe a batina e o arrancaria definitivamente de
Deus e da Igreja. Seriam felizes, tinham tudo para ser: dinheiro,
saúde, beleza, título e juventude.
Raul foi até Loretta, beijou-lhe as mãos carinhosamente, puxou uma
cadeira e ajudou-a a se sentar. Voltou a seu lugar, sentando-se
calmamente, e começou a falar:
—Minha querida prima, peço-lhe, em nome de Deus, perante
nossos familiares, que fale tudo que aconteceu entre nós. Vamos
esclarecer esse mal-entendido. Pelo amor de Deus, Loretta, conte


para meus pais e à sua mãe a verdade, pois sei que estamos sendo
vítimas de um terrível engano. Alguém interpretou mal nosso
comportamento. Sei, minha querida, que você deve estar se
sentindo tão mal quanto eu com toda essa história.
Loretta, os olhos faiscando, o rosto em brasa, levantou-se. Parecia
outra pessoa.
—Raul, em nome de Deus digo eu! Como tem coragem de
pronunciar tais palavras? — E começou a soluçar.


O conde levantou-se, pálido, e gritou:
—Nem mais uma palavra ou vou me esquecer de que você é meu
filho e o arrebento aqui mesmo, na frente de sua mãe.
As mulheres começaram a chorar. O conde ordenou:
—Acalmem-se, todas vocês! Loretta, peço-lhe perdão, minha filha.
Quisera estar morto para não passar por isso, quisera que Deus o
tivesse levado quando criança, para não vê-lo praticar tamanha
crueldade conosco. — Dirigindo o olhar para o filho, continuou: —
Sentem-se e ouçam-me: a desgraça foi lançada em nossa família, e
só temos um jeito de reparar a situação. Loretta, você é quem vai
decidir pelo melhor. Diga se quer desposar seu agressor ou não.
Não posso forçá-la a unir-se a ele. Caso não queira, entregaremos
em suas mãos tudo que nos pertence, a fim de recompensá-la por
um dano que será sempre irreparável.
Loretta, de olhos baixos, fingia pensar. Raul, também de cabeça
baixa, orava em silêncio: "Pai, afastai de mim este cálice; faça-se a
Vossa vontade".
Por fim, ela respondeu, mantendo os olhos baixos:


— Meu tio, um erro não justifica outro. Jamais lhe causaria mal
algum. Nunca aceitaria nada de seus bens. Quero casar-me com
meu primo, mas faço uma exigência: quero permanecer aqui, na
mesma casa onde tudo começou.
— Será feita a sua vontade, Loretta — respondeu o conde,
suspirando aliviado.

Enfim, a coisa se resolvia da forma mais simples possível. Loretta
realmente era uma moça excepcional. Quem sabe, com o passar do
tempo, ela não viesse a gostar de seu filho? Afinal, apesar de tudo,
ele era culto e bonito.
—Na condição de chefe de família, devo comunicar a todos que a
cerimônia de casamento será realizada dentro do menor tempo
possível. Vocês, mulheres, a partir de hoje comecem a trabalhar nos
preparativos. — Virando-se para as condessas, recomendou: — Não
economizem em nada.
O conde levantou-se da mesa após ter tomado apenas uma xícara de
chá e pediu para as duas senhoras:
—Minha esposa e minha irmã, após o desjejum, deixem os noivos a
sós. Acredito que precisam conversar um pouco, e o lugar mais
adequado é onde estão.
As duas senhoras saíram em seguida. Raul estava imóvel, os olhos
parados no rosto da prima.
—Loretta, minha querida, por que fez isso comigo? Eu a amo de
todo o coração, com tanta sinceridade, que jamais a tocaria com um
dedo sequer para ofendê-la. Por que, Loretta, por quê? Você não
sabe o mal que está fazendo a si mesma, a mim. Está tirando de si
mesma a oportunidade de ser feliz. Ainda é tempo de retroceder,
Loretta. Não deixe que os inimigos de Deus lhe ceguem a
consciência. Ainda está em tempo, minha amada, de retroceder e
falar a verdade para todos. Ficarei ao seu lado por toda a vida, se é
isso o que quer, mas fale a verdade, pelo amor de Deus!
Sem levantar a cabeça, Loretta apenas disse:
—Agora é tarde. O que está feito, está feito.
Ele continuou a falar-lhe como se falasse com uma criança, lembrou-
lhe a infância que passaram juntos e como tinham sido felizes
naqueles dias de inocência e simplicidade. Ela apenas o ouvia. Em
dado momento, sentiu que ela estava prestes a chorar, mas conteve-
se.


Após ouvir tudo o que ele falou, ela levantou a cabeça. Seu rosto
estava transfigurado, ele não reconhecia a meiga Loretta. Disse-lhe,
sem olhá-lo nos olhos:
—Já decidi: quero me casar com você e não há santo, nem padre,
nem Deus que impeçam nosso casamento. — Pôs-se de pé e
continuou: — Vou dormir em sua cama e como esposa quero
direitos sobre seu corpo.
0 padre estremeceu. Deus poderia lhe impor qualquer castigo, mas
nunca empurraria um filho seu precipício abaixo. Calou-se diante
de sua sentença.
Na semana seguinte, foi procurado pelo clero. Deu-se início ao
processo de seu afastamento do santo sacerdócio. Foi alertado de
que, dali em diante, estava proibido de entrar em qualquer igreja
católica e receber a hóstia consagrada até o julgamento papal.

AS BODAS


O aposento nupcial foi preparado com toda a pompa. Alguns
nobres foram convidados para as bodas, e o castelo D'armis ficou
em clima de festa. O vestido de Loretta foi todo enfeitado com
pérolas e ouro. Era o mínimo que o tio e sogro poderia fazer para
animá-la.
Chegou o grande dia. O escrivão do rei tomou nota de todas as
palavras pronunciadas pela majestade. O rei era primo de Raul e
facilitou muitas coisas, atendendo a um pedido do conde.
Finda a cerimônia do casamento, deu-se início aos cumprimentos
aos noivos e familiares. O rei ordenou que a festa começasse e
brincou ao ouvido do primo:


—Perto dessa beldade nem o papa teria resistido! Você fez bem em
deixar a cama solitária do convento! Parabéns e muitos filhos são o
que desejo aos dois. Farei o possível para seu processo junto à Igreja
correr rapidamente e sem maiores conseqüências.
No aposento nupcial, Loretta esperava ansiosa pelo marido, que
continuava debruçado na janela da varanda, alheio a tudo. O pai
aproximou-se dele e abraçou-o, dizendo:
—Filho, meu sobrinho e rei prometeu ajudá-lo perante a Igreja.
Pensando bem, Deus sabe o que faz... Agora, com toda certeza, terei
netos. Vamos reconsiderar tudo o que passou e começar uma nova
vida. Tenha paciência com sua esposa, vá conquistando-lhe a
amizade e mostrando aos poucos que podem ser felizes. Faça o
possível para ela esquecer o grande mal que ocorreu entre vocês.

O filho do conde nada respondeu; apenas sorriu e assentiu com a
cabeça. Seu coração estava dilacerado, pois não podia mais entrar
na casa do Senhor, em sua amada Igreja, dentro da qual estava sua
vida.
Um vazio tomou conta de seu ser. Conforme lhe dissera o bispo,
somente Deus sabe se somos inocentes ou não. Seu destino estava
nas mãos Dele, e Ele o levara para um caminho cheio de espinhos.
O que iria fazer? Sentia-se como criança perdida numa floresta.
O pai ofereceu-lhe um drinque, o qual recusou.
—Obrigado, meu pai, isso não me faz bem.
—Pois então siga para seus aposentos de casado. Procure ser
cavalheiro com sua esposa; toda sua vida de casado vai depender
desse primeiro dia. Faça apenas o que ela desejar. Controle-se, meu
filho.
Raul parecia mais alto e mais magro. Tomou a bênção do pai e
subiu lentamente as escadas que davam para o segundo andar.
Entrou sem fazer o menor barulho, foi até o banheiro que lhe tinha
sido reservado, fechou a porta, tomou banho, trocou as vestes e
sentou-se na ante-sala, em uma confortável poltrona.


Ficou muito tempo ali em silêncio, orando. Isso ninguém poderia
proibi-lo de fazer. Ouviu passos, seu coração disparou. Loretta
apareceu vestida com uma longa e transparente camisola de seda
rosa, bordada com capricho. Ele desviou os olhos, enquanto ela se
postou à sua frente. Parecia uma menina e tinha as faces rosadas.

— Raul, por favor, perdoe-me pelo que fiz! Eu o amo acima de tudo
e de todos. Sei que está magoado comigo. — Jogou-se sobre ele,
chorando.
— Fui obrigada a escrever aquela carta, e depois, meu amor, se não
aceitasse se casar comigo, sua sentença seria a morte. Não me faça
perguntas; estou sofrendo tanto quanto você.
Raul empalideceu. Teriam sido vítimas dos perseguidores da Igreja?
—Loretta, minha querida menina, fale-me a verdade para que eu
possa acreditar que o Pai não me abandonou. Foram os inimigos da
Santa Igreja que a obrigaram a isso?
—Sim, meu amor, foram eles — respondeu, soluçando. — Ouviram
nossa conversa, minha confissão de amor por você e minha revolta.
Quando entrei em meu quarto, fui abordada por três deles, que me
obrigaram a escrever aquela carta.
Trêmulo, Raul abraçou a prima, enquanto lágrimas lhe inundavam
os olhos. Tomou-a nos braços e levou-a para a cama, deitando-a e
cobrindo seu corpo como se fosse uma criança.
Pegou um copo, encheu-o com água e colocou-lhe nos lábios.
—Minha pobre criança, o que lhe fizeram! — Ficou um tempo
segurando a mão dela e alisando seu cabelo. — Durma, minha
querida, fique tranqüila, não a deixarei sozinha.
Ela fechou os olhos, tonta de alegria. Estava conseguindo seu
intento, Raul acreditara na história.
Loretta respirou fundo. Saberia esperar, faria dele seu escravo,
suportaria com paciência. Sabia que sua hora chegaria, ele a tomaria
como sua mulher. Iria ser gentil, compreensiva e educada para com
ele, incentivá-lo a tomar gosto pelos negócios da família. Seriam
felizes.

Raul se sentia como se flutuasse ao redor do mundo. Não tinha
permissão de aproximar-se da Igreja até o final do processo, não
tinha como se defender perante os homens, mas Cristo sabia de sua
inocência.


O tempo corria lento para Raul, e Loretta se desmanchava em
gentilezas para com ele. Os pais começaram a lhes cobrar um neto,
alegando que já completavam seis meses de casados. A sós com
Raul, Loretta comentou:
—Nossos pais não desconfiam de nada. Acreditam que você é meu
marido, e eu, sua mulher. Não suporto mais viver de aparência!
Nossa família não pode sofrer; basta o que nos aconteceu. E eu
gostaria que nosso casamento se tornasse real.
Ele acariciou o cabelo dela:
—Perdi a chance de viver como padre, mas não perdi a alma. Se
esta é a prova que me foi dada pelo Pai, eu a honrarei até o fim. Mas
nunca tocarei em você como homem. Se deseja ser tocada por um,
vou entender e ajudá-la.
Loretta se lembrava dos amigos espirituais e inconscientemente os
invocava, pedindo ajuda em seus planos.


Passara-se um ano do casamento, e os pais de Raul queriam
comemorar a data com uma festa entre amigos. Loretta estava triste
nesse dia; até já se arrependia de ter-se casado. Circulava entre os
convidados, quando seus olhos se depararam com Hari. Foi como
mágica: todo sentimento, todo desejo que sentia por Raul acabou no
exato momento em que viu Hari. Parece que o mesmo aconteceu
com ele. Era como se uma força os prendesse um ao outro.
Seus olhos ficaram fixos. Em um momento em que não estavam
sendo observados, ele se aproximou e tocou-lhe as mãos. Foi como
se uma corrente elétrica percorresse todo o corpo de Loretta. Ela
estremeceu ao ouvi-lo.



— Senhora, não conheço bem a região, mas amanhã às 16 horas
estarei do outro lado do lago à sua espera. Prefiro morrer a voltar
sem vê-la outra vez.
Afastou-se sem ninguém perceber. Naquela noite, pela primeira
vez, Loretta pediu que Raul não fosse ao seu encontro, pois estava
cansadíssima e pretendia dormir.
Com todo carinho e compreensão, o esposo sorriu-lhe, desejando-
lhe boa-noite. Assim que se viu só, Loretta fechou os olhos e parecia
ter esquecido todo o desejo por Raul... Iria ao encontro daquele que
entrara em sua alma, em seu coração pouco importava o que lhe
poderia acontecer.
Na hora marcada, saiu, dando uma desculpa para sua dama de
companhia. Queria ficar só, não se afastaria dos jardins, precisava
apenas respirar um pouco.
Vendo-se sozinha, correu em direção ao lago, que ficava afastado
dos jardins do castelo D'armis. Atravessou os arbustos que
escondiam o lago e avistou Hari, que a esperava. Seu coração
disparou. Era loucura, mas precisava vê-lo ou também morreria.
Abraçaram-se e beijaram-se demoradamente. Ele lhe tomou as mãos
e a levou para um esconderijo, onde podiam conversar sem serem
vistos. Loretta lhe contou que se casara com Raul por uma questão
familiar e continuava casta como mulher.
Ele a abraçou, dizendo que não sairia daquelas terras sem ela. 0 sol
baixava no horizonte, quando ela apressadamente decidiu ir
embora, marcando novo encontro para o dia seguinte. Voltou ao
castelo tão bem-humorada que sua criada, acostumada a vê-la
sempre de mau humor, estranhou.
Loretta desceu para o jantar com as faces rosadas, uma expressão de
alegria nos olhos. Foi gentil com todos e, logo após a refeição, foi até
a varanda, sentou-se em um banco e ficou olhando para as estrelas,
pensando em Hari.

Raul ficou contente. Desde o casamento, ela nunca mais tinha ido à
varanda à noite para ver as estrelas. Tomou-lhe as mãos, fez uma
prece em silêncio e pensou: "O que fazer com esta criatura?".
Ela entrara em sua vida de forma súbita e violenta, mas fazia parte
dela.
Já era tarde quando Loretta resolveu ir se deitar. Subiram juntos, e,
quando entraram em seus aposentos, ela se virou para ele e, após
bocejar, disse-lhe:


— Estou me acostumando a viver com você e até gostando da
situação. Raul, você não acha que está demorando demais o
processo com a Igreja?
— Confio em Deus. Que seja feita a vontade Dele — respondeu.
Loretta se entregou por completo a Hari. Começaram a fazer planos
para o futuro. Não poderiam se casar; fugir, nem pensar. Ela era
casada, o processo era pena de morte para os dois. Só havia uma
possibilidade de realizarem seu sonho: caso ela ficasse viúva ou
Raul fosse preso e condenado à prisão perpétua, o casamento seria
anulado.
Certo dia, Loretta voltava de um de seus passeios quando avistou
uma carruagem eclesiástica defronte ao portão principal do castelo.


O que estariam fazendo lá? Por certo era algo relacionado ao
processo de Raul.
Ela foi chamada para uma sala fechada, onde já estavam o sogro e o
marido. Reconheceu o bispo entre eles. Convidaram-na a sentar-se.
Raul estava pálido e de cabeça baixa, parecia dez anos mais velho.
Toda a sua beleza tinha desaparecido aos olhos de Loretta; era
agora estranho e indesejável para ela.
O representante papal estirou uma folha de papel e pôs-se a
dizer:


— Sou o enviado do Santo Papa para pronunciar a sentença do
processo. Sua Santidade, o Papa, deu a seguinte sentença: o Padre

Raul fica proibido de exercer qualquer cargo dentro da Santa Madre
Igreja, bem como de por toda a vida receber a hóstia consagrada ou
participar de qualquer evento religioso, ou apertar a mão ou receber
a bênção de qualquer religioso de nossa Santa Igreja. Seus filhos,
caso venha a tê-los, não poderão receber nomes cristãos e não serão
reconhecidos pela Igreja. Quanto ao seu casamento com a senhora
Loretta, não o reconhecemos na Santa Igreja. Ela foi considerada
uma mulher adúltera desde que aceitou se casar com um infrator da
Santa Igreja, ficando sob a custódia do rei Henrique, e a qualquer
momento poderá ser condenada à prisão perpétua. Com a morte do
rei ou a perda do trono de Sua Majestade, o processo perde o valor.
E, finalizando a sentença, por morte da senhora Loretta, a sentença
do Senhor Raul permanece, mas, por morte do senhor Raul, fica a
senhora Loretta livre do processo eclesiástico, voltando a adquirir
seus direitos como cristã. Assim, fica expressa a vontade de Deus e
de Sua Santidade, o Papa. Assinem aqui, por favor. Duas vias ficam
com vocês, uma delas será enviada à Sua Majestade, e as demais
serão enviadas a todas as dioceses.
Raul assinou o processo, enquanto grossas lágrimas desciam de
seus olhos. Loretta ainda tentou protestar, não assinando o
documento, mas alertaram-na de que a situação poderia ficar mais
complicada caso se recusasse a assinar. Ela o fez com o rosto
vermelho, irada diante daqueles malditos padres que queriam
dominar o mundo.


Eles se retiraram em seguida. Então vieram excomungá-la e a Raul!
Seu caso era delicado, pensava Loretta. Sua vida estava nas mãos do
rei, primo e amigo de Raul.
Logo a mente de Loretta foi influenciada por seus acompanhantes
espirituais, e ela começou a arquitetar um plano: ficar viúva. Além
de ficar livre do processo, poderia se casar com Hari.
Lágrimas corriam dos olhos de Raul, sentado, as mãos cruzadas
sobre o peito. Seu pai tentava animá-lo:



—Graças a Deus vocês não foram condenados a refugiar-se da
sociedade, nem seus filhos. Nosso rei há de viver muitos anos e ele
tem seu descendente e herdeiro, que continuará sua obra. Não
vamos cair em desespero. Quem sabe no futuro tudo isso não
poderá mudar! O Papa está velho, e cada um que assume a cadeira
de Roma tem plenos poderes para modificar todos os processos
deixados pelo anterior. Vamos manter a calma.
Loretta abraçou Raul num gesto de carinho e disse-lhe em tom de
condolência:
—Você é devoto. Creio que venceremos, somos inocentes. Minha
situação é pior do que a sua, meu amor. Posso ser condenada à
prisão perpétua, se o rei cismar conosco. Mesmo assim, não quero
pensar no pior. Estamos salvos por enquanto e o futuro não nos
pertence. Acredito que amanhã tudo será diferente. Malditos sejam
esses padres que querem ter o controle do mundo nas mãos! Veja
agora, Raul, de que valeu você ter entregado a vida à Igreja.
Raul trancou-se no quarto. Orava e chorava, agarrado ao crucifixo.
Teria de se desfazer dele também; sua casa não poderia conter
nenhum quadro ou imagem que lembrasse a Igreja. Estava proibido
de recitar ou ouvir as palavras do Senhor!
—Por que, por que, Senhor? — Caiu de joelhos, soluçando. — Pai,
fazei a Vossa vontade. Se este é o peso da minha cruz, dai-me forças
para que eu possa levá-la.
Sentada na poltrona macia e confortável de seu quarto, Loretta lia e
relia o papel da sentença.
Agora tinha um plano ainda mais ousado. Lembrava-se de que, no
dia de seu casamento, o rei a olhava com respeito e admiração.

Pediria ao sogro para levá-la em audiência perante ele. Em sua
presença, cairia de joelhos, beijaria seus pés e mãos, conquistaria a
confiança do soberano. Imploraria para servi-lo em seu reino da
forma que desejasse, uma vez que lhe devia a vida. O marido não
poderia exigir nada; na verdade, ela agora pertencia ao rei.


Passou a noite arquitetando o plano. Precisava ficar livre daquela
casa e viver seu amor com Hari, que era cunhado e cavaleiro do rei.
Tudo a favorecia.
No dia seguinte, logo cedo, Loretta apareceu no salão de refeições
com ar triste e muito abatida. O marido a abraçou carinhosamente,
ajudando-a a se sentar. O sogro a olhou, contristado: "Pobre menina,
que destino cruel! Cresceu sem a companhia do pai, que morreu em
combate, e agora toda essa desgraça em sua vida".
Loretta pouco se serviu à mesa. Após o desjejum, pediu:
—Meu sogro, posso falar-lhe um momento a sós?
—Naturalmente que pode, minha querida. Vamos até o escritório.
Sentada em frente à escrivaninha, ela começou a chorar e
dizer:
—Meu sogro e tio, peço-lhe, pelo amor de todos nós, já que não
posso mais falar no nome de Deus: consiga para mim uma
audiência com Sua Majestade, o rei. Preciso agradecer-lhe pelo que
fez por nós; minha vida está nas mãos dele.
O conde, emocionado, abraçou-a.
—Fique tranqüila, minha filha, você vai ter sua audiência com meu
sobrinho e rei, eu lhe prometo.
Enxugando os olhos, ela beijou o rosto do conde, que permaneceu
sentado, sensibilizado com o bom senso da nora.


— Aguardarei com ansiedade sua resposta. Com a sua licença, meu
sogro, preciso andar um pouco para respirar.
— Sim, minha filha, vá à sua caminhada. Bom passeio. Tome
cuidado para não escorregar nas pedras, que estão úmidas devido à
chuva que caiu ontem.
Ela saiu como sempre, em direção ao jardim. Assim que se viu
encoberta pela vegetação, cortou caminho e entrou no meio dos
arbustos, dirigindo-se ao lago. Tudo que queria era estar nos braços
de Hari.
Conversaram durante muito tempo. Hari ficou enciumado com o
fato de ela ir aos pés do rei pedir-lhe favor. Conhecia bem o

cunhado. Então, instruiu Loretta de que deveria pedir para servir à
rainha, que era sua irmã. Aí, sim, estariam seguros. Hari tinha total
liberdade com ela. Com Loretta ao lado dela, ele ficaria tranqüilo.
Uma semana depois, Loretta entrava no palácio. Sentado no trono, o
rei parecia mais alto, e o ambiente intimidava qualquer pessoa.
Sabiamente, ajoelhou-se a seus pés. O rei ergueu-se do trono para
levantá-la do chão.
—Minha senhora, não faça isso. Por que ajoelhar-se aos pés do rei?
Trêmula e chorosa, começou sua lamentação de agradecimentos e,
por fim, colocou-se à disposição da rainha.


— Minha senhora, não está feliz no casamento? — perguntou ele,
pensativo. — Ou é só por gratidão que deseja entregar-se e servir à
casa real?
— Pelas duas coisas, meu senhor e meu rei. Gratidão por estar livre
de uma pena que me custaria a vida e por Raul jamais ter deixado
de ser o padre que sempre foi. Não sei o que aconteceu naquela
noite com ele... Depois do nosso casamento, celebrado por Vossa
Majestade, ele se recusa a dormir comigo. Sou rejeitada por meu
marido e agora pela Igreja. Sou-lhe grata pela vida, que entrego em
suas mãos.
O rei continuou pensativo, olhando aquela menina linda e jovem.
Como poderia Raul envergonhar a família de tal forma? Afinal de
contas, ele fazia parte da família real. E era crime, com pena de
morte para qualquer homem, o não-cumprimento de suas
obrigações como marido. Não foi à toa que largara as armas pela
Igreja. Se ao menos cumprisse o papel de marido, estaria honrando
o sangue real!
—Loretta, você me diz a verdade quanto ao relacionamento com
seu marido?
Sim, Majestade. Posso provar o que estou lhe dizendo.


— Pode?
— Sim, posso.

— Como?
— Se Vossa Majestade suspeita de minhas palavras, coloque um de
seus cavaleiros para vigiar a vida no castelo e verá que estou
falando a verdade. Dormimos em aposentos separados.
O rei aprovou a idéia:
—Muito bem, Loretta. Para que fique testemunhado o que está me
contando, vou mandar um de meus homens de confiança averiguar
o que acabou de me contar. Caso fique provado, você será
transferida para o palácio imediatamente, ficando aos cuidados da
rainha, como me pediu. Quanto ao seu marido, pensarei no que
fazer com ele.
Loretta beijou-lhe as mãos e retirou-se, radiante de alegria. Logo
estaria livre daquela casa e da presença de Raul, que agora a
incomodava.
Como planejado, assim que Loretta saiu, Hari, cavaleiro e cunhado
do rei, chegou, colocando-se à disposição dos trabalhos reais, visto
suas tarefas terem terminado, conforme estava no relatório que
estendia ao monarca.
Este examinou o relatório sem prestar atenção no que estava escrito
e imediatamente se lembrou:
—Meu cunhado e fiel seguidor, tenho uma missão um tanto
incômoda para qualquer cavalheiro. Você agora é vizinho do castelo
D'armis. Infelizmente é lá onde irá averiguar uma história trazida
pela mulher de meu primo, o ex-padre, excomungado recentemente
pela Igreja, mas que recebeu meu benefício. Vamos ao assunto: sua
missão é verificar se o visconde Raul dorme ou não com a mulher.
— E relatou a denúncia recebida e o desapontamento familiar. —
Seja discreto nas investigações e não aborreça a moça; ela é minha
protegida.
Hari ficou corado com a insinuação "é minha protegida"; seria capaz
de matar o próprio rei caso este ousasse tocar um fio de cabelo de
Loretta. Amava-a como nunca havia amado nenhuma outra mulher
em sua vida de aventuras. Daria a própria vida por ela.

Um mês foi o prazo estipulado pelo rei para Hari trazer as provas
de que precisava. O rei era um homem justo e bom, não gostava de
cometer injustiças. Hari montou todo o esquema de investigação,
colocou empregados de sua confiança para servir no castelo
D'armis, a fim de levar provas concretas de seu trabalho.
Naturalmente, Loretta facilitou todo o serviço.
Um mês depois, Hari se apresentou para uma audiência com o rei,
levando o relatório completo. O rei ficou aborrecido. Baixou a
cabeça por um instante, relembrando a infância com Raul. Gostava
dele.
Por que fizera aquilo?
Poderia ter procurado sua ajuda antes do casamento. Teria
interferido e quem sabe convencido Loretta a não exigir o reparo.
Assim Raul poderia ter partido para cumprir sua missão como
padre. Sabia de casos semelhantes em que tudo fora resolvido em
segredo.
Mas, enfim, teria de tomar uma decisão. Em situações familiares, ele
mesmo redigia as ordens. Ordenou que Loretta fosse imediatamente
transferida para o palácio, ficando aos cuidados e a serviço da Sua
Majestade, a rainha.
Quanto a Raul, certamente tomaria providências cabíveis, sem levar
em consideração os laços familiares. Afinal de contas, ele era o rei e
precisava dar bons exemplos na corte.
Uma semana depois, Loretta estava instalada no palácio por ordem
do rei. Sua mãe teve um ataque cardíaco ante a notícia e faleceu três
dias depois de sua partida.
O conde interrogava Raul sobre o que teria Loretta contado ao rei. O
que haveria de errado com ela? Como poderia abandonar a casa, o
esposo, a família?
Raul não suportava tanta aflição. Se Deus quisesse castigá-lo,
poderia arrebatar-lhe a vida, mas não destruir toda sua família. Sua
querida Loretta estava sendo vítima de alguma chantagem, com
certeza.


Arrumou-se e saiu decidido a procurar o rei e implorar-lhe a
verdade. Nunca tinha pedido nada para si; sempre confiara em
Deus, entregando-se em Suas mãos como um cordeiro ao sacrifício.
No entanto, agora precisava fazer algo para salvar Loretta.
Era a primeira vez que Raul entrava na sala de audiências do rei.
Este se encontrava sentado no trono, sério e com toda a autoridade
que possuía estampada no rosto. Raul se curvou diante dele e foi
convidado a se sentar à sua frente. O rei adiantou-se:


— Raul, fico satisfeito que me tenha procurado. Estava expedindo
um mandado, convocando-o à minha presença. Está diante não do
rei, mas de seu primo e amigo de infância. Fale-me a verdade.
Decretei seu casamento perante toda a corte. Intercedi junto à Igreja
por você e Loretta e tenho provas concretas de que não dorme e não
tem vida sexual com sua mulher. Você desmente isso?
— Não desminto. E a pura verdade e, como já disse o rei, tem
provas concretas em mãos. Agora entendo o porquê de trazer
Loretta. Ela certamente já confirmou a farsa de nosso casamento.
— Diante dos fatos que foram apresentados, você perde seu direito
de cidadão, sua identidade de homem. Por isso será confinado à
prisão perpétua. Será levado à Ilha do Esquecimento, onde jamais
receberá visitas ou notícias do mundo exterior. Quanto a Loretta,
paguei por ela e vou me responsabilizar por seu bem-estar: viverá
sob minha proteção enquanto eu viver.
Raul abaixou a cabeça. Enfim, chegara sua sentença. Era estranho,
mas sentia um alívio muito grande em poder ir viver em paz.
Ajoelhou-se diante do rei e pensou em Jesus Cristo.
—Meu nobre rei, em suas mãos entrego minha vida, confiante em
sua justiça.
O rei estremeceu. Esperava que fosse protestar, mas, em vez disso,
ele lhe agradecia.
Raul se entregou ali mesmo. Não desejava retornar para casa e
esperar o mandado. Olhando para o rei, pediu-lhe:

— Meu rei, em nome das brincadeiras de nossa infância, conceda-
me apenas um último pedido.
— Qual é seu pedido, meu amigo de infância?
— Quero despedir-me de Loretta. Apenas isto: despedir-me dela e
pedir-lhe perdão pelo mal que lhe causei.
— Seu pedido será atendido. Perdoe-me, caro primo, às vezes o
papel de um rei é cruel. Preciso cumprir a lei, você me entende?
— Naturalmente que sim, meu amigo. Não guardo nenhuma
mágoa.
Loretta entrou no salão real e ficou pálida quando viu Raul e o rei
olhando para ela. Curvou-se diante do rei e olhou para o marido
sem falar nada. Ele se aproximou dela, tomou-lhe as mãos,
ajoelhou-se e, de cabeça baixa e com a voz entrecortada pelas
lágrimas, falou:
—Loretta, por favor, perdoe-me pelo mal que causei em sua vida.
Amo-a de todo o coração e viverei eternamente para rezar e pedir a
Deus que a ampare e a proteja. Diga-me que me perdoa, para que
eu possa levar a paz em meu coração.
Imóvel e pálida, Loretta respondeu:
—Está perdoado, Raul. Siga em paz.
Ele levou as mãos dela aos lábios e, após olhá-la por instantes, disse:
—Deus a abençoe. Amo-a de todo o coração. Muito obrigado por
tudo.
O rei não entendia como alguém poderia amar e portar-se como
Raul. Não havia explicação.
Loretta respirou aliviada, enfim. Estava longe do castelo D'armis e
agora podia viver com tranqüilidade nos braços de seu amor.
Naquela noite, Hari esteve com ela e confidenciou que iria insistir
com o rei para acompanhar a caravana que levaria os prisioneiros à
Ilha do Esquecimento.
Raul estaria entre eles. Era a grande oportunidade de liquidá-lo e
ver realizado o sonho de ambos: casarem-se. Loretta ficou

apreensiva. Estava ali por causa de Hari, e sem ele o palácio seria
uma prisão.

— Quanto tempo você ficará fora, Hari?
— Mais ou menos uns seis meses. A ilha fica do outro lado do
continente. É nossa chance de sermos felizes, meu amor. Preciso
tentar.
Foi tudo acertado. Hari estava escalado para acompanhar os
prisioneiros, e Loretta procurava aproveitar o máximo possível dos
momentos de amor em seus braços. Já sentia saudade, mas valeria a
pena esperar por ele.
A ARMADILHA


Dias depois da partida de Hari, a rainha escalou Loretta para
acompanhá-la em todos os eventos ao lado do rei. Num deles, o rei
a incentivou a dançar para a corte e ficou extasiado com sua beleza.
Pareceu-lhe que tinha um ímã ligado a ela. Ela, por sua vez,
começou a gostar daqueles momentos de distração e de poder
tomar os melhores vinhos do reino. Seus olhos se encontravam com
os do monarca, e ela sentia uma onda de calor subir-lhe por todo o
corpo. Não sabia explicar, mas estava totalmente apaixonada pelo
rei.
Este não disfarçava o interesse por Loretta. Fazia quinze dias apenas
que Hari tinha partido, e ela já caíra nos braços do rei, enlouquecida
de paixão. Estava em sintonia com seus amigos espirituais, que
tinham planos nefastos, envolvendo-a em seus propósitos.
Diante daquela mulher, o rei se tornou como um pássaro indefeso
na boca de uma serpente. Seu coração estava preso a ela; queria-a
como nunca havia desejado outra mulher.


Influenciada e com a mente dirigida pelos inimigos do bem, Loretta
começou a arquitetar novo plano: Hari voltaria com a boa notícia da
morte de Raul, e ela se casaria, sim, não com ele, mas com o rei!

ea

Seria a rainha e faria valer seu juramento contra Deus Igreja:
acabaria com os malditos padres. Sim, por causa deles sofrera
muitas humilhações. Como rainha, faria o que nenhuma outra
tivera coragem: acabaria com eles.

Loretta envolvia o monarca cada vez mais, e este já não ficava um
dia sem vê-la. Um pedido dela era uma ordem para ele. A rainha
não comparecia mais aos eventos; ela lhe tomara o lugar.
Espalhou-se pela corte a notícia de que a rainha estava adoentada,
mas Loretta sabia que não era verdade: simplesmente não havia
mais espaço no coração do rei para ela ou qualquer outra mulher.
Ela não acompanhava mais a rainha a lugar algum. Tornara-se a
predileta do rei e era mais bem servida que a própria rainha dentro
do palácio.
Todos a temiam, pois sabiam que uma palavra sua, e o rei assinaria
sem pestanejar qualquer sentença de morte. Na verdade, ela
tornara-se tão ou mais poderosa e temida que ele mesmo.
Passados seis meses, Loretta lembrou-se de que estava próximo o
retorno de Hari. Precisava pensar urgentemente no que faria com
ele. Se aquele tolo resolvesse contar toda a história ao rei, ela corria

o risco de perder tudo e ser queimada viva.
Lembrou-se do amor que sentia por Raul, depois por Hari e agora
pelo rei. Não estava com o último apenas pelo poder. Ela o amava,
sim, e iria amá-lo por toda a vida. E ninguém iria estragar seus
planos. Pensava em Raul e Hari: era como se nunca tivessem
existido em sua vida. Sabia que, antes de Hari colocar os pés no
palácio, já estaria sabendo de seu envolvimento com o rei; portanto,
teria de agir antes que ele pisasse em terra.
Estava chegando a primavera, e as primeiras flores começavam a
abrir-se. Debruçada no parapeito da janela do quarto real, esperava

pelo rei. Tinha um plano em mente. Olhava para as flores e pensava
no campo e nos jardins do castelo D'armis.
O jardineiro Manuel estaria ainda no castelo? Era o que pretendia
saber.
O rei entrou, tomando-a nos braços com euforia. Ela, porém,
mostrando-se doce e inocente, puxou-o pela mão:


— Venha, meu amor, venha ver que coisa linda. Olhe aquele
canteiro de cravos vermelhos! Sinta que perfume delicioso-!
Estamos entrando na primavera, e me deu uma saudade muito
grande do castelo D'armis, onde vivi tanto tempo e meus amores
verdadeiros eram as flores.
Mostrando ciúme, o rei perguntou-lhe:
—Está pensando em Raul?
—Não, meu amor, nas flores e, para falar a verdade, em meus tios.
Eles foram bons comigo e gostaria de saber notícias deles.
—Está bem, meu amor, você pode ir visitar nossos parentes. No dia
seguinte, logo cedo, Loretta requisitou uma comitiva
e seguiu para o castelo D'armis. Já tinha o plano todo arquitetado.
Chegando lá, foi recebida pelo tio com um abraço. Ele chorou, não
parecia mais o homem forte e decidido de antes.
—Minha nora e sobrinha, falam muitas coisas por aí a seu respeito
com nosso rei. Não pense que lhe estou chamando a atenção por seu
comportamento, absolutamente não. Entendo perfeitamente sua
atitude, minha filha; foi melhor assim. A única coisa que me
preocupa é seu futuro: enquanto o rei viver, você estará segura,
mas, se porventura uma desgraça acontecer a ele, provavelmente
você não terá segurança nenhuma e ainda será vingada pela ira da
rainha, que, apesar de boa e generosa, é mulher.
Loretta nunca havia pensado nisso; se acontecesse alguma coisa ao
rei, seria queimada viva. A rainha mandaria executá-la em praça
pública com toda a certeza. Baixou os olhos e sentiu medo,
precisava agir com rapidez.

A tia, que havia perdido a memória com a sentença do filho, assim
que a viu pareceu, por alguns instantes, recobrar a lembrança.
Tocando em seu rosto, disse-lhe:
—Minha criança, de todos nós você é a mais infeliz! — E em
seguida voltou para seu mundo de esquecimento.
Loretta andou por todo o castelo. Foi até a varanda onde costumava
olhar as estrelas e sentiu um aperto no coração. Se não tivesse vindo
até ali com a mãe naquele verão, talvez sua vida fosse diferente.
Não teria encontrado Raul e, quem sabe, o teria esquecido. Sentiu
falta da mãe. De repente, em uma só noite, mudou todo o rumo de
sua vida e da vida dos outros, Levara Raul à morte por um
capricho, pois agora sabia que nunca o amara como homem, e sim
como brinquedo querido de sua infância.
Enquanto relembrava o passado, lágrimas desceram de seu belo
rosto. O jardineiro a observava, e as lágrimas também desciam do
rosto dele, marcado pelo tempo.
"Pobre menina, deve estar se lembrando do que aconteceu com ela.
Deus Pai", pensava ele, "como foi acontecer aquilo? O padre, todo o
tempo que passou no castelo, comportava-se como um verdadeiro
filho do Senhor. Bom e atencioso, só vendo para crer que um bom
homem daquele seria capaz de tamanha covardia!"
Aproximou-se mais do jardim que dava para a varanda. Loretta o
viu e começou a gritar com alegria:
—Senhor Manuel, que bom vê-lo! Que bom que está aqui. Desceu as
escadas, correndo ao seu encontro, e para
surpresa do jardineiro atirou-se em seus braços, chorando. Logo se
recompôs, enxugou as lágrimas e sorriu.
—Senhor Manuel, preciso de sua ajuda. A única pessoa neste
mundo que me veio à cabeça foi o senhor. Existem muitas coisas
que não posso dividir com ninguém e nesse momento não sei se foi
bom ter ficado ou se teria sido melhor ter acompanhado Raul em
sua reclusão.


Em sua simplicidade, o jardineiro não entendeu o que ela quis dizer
com aquilo, mas tirou o chapéu da cabeça e disse-lhe:
—Minha ama e senhora, farei qualquer coisa para ajudá-la. Conte
comigo. Juro pelo sangue que corre nestas veias que jamais a trairei
por nada neste mundo. Peça-me o que quiser. Farei pela senhora o
que faria por minha própria filha.
Loretta suspirou aliviada. Tudo começava a dar certo. Pretextando
ver as flores que desabrochavam nos jardins, acompanhou o
jardineiro e começou a expor-lhe o que pretendia. Sem desconfiar
de que se tratava de uma armadilha, o pobre homem propôs-se a
atender seu pedido, prometeu fidelidade e jurou por sua vida que
jamais falaria nem uma palavra sequer contra ela. Dizia para si
mesmo: "Pobre menina, foi simplesmente uma vítima do destino".

Loretta deu-lhe uma boa quantia em dinheiro, que o jardineiro
inicialmente se recusou a receber. Ela então chorou e suplicou que
aceitasse. E prometeu-lhe:
—Vou recompensá-lo mais ainda por toda sua bondade para
comigo.
A incumbência do Senhor Manuel seria pegar um barco equipado
com tudo que fosse necessário para manter-se em viagem de ida e
volta, ir ao encontro de Hari em pleno mar e desviá-lo da rota
normal. Teria de levá-lo até o velho castelo real, que ficava entre as
montanhas, e imediatamente avisá-la. Ela, então, iria correndo ao
seu encontro. Precisava falar com ele antes de qualquer pessoa ou
mais uma desgraça iria acontecer envolvendo seu nome.
Loretta voltou ao palácio e trancou-se em seu quarto. Chorou
copiosamente; estava de fato triste. Amou Hari, ele havia sido a
melhor pessoa que conhecera na vida, mas não tinha escolha:
precisava matá-lo, pois sua relação com o rei corria riscos, como
bem lhe lembrara o tio. Estava abatida e com os olhos vermelhos
quando o rei entrou no aposento.
—O que houve com você? Maltrataram-na? Mandarei enforcar
todos os que lhe fizeram chorar!


—Não, meu amor, pelo contrário. Meu tio me recebeu de braços
abertos. Fiquei triste em ver sua situação. Minha tia perdeu a razão.
Os dois estão trancados naquele castelo como duas almas que já
morreram e estão penando. Meu senhor e meu rei, quero fazer-lhe
um pedido: a primavera está chegando, linda e maravilhosa. Deixe-
me ficar uma semana com meus tios. Gostaria de levá-los ao velho
castelo real, com a vossa permissão, pois a rainha contou-me que ali
a primavera não economiza beleza para enfeitar os arredores. Seria
como recompensá-los por todo o sofrimento causado pela falta de
Raul.
Só de pensar em ficar uma semana sem vê-la, o rei ficou agitado.
—Você está me pedindo para ficar longe de mim, Lorre? Lorre era
como ele a chamava carinhosamente.
—Não, meu amado, estou pedindo para que venha também. E por
uma questão de aparência você deve levar a rainha conosco.

O monarca tinha muitos compromissos nessa época do ano, mas
concordou em acompanhar a amada. 0 que sua Loretta pedia que
ele não fazia?

— Lorre, você acha que devemos levar mesmo a rainha? Não vai
aborrecê-la?
— Aborrecer-me por que, amor meu, se é comigo que você vai
dormir?!
— Se esse é o seu desejo, assim será feito. Levaremos nossos
convidados e a rainha. Só me avise com antecedência para que
possa deixar meus compromissos encaminhados.
Vinte dias se passaram. Parecia uma eternidade a espera de Loretta
por notícias de Hari, até que uma tarde chegou o que ela tanto
aguardava: a notícia de que Hari estava escondido no castelo,
esperando-a. Como tinha tudo planejado, adiantou a viagem, e o rei
consentiu que partissem no dia seguinte. Loretta implorou-lhe que a
permitisse seguir com a comitiva do tio, enquanto ele seguiria com a
comitiva real.


O jardineiro adiantou-se a preparar Hari para a chegada dos
soberanos, do conde e de sua sobrinha. Ele deveria esperá-la em
segredo, conforme combinado.
Dois dias depois chegavam ao castelo a comitiva do conde seguida
pela real. Da torre em que se encontrava, Hari viu o conde descer da
carruagem ajudando a esposa, que parecia alheia a tudo, e Loretta,
linda e encantadora como sempre. Seu coração batia acelerado. Não
via a hora de apertá-la nos braços.
Em seguida, viu aproximar-se a comitiva real. O rei parecia mais
jovem e bem-disposto, enquanto a irmã estava pálida, magra e
envelhecida. Estaria doente? Depois de Loretta, ela era a pessoa que
mais amava. Saberia logo mais o que se passava com a irmã, Loretta
iria contar-lhe.
Após a recepção, Loretta deu um jeito de falar com o monarca:
—Enquanto você conversa com meu tio e resolve os interesses do
reino, vou levar minha tia a um pequeno passeio pelos arredores.

O rei piscou, consentindo que ali não haveria perigo algum, ainda
mais acompanhada da pobre e doente senhora. Uma vez longe dos
olhos do rei, Loretta levou a tia até um compartimento vizinho ao
que abrigava Hari, deu-lhe algo para beber e a fez deitar-se. Saiu,
fechando a porta por fora.
Ao se deparar com Hari, este a abraçou, suspendendo-a no ar,
tamanha sua alegria. Beijava-a e falava ao mesmo tempo. Loretta,
longe de sentir a mesma emoção, apenas fingia estar feliz em revêlo.
Estava ansiosa para saber se tudo tinha corrido conforme
planejado, mas controlou-se até que Hari acalmasse sua sede de
amor.
—E então, Hari, conte-me. O que houve com Raul?
—Bem, minha querida, diante dos olhos de toda a tripulação Raul
admirava o mar quando foi arrebatado por ele. Não conseguimos
resgatá-lo em virtude da forte corrente que passa naquela região. O
escrivão documentou três mortes durante a viagem e, infelizmente,
uma delas foi a de Raul. Você, minha prenda, agora é uma viúva


que poderá casar-se perante a corte e a Igreja. Já tem aqui seu
pretendente. Ainda quer se casar comigo?
Ela o abraçou para disfarçar o que realmente sentia. Então era livre
e poderia casar-se...
Hari fez-lhe perguntas sobre o reino e comentou ter ficado
preocupado ao ver de longe a irmã, que lhe parecera doente. Loretta
disse-lhe que a rainha estava passando por um momento difícil,
mas não era nada sério. Acrescentou que ficariam ali por muito
tempo para ela poder descansar e que fora por isso que arrumara
aquele esquema de trazê-lo em segredo.
Como poderia ficar tanto tempo sem vê-lo? Ele, por sua vez, não
podia vir ao encontro do rei, mesmo sendo seu cunhado, por isso
ela pedira a ajuda do jardineiro. Hari ficou convencido de que
Loretta o amava, pois, do contrário, como poderia fazer tudo
aquilo? Realmente era um homem de sorte.
—Agora, meu amor, tenho de ir. A rainha deve estar precisando de
mim. Não se preocupe, pedi permissão para sair com minha tia para
dar um passeio. Dei-lhe um suco com calmante e deitei-a para
descansar. Até amanhã, meu amado. O Senhor Manuel lhe trará
informações para nos encontrarmos com segurança. Ele veio como
jardineiro convidado do rei.
—Vá, minha amada. Agora sei que me ama de verdade. Esperarei
por você sempre. Você é minha vida!
Ela saiu, deixando-o a lembrar-se do dia em que a conheceu, de
como se amaram. Ele foi o primeiro homem de sua vida e seria o
único, tinha certeza disso. Deitou-se, fechou os olhos e ficou
sonhando casar-se com Loretta.

Após o jantar, todos conversavam animadamente. A rainha
observava Loretta. Como pudera acolher uma serpente nos braços?
Sentira pena dela e, levando em consideração que era meio parente
do rei, colocou-a como sua dama de companhia.


Agora, de rainha só tinha a coroa e nada mais. Perdera o marido, e
nenhum súdito do rei obedecia às suas ordens, somente às de
Loretta. Sabia que só estava ali porque consentira.
Qual seria a intenção dela? Matá-la? Um frio percorreu sua espinha.
Quando o rei demonstrou cansaço, todos se levantaram,
cumprimentaram-no e à rainha e dirigiram-se para seus aposentos.
Loretta fez o mesmo.
Meia hora mais tarde, o rei entrou no quarto dela. Puxou-a para
junto de si, fechando a porta e levando-a nos braços até a cama.
Loretta amava aquele homem com todas as forças de seu coração.
Em seus braços, perguntava-se: Teria coragem de matá-lo? Não, ele
não. Aquele homem era sua própria vida. Ao contrário de matá-lo,
daria a vida por ele.
Começaram a conversar, fazendo a programação para o dia
seguinte. Loretta, como sempre, comandava o destino do rei.
Sugeriu-lhe:
—Você pode convidar os homens para uma caçada nas partes
baixas do castelo, sem se afastarem muito. Só lhe peço, meu amor,
muito cuidado. Sugira à rainha fazer com suas damas um passeio
pelo bosque que cerca o lago. Naturalmente, alguns dos cavaleiros
devem acompanhar as damas.


O rei sorriu de satisfação. Loretta, sim, era sua verdadeira rainha!
Como era inteligente, organizada e bondosa.
—E você, minha pequena, o que deseja fazer?
—Meu amado, aproveitarei o dia para tentar trazer de volta o
sorriso de minha tia. Vou passear entre as flores dos jardins.
Quando o rei desceu acompanhado da rainha, todos já se encontravam
à sua espera. Levantaram-se com sua chegada e, ao seu
sinal, começaram a servir-se do desjejum, verdadeiro banquete real.
Os criados correram para organizar os passeios sugeridos pelo rei.
Como tudo sempre ficava à disposição dele, nada era difícil de
arrumar. Logo estavam saindo o rei, seus convidados e os cavaleiros
da corte para a caçada. A rainha animou-se também, pois estaria se



divertindo em segurança e longe dos olhos de Loretta. Dois
cavaleiros iriam acompanhar as mulheres.
Todos saíram, e Loretta pôde, enfim, ir ao encontro de Hari.
Conhecia o castelo como a palma da mão, pois, quando criança,
estivera lá várias vezes e em companhia de Raul descobrira diversos
lugares secretos.
Na torre, por exemplo, havia um poço que ele lhe mostrara.
Empurrava-se uma trava e abria-se uma fenda de onde saía um
cheiro insuportável. Ele lhe dissera que era ali que eram jogados os
corpos dos mortos no castelo.
Chegou ao esconderijo de Hari levando uma garrafa de vinho, pão
fresco, queijo e algumas frutas. Levava também um frasco contendo
um veneno letal. Após os saudosos beijos e abraços de Hari, este
começou a fazer planos para os dois.
Para assegurar-se de que o jardineiro não tinha deixado pistas, ela
perguntou sobre seu resgate entre os cavaleiros do rei em alto-mar.
—Contei para meus parceiros que mudaria a rota de minha viagem
para encontrar-me com uma amante do outro lado da ilha e que
voltaria assim que possível. Ninguém viu o jardineiro.
Ela suspirou aliviada. Com muita astúcia, sugeriu a Hari Que
poderiam sair pela torre e ir até o alto de uma pedra que ficava
próxima, pois assim ele veria a irmã passeando com as damas sem
correr o risco de ser visto. Hari abraçou-a.


—Vamos sair, mesmo porque quero respirar um pouco de ar puro.
Saíram e ficaram no alto da pedra entre os arbustos, observando a
paisagem. Hari estava orgulhoso de Loretta; renunciara ao passeio
para ficar com ele. Ele iria recompensá-la por tudo.
Acertaram que, assim que o rei voltasse à corte, ele chegaria
trazendo as notícias sobre a morte de Raul. Ela então estaria livre
para desposá-lo, e logo se casariam e viveriam felizes para sempre.
0 sol esquentava, e Loretta chamou-o para voltar, dizendo estar
faminta e com sede. Ele a levou no colo. Fingindo esquecimento,
perguntou a ele:



— Como vamos abrir esta garrafa de vinho?
— E pra já, minha querida. — E, dando-lhe uma piscada, afastou-se
com a garrafa.
Enquanto isso, trêmula, Loretta pegou as duas taças, colocou as
transparentes gotas mortíferas do veneno em uma delas e ficou
esperando. Ele chegou sorridente com a garrafa aberta e encheu as
duas taças.
— Vamos brindar nosso amor! Que ele seja eterno!
— Que ele seja eterno! — repetiu Loretta.
Hari levou a taça aos lábios olhando para a amada, bebeu quase
tudo de uma só vez e brincou:
—Hoje vou me embriagar; quero morrer de amor em seus braços.
Encheu a taça novamente e levou-a aos lábios. Alguns minutos
depois, sentou-se pálido, levando a mão ao coração.
—Loretta, estou sem ar, falta-me a respiração. Loretta, você me
envenenou, conheço esse veneno... Por que fez isso comigo? Eu que
te am... — Tombou de lado, sem terminar a frase.
Olhando-o, lágrimas desciam dos olhos de Loretta.
—Perdoe-me, Hari, não queria matá-lo, mas não tive escolha.
Amarrou um lenço no rosto, foi até o poço e puxou a trava. Mesmo
com o lenço, sentiu um cheiro horrível. Começou a arrastar Hari
pelos pés e com dificuldade chegou até o poço.
Empurrou o corpo para dentro da fenda, ouviu o barulho dele
caindo e, em seguida, juntou todos os seus pertences e atirou-os
também. Olhou tudo para certificar-se de que nada ficara para trás.
Fechou a trava, pegou seus objetos pessoais, arrumou-se e saiu.
Foi até o quarto, limpou-se e trocou de roupa. Após dar uma olhada
na tia, que lhe parecia tranqüila, desceu até o jardim e encontrou o
jardineiro, suado e orgulhoso de estar sendo útil ao rei e
especialmente ajudando Loretta.
—Senhor Manuel — começou a falar Loretta —, não se preocupe
mais em levar proventos para nosso amigo Hari. Ele partiu hoje de



manhã após conversarmos. Não tem dinheiro no mundo que pague
sua ajuda para comigo.
Sentou-se na mureta, colocando as mãos no rosto, e chorou como
uma criança. Os olhos do jardineiro encheram-se de lágrimas, e ele
tentou animá-la com palavras paternais.
Em seguida, o Senhor Manuel foi até a torre, que estava realmente
vazia. Saiu e fechou a pesada porta, passando o ferrolho. Graças a
Deus estava tudo bem.
Antes de sua partida, Loretta encontrou o jardineiro, que lhe sorria.
Abraçou-o e, pegando uma bolsa com muitas moedas de ouro,
entregou-a ao velho, dizendo:
—Isso é o mínimo que posso fazer pelo senhor depois de receber
tanta ajuda de sua parte. Não fique nessas terras, onde é escravo.
Pegue um navio e vá viver sua vida em liberdade, longe daqui.
O velho jardineiro sorriu; realmente havia sonhado por toda a vida
fazer uma viagem. Agora estava pronto para realizar seu sonho,
sem medo de passar necessidade.


Uma semana depois estavam de volta à corte. Loretta estava
aliviada e refeita. Nos braços do amado, esquecia-se de tudo. A
notícia da morte de Raul foi oficializada e comunicada ao conde,
que ficou abalado.
O rei também ficou sabendo que um dos cavaleiros se desviara da
rota para encontrar-se com uma amante. Já era tempo de
apresentar-se, mas não o fez. Mesmo sendo seu cunhado e um dos
melhores cavaleiros do reino, seria destituído do cargo assim que
aparecesse, disse ele a Loretta.


Três meses se passaram. Hari não aparecera. O rei deu ordens para
procurá-lo. A rainha implorou ao rei que procurasse o irmão, pois
havia sonhado com ele caído e pedindo socorro. Para acalmá-la, o
monarca ordenou a busca. Vinte dias depois, seus cavaleiros
voltaram e comunicaram não terem obtido a menor pista de Hari.



Talvez tivesse arrebatado a amada e fugido para terras distantes,
era o mais provável, visto que morto ele não tinha sido; não havia
indícios de luta ou morte, Hari não tinha inimigos e era muito
estimado na corte.
Ao saber da partida do jardineiro, Loretta sentiu-se feliz. Estava
enfim livre dos três homens que poderiam impedir sua felicidade.
Agora precisava arquitetar um plano para livrar-se da rainha sem
causar desconfiança.
Na verdade, quem reinava no coração do rei era ela. A corte inteira
a temia; até mesmo a rainha sabia que seu bem-estar no palácio
estava nas mãos dela, por isso refugiava-se em sua solidão,
deixando o caminho livre.


A NOVA RAINHA

Como o calor castigava naquele ano, Loretta sugeriu ao monarca
que poderiam passar uns tempos no castelo da Grande Ilha. Era um
lugar conhecido pelas correntes de vento que refrescavam toda a
ilha.
Ali poderiam pescar e banhar-se nas águas claras da região, além de
fazer excursões marítimas. O rei concordou, achando excelente a
idéia, pois a ilha não ficava longe, e ele poderia despachar as ordens
na corte e voltar sem grandes problemas.
Assim, todos seguiram para lá. O lugar era lindo, coberto por uma
pequena e robusta vegetação, tinha muitos pássaros, e as águas
eram límpidas e transparentes.


Nos primeiros dias, Loretta fez longos passeios acompanhada pelo
rei e alguns cavaleiros de sua guarda pessoal.
Tudo parecia calmo e sereno.
A rainha também estava feliz; o lugar acalmava seu sofrido coração.
Convencida de que Loretta não tinha má intenção para com ela, no
fundo já nem a culpava. Talvez, estando em seu lugar, fizesse o
mesmo. O importante é que podia viver e criar os dois filhos em
paz.
Analisava Loretta: ela era realmente bondosa, apesar de toda a
influência que gozava perante o rei; se não fosse por isso, a rainha
não estaria naquele paraíso; talvez estivesse morta.
Lembrava-se dos bons momentos que passara no castelo. O cheiro
do bosque e das montanhas ficara em sua lembrança.

Ela era a rainha, e Loretta, a mulher do rei. Que culpa poderia ter
Loretta se o rei a amava?
Iria aproximar-se dela. Lembrava-se do pai, também rei, que sempre
dizia: "Se perceber que o inimigo é mais forte que você, una-se a ele
e torne-se seu fiel amigo".
O rei comunicou a todos, durante o jantar, que precisava ir até a
corte e ficaria por lá dois ou três dias no máximo. Não levaria as
senhoras por tratar-se de uma viagem rápida, mas ao mesmo tempo
cansativa.
Nessa hora a rainha olhou para Loretta, que baixou os olhos diante
de seu olhar. Pensou consigo mesma: "E uma oportunidade de
aproximar-me dela". Por sua vez, Loretta pensou: "E uma
oportunidade de livrar-me dela". Ergueu os olhos e encontrou os da
rainha.
No outro dia cedo, a caravana real partiu. O rei jurou para Loretta
que voltaria o mais rápido possível, pois não conseguia viver longe
dela por muito tempo. Ela o abraçou com os olhos cheios de
lágrimas e pediu-lhe:
—Por favor, não me abandone nunca. Prefiro morrer a ficar sem
você. Vou ficar esperando por você com o coração cheio de


saudade! Fique tranqüilo, não vou me expor perante a rainha,
conheço o meu lugar e o dela.
O rei ficou pensativo por um momento. Passou por sua mente como
seria bom se Loretta fosse a rainha...
Na hora do almoço, Loretta não apareceu. Sentada no lugar do rei, a
rainha pediu a um dos cavaleiros que fosse chamá-la para sentar-se
à mesa.
Ela chegou, curvando-se perante a rainha e desculpando-se. A
rainha, sem se importar com as desculpas, disse-lhe:
—Loretta, por favor, sente-se ao meu lado. Faça-me companhia
como nos velhos tempos de sua chegada à corte.
Ela parecia alegre e fez tudo para agradar Loretta, que ficou
cismada com sua atitude. Após terminado o almoço, a rainha a
convidou para um passeio. Intrigada, Loretta aceitou para não
causar suspeitas. Quem sabe não seria uma oportunidade para
livrar-se dela de uma vez por todas...

Discretamente, solicitou ao mesmo cavaleiro que fora buscá-la para

o almoço, e era de extrema confiança do rei, que a protegesse.
Suspeitava de que a rainha, aproveitando-se da ausência do
soberano, planejasse matá-la, primeiro chamando-a para sentar-se
ao seu lado e tratando-a como amiga e, agora, com aquele suspeito
passeio.
O guardião também achou muito estranho a repentina amizade da
rainha pela preferida do rei. Prometeu defendê-la com a própria
vida e pediu que ela se lembrasse de contar ao rei sua dedicação, o
que foi prontamente prometido por Loretta; afinal de contas, o
destino estava lhe dando uma mãozinha.
Quando o sol baixou um pouco, a rainha, pronta, mandou chamar
Loretta, que se apresentou de imediato. Três carruagens estavam
paradas esperando as ordens da rainha para seguir viagem.
—Minhas damas, acomodem-se nas duas carruagens. Eu e Loretta
vamos a sós — recomendou ela.

O cavaleiro estava atento à carruagem em que seguiam a rainha e
Loretta, temendo que a primeira puxasse um punhal e matasse a
preferida do rei. Se isso acontecesse, com certeza sua cabeça
também seria cortada. Ia colado à carruagem, do lado da rainha.
Um só movimento suspeito, e ele cairia em cima dela, tomando-lhe
a arma.
A rainha começou a falar baixinho:
—Loretta, cheguei a uma conclusão: na vida, não podemos ter tudo
ao mesmo tempo. Amei o rei como meu marido e sou sua rainha,
mas não posso exigir que ele me ame. Você é a mulher que preenche

o coração dele, e, se souber conduzi-lo, todos nós teremos paz.
Contento-me em carregar apenas a coroa de rainha. Você pode e
deve levar a paz ao nosso reino por intermédio do seu poder junto
ao rei. Reconheço sua bondade e inteligência em reinar. Estou aqui
graças a você. — Após uma pausa, continuou:
Tenho uma proposta a fazer-lhe: dividiremos o reino. Fico com o
título da coroa e quero paz para meus filhos. Você fica com o poder
da coroa, faça sua fortuna, adquira castelos e propriedades. Você
não tem mais motivos para temer nenhuma represália da
Igreja, pois agora é uma viúva livre e o amor do rei é seu, apenas
seu. Quero sinceramente ser sua amiga, apenas isso.
Loretta não acreditava no que ouvia. A rainha parecia prever sua
intenção de matá-la e vinha pedir-lhe socorro. Ela precisava da
coroa; infelizmente não podia desviar-se do que o destino já tinha
planejado.
Reconhecia que a rainha era uma mulher maravilhosa, meiga e
inteligente e, agora, olhando-a, percebia que era bonita. Tinha certo
charme quando falava. Poderiam ser grandes amigas se o destino
não tivesse criado um obstáculo entre elas.
Loretta fingiu entender-lhe a boa intenção e simulou lágrimas de
emoção. A rainha apertou sua mão. Desceram da carruagem e
passearam o resto da tarde. A rainha estava satisfeita, pois agora


viveria em paz e Loretta seria sua amiga. Não tinham nada a temer
uma da outra; era um bom pacto o que fizeram.
Quando retornaram, ainda sob a discreta vigilância do guardião,
Loretta propôs:

— Vamos fazer um passeio no outro lado da ilha amanhã? Estive lá
com o rei. E o lugar mais lindo do mundo! Desculpe-me falar assim
de minha intimidade com o rei...
— Fique à vontade, Loretta. Não me importo com isso, esqueceu?
A rainha aceitou a proposta de viajar de barco para a ilha e passar o
dia explorando a beleza descrita por ela. Levariam suas damas e
cavaleiros e fariam um piquenique ao ar livre.
No outro dia, as embarcações puseram-se a caminho. O guardião,
sempre vigilante, foi no barco com as duas, ainda temendo que a
rainha tentasse matar a prenda do rei. Como ficaria, então, sua
situação?
Levaram alimentos, bebidas e muitas frutas nativas para o
piquenique.
Loretta conhecia um lugar que os nativos chamavam de Porta do
Inferno ou Boca da Serpente. A areia arrastava e engolia em poucos
segundos tudo que caísse ali.
A beleza que se estendia aos olhos dos visitantes era deslumbrante.
Todos pareciam enfeitiçados pelo lugar. A rainha respirou fundo,
enchendo os pulmões de ar puro e fresco. As damas riam e
brincavam feito crianças. Loretta aproximou-se da rainha e disse-lhe
baixinho:
— Perdoe-me pelo sofrimento que lhe causei. Quando tentei ser
feliz, acabei me destruindo e destruindo outras pessoas.
— As vezes, Loretta, pergunto-me se a vida de uma princesa não é
um castigo de Deus. Temo por minha filha. E uma inocente princesa
que amanhã será levada pelas mãos de algum rei. Qual será seu
fim? Pelo menos, tenho a felicidade de viver em paz. Nosso rei é
bondoso, deixou-me viver, e devo isso a você! Nada tenho a lhe

perdoar, mas sim a agradecer — respondeu com doçura e
sinceridade.
Passearam à vontade e, depois, sentaram-se para comer.
Descansaram um pouco e retomaram a caminhada. No meio do
caminho, Loretta aproximou-se da rainha e confidenciou-lhe:
—Vou pedir às damas que façam uma roda e aos cavaleiros que se
virem, pois estou necessitando de privacidade. Enquanto isso, pode
ir andando. Espere-me nas amoreiras. Está vendo como estão
carregadas?
Inocente, a rainha concordou, encantada que estava com o lugar.
Avistando as amoras selvagens, sua boca encheu-se de água. Iria
colhê-las e, quando Loretta chegasse, iriam saboreá-las juntas.
Começava a gostar de sua companhia como a de uma verdadeira
irmã.
Loretta cochichou algo a uma das damas da rainha, que foi até os
cavaleiros. Após a escutarem, afastaram-se, virando as costas para
as moças. Cinco delas fizeram uma roda com suas saias e uma outra
ajudou a segurar a roupa de Loretta, enquanto esta se abaixava.
De repente, ouviram um grito desesperado de socorro. Os
cavaleiros nem pensaram no que faziam as damas; correram na
direção delas de espada em punho. O guardião-chefe imaginou que
fosse Loretta e saiu pulando por cima de tudo.
Pararam de olhos arregalados, avistando as pontas do cabelo da
rainha acabando de serem sugadas pela força demoníaca das areias,
sem acreditar no que viam.


Foi uma cena horrível. Ali parecia realmente a porta do inferno ou a
boca de uma serpente. Num segundo, a rainha desaparecera areia
abaixo! O guardião ficou pálido e sem ação. Loretta correu até ele,
ainda desarrumada, perguntando-lhe:
—0 que aconteceu? Onde está a rainha, capitão?
Fez menção de ir em frente, sabendo que, claro, seria impedida por
ele.



—Infelizmente, ela desapareceu na areia. Como vocês todas viram,
a culpa não foi nossa.
Um dos cavaleiros jogou uma tora de madeira no lugar, que em um
segundo desapareceu. As damas gritavam por sua rainha. Uma
delas até desmaiou, precisando ser amparada por um cavaleiro.
Loretta tomou a frente, abriu os braços num gesto de desespero e
falou:
—Ouçam-me: a desgraça aconteceu e todos nós somos inocentes!
Foi um acidente, ninguém teve culpa. Ou alguém aqui foi culpado?
Os cavaleiros estavam chocados; realmente fora um terrível
acidente. 0 guardião respirou aliviado. Estava pasmo, mas sabia-se a
salvo. Loretta, a predileta do rei e com certeza a futura rainha, iria
inocentá-lo. Ele esteve vigilante o tempo todo, fora um acidente.
No castelo, aguardando a chegada do rei, Loretta chorava, cobrindo


o rosto com as mãos. As damas da rainha estavam inconsoláveis.
Perderam sua senhora e benfeitora, pois a rainha era uma mulher
extraordinária.
—Por que fui acompanhá-la no passeio? Talvez, se tivesse me
recusado a ir, ela teria desistido do passeio da morte — repetia
seguidamente Loretta.
Algumas damas tentavam confortá-la:
—Deus é testemunha, e nós também, de que a senhora não teve
culpa alguma.
O monarca enfim chegou com o séquito real acompanhado de
alguns súditos. Os cavaleiros que haviam ficado de guarda foram
todos chamados à presença do soberano para prestar depoimento.
O capitão-chefe da guarda pediu ao monarca para falar-lhe a sós.
Este dispensou os demais para ouvi-lo em primeiro lugar. O
guardião relatou o suspeito comportamento da rainha para com
Loretta logo após a partida do rei. Tinha certeza de que planejava
alguma coisa contra Loretta.


— Você confirma suas suspeitas? — O rei empalidecera. — Está
certo do que me diz?

— Juro-lhe, Majestade, que foi exatamente isso que aconteceu.
O rei, aflito só de imaginar que poderia ter sido sua amada a
desaparecer na areia, pediu mais detalhes. Este contou que Loretta,
temerosa, pedira-lhe ajuda, e que ele mesmo fora buscar Loretta em
seu quarto a mando da rainha. No dia anterior, ela ordenara que
todas as damas fossem em carruagens diferentes, tendo seguido a
sós com Loretta. Alguma coisa estranha ela planejava contra a
predileta do rei. As damas poderiam confirmar o que estava
dizendo. E foi a rainha quem planejou e ordenou o passeio pela ilha,
e o acidente aconteceu quando todas as damas ajudavam Loretta em
sua necessidade, e eles, cavaleiros, viraram-se em respeito a ela.
O rei ouviu a todos e ficou convencido da maldade da rainha para
com a amada. Ainda bem que o destino se encarregara de puni-la;
caso contrário, ele teria feito sua própria justiça. Loretta, que a
protegia tanto, nunca exigira dele nada contra ela.
Foi ao encontro da amada, que caiu em seus braços, soluçando:
—Ainda bem que você está aqui! Foi horrível, foi horrível, eu sou a
culpada, eu sou a culpada! Não quis contrariar a rainha, que logo
após sua partida resolveu mostrar-me o meu lugar. Obedeci a seus
caprichos de mulher enciumada e agora ela está morta...
O rei abraçou-a e apertou-a contra o peito.
—Você é minha rainha! O castigo abateu-se sobre ela por desejar
sua morte; você, sempre bondosa, respeitava-a como uma rainha,
mas ela tramou sua morte. Só não esperava que o castigo recaísse
sobre ela mesma. Paciência. Para nós foi uma porta que se abriu,
mas tenho pena de meus filhos, que perderam a mãe. O reino em
breve terá uma nova rainha. — Abraçou Loretta, que fingiu não ter
ouvido as últimas palavras e continuou chorando, abraçada a ele.
Assim que foi anunciado o falecimento da rainha a outras cortes,
começaram a chegar dezenas de ofertas de casamento ao jovem rei
viúvo.

Loretta temia que ele seguisse a tradição, casando-se com alguma
princesa, e acabasse com seus sonhos. Por isso, fazia mil artimanhas
para prender o coração do amado.
Uma noite, tendo-se excedido na bebida, o rei pediu-a em casamento
diante de toda a corte. Ela aceitou sorridente e jurou lutar ao
seu lado pelo bem-estar de todos como uma verdadeira rainha.
Foram muitos aplausos e vivas dentro do salão.

— Boa saúde à futura rainha Loretta! — Todos os cavaleiros
levantaram as espadas.
Dois meses depois, reis e rainhas acomodavam-se nas dependências
do palácio para assistir ao casamento. Presentes chegavam de todos
os cantos para a futura rainha.
Loretta fez questão de que padres e bispos de todo o reino viessem
celebrar seu casamento. Não via a hora de ver aqueles imbecis
curvarem-se a seus pés. Assim que recebesse a coroa, que lhe seria
colocada pelas mãos do rei, começaria sua tarefa mais difícil:
destruir todos eles.
A beleza da rainha era o assunto principal entre damas e cavaleiros.
Altiva e elegante, Loretta ouviu todas as palavras do bispo, que se
ajoelhou para fazer o juramento à coroa, ao rei e à sua nova rainha.
No íntimo, Loretta jurava destruí-los.
Fez o juramento quanto ao seu amor, fidelidade e compreensão para
com o povo. O rei também ajoelhou-se, jurando reconhecê-la como
rainha suprema, e isso fez com todo o coração, pois amava-a mais
que o trono e a própria vida. Colocou o anel de soberana no dedo de
Loretta, beijando-o com todo o carinho que lhe vinha da alma.
Levantou o veludo vermelho que cobria a coroa, cujos brilhantes
todos faiscavam, e colocou-a na cabeça de sua rainha.
Todos se ajoelharam, inclusive o bispo e os padres, permanecendo
apenas o rei em pé. Este tomou o cetro e colocou-o em sua mão. Ela

o ergueu, e todos se levantaram, aplaudindo-a.
Sentada no trono, viu reis, rainhas e toda a nobreza passando diante
de si, cumprimentando-a. Depois, todos os cavaleiros do rei foram

chamados aos pés da rainha. Com lanças e espadas em punho, cada
um fez seu juramento: honrar e defender com a própria vida a
rainha. As damas vieram em seguida, jurando servir, honrar e
proteger a soberana. Por fim, os padres, cantando hinos de glória,
ajoelharam-se a seus pés, prometendo honrá-la e respeitá-la como
rainha suprema em terra.
Por alguns instantes, no meio de toda a agitação, ela pensou em
Raul e lembrou-se do tempo em que daria a vida por ele. Os
malditos padres destruíram a vida dele. Não se sentia responsável
por sua morte, apenas quis seu amor e foi rejeitada por ele, que se
dedicava somente à sua fé.
Pensou em Hari. Amou-o, sim. Ele foi o primeiro homem de sua
vida. Voltou-se para o rei. Ela também o amava e agora era sua
rainha. Por um momento sentiu um arrepio. Era como se a rainha
estivesse ali, diante deles, gritando por socorro.

DECLARADA A GUERRA


Loretta, sentada ao lado esquerdo do rei, participava de todos os
eventos e decisões do reino. Revolucionara o reinado. Distribuía
alimentos, gerava empregos e incentivava a educação na corte.
Aconselhou o marido a lotear algumas de suas propriedades e
incentivar nelas a agricultura, doando uma parte da colheita às
famílias trabalhadoras. Criou também várias tecelagens.
Era aclamada como a rainha do século. O povo a chamava de rainha
santa, tamanha sua indulgência para com os pobres. Incentivou a
cultura e a arte. Os súditos estavam felizes e orgulhosos dela, que
era bondosa e amável com todos.


Loretta engravidou, e a notícia espalhou-se pelo reino. Diariamente
chegavam presentes e mais presentes das finas tecelagens que ela
mesma criara tanto para a futura mãe quanto para o herdeiro do rei.
Este, por sua vez, tornara-se um homem dócil, realizado e humano.
Aquela mulher lhe preenchia totalmente a alma, era a luz de seus
olhos. Em seus apontamentos com o povo, acrescentava sempre que
a rainha Loretta na vida dele representava o mesmo que a chuva
sobre a terra seca. Reinava bem porque era inspirado por ela.
Nasceu o filho de Loretta, um menino forte e saudável. Escolheu
seu nome: seria o mesmo do pai e do irmão mais velho, filho da
rainha que morrera acidentada.


Lembrou-se do filho do rei com a falecida rainha, que por direito
herdaria o trono. O seu seria príncipe, apenas isso. Assim que bateu
os olhos nele, disse para si mesma:
—Este é o futuro rei. Viverei para ajudá-lo a governar. No oitavo
dia do nascimento do filho, Loretta arrumou-se,
jogou a capa real nos ombros, ajeitou a coroa e olhou-se mais uma
vez no espelho. Estava ótima. Pegou o filho nos braços e apareceu
na sacada da janela, mostrando-o ao povo.
—Este é o filho do rei. Hei de educá-lo baseada em meus princípios.
Ele será um soldado que lutará pelo povo e como filho do rei
honrará a palavra do pai.
Houve gritos e aplausos de contentamento pelo nascimento do
pequeno príncipe:
—Será o futuro rei! Caiam os direitos do príncipe Henrique II.
Queremos o príncipe Henrique III como herdeiro do trono!
Queremos o filho da rainha Loretta! Queremos o filho da rainha
Loretta! Queremos o filho da rainha Loretta!
O pequeno príncipe Henrique II, herdeiro da coroa, que contava
com apenas nove anos de idade, puxou o manto do pai, dizendo:
—Meu pai, fale ao povo que dou sua coroa para o meu irmãozinho.
Estou com medo!



Loretta afagou-lhe o cabelo e sorriu para ele.
—Não precisa ficar com medo, meu pequeno. Loretta jamais
permitirá que alguém lhe faça mal.
O rei estava emocionado e preocupado ao mesmo tempo. Mal
nascera seu filho e povo já o queria como herdeiro da coroa. O que
fazia uma mulher espetacular como Loretta na vida de um reino!
O povo queria seu filho porque sabia do caráter da mãe. Aliás, o
povo não queria seu filho, queria a mãe.
Sentia também que iria ter problemas na corte. Temia pelo destino
de seu filho, herdeiro da coroa. Amava os filhos de todo o coração.
A pequena Lucília tinha cinco anos, era meiga e inteligente e ouviu
tudo em silêncio. Chegando aos seus aposentos, comentou com o
irmão:

—Tenho pena de você, que está sendo odiado sem ter feito nada de
mal para ninguém. — Depois, séria, virou-se para a madrasta, a
rainha Loretta, e disse-lhe: — Você é a rainha, a esposa de meu pai e
a mãe de nosso pequeno irmão. Por isso, digo-lhe: se meu pai, que é

o rei, passar o lugar de meu irmão para seu filho, ficaremos felizes e
o ajudaremos em tudo. Não é mesmo, Henrique?
Este, ainda assustado com os gritos do povo, respondeu
imediatamente:
—Claro que sim. Nunca tive vontade de ser rei.
Loretta ficou emocionada. Olhou para aquela pequenina criatura,
lembrou-se da infância e da rainha que morrera em plena flor da
juventude, deixando os filhos. Abraçou Lucília e o irmão e falou,
com carinho e sinceridade:
—Eu lhe prometo, Lucília, que nunca vou permitir que sofram. Seu
pai tem razão em orgulhar-se tanto de vocês. Agora que sou mãe
posso compreender o que sua mãe tentou fazer por vocês.
Seus olhos encheram-se de lágrimas, e ela continuou abraçada às
duas crianças. Lembrou-se da proposta que lhe fizera a rainha:
queria apenas ficar ao lado dos filhos.

Quarenta e cinco dias após o nascimento do filho de Loretta, uma
comissão da Igreja, comandada pelo bispo, chegava ao palácio para
discutir e acertar o batismo do pequeno príncipe. Recomendaram
aos soberanos um feriado, quando se faria a distribuição de
pequenas ofertas para o povo em nome da alegria do rei. Sugeriram
que fossem ofertados rosários e panfletos com imagens de santos
para toda a população. Tinham como confeccionar todo o material
com grande economia, e, assim, estariam os soberanos incentivando
a fé.
Loretta ouviu tudo em silêncio. Apenas olhava de um para outro. O
rei, já conhecendo aquela expressão, ficou confuso e desconcertado
diante de seu silêncio. Sentiu medo da resposta dela quando lhe
perguntou:
—O que acha, minha rainha e senhora?
Altiva e demonstrando cautela e inteligência, dirigiu-se ao rei.

—Meu rei e senhor, creio que precisamos discutir entre nós alguns
pequenos detalhes familiares e então poderemos solicitar de novo a
nobre presença dos filhos da fé no palácio.
O bispo ficou ruborizado. Sabia o que ela tinha feito com uma das
ovelhas do Senhor. Apenas a Cristo confessaria o que ouvira
daquele filho de Deus.
Os religiosos aproveitaram a oportunidade para lembrar ao
monarca que seu primeiro filho e herdeiro precisava afastar-se da
família, a fim de preparar-se para o futuro; afinal de contas, estava
com nove anos. Já sabia ler e escrever, estudava música e literatura e
praticava esportes. Estava na hora da separação. Só retornaria ao
palácio feito cavaleiro consagrado por Cristo, a serviço do reino, e
pronto para assumir o lugar do pai.
Loretta sentiu nojo da prepotência deles. Levavam os filhos dos
nobres e transformavam-nos naquilo que queriam. Lembrou-se de
Raul. Sim, foram eles que fizeram do primo um padre. Foi por causa
deles que Raul morrera, foi por causa deles que Hari e a rainha
morreram.


"Agora", pensou, "querem o filho dela e amanhã vão querer o meu.
Não vou permitir isso. Chegou a hora de cobrar do povo a
fidelidade que jurou para com sua rainha. Abrirei guerra contra a
Igreja e expulsarei esses corvos da mesma forma que expulsaram
Raul de minha vida."
O rei entendeu o olhar da amada e cautelosamente lhe pediu tempo
para discutir alguns detalhes com ela. Enviaria um mensageiro
anunciando sua presença. Iria em pessoa ao encontro dos nobres
padres, visto não desejar incomodá-los, e já levaria a solução para os
dois sérios assuntos. Satisfeitos com o respeito do monarca para
com eles, os religiosos agradeceram toda a gentileza com que foram
atendidos e servidos.
Após a saída dos representantes da Igreja, Loretta suspirou
profundamente e pousou o queixo nas mãos, demonstrando
preocupação e contrariedade.

— Aborrecida, minha querida? — perguntou-lhe o rei,
carinhosamente.
— Não diria que é só aborrecimento, mas também preocupação. Se
o rei não se importa, gostaria de refletir um pouco. Não estou em
condições de discutir o assunto no momento.
— Minha rainha ouviu, quando dei minha palavra, pro-metendolhes
agilizar a solução — disse-lhe o rei, delicadamente.
— Amanhã mesmo podemos enviar um emissário anunciando
nossa presença.
—Você pensa em me acompanhar, Lorre?
—Claro, trata-se de nossos filhos, senhor rei! E meu dever decidir o
futuro deles.
Loretta foi ver o filho. Ele dormia tranqüilamente. Passou a ponta
dos dedos em seu rosto, tão pequeno e indefeso, e pensou que um
dia também exigiriam a guarda dele.
Aproximou-se da janela que dava para o pátio e viu o príncipe, que
se divertia, brincando com outros garotos. Sorria feliz. O cabelo
loiro desmanchado pelo vento dava-lhe uma graça toda especial.

"Parece-se demais com a mãe", pensou Loretta, crispando os dedos
das mãos. Não entregaria o garoto para aqueles corvos. Traria os
melhores mestres para dentro do palácio, ou melhor, construiria
dependências modernas para a educação dos filhos de todos os
cavaleiros do rei. Nenhuma criança, do sexo masculino ou feminino,
seria entregue a eles. Lembrava-se de como ela mesma vivera anos e
anos no meio de beatas fanáticas. Naquele momento, analisando
cuidadosamente sua vida, percebia que todo seu comportamento
em relação a Raul fora levado pela carência afetiva sofrida na
infância.
Logo após o jantar, Loretta aproximou-se do rei e sussurrou-lhe ao
ouvido:
—Recebi alta. O médico da corte recomendou deitar-me com meu
marido. Vou retirar-me, e você arranje uma desculpa para dar a
seus cavaleiros. Estarei à sua espera.
Loretta levantou-se, e todos os cavaleiros e damas fizeram o mesmo.
—Boa noite a todos vocês. Desculpem-me deixá-los, mas Preciso ver
como está o filho caçula do rei. Continuem com a reunião e
divirtam-se.

Todos a olharam com respeito e simpatia. Comentavam entre si:
—Que mulher espetacular esta rainha!
Alguns nobres cavaleiros do rei imaginavam: "Daria minha vida e
outras tantas que tivesse por uma mulher assim".
Loretta tinha plena consciência do poder que exercia sobre o
marido. Ele estava saudoso da vida íntima que sempre tivera com
ela, tendo pacientemente esperado por sua recuperação pós-parto.
Não desejava nenhuma outra mulher, ela era tudo em sua vida.
Preferia a morte só em imaginar perdê-la. Assim pensava enquanto
se arrumava para o reencontro no leito. Perfumou-se e vestiu
apenas o roupão de seda púrpura. Foi ao encontro da amada, que
estava linda como sempre, e atirou-se em seus braços, perdendo-se
em suas próprias emoções.


Já era tarde quando os dois, cansados, mas satisfeitos um com o
outro, resolveram dormir. Loretta, sonolenta, disse ao rei:
—Meu querido, amanhã cedo, antes de descermos, vamos resolver

o assunto dos padres.
O rei abraçou-a, beijou-a e respondeu-lhe:
—Deveras! Você é uma verdadeira rainha. Já nem me lembrava de
que existem padres! Durma, meu amor, descanse e não se preocupe,
pois amanhã farei exatamente como você desejar.
Loretta adormeceu tranqüila, sabendo que realmente seria feito
aquilo que determinasse, e ela já sabia o que fazer.
Na manhã seguinte, Loretta e o rei ficaram em seus aposentos e
tomaram juntos o café da manhã. Ela solicitou que fossem trazidos
os três filhos do rei. Logo, as babás entraram trazendo as crianças.
Loretta agradeceu e dispensou-as. Tomou o filho nos braços, beijou-
o delicadamente e colocou-o nos braços do irmão mais velho.
—Você gosta do seu irmãozinho? — perguntou-lhe, sorrindo.
—Claro que gosto dele! E tão lindo!
A menina aproximou-se, alisando o bebê, e pediu:
—Rainha Loretta, posso pegá-lo também?
Ela o colocou nos braços de Lucília, que ficou radiante em segurar o
irmãozinho.
—Ele é tão lindo! — disse a menina também.
0 rei emocionou-se diante da cena. Loretta pôs o pequenino nos
braços dele, que ficou com os olhos cheios de lágrimas. Aquela
criança era um pedaço dele e de Loretta.
As crianças contaram ao pai tudo o que haviam aprendido e como a
rainha Loretta vinha sendo boa com eles. Sentiam muito a falta da
mãe, mas Loretta era boa com eles.
Em certo momento, Loretta chamou as babás de volta, beijou o bebê
e Lucília e recomendou às amas:
—Levem os dois e cuidem deles. Quanto ao príncipe Henrique, ele
vai ficar mais um pouco conosco.



—Por que ele pode ficar e nós não? — protestou a menina. Loretta
alisou o cabelo loiro e bem cuidado da princesinha
e respondeu-lhe carinhosamente:
—Você é uma boa menina e vai ajudar a babá a cuidar do seu
irmãozinho!

— Posso ficar com ele?
— Claro que pode!
—Então eu vou. — E saiu correndo, cheia de felicidade. Loretta
sentou o garoto bem em frente ao rei. O príncipe
pôs-se a chorar, colocou as mãozinhas no rosto e começou a falar:
—Já sei, meu pai, você vai me mandar para o convento! Não vou
poder mais brincar no palácio, só voltarei quando for homem.
Loretta abraçou o menino e, olhando para o rei, falou:
—Meu senhor e rei, acho que percebeu o que estou tentando lhe
mostrar. Também não desejo tirar o príncipe, nem a princesa, nem
meu filho do palácio!
O rei empalideceu, desapontado.
— Como vamos educar e preparar nossos filhos, Loretta? Ela deu a
volta e chegou mais perto dele.
— Trazendo os mestres e a escola para dentro do palácio! O menino
parou de chorar e ficou atento à conversa. Naquele
dia, Loretta conquistava para todo o sempre o coração do pequeno.
Sua mãe nunca faria por ele o que a rainha Loretta acabara de fazer:
não sairia de sua casa, não deixaria de ver sua querida irmã e seu
irmãozinho. A partir de então, morreria por Loretta. Mesmo que um
dia ele fosse o rei, Loretta seria sempre a grande rainha. Saiu
pulando de alegria e, pela primeira vez, num impulso, beijou o
rosto do pai e agarrou-se ao pescoço de Loretta, dando-lhe um beijo.
Loretta contou todo seu plano ao rei: construiriam uma escola-
modelo para preparar seus filhos e toda a prole dos cavaleiros.
Estava na hora de mudar as leis da educação, de quebrar as
correntes com a Igreja, que se aproveitava da educação para ter
domínio sobre tudo e todos.

Assim, poderia também acompanhar a vida dos filhos, tornando-os
pessoas mais felizes. O rei aprovou totalmente o plano de Loretta.
Realmente a esposa era uma revolucionária, trazia apenas o
progresso ao reino!
Solicitou uma reunião de emergência com todo o Conselho. Alguns
membros protestaram, mas a maioria se rejubilou com a idéia da
nova lei, que logo foi assinada e oficializada pelo monarca.
A lei seria divulgada, publicada e anunciada para todo o reino,
assim que todos os integrantes do Conselho saíssem da sala. O rei
ordenou que fosse enviada uma mensagem ao convento. Iria
acompanhado da rainha e de alguns auxiliares para cumprir sua
palavra, conforme prometera ao clero.
O sol já baixava no horizonte, quando os portões do convento se
abriram, dando passagem à carruagem em que estavam o monarca
e a rainha Loretta. Logo atrás vinham outras carruagens, com
escrivães e conselheiros e vários cavaleiros em suas armaduras,
portando lanças e espadas e montados em belos cavalos.
O rei e a rainha sentaram-se um perante o outro. Todo o Conselho
colocou-se ao redor deles, acompanhado pelos padres. O rei, então,
pediu que fosse lido seu novo decreto. Quando o conselheiro
acabou a leitura, o bispo estava pálido e tremia, e todos os outros
religiosos presentes estavam brancos.
Foi o reitor pastoral quem falou:

— Meu rei e minha rainha, estamos desapontados com suas
decisões. Seu antecessor, seu glorioso pai, jamais tomaria uma
decisão dessas sem nos consultar. O que será de seus filhos? O que
será do país sem a educação do futuro rei? Você foi educado, meu
filho, em nosso convento, e por isso temos tranqüilidade no reino.
Loretta tinha as faces rubras e os olhos faiscando. Tinha vontade de
esmurrar a boca daquele corvo velho, mas conteve-se, limitando-se
a responder:
— Meu senhor reitor, com todo o respeito que lhe tenho, peço
licença ao rei para falar-lhe. — O rei assentiu, e ela prosseguiu: — O

que será de nossos filhos e do mundo se nossas leis permanecerem
eternamente as mesmas? Quando implantei certas obras aqui no
reino, auxiliando o povo, beneficiando e facilitando muitas coisas
aos senhores, não recebemos nenhuma manifestação por parte da
Igreja. E digo para mim mesma: se a Igreja tivesse feito isso antes,
como teríamos avançado! Infelizmente, meu rei foi educado pela
Igreja e sempre dependeu dela para tomar decisões. Estamos
alcançando na corte o que todo rei espera: paz. — Loretta fez uma
pausa. — Sofri uma grande represália por parte da Igreja, fui
proibida de freqüentá-la e condenada por ela. Desde então, comecei
a perceber a enorme falha contida em seus ensinamentos atuais.
Não entregaremos mais nossos filhos em suas mãos. Não estaremos
mais em suas mãos. Meu filho não será batizado por vocês, porque
não acredito mais em sua Igreja. Perguntem ao povo o que é melhor
para ele: viver em paz com a família, ter o que vestir e o que comer,
ter liberdade e ser respeitado, ou temer o poder da Igreja? A voz do
povo toca-me o coração porque também vim dele. Nossa escola
começará a funcionar o mais breve possível, buscaremos mestres de
outros reinos mais avançados, pois eles são exatamente aqueles que
não têm ligação com a Igreja. Vossas "santidades" prestarão serviços
ao rei como todo homem deve prestar.
O bispo tremia diante da arrogância da mulher. Lembrou-se do dia
em que foi procurado por Raul. Ele era inocente, fora vítima de sua
maldade.
Seria castigo de Deus para com ele? Ela não era apenas a rainha,
mas a mulher a quem o rei entregara a alma. Baixou a cabeça e
entendeu que somente o Pai poderia detê-la.


"Que seja feita a Vossa vontade, Senhor", orou em silêncio.
O rei estava espantado com Loretta; parecia outra pessoa falando.
Os padres ficaram em silêncio; nenhum deles abriu a boca para
protestar.
No caminho de volta ao palácio, segurando a mão da esposa, o rei
perguntou-lhe:



— Conheço-a muito bem, é minha própria alma. Você não quer
batizar nosso filho, não é mesmo?
— Se me entende tão bem, é porque também é minha alma.
Realmente não desejo batizar meu filho na Igreja. Ainda não me
esqueci de que fui expulsa dela. Só aceitei casar-me com você na
Igreja porque ainda não era a rainha e não poderia lhe causar
transtorno com outros reis católicos. Em nosso casamento, só
acreditei em suas palavras e em seu amor. Jurei para você, não para
eles, e recebi de suas mãos a coroa. E para você que vivo. Os padres,
para mim, não passam de um bando de corvos interesseiros. Aposto
que ficaram decepcionados porque já tinham calculado quanto
iriam arrecadar com rosários e santinhos! O povo precisa, meu rei, é
de comida, roupa e trabalho.
Duas semanas depois, a rainha Loretta recebeu um mensageiro do
convento: pediam-lhe uma audiência. Ela mesma subscreveu a
resposta, concordando. Após dois dias, fez questão de recebê-los
sentada no trono. Dispensou as damas, ficando apenas com os
guardiões. Assim que o clero entrou, Loretta levantou-se e
reverenciou-o.
—Estou à disposição da Igreja. Fiquem à vontade. Foi o bispo quem
começou a falar:
—Soberana rainha, a Igreja reconhece sua bondade e dignidade
para com seus filhos. Estamos aqui para pedir-lhe desculpas por
nossas falhas. Realmente, o que fez em tão pouco tempo
poderíamos ter feito antes, mas nunca pensamos nisso. Enfim,
senhora, estamos aqui à sua disposição para ajudar no que for
preciso na nova escola. E também aproveitando para perguntar à
nossa rainha onde será construída a capela da nova escola.
Precisamos acompanhar as obras.
De cabeça erguida, Loretta respondeu:
—Não vamos construir nenhuma capela na nova escola, e a do
palácio será demolida. Se os senhores desejam levar seus santos e


pertences, entrem em contato com o responsável pela obra; caso
contrário, serão destruídos tanto quanto as paredes.
O bispo sentiu a cabeça girar, a vista escurecer e tombou para a
frente. Um padre o socorreu, e por ordem da rainha foi aplicado
bálsamo em sua fronte. Ele voltou a si e tinha os olhos enuviados
pelas lágrimas.

— Minha senhora e soberana, por Deus peço-lhe: não destrua essa
obra magnífica construída séculos atrás!
— Pois então, bispo, é por isso mesmo que neste século ela será
destruída. Vamos construir algo mais nobre em cima dela: uma
escola! Daqui por diante incentivarei o povo a trabalhar mais e a
rezar menos, até esquecer-se por completo de todas as rezas.
Incentivarei as mulheres do reino a jogar fora o rosário e o véu e
vou proibi-las de ajoelhar-se a seus pés. O bispo está lembrado do
dia em que levou minha sentença de morte? Se não fosse pela
bondade do rei, hoje eu estaria morta. Quanto ao meu marido, que
serviu à Igreja, o que ela fez com ele? Levou-o à morte! Tanta
dedicação e tanta fé e vocês o humilharam, condenaram-no como
um assassino! Jamais vou perdoá-los e a seu Deus por isso! Seus
corvos agourentos, fiz coisas que não deveria ter feito, perdi pessoas
que poderiam estar vivas, tudo por causa de vocês! Viverei e
triunfarei sobre vocês. Não descansarei enquanto não colocar todos
vocês para fora do reino e destruir todas as suas igrejas.
Nascia naquele momento uma guerra entre a Igreja e a rainha
Loretta.
—O rei é o povo, o povo é o reino, e tenho o reino em minhas mãos.
Saiam do palácio e preparem-se para enfrentar o mesmo caminho
que enfrentou Raul — gritou ela.
O reino de Loretta tornou-se um dos mais admirados por seu
progresso e tecnologia. Suas escolas eram as melhores do mundo.
No lugar em que funcionavam igrejas e conventos, agora


funcionavam escolas. Aquele reino era respeitado e servia de
modelo para os outros.

O DESENCARNE DO REI

Loretta tivera mais dois partos, dando à luz duas meninas. Seu filho
agora completava quinze anos, e o príncipe, vinte e quatro. Era
parecido com o pai, mas recebera a força e a coragem dela e cresceu
mantendo o juramento: ela seria sempre a grande rainha.
Nobre cavaleiro, conhecia várias línguas e fora bem instruído nas
armas, tendo-se tornado grande espadachim, motivo de orgulho
para o rei. Lucília havia-se casado com um dos generais do exército
do pai. Agradecia à boa madrasta, que intercedera em seu favor,
pois casara-se apaixonada pelo marido. Não fora um casamento de
conveniência, como o da maioria das princesas, mas um por amor.
Tudo corria bem. O povo amava a rainha, e, com o passar dos anos,
ela, se tornava mais bonita aos olhos dos admiradores.
O filho puxara sua inteligência e astúcia. Com apenas quinze anos,
em todo o reino não havia nenhum cavaleiro que o vencesse na
espada. Era muito observador. Fisicamente, parecia-se muito com o
pai, mas na personalidade era realmente filho de Loretta.
O rei adoecera, pouco aparecia em público, e Loretta, como sempre,
reinava. Ele apenas assinava o que ela decretava. Um dia, convocou
a família para uma reunião. Colocou a situação para os filhos:

— Sei que não vou viver por muito tempo e quero deixar as coisas
encaminhadas. Meus filhos são meus herdeiros. Pelas nossas leis, o
príncipe Henrique II assumirá meu lugar e sua esposa receberá a

coroa. Minha preocupação é que, na verdade, quem elevou nosso
reino foi a rainha Loretta, não eu. Quero que cada um de vocês se
conscientize da responsabilidade que exige o cargo de um rei e de
uma rainha.
Loretta estava completamente desolada, temendo perder não a
coroa, mas o amado esposo. Tudo tinha feito para curá-lo, mas sem
resultado. Ele estava magro e pálido, não tinha mais forças para
andar.
Os filhos olharam para o pai, penalizados com o estado dele. O
príncipe Henrique II aproximou-se dele:
—Meu pai e rei, um dia, neste mesmo quarto, chorei em sua
presença por medo de sair do palácio e ir para o convento. Naquele
mesmo dia, saí rindo e pulando de alegria e felicidade e então fiz
um juramento: acontecesse o que acontecesse em minha vida, sua
mulher Loretta seria sempre a grande rainha. Apesar de ser muito
jovem, reconheço que meu irmão será melhor do que eu como rei.
Abdico dos meus direitos em favor dele, o príncipe Henrique III. E
tenho certeza, meu pai, de que serei muito feliz com minha família,
como venho sendo até então. Cabe à minha esposa manifestar
também sua vontade de tornar-se rainha ou não.
Logo a princesa se dirigiu até onde estava Loretta, tomou-lhe as
mãos e disse:
—Abdico da coroa de todo o meu coração. Que ela fique por muitos
e muitos anos com nossa grande rainha Loretta.
O filho de Loretta abraçou o irmão e a cunhada, tomou as mãos do
pai e disse-lhe:
—Meu amado pai, quero que fique curado, mas, se a morte vier ao
seu encontro, fique tranqüilo: seguirei os conselhos de minha
soberana mãe e me casarei com aquela que meu coração indicar,
para dividir a coroa com ela, mas a grande rainha será sempre sua
esposa, meu pai, a rainha Loretta.
Dias depois, fixava-se em todas as dependências do reino o
documento que legitimava o filho de Loretta como herdeiro da


coroa. Nas ruas, o povo aclamava a decisão do rei. Com certeza o

príncipe Henrique III seria tão grande quanto a mãe.
Loretta estava abatida e muito triste. Amava o rei de todo o coração,
mas agora ele estava morrendo, e nada ela podia fazer por ele, que
era tudo em sua vida.
Lembrou-se de Raul e de Hari. Lembrou-se da rainha e do dia em
que nascera seu filho. Ela aprendera a amar os filhos do rei como se
fossem seus, e aquele menino que vira crescer abdicou do trono em
favor de seu filho. Tinha o estilo da mãe, era um verdadeiro nobre.
Não era hora de arrependimentos. Se tivesse aceitado a proposta da
rainha, talvez hoje tudo estivesse bem, mas era tarde para lamentar.
Passava todos os instantes livres ao lado do amado. Por vezes ele
lhe perguntava, os olhos cheios de lágrimas:
—Lorre, minha querida, você não se cansa de estar ao meu
lado?
—Gostaria de estar sempre com você. Se pudesse morreria antes de
você — respondia ela, aos prantos.
Certo dia, o monarca pediu para ir até a sacada. Queria despedir-se
do povo. Depois, fez com que Loretta lhe prometesse que cuidaria
de seus filhos e súditos. Ele iria em paz, porque fora o homem mais
feliz do mundo. Sorrindo com dificuldade, afirmou:
—Nenhum rei teve a minha sorte. Fui amado não apenas por uma
rainha, mas por uma verdadeira mulher.
Na presença de toda a família real, Loretta prometeu em lágrimas
que cuidaria de seus filhos e do povo. O rei, apertando uma das
mãos dela, deu o último suspiro, deixando o reino terreno para trás.
Loretta agarrou-se ao seu corpo, gritando:
—Não me deixe, por favor! Não me deixe, meu amor! Os filhos do
rei a ampararam.
—Você prometeu cuidar de todos nós. Por ele, eu lhe peço, beba
esta água. Nós a amamos como mãe e agora também queremos que
seja um pouco nosso pai — ressaltou Lucília, abraçando-a.


O filho mais velho do rei chorava em silêncio. Amava o pai e iria
sentir muito a falta dele, mas também amava Loretta, a grande
rainha, e confiava nela. Olhava para o corpo desfigurado do pai e
lembrava-se da mãe: se houvesse uma outra vida, como lhe dissera
a esposa, eles voltariam a se ver, embora o coração do pai
pertencesse a Loretta. Entendia esse amor perfeitamente. Quem não
amaria aquela criatura? Sua mãe, por certo, teria de pedir perdão ao
rei por ter tentado matar Loretta, conforme ficara sabendo por um
dos cavaleiros de confiança do pai.
O corpo do monarca foi velado por oito dias. O povo chorou sua
morte; ele se tornara querido e respeitado. Era justo, bondoso e
morria tão jovem, lamentavam. Outros, sem pensar, diziam coisas,
tais como:
—Já pensou se fosse a rainha que tivesse morrido? Estaríamos
arruinados.
Tudo foi preparado, e, no nono dia, após o funeral, o príncipe
Henrique III recebeu e assumiu a coroa ao lado da mãe e de toda a
família real. Emocionada, Loretta colocou-lhe a coroa na cabeça, e
ele, num gesto de humildade, ajoelhou-se a seus pés e disse em voz
alta:
—Minha senhora, mãe e rainha, juro que vou honrar a coroa de meu
pai! — E, voltando-se aos presentes, gritou: — E a rainha Loretta
será sempre respeitada!
Foram muitos os aplausos.
—Viva o novo rei! Viva a rainha!
Loretta olhou para o local em que estava sentado o filho e, pela
primeira vez, chorou diante do público.
Naquela noite, foi até o pátio do palácio. O céu estava estrelado. Há
quanto tempo não olhava para o céu?
Suas estrelas estavam lá, no mesmo lugar, fazendo-a relembrar a
infância e, com um aperto no coração, reviver os tempos felizes ao
lado da mãe.


Recordava também os momentos ao lado de Raul. Grossas lágrimas
desceram por seu rosto. Ficou muito tempo olhando as estrelas e
rememorando toda a trajetória de sua vida.
Desde o dia em que fora pedir ajuda ao jardineiro Manuel para
livrar-se de Hari, nunca mais voltara ao castelo dos tios. Soube da
morte deles e só agora lhe doía pensar em como os prejudicou.
O castelo D'armis e todas as outras propriedades que pertenceram
ao tio eram dela agora. De repente, sentiu uma vontade imensa de ir
até lá. Era a dor da consciência que a chamava. Tomou uma decisão:
"Amanhã falarei com o rei, meu filho, e irei até lá. Preciso fazer
alguma coisa por mim mesma ou enlouquecerei".
No dia seguinte, partiu com algumas de suas damas e cavaleiros de
confiança. Chegando ao portão principal, Loretta observou como
tudo permanecera intacto. As rosas vermelhas que o Senhor Manuel
havia trazido para o castelo pareciam ainda mais bonitas. O jardim
estava repleto de flores perfumadas, que pareciam lhe dar as boas-
vindas. Loretta desceu da carruagem e andou por ele. Tudo estava
bem cuidado. Era como se o tempo não tivesse tocado em nada.
Entrou nos aposentos que haviam sido dela e de Raul e não pôde
conter as lágrimas. Estavam do mesmo jeito que deixara. Os
perfumes sobre o toucador, pentes, espelhos, luvas, um par de
brincos, do qual já nem se lembrava, estavam ali...
Abriu uma gaveta e encontrou as abotoaduras de ouro de Raul.
Estremeceu. Ficou sentada, olhando tudo à sua volta; era tão
estranho, parecia que fora outra pessoa, não ela, que vivera ali.
Naquela noite, foi até a varanda acompanhada por uma das damas.
Deitou-se em seu banco predileto e ficou em silêncio por muito
tempo olhando para o céu. Via as estrelas faiscando e lembrava-se
de Raul. Se pudesse retroceder e recomeçar a vida, com certeza tudo
seria diferente, mas agora era tarde para todos. Estava só,
completamente só.
Demorou a pegar no sono, mas assim que adormeceu começou a
sonhar. Alguém a chamava, e ela descia as escadas correndo,


deparando-se com Hari e sua irmã sentados e vários padres com
eles, inclusive o bispo.
Os padres apontavam para ela, dizendo:
—Foi ela! Foi ela!
Hari levantou-se e veio em sua direção, furioso. A rainha segurou-
lhe o braço, dizendo:
—Não toque nela! Você também foi errado!


Então, ela acordou. Abriu os olhos. Estava suando, o ar parecia
abafado. Chamou a criada e pediu-lhe água. Vendo a rainha com o
rosto vermelho e tremendo, a moça disse-lhe:


— A senhora não está bem. Quer que chame por ajuda?
— Não, não é nada, foi apenas um sonho.
Loretta não conseguiu mais dormir, rolando na cama. O sonho não
lhe saía da mente. Raul não estava no sonho. Era tão bom, tão
digno, que nem de seus pesadelos fazia parte.
Voltando ao palácio, recomeçou suas tarefas como monarca.
Dedicava todo seu tempo ao trabalho, pois assim não pensava, não
lembrava, não sofria o que já estava sendo cobrado por leis bem
maiores que as dela.
FATOS INESPERADOS


Loretta recebia várias propostas de casamento e a todas recusava,
pois em seu coração não havia lugar para mais ninguém. Continuou
sustentando o que prometera ao rei: cuidar dos filhos e do povo.
Agora, seu filho era maior de idade e precisava se casar. Ela
convocou uma reunião familiar. Os netos de seu marido a
chamavam de vovó e disputavam seu colo. Suas duas filhas


estavam casadas, e bem, pois escolheram como maridos bons e
dignos cavaleiros. Sua preocupação, então, era o próprio rei, que
precisava arrumar uma esposa para ajudá-lo. Loretta fingia não
saber de suas aventuras entre as damas do reino.
Na reunião, todos concordaram com ela de que o rei realmente
precisava se casar. Lucília piscou para o marido e gargalhou.
Percebendo que o irmão desconversava, em tom de brincadeira
disse:
—A rainha Loretta está certíssima, meu rei, você precisa se casar!
Riram da forma como o rei olhava para eles. Em família, esqueciam
a etiqueta, brincavam e discutiam todos os assuntos. Loretta pediu:
—Meus filhos, noras, genros e netos, façam silêncio! — Todos
pararam, e ela continuou: — Eu, na condição de mãe, como sempre
fui para todos vocês, gostaria de pedir não ao rei, mas a meu filho,
que escolhesse uma esposa pelo coração, não pela coroa.

Tenha cautela e cuidado, use a responsabilidade de um rei na
escolha e a sabedoria de seu coração no amor.
Os olhos de Lucília encheram-se de lágrimas. Realmente a madrasta
era maravilhosa; sua maior virtude era dar às pessoas o direito à
escolha. Desde que implantara essa liberdade na corte, todos eram
mais felizes. Casavam-se por amor.
Lucília pensava em como Loretta recebia propostas de casamento
de todas as partes do mundo para casar o rei. Poderia casá-lo com
uma princesa de um reino desenvolvido, mas propunha a ele, ali,
diante de todos, que procurasse alguém para amar. Uma mulher
assim merecia todo o respeito.
O rei era alto, tinha olhos verdes e uma boca perfeita, parecia mais
um deus grego, pensava a cunhada. 0 cabelo dourado caía-lhe até os
ombros, dando-lhe um ar de garoto.
O rei levantou-se e disse para a mãe:
—Enviarei resposta a todos os pedidos de casamento dos reinos
vizinhos. Não sou apaixonado por nenhuma mulher, minha mãe.
Com certeza vou apaixonar-me por alguma princesa que virá a ser


sua nora e discípula. Quero que minha rainha aprenda com a
grande Loretta qual o papel dela ao lado do rei.
Brindaram à decisão do rei, e este virou-se novamente para Loretta,
que agora tinha um neto em uma perna e uma neta na outra.
—Mamãe quer mais netos, não é verdade? Estou decepcionado com
meus dois cunhados. Minhas irmãs caçulas, já era tempo de
mostrarem suas barrigas! Ainda bem que meus irmãos mais velhos
já me deram sobrinhos — brincou.


Um ano depois, o palácio era preparado para receber a nova rainha.
A comitiva partira alguns dias antes. Era o casamento do jovem rei
com a filha de um monarca conhecido, temido e poderoso.
O rei tinha jurado à mãe que escolhera a noiva por sua beleza e
simpatia, mas Loretta sabia que não era verdade. O filho era
ambicioso; havia escolhido a moça pelo dote.
Seria senhor de dois reinos assim que o velho e doente monarca
fechasse os olhos. A princesa, quase uma menina, era bonita, sim,
mas não mulher de enlouquecer um homem de paixão. Loretta
sentiu pena da garota pequena e frágil, que se intimidou diante
dela.
A monarca prometeu ajudá-la a preparar-se para a grande tarefa
que tinha a assumir ao lado do rei. Maravilhada com a sabedoria de
Loretta, a princesa estendeu-lhe as pequenas e trêmulas mãos e
pediu:
—Minha senhora, dentro em pouco serei sua nora. Por favor, guie-
me, aponte-me o caminho. Seja minha mãe também.
Loretta abraçou-a, tranqüilizando-a:
—Fique calma, minha querida, cuidarei de você. Já a estimo como a
uma filha.
O casamento do rei foi celebrado pelo povo assim que ele trouxe a
esposa e apresentou-a à corte. Decretou oito dias de festa. O povo
simpatizou com a nova rainha; sabia que a grande Loretta estaria
comandando os dois jovens.



Ainda em fase de lua-de-mel, de vez em quando o rei desaparecia,
ninguém sabia para onde. Sua mãe começou a preocupar-se, pois
alguma coisa estava errada. A pequena rainha, de olhos vermelhos,
enxugando as lágrimas, queixava-se de que o rei era apenas gentil
com ela, mas nunca demonstrava amor ou paixão. Comunicou à
sogra que estava desconfiada, mas não tinha certeza ainda, de que
iria ser mãe. Daria um herdeiro ao rei e mais um neto a Loretta. A
mãe pensou consigo mesma: "Agora, mais do que nunca, preciso
saber o que se passa com meu filho".
Lembrou-se de sua primeira gravidez: o marido não a deixava um
minuto sozinha, beijava-lhe os pés, as mãos, o ventre; tinha certeza
absoluta de que ele nunca procurara mulher em nenhuma de suas
três gestações.
O filho era muito jovem, talvez fosse isso; teria uma conversa em
particular com ele. Acalmou a nora e lembrou-lhe de que ela era a
rainha; nenhuma mulher ali poderia competir com ela. Talvez o
filho estivesse realmente muito ocupado e cansado.
No dia seguinte, pela manhã, Loretta foi até o salão em que o rei
despachava, entrou sem cerimônia e sentou-se ao lado do filho.
Este, disfarçando que tudo estava bem, perguntou sorridente:

— Minha mãe me traz algum novo projeto?
— Não, meu filho, não vim falar com o rei. Estou aqui para
conversar com meu filho.
— 0 que há, minha mãe? Algum problema?
— Meu filho, olhe dentro dos meus olhos! — Ele corou diante da
autoridade da mãe. — Quando sugeri seu casamento, também lhe
disse: case-se por amor. Todos os seus irmãos escolheram com
quem casar-se e você também escolheu sua esposa, que por sinal
está esperando seu herdeiro e passando as noites sozinha. Quero
saber o que está acontecendo. Não minta para mim.
— Está bem, minha mãe, vou contar-lhe tudo: estou amando
loucamente a filha de sua governanta e jamais poderia escandalizar

a corte de meu pai. Conheci Mary e apaixonei-me alucinadamente
por ela, mas honro minha esposa, que não tem culpa de nada.
A rainha Loretta colocou as mãos no queixo, como sempre fazia
quando estava preocupada. O que fazer numa situação dessas?
Lembrou-se de que se unira ao rei antes do casamento. Ele também
era casado. Seria castigo? Agora seu filho, casado, estava
apaixonado por outra mulher!
O rei recostou-se na cadeira e pediu:
—Mãe, por favor, ajude-me. Posso fazer a rainha feliz e ser feliz
também. Mary me ama e nada me pede em troca do nosso amor.
Loretta abateu-se com o que ouviu. Acreditava que o rei estivesse se
divertindo com as damas da corte. Jamais imaginou que amasse
outra mulher. Pela primeira vez, não sabia como ajudá-lo.
Levantou-se, foi até onde ele estava sentado, esfregou-lhe os ombros
e disse-lhe:
—Preciso pensar no que fazer para ajudá-lo a coordenar as coisas,
meu filho.
Chamou uma de suas damas e a nora e foi passear nos jardins do
palácio. Passou a tarde conversando e discutindo com ela o enxoval
do futuro bebê e animou-a, contando-lhe uma crença popular:
—Dizem que, quando o marido fica muito afastado da esposa, com
certeza é homem. Comigo deu certo. Meu marido, pai de seu
esposo, fez a mesma coisa. Dormia dias fora de casa, pensando nas
decisões que tinha a tomar. Meu filho está seguindo seus passos.
A nora ficou feliz e tranqüila. Então era isso, a gravidez mexia
também com os homens!
—Você verá a alegria dele quando lhe nascer o herdeiro. Tenha
calma, minha querida, tudo isso vai passar. Assim que você der à
luz, deve começar a cuidar-se melhor; afinal de contas, você é a
rainha e uma bela mulher.
No outro dia, logo cedo, Loretta chamou em particular sua
governanta. Ela entrou pálida, e Loretta a fez sentar-se. Usando de


estratégia, levantou-se de mão no queixo e, andando com a cabeça
erguida, parou em frente à mulher:

— Helen, há quantos anos você me conhece?
— Desde que a senhora chegou ao palácio — respondeu a mulher.
— Você servia à rainha, não era?
— Sim, senhora.
— E por acaso minha mãe era governanta aqui?
— Absolutamente, senhora.
— Você foi prejudicada com a minha chegada ao palácio?
— Não, senhora.
— Prejudiquei o rei ou a rainha?
— Absolutamente não, senhora.
Mostrando irritação, Loretta aproximou-se mais ainda:
—E por que você me traiu usando sua filha para destruir o
casamento do rei? Quem você pensa que é? Tem noção do que pode
acontecer com toda a sua família?
A pobre mulher, chorando desesperada, ajoelhou-se aos pés de
Loretta:
—Senhora, eu lhe peço, não tive culpa alguma. Tenho sofrido em
silêncio sem poder fazer nada. No início, proibi minha filha de
encontrar-se com o rei, mas ele é insistente, e os dois começaram a
encontrar-se às escondidas. Nunca lhe desejei mal, minha rainha,
devo minha vida à senhora e ao grande rei, seu marido. Minha filha
é quase uma menina, tem dezesseis anos de idade. Tenha pena dela,
senhora. Sei que ela merece ser punida, mas não com a morte, por
favor, senhora. Loretta respondeu-lhe, séria:
—Helen, você bem sabe que a punição para a ofensa a uma
soberana é pena de morte ou prisão perpétua, não é mesmo? Sua
filha ofendeu gravemente à soberana rainha e esposa do rei, que se
prepara para dar-lhe um herdeiro. Se coloco sua filha em
julgamento perante o povo, com certeza será condenada à morte, e
todos vocês da família serão condenados à prisão perpétua por
cumplicidade. E quem as coisas irá assinar a sentença será o próprio

rei. A voz do povo é a voz do rei, não se esqueça disso. Não existe
nenhum sentimento que o faça recuar diante da decisão do povo.
Não quero ver meu filho sofrer, por isso a chamei até aqui, Helen.
Levarei em consideração o tempo que me serviu e como mãe vou
tentar entender sua posição. Vou dar a quantia suficiente para vocês
partirem. Facilitarei para que todos os documentos necessários
fiquem prontos o mais rápido possível. Quero que vão em paz. Dou

o prazo de oito dias para que saiam. Tomem um navio e vão
embora para onde desejarem. O mundo é grande, e eu lhes darei o
suficiente para começarem vida nova em qualquer lugar. Avise sua
filha para não falar ou demonstrar nada para meu filho ou não
poderei fazer mais nada por vocês. Amanhã, venha falar comigo,
traga todos os documentos da família e receberá o que lhe prometi.
As terras em que vivem são do rei, não é mesmo? Faça uma lista de
tudo que lhes pertence, dos animais aos móveis, e lhes pagarei.
Além dos bens, eu lhes darei a quantia prometida.
No dia seguinte, Loretta despachou todos os documentos, analisou
a lista dos pertences da família, entregou em moedas de ouro o
suficiente para que Helen e os seus viajassem tranqüilos e abrissem
um negócio em qualquer parte do mundo.
—De hoje a três dias vocês devem embarcar. 0 capitão de minha
guarda particular os seguirá até o porto — recomendou Loretta.
A mulher, com lágrimas nos olhos, agradeceu e retirou-se. No dia
da partida, Loretta rumou para beira-mar acompanhada de suas
damas, alegando sentir saudade do tempo em que viajava com o rei.
Na verdade, queria certificar-se de que a família da governanta
estaria embarcando. Ficou satisfeita quando a avistou de longe com
os filhos ao lado.
Procurou entre eles aquela que virara a cabeça do rei. Prendeu a
respiração quando viu chegar uma moça alta, de cabelo loiro
comprido e cacheado, as faces como duas maçãs maduras. Sentiu
um aperto no coração. O filho amava aquela menina, e ela parecia
uma rainha. Se fosse sua filha, não seria tão parecida com ela.

Lembrou-se de que dera liberdade para o filho casar-se por amor.
Seria tão fácil trazê-la ao palácio como sua rainha, mas a ambição do
filho iria fazê-lo sofrer muito...
Será que a conhecera depois de casado? Agora era tarde. Ela
também perdeu um grande amor, e pagou caro por isso.
O navio partiu, e Loretta voltou ao palácio, aborrecida e triste. Seu
filho sofreria, mas acabaria aceitando a realidade.
Quando iniciou o romance com o rei, ele era casado, tinha filhos e,
se na época a rainha exigisse isso do povo, seria julgada e poderia
até ser condenada. Mas a rainha silenciara, não tinha nenhuma
ambição; quem governava era o rei, e ela se deu bem. Agora via que
a nora era idêntica à rainha, que lhe entregara de mão beijada o
marido, a coroa, o trono e os filhos.
Loretta fizera uma promessa ao rei e a cumpria: estava cuidando
dos interesses dos filhos e do reino.
"Meu filho é jovem e bonito. Vou incentivá-lo a fazer uma viagem
para um de nossos castelos e distrair-se. Logo ele acabará
esquecendo aquela menina. Eu também, quando me apaixonei por
Raul, não enxergava nada na vida a não ser ele. Depois, apaixonei-
me por Hari e fiz muitas loucuras, até que finalmente encontrei no
rei meu grande amor. Sei que meu filho ainda vai encontrar o seu,
mas por enquanto não é o momento. Ele é imaturo, ainda não sabe o
que é o verdadeiro amor, e sim as pabcões. Não posso me
preocupar com isso agora. Talvez esteja começando outro drama em
minha vida", pensava ela.


O PESO DA CULPA


Dois dias haviam-se passado desde a partida da governanta. Era
domingo, a tarde estava ensolarada, as crianças brincavam no
jardim, e toda a família real fazia um lanche no salão de refeições
próximo ao jardim. Só o rei não estava presente. Ele saíra logo após

o almoço, dizendo ter assuntos importantíssimos a tratar.
O príncipe Henrique II olhou para Loretta e perguntou:
— Está preocupada?
— Sim, meu filho. Seu irmão e rei não está presente. Tenho falado
pouco com ele nesses últimos dias. Inclusive estava pensando que
vocês poderiam programar uma viagem em família. Ele está
precisando descansar. Fico cuidando dos negócios, e vocês podem
viajar tranqüilos.
— Seria ótimo! Gostaria de afastar-me um pouco do reino. Também
ando cansado e saudoso do campo. Gostaria que também nos
acompanhasse.
Todos pararam diante do barulho que vinha do pátio; as crianças
correram, agarrando-se às mães. Era o rei que entrava, seguido por
alguns cavaleiros. Estava completamente bêbado e esbravejava
palavrões. Loretta empalideceu. Jamais presenciara em família uma
cena como aquela.
O rei aproximou-se dela e, com ar sarcástico, gritou-lhe:
—E então, grande rainha?! Está comemorando mais uma de suas
vitórias? Foi assim que conquistou sua coroa, não?
Expulsando de sua vida aqueles que ameaçavam sua carreira! Está
feliz agora, rainha Loretta? Vou desaparecer deste lixo que
preparou para mim! Fique com seu reino, sua coroa, seus títulos!
A rainha grávida desmaiou e foi amparada por Lucília. O príncipe
Henrique II levantou-se, os lábios tremendo, agarrou o braço do rei
e ameaçou:
—Se abrir a boca mais uma vez, vou esquecer que você é o rei e meu
irmão caçula. Vou arrebentá-lo aqui mesmo na frente de todos!


Respeite sua mãe e sua esposa! Respeite a casa de nosso pai!
Respeite sua família!
Cambaleando, o rei encostou-se numa mureta e, apontando para
Loretta, disse:
—Vocês sabiam que a rainha Loretta foi amante do rei antes de
casar-se com ele? Vocês não se importam de saber que a mãe de
vocês sofreu por causa dela? E agora ela quer impor regras de moral
para mim.
O irmão e os cunhados do rei dispensaram os cavaleiros, dizendo
tratar-se de assunto familiar, e afastaram as crianças e a gestante.
Fecharam as portas do salão. O rei estava sentado. Fizeram-no
engolir uma beberagem contra embriaguez. Suando frio, ele
vomitou e depois continuou rindo e desabafando suas mágoas
contra Loretta. Quando se acalmou, foi o irmão quem começou a
falar:
—Sei que não é o momento. Vou falar mais para a família do que
para o rei, que continua bêbado. A grande rainha Loretta todos
devemos nossa tranqüilidade e nosso sucesso! Quanto ao fato de ter
sido amante do rei enquanto estava casado com nossa mãe, é algo
que não devemos julgar. Meu pai era um bom homem, mas muito
infeliz. Todos nós teríamos terminado como ele, infeliz! Foi Loretta
quem deu vida a meu pai. Minha mãe era uma mulher infeliz, pois
não se casou por amor. Infelizmente essa é a verdade. Ela nada fez
de bom por meu pai, nem por si mesma, nada pelos filhos nem pelo
povo! E não temos o direito de julgá-la. Loretta veio e trouxe
consigo a força e a coragem que meu pai precisava para vencer.
Minha mãe foi respeitada por Loretta; ela nunca lhe causou mal
nenhum. E talvez o rei não saiba que minha mãe desejou a morte de
Loretta. Nem por isso ela deixou de nos proteger, sabendo que
nossa mãe tentava matá-la quando morreu. 0 que Loretta fez por
mim, minha mãe, com todo o amor que me devotava, jamais teria
feito. Todos vocês aqui são testemunhas de que a rainha Loretta
pediu ao rei que escolhesse uma esposa para casar-se e que fosse


por amor. Como todos nós, que quebramos a tradição e fizemos
nossas escolhas, apoiados por ela. Tenho certeza de que ela teria
apoiado o rei se ele tivesse escolhido uma lavadeira do palácio.
Todos o ouviam com respeito; até mesmo o rei ficou em silêncio. Ele
continuou:
—Tudo isso prova a grandeza da alma dessa mulher, que respeita
quem ama, porque sofreu por amor. Ela passou todas as
humilhações que um ser humano pode suportar simplesmente
porque amou. Renunciei à coroa em favor do meu irmão caçula,
acreditando que seguiria os passos da mãe. Renunciei à coroa não
por incapacidade de governar, mas por amor e gratidão à grande
rainha Loretta. Mas, se for preciso, lutarei por meus direitos e pela
honra de meu pai. Não vou permitir que meu irmão desmoralize o
reino de meu pai e da rainha Loretta. — Virando-se para o rei,
acrescentou: — Em seu lugar, eu me envergonharia de ter pensado
mal de sua mãe. Você deveria espelhar-se em sua forma de
governar e assumir a coroa de meu pai como um homem, não como
um moleque malcriado.
O rei fez menção de levantar-se, mas as pernas não o ajudaram. O
irmão continuou:
—Vejam em que estado está nosso rei! Entrou aqui acusando a mãe,
quando o irresponsável é ele mesmo! Que culpa tem sua mãe de
suas paixões? Quem escolheu sua esposa foi sua mãe? Ela está certa
quando pensa em manter a paz em nosso reino. Que importa sua
dor, meu irmão, perto da alegria de todo o povo do reino? Somente
quem é nobre é capaz do que ela fez em nome do reino e dos filhos
e netos de meu pai.
As lágrimas desciam dos olhos de Loretta, enquanto dizia Para si
mesma: "Este é o verdadeiro rei. Fiquei feliz quando ele renunciou
em favor de meu filho e agora vejo que foi um erro.

Antes a coroa de meu marido tivesse sido colocada em sua cabeça".
O rei estava melhor; a beberagem tinha surtido efeito. Ergueu a
cabeça e então, olhando na direção da mãe, disse:


—Minha senhora, mãe e rainha, diante de todos peço-lhe perdão.
Assim como peço perdão a todos vocês. Meu irmão está certo, não
mereço estar sentado no trono de meu pai. Renuncio à coroa em
favor de seu legítimo herdeiro.
Lívido, o príncipe Henrique II respondeu-lhe:


— Ainda acredito em você. Apenas o lembro: um rei necessita ter
paz para governar. Um rei não pode deixar o palácio em busca de
paixões exteriores. Um rei necessita renunciar a muito de si mesmo
por seu povo e sua coroa. Não quero a coroa, quero vê-lo reinando
como meu pai reinou. E ouça bem o que vou dizer: você tem a
mesma sorte que teve nosso pai, pois tem a seu lado uma
verdadeira soberana. O que seria de você sem ela a encaminhá-lo?
O que teria sido de nosso pai e de todos nós sem ela? Estaríamos em
decadência, como a maioria de nossos vizinhos. — Foi até o irmão e
abraçou-o.
— Perdão se o magoei, mas era necessário chamá-lo à realidade.
Loretta foi até onde estava o filho e disse-lhe:
—Vá descansar, meu filho. Amanhã, quando estiver mais calmo,
conversaremos. Não fique magoado comigo. Seu irmão falou tudo
que lhe falaria seu pai.
O rei foi levado para seus aposentos, e Loretta então aproveitou a
família reunida. Estavam todos, menos a esposa do filho. Sentados
ao redor da mesa, aguardavam com respeito e atenção a palavra da
rainha. Ela começou:
—Meu filho não mentiu quando lhes disse que fui amante do rei
antes de casar-me com ele. Mas não fui apenas sua amante e, sim,
alguém que sentia a dor e a necessidade do povo. Mostrei ao rei
muitos caminhos a tomar, pois eu era o povo. Sempre respeitei a
coroa e o lugar da rainha e de seus filhos. Meu romance com o rei
era entre quatro paredes. Em público, acompanhava o cortejo da
rainha como dama da corte, sem demonstrar ciúme ou algo que
comprometesse a moral do monarca. Príncipe Henrique II, sua mãe
não tentou me matar. No dia em que seu pai veio à corte despachar,

sua mãe tentou se aproximar de mim. Ela estava feliz com vocês,
que eram a razão de sua vida. O rei não a amava, mas a respeitava,
e nós duas poderíamos ter sido boas amigas. Pena que eu não
pensasse naquele dia como penso hoje. — As lágrimas desciam
pelas faces de Loretta. — Ela não tentou me matar; sua mãe foi uma
mulher exemplar, e vocês herdaram a nobreza de caráter dela. Eu é
que a levei à morte por ambição e ciúme. Aprendi a amar tudo que
veio de seu pai, não me casei com ele porque era o rei, mas por
amor. Quando o procurei para pedir-lhe ajuda, estava apaixonada
por um de seus cavaleiros. O que aconteceu entre nós não foi
programado por mim. Jamais tive más intenções para com o rei.
Nosso amor foi real tanto quanto amo cada um de vocês. Prometi a
mim mesma que lutaria para que todos tivessem oportunidade de
escolha para amar e ser felizes. A Igreja me puniu porque amei um
de seus filhos e casei-me com ele. Logo após nosso casamento, ele
foi excomungado, e eu, condenada à prisão perpétua. Não precisei
cumprir a sentença pela bondade do rei, que era primo de meu
marido, o visconde Raul. Incentivei o rei a cortar relações com a
Igreja e expulsar todos os padres e católicos que não aceitavam
nossa nova proposta de vida. E, confesso, não estou arrependida.
Até que me provem o contrário, não confio na Igreja nem em seus
seguidores. Formamos e somos uma família feliz. Sofri muito com a
morte de meu marido, mas aqui estou cumprindo a promessa que
lhe fiz no leito de morte: cuidando de vocês e do reino. O rei é
muito jovem, e, quando somos jovens, estamos propensos a cometer
erros. Ele está atravessando um momento difícil em sua vida, e
todos vocês devem ajudá-lo a superá-lo. Logo nascerá seu herdeiro,
e a rainha necessita de apoio. Convidem o rei a fazer uma excursão
com a família. Ficarei com minha nora, estarei a seu lado quando
nascer o herdeiro do trono e enviarei um mensageiro anunciando o
nascimento. Discutam os roteiros e convidem o rei. Estamos em
uma época muita boa para ir ao campo e ao mar.


Ela levantou-se, pedindo licença para ir descansar. Todos se
levantaram também. O príncipe Henrique II correu ao encontro
dela, tomou-lhe as mãos e, beijando-as carinhosamente, disse-lhe:
—Meu pai foi realmente um grande rei porque tinha você a guiá-lo.
Perdoe meu irmão e rei, ele não sabe o que diz. Quanto à minha
mãe, não se sinta culpada. Se em outra vida eu puder escolher uma
mãe, certamente será você que desejarei.
Loretta retirou-se com os olhos cheios de lágrimas. Trancou-se em
seus aposentos e ficou meditando sobre sua vida até então. Uma
sensação de angústia oprimia-lhe o peito. Ficou olhando para o
vazio, sem encontrar razão nenhuma para continuar vivendo.
Quanta falta fazia seu marido! Ao seu lado ela se sentia gigante,
nada temia, pois tinha o amparo de um grande homem. Seu filho
reinava bem, mas ultimamente deixara-se levar pelo coração e
abandonara o povo nas mãos dela.
Adormeceu e começou a sonhar que estava no castelo em que
nascera, correndo e brincando com seu cão. O pai chegava
acenando-lhe, e a mãe vinha correndo para abraçar o marido e
beijar seu rosto. Abraçados, os três atravessavam o jardim e
entravam no enorme salão do castelo. O pai entregava-lhe uma
boneca de louça pintada. Ela dava pulos de alegria.
Acordou e ficou imóvel por instantes. Nunca mais sonhara com os
pais; até havia esquecido o rosto do pai, mas o vira ali no sonho, tão
vivo e perfeito. Sua mãe, quantas saudades... "Ó, minha mãe, onde
está você? Naquele tempo eu era tão feliz, tão pura e inocente! O
que fiz de minha vida? Hoje apenas o vazio e o remorso ocupam
meu coração."
Virou-se para o outro lado e fechou os olhos. Logo adormeceu e
voltou a sonhar. Agora estava no castelo D'armis, via Raul de longe.
Ele estava lindo, acenava-lhe sorrindo e desaparecia.
O tio estava sentado numa cadeira, e a mãe, em outra. Os dois
olhavam para ela sem nada dizer. O Senhor Manuel vinha com uma
rosa vermelha na mão, que entregava para ela, dizendo a sorrir:


—Senhora, Raul está vivo, ele pode ajudá-la.
Acordou transpirando, sentou-se na cama e pensou: "As emoções de
hoje deixaram-me com os nervos à flor da pele. Ficou uma sensação
de saudade em meu coração". Que bom ter sonhado com o rosto
amado da mãe. Tinha muita afeição pelo tio também. Que pena que
não os abraçara no sonho...
No dia seguinte, estava muito abatida. Nunca sentira tanta tristeza
em toda a vida; tinha um vazio enorme dentro de si. Era como se o
que vivera estivesse se resumindo a nada. Esperaria as coisas
acalmarem-se para tomar uma decisão. Não permitiria que o filho
acabasse com o que seu marido e ela juntos haviam conquistado.
Estava descendo as escadas, quando ouviu atrás de si alguém que a
chamava:
—Mãe! Podemos conversar?
Fazia muito tempo que não ouvia o rei chamá-la de mãe; este a
tratava por senhora ou grande rainha.
Parou por uns segundos antes de virar-se, altiva e elegante como
sempre.
—Claro que podemos conversar, meu filho!
Ele a seguiu até a entrada da sala e ordenou aos cavaleiros que
faziam a guarda pessoal:
—Estou em audiência com minha mãe e não quero ser interrompido
por ninguém.
Entraram, e o rei fechou a porta.
—Sente-se em seu lugar, minha mãe — pediu.
Loretta assim o fez. Ele ajoelhou-se diante dela, deitou a cabeça em
seu colo e começou:
—Minha mãe, perdoe-me! Não estou me sentindo digno de estar em
sua presença. Nem mesmo sei se teve alguma participação no
desaparecimento da família de Mary, apenas sei que errei com você.
Errei muito, minha mãe. Você me deu toda a liberdade de escolha, e
eu escolhi minha esposa, que está esperando meu filho e herdeiro.
Ganhei com esse casamento uma coroa, uma boa esposa e o respeito


de nosso povo. E o que fiz? Deixei-me levar pelas ardentes paixões
de um homem comum. Conheci Mary e enlouqueci de paixão. Meu
amor era tanto que até ontem trocaria o trono e até mesmo minha
vida por ela, disposto Que estava a fazer qualquer coisa para tê-la
ao meu lado. E ela, por sua vez, jurou-me enfrentar tudo por mim,
mas agora sei que não eram verdadeiras suas palavras. Nada
enfrentou por mim, mas você, sim! Enfrentou tudo e todos para
ficar com meu pai. Ela simplesmente desapareceu sem ao menos me
deixar um adeus. Vou dedicar-me à minha esposa e rainha,
trabalharei com afinco e responsabilidade para desenvolver o reino,
e meu filho será o maior rei do mundo, você verá! Aqui, ajoelhado a
seus pés, vai levantar-se um novo homem, um novo rei! Só preciso
ouvi-la dizer: você está perdoado!
Ela afagou os cabelos do filho e, olhando dentro dos olhos dele,
respondeu-lhe:

— Você está perdoado, meu filho! Estarei sempre ao seu lado para
ajudá-lo em tudo.
— Mãe, a casa em que vivia a família de sua governanta é uma
grande vivenda. Hoje mesmo expedirei uma ordem de demolição e
mandarei construir no local um enorme cemitério popular. Ali
ficarão enterrados meus sentimentos por Mary. Nunca mais quero
ouvir falar dela. Vou dedicar-me totalmente à minha esposa de hoje
em diante.
Loretta abraçou o rei, orgulhosa. Aquele, sim, era seu filho!
—Faça tudo como quiser, meu filho, e pela última vez falaremos o
nome de Mary. Falei com a mãe dela a respeito do romance de
vocês. Naturalmente que a pressionei, pois precisava saber até que
ponto a moça o amava, mas não houve nenhuma resistência: eles
aceitaram partir sem ao menos protestar. O amor, quando é
verdadeiro, nos torna tolos, irresponsáveis e inconscientes, e você
sabe disso porque amou. Somos capazes de matar e morrer, de
enfrentar tudo e todos. Infelizmente Mary não o amava tanto assim

a ponto de matar ou morrer, ganhar ou perder, como eu mesma fiz
por amor.
Ele sorriu.
—Mãe, orgulho-me de você! Matar ou morrer! Ganhar ou perder!
Bem, aqui colocamos um ponto final neste nome: Mary.
À noite a família real reuniu-se para tratar da excursão. O rei, então,
pronunciou-se:
—Fico no reino com minha esposa. Quero ver meu filho e herdeiro
nascendo. Minha mãe vai com vocês. Já me diverti demais enquanto
ela trabalhava. Agora é minha vez de assumir as responsabilidades
e dela de descansar.
No dia seguinte, à tarde, a nora de Loretta, corada e radiante,
chamou-a em seus aposentos.


— Minha sogra, nem acredito no que está acontecendo! O rei está
me tratando como nunca me tratou, sendo gentil e atencioso
comigo. Pediu-me perdão por ter-me deixado só. Creio que ouviu
seus conselhos. Hoje terá um jantar de gala em homenagem a vocês,
que estão partindo. Ajude-me, por favor. O que acha que devo
vestir? E meu cabelo, deixo-o solto ou o prendo? Vou sentar-me ao
lado de meu marido esta noite e pela primeira vez falarei em
público. Você pode me ajudar?
— Claro, minha filha. Você deve usar esse vestido preto com decote;
ele vai disfarçar bem a gravidez. Solte o cabelo também.
Loretta sentou-se e puxou a nora para perto de si.
—Ouça o que vou lhe dizer: o coração de meu filho está livre para
você conquistá-lo. Procure mostrar-se a ele como mulher. Deixe
todos os preconceitos de lado, atire-se em seus braços e faça dele
um homem feliz. Mesmo grávida, você está linda! Antes de ser sua
rainha, seja sua mulher. Conquistei o pai dele porque fui mulher
antes de ser rainha.
Loretta fantasiou muitas coisas para ajudar a moça a quebrar os
preconceitos que lhe haviam colocado na cabeça.

A DOR DA SEPARAÇÃO


Mary e sua família estavam em alto-mar havia mais de trinta dias.
Logo nos primeiros dias de viagem ela caiu doente, vomitava até
mesmo a água que engolia, não conseguia se levantar, estava pálida,
fraca e totalmente desfigurada. O médico de bordo avisou a seus
pais:

— Talvez ela não resista até o fim da viagem.
A mãe lutava e insistia para que Mary tomasse uma canja rala, que
ela às vezes engolia, mas logo jogava para fora.
Foi então que uma senhora, penalizada com a cena, lembrou-se de
que uma vez vira a mãe misturar água com açúcar e sal e dar ao
irmão que vomitava tudo o que engolia.
Ajudou a preparar a mistura e levou-a até Mary, colocando
colheradas em sua boca. No dia seguinte, a moça parecia melhor.
Continuou tomando a mistura por três dias e começou a engolir a
canja sem vomitar. Aos poucos foi melhorando, conseguindo
sentar-se. De vez em quando ainda sentia enjôos, que logo
passavam.
Já fazia dois meses que viajavam, e o capitão anunciou que, não
havendo nenhum contratempo, em três ou quatro dias estariam
aportando em Ilhéus.
Mary estava no convés, olhando para o céu completamente azul-O
mar parecia-lhe um manto verde. Ouviu o que dissera o capitão: se
não houvesse nenhuma tempestade repentina, em três °u quatro
dias chegariam a Ilhéus. Como seria o novo país? Como seria sua
vida dali em diante? Seu coração estava dilacerado. Amara o rei e,
agora, sentia-se morta e vazia por dentro.
Dois dias após o capitão ter dado a boa notícia, pegaram uma
tormenta que desviou a rota do navio. Todos já estavam
acostumados a ouvir estas palavras: 'Todos se recolham a bordo até
segunda ordem!". Correram para os respectivos aposentos,
segurando-se para não cair, tanto que balançava o navio.

Tinham passado por mais de dez tormentas, algumas durando até
dois dias. Parecia um pesadelo que nunca terminaria. Muita gente
morreu e foi jogada ao mar. Algumas pessoas viviam de cabeça
baixa ou falavam sozinhas; outras pareciam loucas.
No sétimo dia, receberam a boa notícia:
—Atracaremos dentro de cinco ou seis horas. Arrumem seus
pertences. Hoje ninguém desembarca, mas a partir de amanhã,
assim que recebermos a autorização da capitania, começaremos o
desembarque em grupos. — E o capitão continuou instruindo todos:

— Deixem seus documentos separados, todos vão assinar o
desembarque. Cuidado para não esquecerem nada ao deixarem as
cabines.
Foi um alvoroço só, todas as pessoas pareciam ter enlouquecido.
Alguns gritavam, outros choravam, muitos se abraçavam. A mãe de
Mary disse-lhe:
—Filha, chegamos! Se Deus quiser, vamos recomeçar nossa vida e
seremos felizes.
Mary continuava imóvel. Era como se nada mais tivesse
importância. Se aquela viagem nunca mais terminasse, pouco lhe
importaria. Estava morta na alma. Como iria viver sem aquele que
era sua própria vida? Como fora tola em sonhar que poderia viver
por todo o sempre recebendo o amor de um rei? Ela nada queria
dele, a não ser seus beijos, seus abraços...
O navio ancorou em segurança, e os marinheiros desceram em
pequenas embarcações para ir até a capitania do porto buscar a
ordem de desembarque e os veículos apropriados para o transporte
das pessoas e bagagens.
No outro dia cedo, começaram a desembarcar. Logo chegou a vez
da família de Mary. Todos assinaram o desembarque, recebendo
um documento que concedia um mês de pensão em uma
hospedaria.

Chegando em terra, Mary olhou ao redor: havia muita areia e
plantas diferentes das que existiam em seu país. Admirou-se com os
coqueirais. Nunca tinha visto coisa mais bela.
Uma vez acomodados na pensão, o pai logo providenciou um
buraco no chão para enterrar sua pequena fortuna, deixando apenas

o suficiente para trocar por dinheiro local e arcar com pequenas
despesas.
Descansaram no primeiro dia. O pai de Mary saiu com o filho mais
velho para dar uma volta nos arredores e sentir a terra. Voltaram
encantados com o que viram: milhares de pés de café, frutas e
peixes em abundância. Trouxeram um coco em pedaços, que todos
experimentaram. Gostaram da novidade.
Quinze dias depois o pai de Mary comprou uma fazenda de café e
cacau com algumas cabeças de gado, cavalos, jumentos, galinhas,
porcos e carneiros. A fazenda, já pronta e produzindo, tinha um
grande pomar com frutas diversificadas e um rio que passava no
meio dela. Era um verdadeiro paraíso. A única coisa que não existia
ali era uma casa boa, observou ele.
A família mudou-se para a fazenda, levando móveis e utensílios
domésticos. Logo o pai de Mary começou a ser chamado de coronel.
Escravos também foram incluídos na venda da fazenda.
A dona da propriedade, uma viúva, desfez-se de tudo. Não tinha
vendido ainda a fazenda por falta de comprador, até que apareceu
aquele coronel estrangeiro cheio de dinheiro. Era o que comentava o
povo da região.
A menstruação de Mary, desde que haviam embarcado, não tinha
dado sinal. Seus seios cresciam, e sua barriga ficava saliente.
Percebendo, a mãe chamou-a para uma conversa em que a moça
confessou ter-se entregado ao rei. A mãe colocou as mãos no rosto.
— Meu Deus, que desgraça! O que vamos fazer? Vou conversar com
seu pai e pensar no que fazer. Pelo que posso ver, você deve estar
no quinto mês.

Ao saber da notícia, o coronel, como já era conhecido o pai de Mary,
ficou sério e pensativo por momentos e depois disse para a esposa:
—Helen, seremos avós de um príncipe! Naturalmente ele nunca vai
saber que é filho de um rei, mas nós sabemos, não é mesmo? Vamos
contar para o povo da terra que Mary ficou viúva. Ninguém nos
conhece mesmo, não é verdade? Chame-a até aqui.
Assim, logo se espalhou a história de que a linda filha do Coronel
Arquimedes era viúva. Por isso haviam deixado o país de origem:
pela tristeza da filha que perdera o marido. Aquela gente simples e
rude, como observou o coronel, acreditava em tudo, e Mary
conquistou a simpatia de todos.
Mary deu à luz um lindo rebento. Não podia conter as lágrimas
quando via naquele rostinho a imagem do rei, de seu grande e
inesquecível amor. Seus pais também se emocionaram. No fundo
tinham orgulho: "Este menino é um príncipe! É o filho do rei, é
nosso neto".
Consultaram Mary: como desejava chamá-lo? Ela ficou pensativa,
olhando o rostinho inocente do filho.
—Vou chamá-lo de Henrique — decidiu. Os pais
entreolharam-se.
—Que seja chamado de Henrique, se este é o seu desejo —
consentiu o coronel.


O NOVO HERDEIRO


A família real estava na Grande Ilha, divertindo-se. Os filhos da
rainha quiseram visitar o local em que a mãe desaparecera, mas
Loretta não quis acompanhá-los. A tarde estava fresca e tranqüila;
as águas da ilha, verdes, contrastavam com a mata que a cercava.


Foi a pequena Lucília II que avistou os cavaleiros que se
aproximavam e avisou à avó:
—Acho, minha avó, que teremos visitas. Olhe lá! Loretta reconheceu
serem os cavaleiros do rei e alegrou-se.
Abraçando a pequena princesa, disse-lhe:
—Acho que são notícias de seu tio e de seu primo, que nasceu.


— Ah, vovó, então teremos de voltar?
— Sim, teremos.
Os cavaleiros desmontaram e, após cumprimentar a rainha, deram-
lhe a notícia: nascera o príncipe, com quase quatro quilos, forte e
saudável. A rainha passava bem, e o rei os aguardava. Dali quatro
dias teria de apresentar o filho e futuro rei ao povo. A caravana
trazendo a família da rainha para conhecer o futuro monarca dos
dois reinos já devia estar chegando.
Após dar ordens aos criados para acomodarem e servirem os
cavaleiros, Loretta ordenou também que todos começassem a
preparar a viagem da família para o dia seguinte. Precisavam
chegar a tempo de organizar seus trajes e estar descansados para a
festa.
No fim da tarde, o restante da família retornava do passeio.
Comemoraram, brindando entre si, o nascimento do príncipe.
Todos concordaram em partir no outro dia, logo cedo, para que à
noitinha estivessem chegando ao palácio.

Ao entrar no palácio, Loretta avistou o filho. Parecia mais magro,
mais alto e agora era a cara do pai. O cabelo estava comprido, caído
até os ombros, a barba comprida também. Abriu os braços para o
filho e abraçou-o sem palavras. Seus olhos estavam marejados.
—Mãe, que saudade de você! Aqui está tudo bem! Gostou da minha
nova aparência? Acho que a barba me deixou mais amadurecido.
—Você está parecido com seu pai. Deixou a barba e o cabelo
crescerem de propósito para ficar parecido com ele?


—Para ser sincero, acho que sim.
—Terei de esperar mais três dias para conhecer meu neto e rever
minha nora?
—Você sabe que não. Ainda é a grande rainha.
Loretta mal podia esperar. Após limpar-se da viagem, entrou no
aposento real e tomou o neto nos braços. As lágrimas, de alegria
correram livremente por seu rosto.
Era o fruto de seu amor, o filho de seu filho, o futuro rei! Como teria
sido bom se seu marido estivesse ali... Seu neto era lindo. Foi até a
nora e beijou-lhe a fronte.


— Minha sogra, sou a mulher mais feliz do mundo! — disse ela,
sorrindo de alegria. — Meu marido e rei tornou-se o melhor dos
maridos, mudou de um dia chuvoso para um de sol radiante!
— Que bom, minha filha! E você tem cooperado com ele, não é
mesmo?
— Sim, minha sogra, tomei seus conselhos. Interessei-me em saber
de tudo que se passa no reino, e ele muitas vezes pede minha
opinião para alguns assuntos da corte. Estamos vivendo em plena
harmonia. A vida do rei agora se resume em aumentar nosso
prestígio, incentivando o desenvolvimento do reino. Você vai ter
muitas surpresas com os projetos ousados e bem estruturados de
seu filho. Realmente ele herdou sua astúcia para reinar.
A VIDA TOMA NOVOS RUMOS

Em Ilhéus, o império do café e do cacau estava em alta. Todos os
produtos eram exportados para a Europa, que agora tinha o


comércio aberto. O Brasil destacava-se com a chegada dos
imigrantes estrangeiros.
O Coronel Arquimedes era um dos mais respeitados exportadores
do país e imperava no comércio. Tinha adquirido várias fazendas, e
seu nome brilhava entre os comerciantes estrangeiros. Seus
produtos eram os melhores. Havia trazido a cultura e a experiência
de sua terra natal, aplicando-as com sucesso em Mus, como os
nativos pronunciavam.
Sua esposa era uma dama fina que ensinava boas maneiras e
etiqueta às damas da sociedade. Nunca revelara para ninguém que
tinha sido governanta de uma rainha. As vezes, relembrava aquele
tempo e até achava graça, pois, se contasse para alguém daquela
terra, a pessoa iria rir dela, não acreditando que tivesse estado lado
a lado com rainhas e reis.
Olhava o neto, que brincava com outros garotos. Com oito anos de
idade, era a cara do pai, tinha olhos verdes, as mesmas covinhas no
rosto e o cabelo loiro. Se contasse que ele era um príncipe, diriam
que era louca.
Mary agora era uma moça comprometida. Havia dois anos que se
casara com um nobre fazendeiro e comerciante local. Teve uma filha
que em nada se parecia com ela ou o irmão, tendo puxado ao pai:
morena, com cabelos negros e encaracolados. O filho não quis
acompanhá-la quando se casou, e ela achou por bem não forçá-lo.
Afinal de contas, os avós tinham sido os pais que ele conheceu.
Seu marido iria viajar para a Europa, a fim de investir e expandir os
negócios por lá, pois recebera uma proposta irrecusável. Mary ficou
apreensiva só de pensar que ele passaria praticamente oito meses
por lá. Quando ficou sabendo para onde se dirigia, seu coração
pareceu parar.
Nunca contara a verdade ao marido, pois a família tinha feito um
juramento: suas vidas haviam ficado para trás. Falavam que tinham
vindo das montanhas, onde eram fazendeiros. Jamais
pronunciavam o nome dos monarcas ou da corte, nem mesmo entre


eles. E, assim, todos esqueceram ter um dia conhecido a corte
daquele país.
O esposo, apaixonado por ela, jurou que faria tudo para retornar o
mais breve possível.
—Vou sentir como está o comércio e, se tudo correr bem, como
penso, na próxima viagem levarei você comigo. Deixaremos a
pequena Larisse aos cuidados de sua mãe. Fique tranqüila, vou me
cuidar. Sei de sua preocupação quanto à viagem, mas hoje as
embarcações estão bem equipadas, e as rotas, menos curtas. —
Continuou falando alegremente: — A viagem que vocês levaram
quase três meses para fazer, hoje, com a nova rota e as novas
embarcações, se tira em até vinte e cinco dias. Logo estarei de volta,
você vai ver! Vou observar tudo que achar de interessante e
implantar por aqui. Fale-me, o que quer de sua terra? Quero dizer,
de seu país... Quem sabe se um dia não poderemos ir até lá, não é
mesmo?
Mary, procurando disfarçar o abalo que sentia por dentro,
respondeu-lhe:
—Nada, meu amor. Aliás, quero sim! Aprecie tudo na corte de meu
país para me contar. Quem sabe você até chegue a ver a família real
de perto. Veja se todos são bonitos. Não quero nada pessoal, apenas
que volte logo.
Ele abraçou-a, apaixonadamente.
—Não sei como vou suportar ficar tanto tempo longe de você, meu
amor! Mas é necessário. Juro que vou fazer o possível para encerrar
os negócios por lá o quanto antes e voltar correndo para casa.

Enquanto isso, no reino de Loretta, o país passava por grandes
mudanças.
O rei assinara um decreto libertando todos os presos julgados pela
Igreja e por crimes passionais. Cada caso fora analisado em
separado.


Foi construído um novo presídio de segurança máxima, mais
próximo do reino, e o antigo, transformado em escolar militar. O
povo aplaudia o rei e erguia estátuas e mais estátuas a Loretta. Os
poetas faziam nobres versos de amor e de coragem inspirados nela.
O rei também assinou um decreto dando liberdade de culto, ou seja,
todas as pessoas poderiam adorar seus deuses livremente, cada
uma a seu modo. O único culto proibido era o católico; havia uma
espécie de guerra santa entre Roma e o reino de Loretta. Ela
mantinha sua palavra contra os padres, continuava chamando-os de
corvos negros.
A nação crescia tanto na cultura quanto no comércio, e ultrapassava
os grandes países do baixo e alto continentes. O rei herdara o trono
vizinho por morte de seu sogro, juntara a riqueza dos dois reinos, e
incentivara o progresso cultural e a educação.

O PARAÍSO PERDIDO

Desativado o presídio do outro lado do continente, foi então
descoberta uma faixa habitada por índios. Segundo o depoimento
do príncipe e comandante da cavalaria real, eram civilizados.
O cacique da aldeia era um homem culto e falava corretamente o
idioma do país. Era uma aldeia natural em sua origem, mas
altamente desenvolvida, rica e bem estruturada. A vida daqueles
indígenas era um grande exemplo, pois viviam dos próprios
recursos.
Em matéria de higiene e saúde, eram bem instruídos e prevenidos.
O cacique ensinava ao povo a medicina e a agricultura. Todos
entendiam sua língua e viam nele um verdadeiro deus. Foi o que
relatou o príncipe para o rei e irmão.


O monarca ficou impressionado com a descoberta. Como um
cidadão tão nobre foi parar entre os selvagens?
Logo seria investigada e incorporada mais uma civilização ao reino
do filho de Loretta.
Após vários estudos, como a última palavra era sempre de Loretta,
em audiência secreta com o filho a rainha disse-lhe:


— Meu filho e rei, pensemos juntos no seguinte ponto: essa aldeia é
nosso santuário. Devemos conhecê-la e protegê-la das invasões
inimigas. Vamos conservar nossos índios e tirar desse achado tudo
o que necessitamos para manter a dignidade do reino.
O rei olhou para a mãe cheio de admiração e respeito. Não ora a toa
que o pai se apaixonara por ela; realmente ela era uma mulher
muito inteligente e tinha uma visão política de causar inveja a
muitos homens.
—Minha mãe e grande rainha, gostaria de ir na primeira expedição
real para fincar nossa bandeira no território indígena?
Ela sorriu.
— Sim, meu filho e rei, eu gostaria! — respondeu, cheia de
entusiasmo.
— Vamos traçar nossos planos e preparar a expedição. Você será a
madrinha dessas terras.
Quatro meses depois, Loretta preparava-se com a comitiva.
Acompanharia o rei na primeira expedição, quando seriam
definitivamente reconhecidas e batizadas as terras habitadas pelos
indígenas. Eles seriam protegidos e isolados da civilização,
continuariam livres do contato com o mundo exterior.
Loretta estava de fato curiosa em conhecer o tal cacique. Como ele
havia ido parar naquela aldeia que até então era totalmente
desconhecida para o mundo? Seria algum marinheiro que se
perdera durante alguma viagem e fora parar por lá? "Bem", pensava
ela, "só saberei quando falar com ele."

Com todo o luxo e conforto que atendem às grandes
personalidades, formou-se a comitiva. Muitas damas e cavaleiros
acompanhariam os soberanos na expedição.
A comitiva era composta pelo rei, a rainha Loretta, o comandante
das tropas de terra e mar, que era o próprio irmão do rei, todos os
generais altamente qualificados para o posto que ocupavam e
Lucília II — a princesa insistira tanto com a avó Loretta de que
gostaria de ver os índios e conhecer a aldeia que conseguiu seu
intento. Loretta fazia tudo o que ela carinhosamente lhe pedia.
Depois de oito dias de viagem, a comitiva ancorou no paraíso
perdido da civilização. A faixa de terra que ocupava a aldeia
formava um coração; vista do alto do navio, era algo fantástico.
Logo os marinheiros tomaram as embarcações que os deixariam em
terra firme, a fim de preparar o cacique para a chegada do rei e de
sua família.
Cinco horas mais tarde, os marujos retornaram com as boas-vindas
do cacique da aldeia. Ele indicou-lhes o local apropriado para
montarem os acampamentos. Só fazia uma exigência: que todos
usassem máscaras para entrar na aldeia, assim como os indígenas
iriam usá-las para receber a comitiva do rei. Isso era uma prevenção
contra doenças trazidas de fora.
O rei ficou encantado com a preocupação do cacique em proteger a
aldeia. Receberam as máscaras feitas de couro e tecido de algodão,
limpas e esterilizadas, o suficiente para toda a comitiva. 0 rei então
ordenou:
—Quero todos os homens em terra montando as cabanas que nos
servirão de abrigo. Não se descuidem de nada e procurem instalar
da melhor maneira possível as cabanas das mulheres e de suas
damas. Que nada lhes falte; providenciem o melhor. Amanhã, quero
estar pisando em terra, acompanhado por minha mãe. — Ainda
recomendou: — Todos de máscara! E não saiam da área demarcada
pelo cacique.


No outro dia, após o almoço, os soberanos estavam chegando em
terra. Do outro lado, viam-se vários índios pintados com tintas que
imitavam aves da terra e enfeitados com penas.
A princesa Lucília II estava encantada com o que via: entre os
homens havia várias mulheres que usavam tangas de penas e couro
de leopardo, tinham o rosto pintado, eram todas morenas e de
cabelo liso e brilhante até a cintura. Tinham os seios nus, mas
pintados de um colorido que variava de uma para outra. Os homens
eram morenos e tinham cabelos negros que desciam até o pescoço,
usavam tanga de couro de leopardo e alguns carregavam várias
tiras de couro cruzadas pelo corpo. Todos estavam pintados, e
alguns usavam penachos coloridos que variavam entre curtos e
compridos. Tinham arco e flecha nas mãos. Homens e mulheres
usavam máscaras.
Na frente dos guerreiros e guerreiras, que eram mais de quinhentos,
destacava-se um índio.
—Aquele é o cacique — alguém informou.
Era o mais alto de todos, usava também uma tanga de couro de
leopardo, trazia várias tiras de couro cruzadas no tórax e um
Penacho feito de penas de todas as cores, que se arrastava até os
Pés. Tinha o resto do corpo tatuado com desenhos de tigres, aves,
Peixes e serpentes.

0 cacique também usava máscara, mas não trazia nenhuma arma na
mão. Acenou para a comitiva real, e logo todos se aproximaram. O
rei respeitosamente lhe estendeu a mão, e Loretta repetiu o gesto do
filho. Estava tensa e preocupada; nunca havia passado antes por
uma situação daquelas.
O cacique falou alguma coisa para os guerreiros, e eles começaram a
cantar e dançar algo típico. Logo todos foram convidados para
sentar-se à sombra, em pedras cobertas de couro.
Foi servido um vinho de frutas, conforme explicou o cacique, em
taças feitas de tronco de árvores.
Tudo era muito bem-feito, e a higiene, a marca daquele povo.


Foram também oferecidos vários frutos naturais da selva e comidas
típicas da aldeia à base de milho e mandioca. Tudo era servido em
bandejas, pratos e copos feitos de madeira e da casca dos próprios
frutos.
Loretta e o rei estavam boquiabertos com o que viam. O cacique
comunicava-se em dialeto e gestos com seus guerreiros, que
permaneciam cercando a comitiva, prontos para atender às ordens
do chefe.
Passaram a tarde conversando amistosamente. O cacique convidou
os soberanos e sua comitiva para uma refeição, após o que seriam
homenageados com os rituais da tribo.
Designou uma das guerreiras, Lua de Prata, para acompanhar e
ajudar as mulheres, e um dos guerreiros, Raio de Sol, para orientar
os homens.
Raio de Sol e Lua de Prata mostraram-se gentis e guiaram as
pessoas até os acampamentos. Falavam a língua da corte.
Perguntaram se alguém precisava de alguma coisa e colocaram-se à
disposição de todos.
Encantada, Lucília II perguntou à Lua de Prata:

— Quantos anos você tem?
— Dezesseis. Sou filha do cacique. Lucília II ficou espantada e com
medo de dizer o que pensava,
mas prosseguiu:
—E Raio de Sol, tem quantos anos?
— Ele tem vinte e três anos, é um grande guerreiro e meu irmão.
— Como você aprendeu a falar tão bem nossa língua se nunca foi à
corte?
—Meu pai nos ensinou. Todos aqui entendem o que ele fala. A noite
chegava. A lua despontou no horizonte, brilhando
entre as árvores. Os acompanhantes retornaram aos acampamentos,
conforme combinado. Lucília II quase não reconheceu Lua de Prata,
que trazia uma guirlanda de flores na cabeça, vestida com pele de

leão, e calçava sandálias de couro amarradas no tornozelo. Estava
linda, apesar de não mostrar o rosto.
Saíram e encontraram os homens, que já estavam à espera das
mulheres. Raio de Sol vestia uma calça de couro de búfalo e um
blusão de couro aberto, que deixava ver o tórax. Usava sandálias de
couro e tinha os cabelos negros jogados para trás, deixando Lucília
II encantada, mesmo sem ter idéia de suas feições.
Foram levados até uma espécie de túnel iluminado por tochas, de
onde saíram para um enorme salão coberto de folhas naturais. As
mesas, feitas de madeira e enfeitadas com folhas de bananeiras,
estavam repletas de carnes assadas, peixes, camarões, frutos e
vários outros pratos feitos com mandioca e milho. Havia tonéis de
vinho e cerveja feitos na aldeia.
A área perdia-se de vista. O grande cacique e toda a tribo vestiam
peles de animais e calçavam sandálias de couro. Havia bancos de
madeira e de pedra, redes feitas de couro e esteiras de palha à
disposição de todos. Agora havia milhares de índios. Uma fogueira
foi acesa no centro, e as festividades começaram.
O cacique, elegantemente vestido de couro, era o único que usava
um penacho composto de penas das mais variadas cores que descia
até as costas. Continuava usando, assim como os outros, a máscara.
"E uma pena não poder ver seus rostos", pensava Lucília II.
Raio de Sol fez uma demonstração, montado num animal, Jogando
flechas e laços. Em dado momento, sua máscara caiu, e Lucília II
pôde então ver seu rosto. Era o homem mais bonito que Ja vira em
toda a vida. Desejou ficar ali para sempre ao lado dele.

Rapidamente ele recolocou a máscara e continuou demonstrando
suas habilidades de guerreiro. "Esse homem é um pássaro na
agilidade; não tenho um só com sua capacidade", pensou o rei.
Várias foram as demonstrações dos homens. Logo foi anunciada a
apresentação das guerreiras e, para a surpresa dos monarcas, elas
mostraram técnicas de defesa pessoal. Lua de Prata arrancou o traje


de pele de leão, ficando de tanga, e lutou na arena com toda sua
graça. Era uma verdadeira pantera.
O rei estava espantado com a organização. Reconheceu que o
cacique era um verdadeiro rei; sabia comandar seu povo. Ali,
escondido no meio da selva, havia um verdadeiro exército
composto por homens e mulheres. Henrique III não tirava os olhos
de Lua de Prata, parecia hipnotizado por ela. Os guerreiros
atiravam para o alto uma fruta, e ela acertava-a no ar com a flecha.
Foi um grande espetáculo a apresentação dos indígenas, que em
seguida começaram a dançar. Mais uma vez, Lua de Prata destacou-
se por seus graciosos movimentos.
O rei desejou no íntimo ver o rosto daquela moça que tanto o
impressionara, mas sabia ser impossível. Afastou tal pensamento
imediatamente. Estava ali trabalhando e não devia deixar-se levar
pelas emoções. Mas seus olhos pareciam não querer obedecer e
acompanhavam todos os movimentos de Lua de Prata. Olhou para

o alto, viu a lua brilhante que se estendia sobre eles e pensou: "O
nome que lhe deram é exatamente o que você parece, Lua de
Prata...".
Todos beberam e comeram à vontade. Foi uma grande festa.
Lucília II não conseguia desprender os olhos de Raio de Sol. Ele
estava bebendo e brincando com algumas guerreiras, e ela sentiu
inveja das moças que estavam com ele. Eram todas tão bonitas e
sensuais... Apesar de não ter visto o rosto delas, sabia que eram
lindas.
Lua de Prata divertia-se com os jovens guerreiros enquanto o rei
conversava com o cacique, mas não deixava de reparar nela e de
sentir ciúme dos jovens que a cercavam. Acertaram, então, que
passariam oito dias na aldeia e discutiriam os assuntos políticos nos
próximos dias, para que o rei apreciasse e conhecesse o lugar.
Todos os dias o Conselho da tribo se reunia, formado pelos mais
velhos da aldeia e os conselheiros do rei. Entre eles havia uma única
mulher: a rainha Loretta. No quinto dia, o cacique reuniu seu povo


e falou-lhe em sua língua. Todos fizeram um movimento de
consentimento com a cabeça.
Uma bandeira com o brasão real e outra com as cores do país foi
hasteada, e todos olhavam com simpatia para elas. O rei e o cacique
assinaram um acordo diante dos dois Conselhos. O cacique apertou
a mão do rei e a de Loretta. Ao tocar a mão do cacique, Loretta
sentiu um arrepio. Não soube por que, mas teve a leve impressão de
conhecer aquele aperto de mão.
Todos continuavam usando as máscaras, que cobriam todo o rosto.
Apenas os olhos e a boca ficavam expostos.
Lucília II já tinha conquistado Lua de Prata. Deu-lhe algumas jóias e
ganhou em troca sandálias e um casaco de couro. Cautelosamente,
fez a pergunta que tanto queria:
—Raio de Sol é casado? Lua de Prata
respondeu-lhe:

— Meu irmão Raio de Sol não é casado. Está prometido para a filha
da mãe peixe, Iemanjá.
— E quem é a filha da mãe peixe? — perguntou Lucília II,
angustiada.
— Não sabemos quem é. Quando chegar a hora, ela nos mostrará. A
mãe peixe vai trazê-la nas águas do mar, como trouxe nosso pai.
Lucília II não entendeu nada. Só sabia que estava completamente
apaixonada. Seus olhos encheram-se de lágrimas, e Lua de Prata
perguntou-lhe:
—Está amando Raio de Sol? Talvez seja você a filha da mãe peixe;
você foi trazida por ela. Se for, logo saberemos. O grande pajé
saberá. — Em seguida, afastando o medo, pediu-lhe: — Retire sua
máscara, deixe-me ver seu rosto.
Lucília II retirou a máscara e soltou o cabelo. Lua de Prata colocou a
mão na boca, num gesto de espanto, e disse:
—Você é filha da mãe peixe! Coloque depressa a máscara. Não
posso falar nada para Raio de Sol, mas posso fazer algo por ele.
Hoje, no fim da tarde, venho buscá-la. Iremos até a beira do rio e

você vai retirar de longe a máscara e mostrar-se para ele. Se for você
a enviada da mãe peixe, vou saber pelo olhar dele.
Lucília II ficou tão feliz que abraçou a índia, chorando de alegria e
dizendo repetidas vezes:
—Eu amo Raio de Sol, eu amo Raio de Sol!
Mal podia esperar pela hora em que Lua de Prata viria buscá-la.
Assim que a índia chegou, saiu animada, e logo estavam na beira do
rio, onde Raio de Sol tomava seu banho. Assim que a viu, gritou
para a irmã:
—Volte e leve a moça de volta, pois não posso sair daqui! Estou sem
roupa e sem máscara!
Olhando para ele, a vontade de Lucília II era atirar-se nas águas e
ficar com ele, mas, em vez disso, retirou a máscara e soltou seus
belos cabelos loiros e brilhantes. Seus olhos verdes brilhavam. Raio
de Sol ficou sem se mover, olhando para ela, e não soube explicar o
que sentia.
Logo Lua de Prata tocou no ombro de Lucília II e pediu-lhe:
—Coloque a máscara de volta e vamos embora. Agora é a mãe peixe
quem vai decidir.
Voltaram para a aldeia. Lá, Loretta comunicou à neta que iriam
partir dali dois dias. Pediu que começasse a arrumar seus pertences,
porque os homens, logo cedo, se colocariam a desmontar o
acampamento para partirem tranqüilos e em paz.
Lucília II saiu correndo. Não poderia ir embora, sua vida estava ali
na aldeia e chamava-se Raio de Sol. Loretta não entendeu a reação
da neta e saiu à sua procura. Encontrou-a chorando, encostada em
uma árvore.
Abraçou a moça e perguntou:
—Você viu tanta coisa bonita por aqui que gostaria de ficar um
pouco mais, não é verdade? Mas não podemos, minha querida. Veja
bem, nós os incomodamos. Temos de usar máscaras, obrigando-os a
também usá-las. Devemos partir, pois já resolvemos o que


precisávamos. O cacique convidou-nos a voltar. Talvez no próximo


ano voltemos, e aí, quem sabe, se desejar, você vem conosco.
Lucília II soluçou:
.Não posso, não quero voltar para a corte, vovó.
O que disse, Lucília II? — assustou-se Loretta.
—Não quero mais voltar para a corte. Eu amo Raio de Sol e dou
minha vida por ele.
Enquanto isso, na beira do rio, Raio de Sol saiu da água e sentou-se,
olhando para a correnteza. Havia sonhado com aquele rosto, sim,
quando o grande pajé lhe dera a porção sagrada para ver a moça
que deveria pedir para si.
Ela não era de sua aldeia. O pajé consultou a mãe peixe, e ela
respondeu:
—Ele viu o rosto daquela que virá pelas águas para entrar em seu
coração.
Agora ela estava ali diante dele! Teria de consultar o grande
pajé.
Loretta sacudiu a neta pelos ombros.
—Você enlouqueceu, Lucília II? Não deixe que seu pai e seu tio, o
rei, percebam essa loucura. Vamos para dentro. Vou dar-lhe um
calmante, você descansa um pouco e depois arrumamos nossos
pertences.
Lucília II pensou: "Não posso criar um problema para minha avó.
Vou entrar e cuidar de arrumar todas as minhas coisas, mas não
vou voltar com ela". Entrou e começou a arrumação. Não tocou
mais no assunto. A noitinha, saiu à procura de Lua de Prata; só ela
poderia ajudá-la.
Quando a encontrou, abraçou-a e implorou:


— Ajude-me, por favor! Não posso partir! Meu coração está aqui,
com Raio de Sol. Eu o amo, Lua de Prata. O que farei de núnha vida
sem ele? Não sei como vivi todo esse tempo sem ele.

— Lucília II, não posso fazer nada. Temos de esperar a decisão do
pajé. Ainda hoje saberemos se você deve ficar ou não. Meu irmão o
consultará. Se você for a filha da mãe peixe, ele vai Procurar
o'cacique, e este convocará o rei para fazer um acordo. Entre nós,
Lucília II, tudo é resolvido por amor, nunca por desejo °u paixão.
Procure confiar na mãe peixe: se for da vontade dela, v«cê fica.
A princesa agarrou-se à índia, desesperada:

— E como faço para falar com essa mãe peixe?
— Falando com ela no coração, deixando seu amor fluir. Ela vai
ouvi-la e ajudá-la.
Após o ritual, o pajé começou a entrar em transe. De seus lábios
saíram as seguintes palavras:
—A filha das águas brilha na aldeia. A mãe trouxe sua filha de
presente. Logo o pai sol ajudará a desvendar os mistérios que se
perderam no fundo do mar.
Raio de Sol sorriu. Encontrara a futura esposa, e como era linda! Era
mais bonita do que vira em sonho. O pajé e todo o Conselho tribal
procuraram o cacique para uma reunião de emergência. Raio de Sol
e Lua de Prata foram chamados e relataram o que viram e sabiam.
O pajé aproximou-se do cacique e falou-lhe ao ouvido:
—E chegada a hora, meu filho.
O cacique ficou em silêncio e pensativo por instantes, mas logo
falou:
—Vamos pedir ao rei que fique por mais dois dias. E tempo
suficiente para que possamos resolver a situação.
O Conselho da tribo solicitou uma audiência com o rei, que
estranhou o pedido, mas consentiu em ficar. Além do mais, não
estava em condições de recusar nada diante daquele exército de
guerreiros treinados.
A noite, após as refeições, reuniram-se. O cacique deu início à
conversa:
—Uma pessoa de sua tripulação precisa ficar. Não é uma escolha
minha, mas da grande mãe peixe e do próprio destino. A moça

chamada Lucília II deve ficar na aldeia e tornar-se a esposa de meu
filho Raio de Sol.
O rei levantou-se para segurar seu irmão, que explodiu:


— Minha filha não ficará com vocês! Eu deveria ter desconfiado de
sua hospitalidade; tinha de haver algo por trás de tudo isso.
Estamos aqui em missão de paz, não de guerra. Partiremos amanhã
cedo, e minha filha irá conosco.
— Grande cacique, sei que estamos em suas mãos, mas temos um
exército que queimaria tudo isso aqui em meia hora caso nos
prendam como reféns. Você está diante do rei, não de um homem
qualquer.
Calmo e lívido, o cacique pediu, sem alterar a voz:
—Amigo, sente-se, por favor. Sei que estou diante do rei e que seu
exército os tira daqui todos vivos e nos queima em segundos. Não
sou eu que quero prender sua filha, apenas estou querendo ajudá-la.
Ela está presa pelo coração ao meu filho e a este lugar. Chame a
moça, e ela lhe dirá se a estou obrigando a alguma coisa.
Indignado, o príncipe mandou chamar Lucília II, que, ao chegar, se
atirou aos pés do pai, pedindo-lhe:
—Meu pai, por favor, deixe-me ficar! Encontrei minha própria vida
neste lugar e em Raio de Sol.
O príncipe sentou-se em silêncio, colocando as duas mãos na
cabeça. O rei então virou-se para a jovem e falou-lhe:
—Lucília II, quase destruí o reino de meu pai por causa de uma
paixão. Pense não apenas em você, mas em toda a sua família. Você
nos acompanhou nesta viagem a pedido de sua avó, a rainha
Loretta, e agora pretende deixá-la em uma situação difícil perante
toda a família? Pense no que está fazendo.
A princesa começou a chorar.
—Minha querida avó, perdoe-me, por favor! O rei tem razão, não
tenho o direito de causar-lhe tamanho aborrecimento. Partirei com
vocês, embora aqui deixe meu coração.

O cacique apenas ouvia a conversa, sem nada dizer. Nesse
momento, Raio de Sol chegou, parou diante de todos e, erguendo de
uma vez a máscara, aproximou-se da família real.
—Olhem para mim. Pareço algum animal? Posso não ter sua
educação, mas tenho minha própria cultura, sou filho de um grande
e respeitável homem.
Loretta empalideceu e segurou-se na cadeira em que estava sentada.
Ninguém pôde perceber nada por causa da máscara que usava. No
dia da festa ela não tinha visto bem o rosto do rapaz, Pois sua vista
já não lhe permitia ver tão longe. Agora, de perto, via no rapaz algo
de Raul. Levou a mão ao coração. O cacique Permanecia imóvel e
sereno, como se nada estivesse acontecendo.
Lucília II olhava para o amado, as lágrimas rolando por baixo da
máscara. Subitamente, arrancou-a e ficou de pé diante de todos.
—Quero que todos também me vejam e que meu querido Raio de
Sol fique com meu rosto guardado em seu coração, assii como
levarei o seu por todo o sempre.
Então, Loretta, retomando as forças, destacou:
—Grande cacique e meus queridos filhos, tenho um proposta para
apresentar e ser analisada por ambas as partes.
Conhecendo o bom senso da mãe, o rei suspirou aliviado
respondeu:
— De minha parte, minha mãe, estou disposto a ouvi-la. O cacique,
inclinando a cabeça, disse:
— Estou à sua disposição, nobre rainha. A palavra é sua. Loretta
então olhou para os dois jovens, sentindo como s
fossem ela e Raul que estivessem ali. Lembrou-se de todo o amo que
um dia sentira por ele e de como fora rejeitada pelo preconceit ¦ e o
medo. A neta sentia a mesma coisa que um dia ela havia sentido E
era correspondida, apesar da diferença que os separava. El também
a amava.
—Minha proposta é a seguinte: assinamos um acordo d paz, em que
o rei e o cacique comprometem-se a não ultrapassar suas

delimitações em terra e no mar. Nosso povo jamais atravessará o
mar para molestá-los, e o cacique fará o mesmo. Isso não quer dizer
que não possamos trocar ajuda e ser bem recebidos, não é mesmo?

— Ela continuou falando: — Assim sendo, podemos negociar a
estada de Lucília II por quatro meses entre vocês, mas levaremos
Lua de Prata conosco. Entregaremos Lucília II aos cuidados do
cacique e assumiremos a guarda de Lua de Prata. Que nada
aconteça com nenhuma delas, ou partiremos para a guerra.
O rei não esperava isso da mãe, mas concluiu consigo mesmo: "E
uma estratégia de minha mãe. Politicamente, seremos elevados ao
maior conceito já visto em forma de governar. O rei deixa a
sobrinha e traz a filha do cacique para tranqüilizar o povo quanto à
paz obtida entre os indígenas e a corte".
—Se o cacique assumir pessoalmente a guarda de minha neta, que
nada lhe aconteça, que não seja tocada por seu filho,
poderemos negociar, caso o pai de Lucília II e o rei também
concordem. Comprometo-me a cuidar de Lua de Prata. Ela não será
tocada por homem algum enquanto estiver valendo nosso acordo —
finalizou a rainha Loretta.
O rei intimamente alegrou-se. Teria Lua de Prata perto de si iria
ficar olhando para ela como gostava de olhar para a lua, de longe,
mas seria o maior presente de sua vida.
Todos se entreolharam. Os conselheiros pediram alguns minutos
para discutirem a sós com o príncipe e o rei. O cacique e seus
conselheiros também conversaram em sua língua. Lucília II e Raio
de Sol recolocaram as máscaras, mas se fitavam nos olhos.
Vinte minutos depois, todos estavam reunidos, e foi o cacique quem
falou primeiro:

— Estamos de acordo com sua proposta, senhora rainha.
Entregaremos Lua de Prata a seus cuidados. Tememos por sua
saúde, mas, mesmo assim, nos arriscamos a entregá-la, exigindo
apenas que a alimentação e alguns de nossos costumes sejam
respeitados.

— E nós concordamos em deixar Lucília II por quatro meses, como
propôs minha mãe e rainha. Também tememos por sua saúde e
exigimos que a alimentação e nossos costumes sejam respeitados.
Deixaremos remédios, e os trajes devem continuar os nossos —
falou o rei.
Lucília II olhou para a avó. Realmente era a grande rainha Loretta.
Se para Raio de Sol havia a mãe peixe, para ela havia a rainha
Loretta.
Mandaram chamar Lua de Prata, que logo apareceu em seu traje
habitual: apenas uma tanga de couro de tigre e o longo cabelo
negro, que descia até a cintura.
Parou em frente ao pai e falou-lhe em sua língua; este também lhe
disse algumas coisas. Ela foi onde estava o irmão e, apertando-lhe a
mão, falou algumas palavras. O cacique então reafirmou:
—Lua de Prata concorda em partir com vocês. Está disposta a
colaborar com o irmão e a filha da mãe peixe. — Virou-se para
Lucília II e disse-lhe: — De hoje em diante você ficará sempre ao
meu lado; as mulheres cuidarão de você. Conhecerá melhor nossos
costumes e então aguardaremos o rei e sua comitiva, acompanhados
da rainha Loretta, que deverá pessoalmente devolver me minha
filha Lua de Prata para eu devolver sua neta Lucília II.
Loretta ainda estava chocada com a semelhança do rap; com Raul e
pensava consigo mesma: "Se fosse filho de Raul não seria tão
parecido; os olhos são os mesmos, a boca é a mesma. Por um
momento, pareceu-me vê-lo em minha frente". Olhando para o
vazio, lembrou-se de que Raul estava morto e que um dia ela
também o amara.
Adiaram a viagem para dali dois dias. Lua de Prata arrumou seus
pertences; levaria flecha, vestes de couro, enfeites e creme feitos de
frutos e flores, além de todos os remédios receitado pelo pajé.
Este a chamou em particular e, depois, na presença do pai, fez-lhe
várias recomendações. Lucília II também recebeu vários conselhos
do pai e da avó. Ficaram seus pertences pessoais que, somados aos

levados por Loretta e suas damas, dariam para uns dois anos.
Deixaram ainda vários mantimentos secos e remédios receitados
pelo médico da corte.
O pajé havia consultado os grandes espíritos, e estes haviam
respondido que as moças estariam em segurança e nada deviam
temer, pois no prazo certo retornariam. Lua de Prata ficou feliz;
sabia que voltaria para a tribo; os grandes espíritos nunca mentiam
ou se enganavam.
O cacique acompanhou a partida do rei e de sua comitiva.
Despediu-se de todos, apertou a mão do monarca e, por fim,
apertou levemente a de Loretta, desejando boa viagem. Abraçou a
filha e falou com ela em sua língua.


A FORÇA DO PASSADO

Ainda a bordo, Loretta, como mãe e com grande experiência de
mulher, percebeu que o filho disfarçava o constrangimento diante
de Lua de Prata. Faltavam dois dias para ancorarem, conforme
previra Loretta, quando então a moça pediu:
—Já estou tempo suficiente com vocês para tirar esta máscara. Vou
aproveitar até nos aproximarmos da terra para ficar sem ela. Quero
sentir o cheiro do mar.
Retirou a máscara, e Loretta quase desmaiou, tamanha a emoção:
eram os olhos de Raul que a perseguiam. Se tinha achado o rapaz
parecido com Raul, a moça era o próprio, em um rosto feminino e
perfeito. Era o passado que a castigava. Como Lua de Prata e Raio
de Sol poderiam se parecer com Raul?
O rei arrumava desculpas para falar com a mãe cons¬tantemente.
Ao entrar no aposento da rainha, ficou como hipnotizado olhando


para a índia. Foi Loretta quem se aproximou e perguntou:
—O que deseja, meu filho?
Ele já nem sabia o que tinha ido fazer lá.
—Vejo que Lua de Prata tirou a máscara. Imaginava que você fosse
bonita, mas nem tanto — respondeu.
Loretta preocupou-se; o filho começava a amar verdadeiramente.
Lua de Prata, em sua dignidade, baixou os olhos, não querendo que
ela percebesse que o rei lhe perturbava o pequeno coração.


"Será coisa do destino?", perguntou-se Loretta. A neta apaixonara-se
por um índio, e, agora, o filho disfarçava um sentimento que ia além
do desejo.
Enquanto isso, Lucília II encantava-se com a vida na tribo.
Arrancara a máscara e começara a respirar livremente o ar da
floresta. Participava das festas e reuniões da aldeia.
A cada dia que passava amava mais e mais Raio de Sol. Só podiam
olhar-se e ficar juntos perto do cacique, mas era o suficiente para
serem felizes.
Como era diferente a vida lá, pensava Lucília II. Havia união, amor
e respeito ao próximo. O cacique era um verdadeiro rei, governava
com sabedoria e amor. Ele, sim, poderia ensinar ao mundo como
fazer um bom governo.
A tribo era feliz; o povo, alegre e trabalhador. Todos participavam
com alegria das tarefas. Lucília II aprendeu a tecer e fazer utensílios
domésticos. As mulheres ali eram todas suas mães e irmãs. Todos os
dias brincavam e falavam em Lua de Prata, fazendo planos para sua
volta. Lucília II ocupava o lugar da moça nas dependências usadas
pelo cacique e sua filha.
Raio de Sol ficava com o grande pajé, que era seu avô. Lucília II
ficou sabendo que a mãe de Raio de Sol morrera assim que nascera
Lua de Prata. O cacique não quis mais casar-se, tendo-se dedicado à
tribo e a seus filhos, embora o pajé tivesse dito que ele iria saldar
uma dívida com uma das filhas da mãe peixe. No tempo certo, tudo
seria esclarecido.



Na corte, Lua de Prata recolocou a máscara, o que deu ao rei certo
alívio. Assim, nenhum dos cavaleiros levantaria os olhos para ela.
Pediu à mãe que, com muito jeito, sem ofender a moça, fizesse com
que ela só aparecesse em público vestida. Nos aposentos reais,
poderia ficar como na selva, mas em público precisava vestir-se.
Loretta apoiou totalmente a idéia do filho. Seria péssimo para a
corte uma moça andar nua entre damas e cavaleiros. Com toda sua
tática de soberana, convenceu a índia a vestir-se diante da
civilização e conseguiu fazê-la usar as mesmas vestimentas das
damas. Dentre todas elas, a índia destacava-se; era a única com a
pele morena e o cabelo negro, liso e brilhante.

A cada dia que passava Loretta gostava mais e mais da companhia
de Lua de Prata. Nenhuma de suas filhas era tão dedicada quanto
ela. Aprendia tudo com facilidade e estava sempre buscando algo
para fazer. Se não estava ao lado de Loretta, estava em seus
aposentos, ocupada com alguma coisa.
A rainha adoecera e mal podia levantar-se. O rei dedicava a ela todo
seu tempo livre. Loretta não descuidava da nora e dos netos. O neto
mais velho agora estava com oito anos, e os dois menores, com seis
e quatro.
Lua de Prata pediu a Loretta para ver a esposa do rei, e ela
consentiu, contanto que fosse de máscara. Aliás, só a retirava em
seus aposentos. Chegando ao leito da doente, Lua de Prata pensou
alto:
—Se meu avô e grande pajé estivesse aqui para vê-la, quem sabe
ficaria curada.
Ouvindo suas palavras, a rainha deu um sorriso e falou baixinho:
—Minha querida, você é muito bondosa. Minha hora se aproxima e
vou mais tranqüila, porque sei que meu amado ficará em boas
mãos.
Dois meses depois da chegada de Lua de Prata a rainha faleceu,
apesar de todo o esforço feito para salvá-la. O rei ficou inconsolável.
Abraçado aos filhos e à mãe, lamentou com sinceridade a morte de


sua rainha. Decretou oito dias de luto e resolveu fazer uma viagem,
acompanhado do irmão e de alguns cavaleiros, deixando a mãe
como regente. Levou os filhos junto. Estava realmente abatido. Lua
de Prata ficou muito triste em vê-lo infeliz, pensando que o pai
devia ter sentido o mesmo que o rei sentia quando ela nasceu e sua
mãe morreu. Ficou tão triste que nunca mais se casou.
Loretta encontrou Lua de Prata chorando e assustou-se. Correu até
ela e, abraçando-a, perguntou:
—O que houve, minha querida? Por que chora?
—Vi o rei tão triste e agora sei o quanto meu pai sofreu quando
nasci e minha mãe morreu.
Loretta sentia vontade de fazer perguntas a Lua de Prata, mas o
bom senso falava mais alto. Nunca indagara sobre seus pais. Agora
a jovem se abria, falando sobre sua tristeza. Carinhosamente pediu:
—Fale, minha filha, abra seu coração. Pode confiar em mim. Ela
então começou a contar sua história. Havia muitos anos
seu avô sabia que viria pelas águas um filho da mãe peixe para
ajudar seu povo. Seu pai foi encontrado boiando nas águas pelo
pescadores da tribo. Foi trazido para a terra e curado pelo pajé.
Tempos depois, começou o trabalho. Aprendeu tudo com o cacique,
que, antes de morrer, chamou a tribo e o elegeu par comandar o
povo ao lado do pajé. Contou para todos que ele era filho da mãe
peixe que viera para salvar sua gente.
Assim, foi aceito e respeitado como o grande cacique branco. O pajé
tinha uma filha, que fora preparada para o filho da mãe peixe, que
então se casou com ele.
Nasceu seu irmão Raio de Sol e outro filho, que morreu. Então sua
mãe ficou grávida mais uma vez, dando à luz e vindo a falecer no
parto. Seu pai ficou muito triste, pois amava demais a esposa, Lua
Branca.
Seu avô, o pajé, ofereceu todas as moças da aldeia para que ele
escolhesse outra esposa, mas ele recusou. Vivera todos aqueles anos


sozinho, apenas trabalhando e amparando a tribo, ensinando ao
povo tudo que sabia.
O avô contara para ela e o irmão que os grandes espíritos das matas
lhe falaram que um dia a filha da mãe peixe voltaria para ele.
Teriam uma chance de mudar toda a história de suas vidas. No
tempo certo, a mãe mostraria o caminho.
Loretta sentiu um frio percorrer-lhe a espinha e então arriscou uma
pergunta:
—E como se chama o filho da mãe peixe, seu pai?
—Meu pai tem nome indígena como todos nós. Seu nome do outro
lado do mar foi apagado para sempre. Chama-se Cacique da
Alvorada, que quer dizer aquele que venceu a morte.
Loretta olhava para Lua de Prata, inconformada com a grande
semelhança entre ela e Raul. Então lembrou-se daquele sonho: o
jardineiro Manuel com uma rosa vermelha na mão, clizendo-lhe:
"Raul está vivo". Loretta disse para si mesma: "Estou ficando velha e
cansada. Começo a pensar e ver coisas que não existem. Raul está
morto, infelizmente. Se pudesse retroceder, jamais teria feito o que
fiz com ele e comigo mesma".


A família real partiu e ficou combinado que o rei e o irmão
voltariam em tempo para acompanhar Loretta e Lua de Prata até a
aldeia. O rei não marcou exatamente a data da volta, mas avisou a
mãe:
—Estarei aqui antes do tempo marcado para levarmos a índia.
Cuide bem dela, minha mãe, cuide de nosso povo. Até a volta.
Um mês depois, Loretta estava reunida com os conselheiros do rei,
despachando coisas importantes da corte. Lua de Prata estava nos
aposentos da rainha a pedido desta, dando brilho em suas jóias.
Parecia-se com uma das damas nos trajes e adereços que usava.
O rei chegara sem avisar, tendo ido direto aos aposentos da mãe. Lá
encontrou Lua de Prata e, num ímpeto, abraçou a índia.
—Senti sua falta, Lua de Prata.



Com as faces morenas coradas, a jovem olhou para ele, comentando:
—Não senti apenas sua falta, senti muita saudade de você, rei.
Ele se sentou em uma poltrona e ficou observando a moça,
verdadeira pantera quando lutava. Desde o primeiro momento em
que a viu, ficou fascinado por ela. Quando viu seu rosto, jamais
deixou de pensar nele.
Levantou-se e foi até onde ela estava de pé e alisou seu cabelo e seu
rosto.


— Lua de Prata, você deixou alguém a esperando?
— Meu pai e meu povo me esperam e sei que preciso voltar. Mas
vou deixar meu coração aqui. Aprendi a gostar de sua mãe. A
rainha é como se fosse a mãe que não conheci, e amo você como
uma mulher ama um homem.
O rei levantou-lhe o rosto e beijou-a apaixonadamente. Ficaram
abraçados por muito tempo. Então disse:
—Lua de Prata, acho que terei de negociar com o cacique sua
própria filha. Ou ele consente que você seja minha rainha o vou
implorar para ficar em sua tribo e aprender a caçar. Um dia Lua de
Prata, pensei em deixar a coroa por uma mulher e não tive coragem
suficiente para assumir meus sentimentos. Hoje tenho certeza de
que você é a coisa mais importante da minha vida. So livre e nada
me impede de desposá-la. Quero-a como esposa. Você também me
quer?
Ela não respondeu. Apenas se agarrou a ele, tapando-lhe a boca
com um beijo.
Após as boas-vindas ao rei, todos os cavaleiros da coroa perceberam
que o monarca estava alegre e que devia ter tomado algum elixir da
juventude, pois parecia dez anos mais jovem. Loretta olhou para ele
e Lua de Prata: seu coração não se enganava. Estiveram juntos e
algo tinha acontecido entre os dois.
Levantou-se, pedindo licença para retirar-se, e Lua de Prata
imediatamente a seguiu. A índia estava sem máscara e era o centro


das atenções. Nenhum dos cavaleiros se atrevia a falar nada, pois
todos sabiam que era protegida da rainha Loretta, mas os jovens
livres sonharam naquela noite em desposá-la.
Loretta recolheu-se em seus aposentos, e Lua de Prata também, sem
nada comentar sobre o ocorrido naquela tarde. No dia seguinte, o
filho pediu para falar-lhe em particular; não e assunto que
envolvesse a corte, mas a si mesmo.
Sentada no trono com as duas mãos no queixo, Loretta estava
ansiosa para ouvir o que o filho tinha a falar. O rei chegou e sento se
no grande tapete em que a rainha pousava os pés, colocando cabeça
em seu colo. Ela então perguntou:

— Posso saber o que meu filho tem a me dizer?
— Minha mãe e rainha, desde o dia em que lhe fiz aquele juramento
fui fiel à minha esposa e rainha. Não posso mentir para você, que
sabe tudo sobre mim. Quando vi Lua de Prata, apaixonei-me por
ela. Ao ver seu rosto pela primeira vez, nunca mais pude esquecêlo.
Você é testemunha de que sempre a respeitei e tentei apagá-la
dos meus pensamentos, quando minha esposa ficou doente. Fiz até
uma promessa: se minha esposa sarasse, não olharia mais para Lua
de Prata, mas foi impossível. Assim que fiquei viúvo, viajei para
tentar esquecê-la, o que também foi impossível. Ontem, quando
entrei em seus aposentos à sua 1 cura e deparei com ela, aconteceu o
que não tinha planejado. Quero casar-me com Lua de Prata. Anseio
por chegar logo o dia de voltarmos à sua aldeia, pois quero
entender-me com o cacique. De antemão já lhe digo, minha mãe: ou
ela vem comigo ou fico eu por lá. Pela primeira vez em minha vida
estou amando e assumindo que amo. Estou disposto a matar e a
morrer. Será que dá para entender?
Loretta levantou-se, abraçou o filho e respondeu-lhe, com os olhos
cheios de lágrimas:
—Apenas quero sua felicidade, meu filho. Ouça-me: um dia cometi
alguns erros imperdoáveis pensando que amava, mas, quando

descobri o verdadeiro amor, que foi com seu pai, arrependi-me
profundamente deles, porém já era tarde.
O rei abraçou a mãe e beijou-lhe a fronte.


— Se você cometeu erros em nome do amor, aprendeu também o
que é ele, e é isso que vem distribuindo a todos nós. Nada do que
tenha feito de errado é maior do que o que tem feito por tanta gente.
— Meu filho, eu e seu pai lutamos e sofremos muito, mas
conseguimos estabelecer em nosso país a paz. Apesar de sermos
vistos pelo mundo como reis devassos, por causa de nossa religião,
você bem sabe como dou importância à liberdade. Não importa o
que diga o mundo, procure preencher seu coração com a essência
do verdadeiro amor. Se estivéssemos nas mãos da Igreja,
dificilmente você poderia casar-se com uma índia e torná-la rainha.
Mas nós podemos, pois lutamos por isso. Se Deus existir e for
realmente justo e honesto, terá de relevar muitas coisas da minha
vida em consideração às muitas pessoas que ajudei a ser felizes.
—Ajude-me, por favor. Veja a fila de mensageiros que trazem
Pedidos de casamento para mim. Muitos reis católicos enviaram
Pedidos de casamento para suas filhas. Despache, minha mãe, todos
os mensageiros. Informe a todos que o rei já tem sua Preferida e
logo será oficializado o noivado.
Loretta sorriu; nunca tinha visto o filho tão feliz. Pensativa, pediu:

— Posso tocar em um assunto que prometi a você que iri, esquecer?
— Até já imagino o que seja, minha mãe! E sobre Mary, não é
mesmo?
— Sim, é sobre ela. Sei que o grande cemitério foi construído e
muitos mortos estão lá. Agora pergunto: você enterrou Mary em seu
coração?
— Com toda a certeza, minha mãe. Ela nada mais significa para
mim.
Lucília II já sofria só de pensar que logo expiraria o prazo
estipulado pelo rei. Sua vida agora era a aldeia, Raio de Sol e os


irmãos indígenas. Por outro lado, Lua de Prata arrumava seus
pertences com tristeza; teria de regressar à aldeia.
Amava a tribo, seu povo, estava saudosa do pai, do avô e do irmão
Raio de Sol. Mas como poderia viver sem seu amado? Pouco
importava a coroa para ela. O que queria mesmo era ele.
Dias depois, partiram o rei e sua comitiva. Loretta pediu a Lua de
Prata que entrasse na aldeia vestida como havia saído. No percurso,
Loretta deixou que os enamorados ficassem um pouco a sós,
advertindo a ambos que não ultrapassassem os limites da paixão.
—Quero que Lua de Prata volte para o pai virgem como a flor que
saiu da mata.
Chegaram à aldeia ao raiar do sol e antes do meio-dia já estavam
desembarcando. O cacique foi recebê-los, abraçou a filha e apertou a
mão de todos os visitantes. Lucília II correu para abraçar o pai e a
avó. Raio de Sol abraçou a irmã e a suspendeu no ar, gargalhando
de contentamento.
Todos os irmãos da tribo fizeram festa para a chegada de Lua de
Prata. Queriam abraçá-la. Apesar de estarem usando as máscaras,
seus olhos brilhavam de alegria. As mulheres a examinavam e
faziam perguntas para ela, que sorria também por estar em casa.
Lucília II correu até ela, puxou-a pela mão, e ambas saíram correndo
em direção ao rio.

Lá, sentaram-se e tiraram as máscaras. A princesa começou a contar
sua vida na aldeia e como se sentia feliz. Amava Raio de Sol com
todo o coração. Lua de Prata ouviu Lucília II atentamente.
—Agora, fale-me de você, Lua de Prata. Como se sentiu em meu
mundo?
Lua de Prata então falou sobre sua estada na corte, o que viu, do
que gostou e do que não gostou. Contou-lhe que o rei estava viúvo,

o que fez Lucília II chorar pela rainha. Gostava dela. Ficou triste
pensando nos primos agora órfãos. Lua de Prata confessou seu
amor pelo rei e comentou as novas propostas entre a corte e a aldeia
envolvendo sua vida. Para ficar ao lado do rei, renunciaria até a sua

aldeia, assim como entendia que Lucília II, para ficar ao lado de
Raio de Sol, renunciaria à corte.
A princesa abraçou Lua de Prata.
—Minha querida irmã, acredito na mãe peixe e nos grandes
espíritos das matas. Sei que nosso destino ainda nos reserva muitas
surpresas. Mas seu avô, o grande pajé, contou para Raio de Sol que
você voltaria com o crescente do amor no coração e que sua vida
iria ser do outro lado do mar, enquanto a minha estaria aqui, como
uma semente transportada e germinada em lugar seguro.
Após conversarem sobre vários outros assuntos, voltaram para a
aldeia. Aquela tarde foi de festa e comemoração. Lua de Prata
comeu e bebeu com a tribo e participou de todos os eventos. Lucília
II tinha aprendido com as irmãs guerreiras as artes da guerra. Seu
pai ficou orgulhoso e ao mesmo tempo espantado ao ver como ela
aprendera rápido e estava bem. Ela participou das apresentações
femininas.
Loretta observava Raio de Sol. Algo nele lembrava demais Raul.
Ficou pensativa enquanto observava os dois irmãos brincarem. "O
que a consciência faz com gente?! Vejo Raul nesses jovens. Raul está
morto, e a culpa foi toda minha, eu o matei... Ele ttie amava, eu é
que nunca o amei de verdade. Quem ama renuncia a tudo. Fui
apenas maldosa e despeitada." Foi o cacique quem a tirou desses
pensamentos:
—Senhores, percebo que a rainha está cansada. E recomendável que
a levem para descansar. Graças aos grandes espíritos, está tudo
bem. Amanhã, senhores, se todos concordarem, discutiremos nosso
acordo.
Lucília II e Lua de Prata correram ao mesmo tempo p ajudar
Loretta.
O cacique falou:

— Rainha Loretta, se concordar assumir a responsabilidade para
com sua neta, pode levá-la consigo. Acredito terem muito o que

conversar. Assim assumirei a responsabilidade para com minha
filha Lua de Prata, pois temos também muito o que conversar.
Loretta agradeceu a gentileza do sábio cacique, e Lucília II sorriu de
contentamento, pois estava ansiosa por saber notícias da mãe e dos
irmãos. Queria também ficar a sós com a avó para contar-lhe como
se sentia feliz e o que tinha aprendido na aldeia.
Lua de Prata acompanhou o pai, sorridente. Estava com saudade
dele e de sua cama e queria ouvir as novidades da tribo e contar-lhe

o que vira e aprendera na corte.
Nunca havia mentido para o pai e não iria mentir-lhe jamais. Sabia
que ele, apesar da máscara que ela usava, já tinha visto em seus
olhos que algo acontecia em seu coração.
DO OUTRO LADO DO CONTINENTE

Em Ilhéus, o marido de Mary recomendou aos sogros que
cuidassem da mulher e de sua filhinha enquanto ele estivesse fora.
Iria tentar abrir um caminho para eles; afinal de contas, seria até
uma ofensa recusar a proposta recebida daquele país em obter suas
mercadorias, sem contar a enorme ajuda que iria trazer para o
Brasil, que estava nascendo para o mundo.
Perguntou aos sogros:
—Vou a seu país! Querem que lhes traga o quê? Os dois
entreolharam-se.
— Qualquer lembrancinha. Afinal, você está indo lá a negócios —
Helen respondeu-lhe.


— Vocês têm certeza de que não querem mandar nenhuma carta
para algum parente ou conhecido? — insistiu. — Posso procurá-los
ou enviar algo para sua aldeia.

—Não! — responderam os dois ao mesmo tempo.
O genro teve a impressão de que escondiam alguma coisa. Pela
primeira vez passou-lhe pela cabeça: "Será que vieram fugidos?".
Nunca fez muitas perguntas a Mary, nem iria fazer. Pouco lhe
importava o porquê de terem vindo para o Brasil. A sorte foi dele
em ganhar uma belíssima esposa e uma família decente e
trabalhadora.
O fidalgo embarcou, já saudoso da esposa e da filha, que amava
acima de tudo. A família acompanhou o embarque. O garoto
Henrique perguntou-lhe:

—Quando eu for maior, você me leva com você? Quero conhecer o
país de minha mãe e quem sabe os parentes de meu pai!
O jovem riu e, com os braços sobre os ombros do garoto,
respondeu-lhe:
—Eu lhe prometo! Talvez na próxima viagem que fizer você possa
ir com sua mãe, está bem?
—Oba! Ouviu, mãe? Nós vamos — exclamou o menino. Mary ficou
trêmula ante a alegria do filho. Olhava para ele e
via a figura do rei. Seu corpo era idêntico, até o cabelo, os olhos e as
covinhas, quando sorria. Tinha a mesma energia e alegria do pai.
Ele jamais iria saber quem era seu pai! Parecia que o destino os
empurrava de volta à sua terra. Ela nunca mais pisaria lá e iria fazer
de tudo para desviar o destino do filho.
Sentada com os pais enquanto os filhos brincavam pelos imensos
jardins da casa-grande, como era chamada pelos escravos, Mary
então certificou-se de que ninguém os ouvia, comentando:
—Meu pai e minha mãe, estou tão apreensiva com a viagem de meu
marido a nosso país... Tenho um mau pressentimento! Ele até
prometeu ao Henrique levá-lo até lá. O que faremos? E se ele
começar a informar-se sobre nós?
O pai de Mary tranqüilizou-a:
—Mary, saímos e não deixamos pista, você se esqueceu? E depois,
numa corte daquele tamanho, quem iria conhecer o Senhor


Arquimedes? Esqueceu que mudei de nome, Mary? E o nome de
sua mãe? Tinha alguma governanta na corte com esse nome? Fique
tranqüila, minha filha! Está tudo bem. Para ser franco, até eu estou
pensando em ir até lá no próximo ano! Quero dizer: o Senhor
Arquimedes, o produtor de café e cacau! Na mesa de nosso rei é
servido meu chocolate e meu café! Do mesmo jeito que meu neto se
serve, os irmãos também são servidos! E por isso que se diz que o
mundo é pequeno.
Helen acalmou Mary.
—Seu pai tem razão, Mary! Mesmo que seu marido fosse procurar
por nós, jamais encontraria a família do Senhor

Arquimedes, que partiu com a filha viúva e grávida. Seu esposo
nunca imaginaria que estivemos perto dos monarcas, que fui
governanta da rainha, que vi o rei nascer e crescer! Que sou avó de
um príncipe.
O Senhor Arquimedes lembrou as duas:
—Parem de falar sobre isso. Não toquem mais neste assunto, nem
Mary, nem você! Aí vêm as crianças! Preparem-se que o barulho
agora vai começar.
Os outros netos também chegaram com os pais. Entraram e foi
aquela alegria: crianças brincando e adultos conversando sobre
assuntos variados.
Os irmãos de Mary, todos bem-sucedidos na vida, estavam casados
e com filhos. Na mesa, durante o almoço, o irmão mais velho de
Mary falou:
—Pai, no ano que vem vamos exportar toda a nossa produção para
a corte do rei Henrique III e precisaremos negociar pessoalmente
com ele. Eu e meu cunhado poderemos fechar os negócios com ele,
e o senhor nos acompanhará, dando-nos o seu apoio.
O pai concordou e piscou para a mulher. O velho Arquimedes
abastecendo a mesa do rei!


—Iremos, sim, filho. Precisamos vender nossos produtos, e hoje a
corte do rei Henrique III é o único país que abre as portas para o
mundo exterior.
Mary ficou de cabeça baixa. Havia esquecido que um dia aquele
país fora sua vida; agora voltava para atormentar suas lembranças.
Seu filho Henrique, que ouvia a conversa, falou eufórico:
—Tio, eu vou com vocês! Quero conhecer a terra de minha mãe e
procurar os parentes de meu pai que morreu. Mamãe também vai.
Ela e o vovô e a vovó conhecem tudo! Vou para a terra de minha
mãe! — E saiu correndo.
O irmão olhou Mary e comentou:
—Não se preocupe, é coisa de criança.


NADA FICA OCULTO

Na aldeia, ficou acordado que Lucília II voltaria à corte e Lua de
Prata ficaria na aldeia, para cada uma preparar-se para o respectivo
casamento. O rei se casaria com Lua de Prata na aldeia dali três
meses, e Lucília II, na corte, com Raio de Sol, um mês depois.
Tudo acertado entre rei e cacique, as duas moças abraçaram-se,
chorando. Iriam sentir saudade de seus amados, mas era um bom
acordo. Teriam tempo de preparar-se psicológica e emocionalmente
para deixarem a vida atual e assumir uma nova ao lado dos
maridos.
Loretta prometeu ao cacique cuidar da noiva de seu filho, que
também era de alguma forma sua neta, pois era a neta de seu
amado. O cacique prometeu guardar e zelar pela noiva do filho, que
era sua amada filha Lua de Prata.


A notícia do casamento do rei com uma índia fez toda a corte parar.
Inventavam mil histórias, fantasiavam outras tantas. Alguns,
apaixonados pela poesia, contavam em versos o casamento do
príncipe com a deusa das matas.
Uns falavam que o rei tinha sido enfeitiçado pelo cacique; outros
desenhavam a vida das matas como um reino superior (o que não
deixava de ser verdade), dizendo ainda que o rei se apaixonara pela
filha do cacique por sua beleza natural.
O casamento do rei triplicou as vendas e o comércio em seu país. O
casamento de Lucília II também fazia parte do roteiro da corte. A
curiosidade do povo era imensa, pois apenas a família real e os
nobres conheciam Lua de Prata. O povo mal podia esperar pela
festa prometida pelo rei para conhecer a rainha das matas.
O exército ocupava as ruas, protegendo o povo que se aglomerava
aguardando a chegada do monarca com a nova rainha. A família
real e alguns cavaleiros tinham acompanhado a comitiva do rei até a
aldeia de sua noiva.
A chegada da família real à aldeia foi festejada pelo povo da tribo
com muita alegria. A irmã do rei, Lucília I, foi ao casamento do
irmão e conheceu o futuro genro. Lucília II estava feliz em rever
aqueles a quem já chamava minha família. Raio de Sol ficou feliz ao
revê-la.
O casamento foi celebrado de acordo com os costumes da tribo. Em
vez da coroa de ouro e pedras preciosas, o rei usou uma de flores
naturais e tinha alguns símbolos da sorte pintados no rosto. Loretta
e toda a família apenas observaram o ritual, sem comentários.
Respeitavam as escolhas uns dos outros.
Lua de Prata estava toda enfeitada de penas coloridas. Muitos
símbolos marcavam seu corpo e tinha uma guirlanda de flores na
cabeça. A família real e os nobres ficaram encantados com sua graça
e beleza. Era como uma flor que acabava de desabrochar.
O cacique estava pintado e vestido com uma pele de tigre e um
penacho comprido que ia até a cintura. Após o ritual, homens e


mulheres cantaram e pediram pelos noivos, e, então, foi anunciada
a entrada do grande espírito das matas.
Todos ficaram em completo silêncio. Levantou-se uma cortina de
folhas, e ele apareceu. "É apenas um homem coberto de folhas",
pensou Loretta.
Era o pajé, completamente coberto de determinadas folhas
preparadas pelo curandeiro da tribo. Ninguém via seu corpo nem
seu rosto. O cacique aproximou-se e em um gesto de respeito e
obediência, como se diante de um superior, ajoelhou-se.
Este fez movimentos circulares em sua volta e toda a tribo também
se ajoelhou diante daquela figura que causou em Loretta um
arrepio. Falava e os indígenas prestavam-lhe muita atenção. Riscou
sobre o chão certos símbolos, pronunciou algumas

alavras, e alguns guerreiros saíram correndo, trazendo logo depois
carvão em brasa e água.
O rei foi chamado, e o grande espírito das matas cruzou-o com fogo
e esfregou-lhe folhas no corpo, para, em seguida, banhar-lhe a
cabeça com água. O cacique então anunciou:
—O grande espírito está batizando o filho que ainda é pagão.
Loretta empalideceu. Nunca comentara com ninguém que o
filho era pagão. Como aquela coisa, que não entendia ainda o que
era, poderia ter descoberto?!
Assim que terminou, o espírito pediu que trouxessem a noiva.
Este foi um ritual muito estranho: ele, o espírito, emitia um som
como o canto de um pássaro, e o cacique e alguns membros da tribo

o acompanhavam nos sons e nos passos.
Fez muitas marcas nos noivos e, após esperar alguns minutos,
puxou um cipó, amarrou os dois pelo pulso e andou em volta deles.
Loretta estremeceu quando viu o cipó arrebentando sozinho. Aí
foram muitas palmas, pois o casamento tinha sido aceito pelos
grandes espíritos. Muitos cantavam e saltavam em volta deles. O
cacique colocou um penacho na cabeça do rei e abraçou-o. Tomou
uma das peças de couro que usava amarrada no braço e colocou em

volta do pescoço da filha. A tribo cantava e dançava, e a família real
aproximava-se para cumprimentar os noivos. Foi então que o
grande espírito se aproximou de Loretta, o que a fez estremecer e
agarrar-se ao braço de Lua de Prata.
Ele começou a rodeá-la e a emitir sons como os de um pássaro.
Então, chegou bem perto dela e começou a falar. Lua de Prata
prestava atenção em suas palavras. Logo ele se afastou e Lua de
Prata explicou para Loretta:
—Senhora rainha, o grande espírito falou que apenas a máscara a
separa da realidade.
Loretta ainda estava pálida e não tinha entendido a mensagem do
grande espírito. A índia acrescentou:
—Ele falou que o pequeno espírito que lhe ofertou uma rosa
vermelha disse a verdade: ele vive.

Loretta desmaiou. Os filhos correram para acudi-la; o espírito
aproximou-se e colocou algumas folhas amassadas próximo à sua
narina. Recobrando os sentidos, Loretta olhou apavorada para a
folhagem que se mexia perto dela.
O grande espírito não falou mais nada, despediu-se e foi embora.
Os filhos ficaram preocupados com a mãe. O rei comentou que a
ocorrência era devida às fortes emoções do dia e o cansaço da
viagem, que ela precisava descansar e que, assim que retornassem à
corte, iria poupá-la de muitas tarefas. Disse aos familiares e a Lua
de Prata, que estava presente:
—Envolvi-me demais com os preparativos de meu casamento e
sacrifiquei minha mãe com tantas tarefas!
Ficou combinado que, logo após o casamento de Lucília II, a família
real faria uma viagem e, dessa vez, ficariam o rei e sua rainha
cuidando dos assuntos do Estado.
Lua de Prata olhou para a sogra. Se bem conhecia o grande espírito,
ele tinha revelado a Loretta um importante segredo. Deixaria que a
sogra viesse falar-lhe, então talvez pudesse ajudá-la. Mas ficou
muito pensativa com o que dissera o grande espírito: apenas a


máscara a separava da realidade. E quem seria a pessoa que ele
avisara que estava viva? Tudo seria esclarecido no tempo certo.
Três dias depois, a corte embarcou com a nova rainha. Loretta
estava abatida, parecia ter envelhecido muitos anos. O rei, apesar de
toda a alegria, não podia deixar de observar a tristeza da mãe.
Lembrou-se de que o grande espírito lhe dissera alguma coisa
traduzida por Lua de Prata e então procurou saber da esposa o que
era.
—Meu amor, o que o grande espírito disse para sua mãe não foi
nada em especial.
Na corte, o povo cercava o palácio. As ruas estavam enfeitadas, o
exército todo, de prontidão, o povo queria conhecer a nova rainha,
vinda das matas. A família real descansou por três dias e foi então
anunciada a apresentação de Lua de Prata ao público.
Loretta, nobre e elegante como sempre, foi quem apresentou ao
povo a nora, que, vestida com um bonito manto e usando a coroa,
segurava o cetro e acenava para todos. Seu longo cabelo negro e sua
pele morena conquistaram a simpatia dos súditos.
O rei mandou distribuir para todos barras de chocolate e pacotes de
café. O reino tinha-se tornado independente, as pessoas viviam
bem, estava em primeiro lugar no mundo em artes, cultura e
educação. O soberano abrira as portas do país para o mundo. O
reino vendia seus produtos e comprava o que lhe interessava,
negociando com vários países.
O povo aclamava a rainha Loretta como a rainha do amor.
Comentava-se:
—Ela sabe fazer o povo feliz. Até seus vassalos só se casam por
amor.
A única coisa que Loretta exigira do marido fora decretar a lei de
prisão perpétua aos traidores e, em determinados casos, conforme o
crime, a sentença de morte. Portanto, homens e mulheres tinham
muito cuidado em suas escolhas; temiam e respeitavam o
casamento.


O casamento do rei com a índia alterava algumas cláusulas da lei.
Antes, o casamento só era permitido entre pessoas nascidas e
registradas no país; agora, seria possível casamentos com estrangeiros,
desde que houvesse o conhecimento e a permissão real.
O casamento de Lucília II com o índio Raio de Sol foi celebrado em
praça pública, pois o povo queria ver os indígenas. Todos usavam
máscaras. Na hora das assinaturas, para espanto não dos monarcas,
mas do povo, o índio assinou a certidão de casamento. Falava, lia e
escrevia corretamente o idioma da esposa. Agradeceu a todos e
retirou a máscara por alguns minutos. Muitas mocinhas invejaram a
princesa, comentando excitadas:

— O rei poderia trazer todos os índios para a corte e deixá-los por
aqui.
— Vou escrever uma cartinha para a princesa e perguntar-lhe qual o
segredo de conquistar um belo guerreiro indígena!
— Vieram vários guerreiros indígenas acompanhando o noivo —
brincavam outras.
Após a cerimônia, o rei, acompanhado da família e tendo como
convidados especiais todos os índios, sentou-se em frente à arena
para assistir ao desfile dos cavaleiros e à apresentação do grupo de
cantores e bailarinas.
O cacique falava alguma coisa para os guerreiros, que prestavam
toda a atenção ao espetáculo. Usavam máscara, inclusive o cacique,
real centro das atenções.
Ele vestia uma calça de couro natural de leopardo, uma jaqueta
aberta no peito, um colar de dentes de animais e estranhas
sementes. Calçava sandálias de couro cru e tinha vários símbolos
desenhados nas partes expostas do corpo. Trazia um enorme e
comprido penacho de várias cores. Todos os seus guerreiros
estavam bem trajados, com os cabelos descendo até os ombros e os
corpos pintados.
Loretta olhava para os índios e lembrava-se do grande espírito das
matas. Ainda bem que não estava ali. Sua neta iria conviver com

eles, e a filha do cacique agora era sua nora e rainha de seu país.
Olhou mais atentamente para o cacique, e um frio percorreu-lhe o
corpo.
Foram autorizados três dias de comemoração na corte pelo
casamento de Lucília II. Seus pais estavam tristes, mas conformados
com a partida da filha para a aldeia do marido.
Raio de Sol informou aos sogros que seria realizado o casamento da
bênção com simples festejos para sua aldeia, e o grande espírito
viria abençoá-los, uma vez que já estavam autorizados a casar-se
pelo grande espírito da vida, a mãe peixe.
No segundo dia, o cacique pediu permissão ao rei para andar um
pouco com seus guerreiros, pois estes precisavam respirar o ar puro
das matas. O rei colocou à sua disposição carruagens e cavaleiros
para acompanhá-lo, mas este agradeceu e os dispensou. Precisavam
caminhar.
O cacique, acompanhado de cerca de quarenta guerreiros, seguiu
estrada afora. Andaram pelos arredores enquanto o cacique
mostrava castelos aos companheiros, que ficavam assustados com
aquelas construções. O povo corria para ver de perto os índios.
Já passava do meio-dia quando pararam em frente ao castelo
D'armis. O cacique e os guerreiros sentaram-se para descansar. Os
empregados da rainha Loretta olharam apavorados para os índios.


Ali, comeram algumas frutas que tinham consigo e beberam o vinho
e a água trazidos da tribo.
O cacique pediu aos guerreiros que ficassem sentados ou se
deitassem nas folhas secas da estrada, coberta por imensos arbustos,
que formavam boas sombras.
Ele andou mais adiante, parecendo conhecer o local. Subiu em uma
pedra e ficou olhando para o castelo. O jardim estava florido,
muitas rosas vermelhas cobriam a entrada principal. Ninguém viu
as duas lágrimas que rolaram em sua face.
Retornaram ao palácio. Todos os guerreiros pareciam encantados
com tudo o que viram, mas ansiosos por estar de volta à aldeia.



O rei, sentado à mesa e acompanhado da esposa, da mãe, de seus
três filhos, de Raio de Sol, de Lucília II e do cacique, jantava. Em
meio ao jantar, o rei perguntou:
—Grande cacique, como foi seu passeio hoje? Nunca conversamos a
respeito de sua origem, mas acredito que o senhor seja um dos
filhos da mais alta nobreza. Sua cultura demonstra isso. Se algum
dia confiar-me sua origem, farei um juramento de rei em não revelála
a ninguém.
O cacique sorriu por baixo da máscara.
—Caro amigo, pois assim já posso chamá-lo, um dia talvez
possamos conversar sobre nossas origens. Embora, meu amigo,
acredite: a origem de um homem começa onde ele descobre o amor.
Veja o seu caso e o de sua sobrinha e o dos meus filhos! Suas origens
mudaram diante do amor.
Loretta estava pálida, o copo tremia em suas mãos. Seu neto foi
quem notou e perguntou-lhe:
—Vovó, está com frio? Por que está tremendo?

— Estou com frio, meu querido. Vou pedir licença e retirar-me.
— Minha mãe, quer pedir para sua camareira lhe buscar um casaco?
— perguntou o rei.
Ela desculpou-se, dizendo que preferia descansar. No quarto dia, o
cacique apertava a mão do rei e de sua família, prometendo cuidar
de Lucília II como sua filha legítima.
Virando-se para Loretta, disse a ela:


— Sei que minha Lua de Prata está nas mãos da mais dign; senhora
desta corte, por isso não vou fazer nenhuma recomendação.
Combinaram que uma vez por mês um mensageiro levaria notícias
da corte e traria as da aldeia. As famílias poderiam trocar
informações e presentes. O rei fez questão de presentear o cacique
com vários utensílios domésticos, cobertores e lençóis de linho e
seda. O cacique aceitou levar apenas café, fumo, sabão e azeite para
a tribo.

O CORTEJO REAL


Os comerciantes de vários países brigavam para entrar nos negócios
do reino de Loretta, pois significava lucro garantido para quem
conseguisse. O rei em pessoa estava envolvido, negociando
produtos e comprando o que satisfazia o povo. Era comum vê-lo
inspecionando as mercadorias chegadas de outros países.
O cuidado com a saúde da população era levada a sério e refletia-se
no trato aos estrangeiros que chegavam ao país. Todos os navios
que atracavam tinham de obrigatoriamente desinfetar a embarcação
e aguardar oito dias a bordo para receber ordem de desembarque.
O genro do importante produtor brasileiro, Senhor Arquimedes, já
muito conhecido no país pela qualidade de seus produtos, estava
aborrecido com a demora do desembarque. Praguejava e proferia
palavrões, pois não imaginava ficar detido no navio como se
estivesse com lepra. Imagine esperar oito dias! Jurava a si mesmo:
"Nunca mais volto a este lugar; não foi à toa que meu sogro virou as
costas para esta terra maldita".
No nono dia, o revoltado fidalgo, desembarcando, foi levado a uma
hospedaria cheia de conforto. Parecia realmente um outro mundo;
tudo ali era feito com alta qualidade. Agora entendia por que o
sogro progredira tanto: havia levado consigo uma cultura avançada.
Uma semana depois ele já tinha visitado diversos fornecedores,
assinado vários contratos, estava satisfeito e até esquecera os
aborrecimentos da longa espera para desembarcar. Realmente o rei
sabia colocar ordem em seu país; era um progressista.
Negócios fechados, era hora de conhecer alguma coisa a mais do
rico país e fazer compras para os familiares. Informou-se do que
poderia levar, pois existia cuidadoso controle sobre algumas
mercadorias, as quais não podiam sair do reino.


Fez uma lista do que poderia levar e pediu ajuda ao seu interlocutor
para acompanhá-lo. Este lhe disse:
—Hoje o rei desfilará com toda a sua família pelas ruas da cidade,
pois é aniversário de sua coroação. A grande rainha Loretta, que
levantou o país, estará ao lado dele. Você terá o prazer de conhecêlos.
— E apaixonadamente contou-lhe vários fatos sobre a família
real.
O fidalgo encantou-se com as histórias da realeza e disse ao guia
que queria sair cedo para ficar bem próximo da passagem e ver a
família real de perto. Assim, saíram quase duas horas antes do
cortejo e encontraram um lugar em que poderiam até tocá-los.
Se existia algo naquele país, que era lei e acarretava punições
severas aos infratores, era a pontualidade. Na hora exata, surgiram
vestidos de gala e armados os cavaleiros da guarda real; logo atrás,
duas belíssimas carruagens abertas levadas por cavalos enfeitados.
Sentados em bancos ornamentados com flores, estavam o rei e a
rainha. Ele vestia uma túnica branca e dourada. O cabelo loiro
voava ao vento, e a barba bem aparada deixava ver que era jovem.
Sorria e acenava para o povo.
A rainha tinha cabelo negro, longo e liso, era morena e muito
bonita. "Lembra as mulheres brasileiras", pensou o fidalgo. O
vestido de seda amarelo-ouro esvoaçava, ela sorria e mostrava
dentes alvos e perfeitos. A rainha era realmente linda, admirava-se

o visitante de Ilhéus.
Atrás da carruagem dos reis estava outra, ricamente ornamentada e
mais aplaudida que a primeira. Nela estava uma distintíssima
senhora de porte nobre, a quem o povo gritava:
—Loretta, Loretta, Loretta!
Ela acenava com muita elegância para todos. Ao seu lado, um
garoto de mais ou menos dez anos de idade e duas meninas
lindamente vestidas, que pareciam duas bonecas.
Ao chegar mais perto do povo, a rainha Loretta pediu que parassem
a carruagem para apertar as mãos das pessoas que estavam

próximas à passagem. O fidalgo ficou boquiaberto olhando para o
garoto. Era a cara do seu enteado! Se colocasse os dois juntos,
ninguém poderia dizer quem era quem.
Encantou-se com a famosa rainha Loretta, mas seus olhos ficaram
pregados na figura do garoto. Este o olhou, deu-lhe um sorriso,
pegou um lenço com o símbolo real e colocou-o na mão do seu
admirador. Assim que saíram do local, ele ainda estava atônito com
a semelhança entre o príncipe e o enteado.
Falou para seu acompanhante:


— Nunca vi duas criaturas tão parecidas uma com a outra como o
príncipe e o meu enteado! — E, muito feliz e emocionado,
completou: — De tudo que levo, o mais valioso presente é este aqui.
— Abriu o belo lenço branco de puro linho com o símbolo da coroa,
admirando-o.
Sorria só de pensar que levava uma relíquia real. A família de sua
esposa não iria acreditar! Ele apertou a mão do príncipe e viu de
perto a rainha Loretta, o rei e a rainha indígena. Dobrou e guardou
com todo o cuidado o lenço, colocando-o na mala.
Seu acompanhante informou-o de que a rainha e alguns membros
da família iriam fazer uma excursão, mas o rei ficaria segurando as
rédeas do reino. Comentou que, assim que chegasse a primeira
remessa dos produtos negociados, o rei iria fazer pessoalmente a
inspeção; caso ficasse satisfeito, era possível que aumentasse os
pedidos.
Completava cinco meses que estava ali, e o fidalgo de Ilhéus ansiava
por embarcar. Fazia oito dias que aguardava no navio, para então
seguir viagem. Por isso, foi com bastante emoção e o coração
palpitando de alegria que, aliviado, ouviu o apito anunciando a
Partida. Enfim, começava a viagem de regresso ao lar.
Levava muitas coisas na bagagem, presentes para todos, nias
apenas um era uma verdadeira relíquia: o lenço do príncipe, Que
era a cara do filho de sua esposa. Mas, pensando bem, riu ele, a

única pessoa diferente que não se parecia com os outros era a rainha
índia.
Todos eram loiros de olhos verdes ou azuis; sua mulher era loira de
olhos verdes, e seu filho, naturalmente, teria de parecer-se com ela e
com o pai, que deveria ter sido também loiro e de olhos verdes ou
azuis! Era um povo de pessoas parecidas entre si. Ele começaria a
chamar o enteado de príncipe e lhe daria de presente o lenço real.
Um mensageiro anunciou que o navio estava aportando. A alegria
de Mary e de seus familiares era grande. Sua filhinha Larisse pulava
de ansiedade, esperando pelo pai. Mary aguardava o marido, e suas
mãos gelavam quando pensava que ele estivera em sua terra natal e
com certeza traria notícias da corte e do rei.
O marido de Mary chegou em casa e toda a família o recepcionou.
Foram muitos abraços. Como estava cansado da viagem e do
desembarque, ficou combinado que a família iria reunir-se no dia
seguinte, em um almoço, para que ele pudesse contar as novidades
e distribuir os presentes.
As crianças mal podiam esperar pelo outro dia para recebê-los, mas
conformaram-se em aguardar. Após as despedidas de todos, Mary
abraçou o marido, que lhe disse:

— Minha querida, trouxe uma coisa em que você não vai acreditar,
mas só vou abrir amanhã. Hoje, quero apenas ficar em seus braços;
nem vou falar muito para não me cansar! Teremos todo o tempo do
mundo para conversar.
Mary estava feliz. O esposo estava em casa e agora, mais do que
nunca, ela sabia quanto o amava. Adormeceram abraçados.
No outro dia, tomaram café juntos em seus aposentos e logo
receberam a pequena Larisse, que, orgulhosa, abraçou o pai. Ele
então começou a desfazer as malas, entregando a Larisse seus brinquedos,
para Mary roupas íntimas, que eram a última moda por lá,
entre outras tantas coisas para as quais ela arregalava os olhos de
contentamento. Após o almoço com os familiares, o nobre começou
a distribuir os demais presentes. O genro do Senhor Arquimedes

não se esquecera de ninguém. Por fim, pegou a relíquia real e pediu
silêncio e a atenção de todos. Com muito orgulho, começou:
—Minha gente, vi muitas coisas interessantes naquele país, mas esta
que vou mostrar-lhes vi e trouxe como o grande troféu que um
viajante pode receber. — Prosseguiu: — Fiquei, minha gente, a meio
metro de distância dos monarcas. O rei é jovem e bem simpático, e a
atual rainha é uma índia que lembra as mulheres da nossa terra,
uma morena bonita como uma flor. Falaram-me que a falecida
rainha não era tão bonita, mas muito bondosa. — Sem prestar
atenção nas expressões de sua esposa, sogros e cunhados, continuou
descrevendo os detalhes animadamente: — Vi a rainha Loretta de
perto. Que mulher espetacular! O povo a venera, é uma verdadeira
rainha. Vi os três filhos do rei. As duas menininhas são duas
bonecas loiras de olhos azuis, mas, minha gente, o príncipe é o
nosso próprio Henrique! Se colocarmos os dois juntos, nem você,
Mary, nem o rei saberão filho de quem é cada um. Olhei tanto para

o garoto que ele deve ter achado graça da minha curiosidade e
estirou a mão para mim, dando-me este lenço. — Abriu o lenço de
linho branco e exibiu-o aos presentes. — Não é uma relíquia? Sem
contar que meu guia me lembrou de que isto é um passaporte para
nós. Bem, pessoal, se todos concordarem, vou dá-lo de presente ao
Henrique. Ele se parece tanto com o príncipe que, se aparecer no
palácio, o rei vai achar que é seu filho.
Henrique arregalou os olhos de alegria.
—Você vai me dar o lenço do príncipe?
—Vou, sim. Vou dar-lhe o lenço do príncipe que se parece com
você.
Henrique pegou o lenço como se fosse o maior tesouro do mundo.
—Mamãe, veja de perto que coisa linda! Vou guardá-lo com muito
cuidado para não sujar.
Com exceção de Mary, dos sogros e dos cunhados, todos queriam
ver e tocar o lenço real. Faziam perguntas e mais perguntas ao
fidalgo, e ele, orgulhoso, as respondia. Queriam saber como se

vestiam o rei, as rainhas e as crianças, e ele contava detalhadamente
tudo o que vira e soube, inclusive as histórias dos casamentos com
indígenas e do cacique, que foi à corte casar 0 filho com a sobrinha
do rei.

A sogra dele pensava: "A rainha Loretta não mudou nada, mas o rei
mudou muito! Pobre coitada de sua esposa! Então morreu. O rei
casou-se com uma índia... Então a posição social dela não era
diferente da de Mary na época em que tudo aconteceu".
Mal sabia Loretta que era avó de um brasileiro... E o rei então? O
que aconteceria com Henrique se o rei soubesse de sua existência?
Olhou para a filha e lembrou-se de todo o seu sofrimento. Graças a
Deus ela tinha conseguido sobreviver e agora estava casada e feliz!
O Senhor Arquimedes pensava: "Como são as coisas do destino!
Meu neto tem irmãos e agora possui algo em suas mãos que
pertenceu ao próprio irmão. Meu neto não é só parecido com o
príncipe, ele é um príncipe! Minha pobre filha, que situação!
Quando pensamos que o passado morreu para todos nós, ele
ressurge para nos atormentar".
Mary, tentando disfarçar o que sentia, voltava ao passado: revia o
rosto do rei, seu corpo nos braços dele. Ele prometeu deixar até
mesmo a coroa para ficar com ela. Sonhou tantas coisas bonitas ao
lado dele...
Lembrava-se do cheiro da relva e do trotar dos animais. Lembrava-
se do dia em que se entregara a ele: estavam na cachoeira, o sol
batia nas águas, que pareciam pingos de ouro, e ele estendeu o
manto que usava sobre as folhas secas do chão e ali mesmo se
amaram.
Fizeram inúmeras juras de amor, e ela entregou sua vida nas mãos
dele. Estava tão feliz! Nada queria dele a não ser seu amor. Amava-

o com todo o coração! Naquele dia, ele contou-lhe que não se casara
com a rainha por amor. Nunca pensou em traí-la ou fazer-lhe
nenhum mal, mas não imaginou que iria apaixonar-se e amar outra
mulher. Agora que conhecia o amor lutaria para ficar ao seu lado,

mas não poderia prejudicar a boa moça com quem se casara. Sem
contar com os problemas que teria de enfrentar perante o reino... Se
fosse preciso, porém, renunciaria em favor do irmão.
Sabia que iria prejudicar a imagem e o poder de sua mãe perante o
povo. Ela representava o progresso e a estabilidade familiar. Era um
exemplo de mãe e esposa, todos se espelhavam nela; ela o tinha
preparado para ser o rei e chefe da nação, aquele que devia ser o
exemplo familiar.
—Vou encontrar uma solução para todos nós, confie em mim —
prometeu-lhe naquele dia. Abraçando-a, repetiu: — Você é minha
vida. Sem você não posso mais viver!
Quanto orgulho ela sentiu de si mesma naquele instante!
Dois meses passaram-se. Eles se amavam todos os dias. Certo dia,
estando em seu lugar preferido, a cachoeira dourada pelo sol, Mary
percebeu que o rei estava abatido.
—Você está triste?
—Sim, Mary, estou triste. A rainha está esperando um filho, o
herdeiro do reino, e isso complicou mais ainda nossa situação. Mas
estou decidido a ficar com você, custe o que custar! Você seria capaz
de esperar nascer o herdeiro do trono de meu pai para então
resolvermos nossa vida?
Embora chocada, como toda mulher ficaria na mesma situação,
respondeu com sinceridade:
—Esperarei o tempo que for necessário. Eu amo você. Um mês
depois, viu o desespero tomar conta de sua família.
Sua mãe implorou-lhe que arrumasse suas coisas. Teriam apenas
três dias para partir; se insistissem, seriam executados, e o próprio
rei assinaria a ordem. A voz do povo era a voz do rei, foi o que lhe
dissera a rainha Loretta.
Ela protestou, dizendo preferir a morte, mas depois, olhando para
os pais e o irmão, algo dentro dela falou mais alto: não poderia levar
à morte toda a família; seria melhor, então, ceder. Esperou


desesperadamente que o rei viesse em seu socorro, mas ele não
apareceu.
Por certo tinham sido descobertos. Ele vinha todos os dias ve-la e
agora fazia três dias que não aparecia. Era o fim, teria mesmo de
acompanhar os pais e nunca mais ver o homem que foi a alegria e a
esperança de sua vida e que, naquele momento, levava a desgraça a
ela e à sua família.
Como fora tola em pensar que ele deixaria a coroa por ela! Claro, ele
estava com a rainha, que esperava um filho, o herdeiro do reino, e
ela era apenas a filha da governanta de sua mãe e d um agricultor.
No outro dia, seu pai quase a arrastou para fora de casa. E" saiu e,
olhando para trás, ouviu o barulho da cachoeira. Parec um
pesadelo... Em seu íntimo, ainda restava a esperança de que amado
aparecesse para salvá-la.
As carroças seguiam pela estrada, enquanto alguns vizinho lhes
perguntavam, admirados:
—Vão viajar? Sua mãe respondia:
—Vamos cuidar de uma das fazendas do rei. Não deu tem] de nos
despedirmos de vocês.
—Boa viagem e até a volta.
Nem lágrimas Mary conseguia derramar. Olhava paisagem, os
animais pastando, as crianças correndo em vol das árvores, as
montanhas verdes que ficavam para trás. Chegaram ao porto, e ela
olhou para todos os lados. Seu p entregou alguns papéis a um
encarregado e despachou tudo qu levavam.
Antes de subir na embarcação, ela também assinou um folha de
papel e só se deu conta de que estava indo embora pai* sempre
quando foi ao convés e avistou apenas água por todos o lados. Caiu
ali mesmo. Não tinha mais vontade de viver, queri mesmo era a
morte.
Tempos depois, outra surpresa: estava grávida! Seu primeiro
sentimento foi de medo e revolta, mas depois começou a gostar de
sua barriga; trazia um filho do rei, um filho de sua terra qu seria só


seu! Seus pais a instruíram e ao irmão para dizerem qu era viúva,
que seu marido morrera, deixando-a muito triste, e po isso
resolveram ir embora para outro país.

O ENCONTRO


A família do Senhor Arquimedes empenhou-se em trabalhar e cada
vez mais exportava seus produtos, tornando-se uma potência
brasileira. Sua mercadoria era reconhecida e respeitada em muitos
países do mundo, mas o ponto forte era a terra do Senhor
Arquimedes.
Henrique estava com treze anos de idade e já mostrava sinais de
masculinidade na voz, que começava a mudar. Alguns fios de barba
lhe brotavam no queixo como fios de ouro.
Seu padrasto e seu avô, juntamente com o tio, preparavam-se para
viajar. Ele também iria. Mary, por mais que o marido insistisse, não
quis acompanhá-los, dizendo não suportar a viagem. Além disso,
tinha a pequena Lane, com apenas dois anos, e Larisse, que não
queria ficar sem a mãe.
Mary estava muito preocupada com o filho. Fez de tudo para ele
desistir da viagem, mas o garoto estava decidido a ir e seu esposo
incentivava-o, dizendo:
—Ele precisa tornar-se independente. Cuidaremos bem dele, fique
calma.
Partiram, e Henrique levou o lenço do príncipe na viagem, pois o
padrasto prometera-lhe fazer o possível para que o visse. Tomara
que ainda estivesse parecido com ele; deviam ter a mesma idade,
pelo que pôde calcular.
Mary contou à mãe:
—Antes de virmos para cá, o rei contou-me que a rainha estava
grávida, por isso creio que a diferença de meu filho para o dele seja
de dois meses. Minha mãe, só pode ser obra do destino. Sinto-me


angustiada só de pensar que Henrique possa ver o próprio pai e os
irmãos, sem ao menos desconfiar de que tem o mesmo sangue
deles.
—Guardaremos pelo resto de nossas vidas este segredo. Ninguém
jamais poderá saber a verdade. Vamos esquecer isso, minha filha, e
pensar em coisas boas. Vamos aguardar a volta dos nossos. Olhe,
Mary, sabe o que estive pensando?
—O que, minha mãe?
—Ouça o que vou lhe dizer. Na próxima viagem, nós duas iremos
lá, sim! Saímos de nossa terra como se fôssemos ladras ou
assassinas. Hoje somos as senhoras dos homens que servem a mesa
do rei e de seu povo, somos respeitadas. Não vamos lá para vê-los,
mas para ver nossa terra! Acho que já pagamos caro demais e temos

o direito de voltar, sim.
Mary gelou por dentro. Teria coragem de voltar? Sua mãe tinha
razão, porém. Elas nada mais deviam a eles, e a rainha Loretta, por
certo, nem desconfiava de que comia os frutos de sua terra. Como
seria bom lhe jogar isso na cara, mesmo que de forma sutil. Ela não
precisava ver a cara daquele que um dia estragou seus sonhos...
Iria pensar no assunto com mais tempo e talvez fosse mesmo com o
marido. Agora era uma senhora da alta sociedade brasileira e não
devia nada para a corte e muito menos ao rei.
Foi uma emoção muito grande para o Senhor Arquimedes pisar
novamente em seu país e ver o quanto crescera. Estava totalmente
diferente de quando saiu.
Ele e o filho aproveitavam os momentos em que o genro estava com
os fornecedores para sair. Levavam sempre Henrique, dizendo
querer que o garoto fosse aprendendo a integrar-se aos negócios.
Passeavam pela cidade, revendo alguns lugares e conhecendo novas
estruturas que se levantaram em certos locais.


Passaram em frente ao palácio. Era o único lugar em que nada havia
mudado; até a posição e as vestes dos guardas reais eram as
mesmas. Seu filho disse-lhe:
Pai, as armas, pelo menos, são diferentes.
Gargalharam, e o Senhor Arquimedes, brincando, acrescentou:
—A comida também. Com certeza é melhor! Somos nós que
plantamos.
Certa tarde, combinaram alugar uma carruagem e passear na
fazenda em que moraram. Assim fizeram, dizendo ao condutor que
gostariam de ir até lá. Qual não foi o susto que tiveram quando o
outro respeitosamente lhes perguntou:
—Vão visitar algum parente enterrado lá?
O Senhor Arquimedes e o filho entreolharam-se.
—Sim.
Seguiram adiante. Nada mais era como antigamente, pouca coisa
restara; apenas as montanhas continuavam verdes. Assim que
pararam, o Senhor Arquimedes e o filho depararam com um portão
que se abria para um gigantesco cemitério.
Pediram ao condutor que os aguardasse, que pagariam as horas,
que não se preocupasse com o tempo. "Esses estrangeiros devem ter
parentes por aqui. O velho é muito parecido com nosso povo",
pensou o motorista.
Andaram por muito tempo. O Senhor Arquimedes calculou mais ou
menos o local que outrora estava sua casa. Foram também até a
cachoeira, que ficava do outro lado; ela pelo menos estava intacta.
Já era tarde quando retornaram. O genro e o neto esperavam
ansiosos por eles.


— Por onde andaram? — perguntou o genro.
— Estávamos andando por aí. Quando moramos neste abençoado
país, não conhecemos a corte e agora estamos aproveitando para
conhecê-la — respondeu o Senhor Arquimedes.

— Meu sogro, por que não vamos à sua terra natal? Temos ainda
tempo suficiente para isso! Leve seu neto lá! Ele vai gostar de ver
onde nasceu e viveu sua mãe, seus tios e avós.
— Olhem, meus filhos, sinceramente não quero. Acho que não
vamos encontrar mais nada do que deixamos. Andei conversando
com algumas pessoas e fiquei sabendo que hoje toda aquela região é
uma grande usina, restando pouca coisa no local Família não temos.
Ficaram alguns primos, cujos nomes ou paradeiro não sei bem.
Portanto, meu país tornou-se estranho para mim.
—Bem, já que é assim, então vamos aproveitar a cidade e o que ela
nos oferece.
Orgulhoso, o genro contou todos os pontos positivos dos negócios
fechados com os fornecedores.
Uma semana depois, chegou onde estavam hospedados, rindo.
Estendeu-lhes alguns convites.
—Vamos assistir a um dos maiores espetáculos desta corte. Os
cavaleiros reais desfilarão em cavalos treinados. Vão-se apresentar
também músicos, cantores e bailarinos. A família real estará
presente, e vamos ficar bem na frente dela. Nossc representante
brincou que dará até para sentir seus hálitos!
Henrique vibrou. Enfim veria se o príncipe era mesmc parecido com
ele.
O espetáculo estava marcado para as 16 horas daquele dia Henrique
tirou o boné e as pesadas botas que usava por cima das calças, a
camisa de mangas compridas e o colete de lã que sua mãe
recomendara-lhe usar, pois no reino, mesmo no verão, costumava
ser frio.
Henrique preparou-se para ir ao espetáculo com um terno de linho
branco que o padrasto lhe trouxera de uma viagem à França. O
cabelo loiro bem penteado para trás e os sapatos brilhando, passou
o perfume do padrasto. Levava no bolso o lenço que ganhara. Seus
traços finos davam-lhe uma beleza diferente.

Quando chegou a carruagem de luxo alugada para levá-los ao
teatro, o cocheiro tirou o chapéu e exclamou, envergando-se:
—E uma honra, Sua Alteza, poder servi-lo!
Correu para abrir a porta e ajudou o menino a subir. Este ficou
assustado com tamanha gentileza, mas não entendeu o que o
condutor disse. O avô e o tio entreolharam-se e sentaram-se em
silêncio.
Assim que desceram da carruagem, o menino foi cercado pela
multidão, que lhe estendia as mãos e acenava para ele. Foram

o camarote. O Senhor Arquimedes e o filho temiam algum Incidente
com a presença de Henrique.
Logo a arena ficou repleta, e todos se levantaram. Bem à frente deles
abriram-se as cortinas, e apareceu o rei em traje de gala, sua rainha,
Loretta, as duas meninas e o príncipe, ao seu lado esquerdo, e um
casal de crianças morenas e completamente diferentes das outras, à
direita. Num gesto de simpatia, o rei acenou para o povo. O gesto
foi repetido pelas rainhas e as crianças. Sentaram-se.
Em seguida, o rei sentiu a esposa beliscando-lhe o braço. Olhou na
direção que ela apontava com os olhos e ficou pasmo com o que viu:
aquele garoto era uma cópia fiel de seu filho!
Loretta também olhava para Henrique. As duas meninas
cochichavam, olhando para o irmão e o garoto. O príncipe acenou
diretamente para o sósia e sorriu-lhe. Henrique respondeu ao aceno
com um sorriso, idêntico ao do príncipe, e ficou admirado em ver
como as pessoas, mesmo sem ser parentes umas das outras, podiam
se parecer. Lembrou-se de uma senhora que morava perto de sua
casa e era parecida com uma das empregadas de sua avó. Ainda
bem que se parecia com um príncipe. Podia ver que, se era parecido
com ele, também era bonito.
Deu-se início ao espetáculo, realmente deslumbrante aos olhos dos
espectadores, mas o maior espetáculo para o rei era aquele garoto,
que poderia enganar até ele mesmo se lhe dissessem que era seu
filho.

Como poderia uma criatura estranha ser tão parecida com seu filho?
— Você já viu duas pessoas tão parecidas em toda sua vida? —
perguntou discretamente à esposa.

— Não, é incrível! Vamos convidá-lo no intervalo para vir até aqui?
Ele é muito bonito! Seus parentes parecem ser estrangeiros.
No intervalo, Henrique tomava suco de uva e comia bolo de nozes
quando, pedindo licença, entrou um cavaleiro:
—O rei e sua família convidam o menino e seus acompanhantes
para fazerem o lanche juntos.
Apenas o Senhor Arquimedes e o filho entenderam o que falava o
cavaleiro. Transmitiram a mensagem para os demais, e os olhos de
Henrique brilharam. Iria apertar a mão dos nobres?
O Senhor Arquimedes então falou em português para os
seus:
—Estando aqui, não podemos recusar um convite do rei. Vamos lá!
O cavaleiro, sorrindo, acompanhou-os. "Será que não é filh do rei? E
a cara do príncipe", pensava, enquanto olhava par Henrique.
A família real estava sentada em volta de uma mesa repleta de
guloseimas, mas o olhar de Henrique era para o rei e o príncipe. O
rei perguntou-lhe alguma coisa, mas quem respondeu foi o avô. O
soberano pegou em sua mão, fazendo o mesmo a rainha.
O príncipe, perto dele, só era diferente na roupa. Tinham o mesmo
tamanho, eram idênticos. Henrique parecia ser mais moreno, e o
avô disse ao rei que o neto era brasileiro. Loretta aproximou-se de
Henrique, afagou-lhe o cabelo e disse à nora:
—Como é parecido com meu neto! Ele é brasileiro, mas seu avô
nasceu aqui.
As meninas olhavam-no também e sorriam. Uma delas perguntou
ao avô de Henrique se ele não falava nada na língua delas, e ele
respondeu algumas coisas. Todos foram muitos gentis.



O rei tirou uma abotoadura de ouro com suas iniciais e entregou-a
ao garoto. Num gesto repentino, Loretta tirou um broche de ouro e
pérolas e também deu-o ao menino.
Enquanto a rainha enchia-lhe as mãos de doces, o príncipe, olhando
para o pai, perguntou:
—Posso dar-lhe minhas luvas?
—Claro que pode, meu filho! Ele tirou as luvas, apertou a mão do
menino e as deu de presente.
Loretta aproximou-se do garoto e falou carinhosamente:
—Vou falar bem devagar para você entender. Seu avô disse-nos que
você fala e entende um pouco nossa língua. Qual o seu nome e
quantos anos você tem?


O avô de Henrique passou a mão pela testa. Estava suando e rezava
para saírem logo dali. O menino respondeu:


— Meu nome é Henrique e completei treze anos. Loretta arregalou
os olhos.
— Seu nome é Henrique?
—Sim, senhora. Meu nome é Henrique. Foi minha mãe quem
escolheu.
O rei ouvia a conversa sem tirar os olhos do menino. Loretta então
perguntou:
—E como se chama sua mãe?
Nesse momento, um cavaleiro entrou, anunciando que o espetáculo
iria recomeçar. Despediram-se rapidamente e saíram do camarote.
O avô e o tio de Henrique deram graças a Deus, enquanto o menino
e o padrasto estavam nas nuvens.
Foi um dia inesquecível para Henrique. A família real retirou-se
assim que terminou a apresentação. Antes de sair, acenou para a
multidão, enquanto o povo agradecia ao rei pelo espetáculo. O
nome de Loretta era gritado pela multidão. Olharam para a direção
de Henrique e acenaram.
O rei deu-lhe um sorriso e desapareceu por trás das cortinas.
Henrique voltou radiante, examinando os presentes. "Quando

contar isso para minha mãe e mostrar-lhe o que ganhei, ela não vai
acreditar", ia pensando.
O Senhor Arquimedes piscou para o filho e disse ao genro e ao neto:
—Vamos dar uma volta até a hora do jantar. Na rua, puseram-se a
conversar:


— Só pode ser obra do destino! Pai e filho frente a frente, a avó
Loretta agradando o neto sem saber.
— Meu Deus, que medo me deu naquela hora em que ela
perguntou o nome da mãe de Henrique! Sabe, meu pai, que daria
para ela desconfiar?! Por sorte entrou aquele guarda e a pergunta
ficou sem resposta. Acho que o senhor deveria ter mudado nossos
nomes também.
A COLHEITA É OBRIGATÓRIA

Voltando aos indígenas, após a união com a família real, parece que
tudo entrou nos eixos. Loretta chegou a esquecer o incidente com o
grande espírito. Nunca mais tocou no assunto com a nora, e esta,
por sua vez, parecia também ter esquecido.
Todos os anos o rei, a rainha e os filhos iam visitar a tribo. Lucília II
também ia de vez em quando com o marido Raio de Sol e os filhos
visitar os familiares na corte.
Loretta nunca mais havia voltado lá, nem pretendia fazê-lo. O
mesmo acontecia com o cacique. Foi então que mais uma vez o
destino lhes pregou uma peça.
Estavam na primavera, e a família real decidira viajar. As crianças
precisavam respirar o ar puro das montanhas e ter mais contato
com a natureza. Decidiram aproveitar o bom tempo para atravessar
o oceano. Iriam para um de seus castelos, que ficava em uma
belíssima ilha.
Foi formada então a expedição: marinheiros, cavaleiros da guarda,
educadores, médicos, damas, cozinheiros e babás. Um navio de
bom porte foi preparado para acomodar todos e as bagagens.


As crianças estavam felizes, não viam a hora de partir. Loretta
fiscalizou tudo pessoalmente, pois a segurança da família era a coisa
mais importante de sua vida. Tudo estava bem, e o navio, em
perfeitas condições de atravessar o oceano e levá-los Para qualquer
lugar do mundo. A tripulação era formada por experientes
marinheiros. O rei deixou tudo sob controle; poderiam ficar
ausentes por até dois meses.
Partiram numa manhã ensolarada. Tudo corria normalmente, mas,
no quarto dia, ao anoitecer, repentinamente começou a soprar um
vento forte vindo não se sabe de onde. O navio jogava, e ondas
gigantes cobriam de água o convés.
Os experientes marinheiros desviaram da rota, empurrados pelas
correntes e pelo vento que sacudia a embarcação. O pavor tomou
conta de todos. Mesmo temendo a morte, Loretta tentava acalmar a
família.
—Todos em seus lugares, não quero ouvir um grito. Se tivermos de
morrer hoje, que o façamos com dignidade — ordenou.
Passaram mais de cinco horas de aflição até o mar voltar a acalmar-
se. O capitão e seu enteado entraram na cabine em que estavam
Loretta e a família reunida. O capitão, após pedir licença, participou
ao rei:
—Meu senhor, estamos fora da rota de nossa viagem, mas próximos
da aldeia de seu sogro. Precisamos fazer alguns reparos no navio e o
mais seguro será ancorar lá por uns dois dias, para depois então
prosseguirmos viagem.
Lua de Prata sorriu para o rei e pensou consigo mesma: "A mãe
peixe quer nos levar para lá!". Lembrou-se então do grande espírito
das matas. "Ele não mente nem se engana nunca! Um dia, disse que
uma das filhas da mãe peixe, Iemanjá, viria pelas águas para acertar
algo de seu passado com meu pai. Minha sogra desmaiou no dia do
meu casamento, quando o grande espírito lhe disse isso."
O rei olhou para sua mãe. Seu irmão e chefe da marinha advertiu-o:
—Não temos outra saída ou arriscaremos nossas próprias


vidas.
Loretta estava pálida e de cabeça baixa, mas logo se recompôs:
—Que seja feito o que deve ser feito! Vamos para a aldeia. O rei
sempre suspirava aliviado quando a mãe tomava as
decisões por ele. Lua de Prata sorriu e falou para os filhos:


— Vamos ver nosso povo!
Lucília ficou feliz. Iria ver a filha e os netos.
Passava do meio-dia quando um barco foi jogado nas águas e
alguns marujos se dirigiram à praia. Voltaram com várias canoas
preparadas para ajudá-los e de máscara. Levavam consigo outras,
inclusive para as crianças.
Anoitecia quando terminaram o desembarque. Os marinheiros e
alguns homens ficaram no navio para iniciar logo cedo o trabalho
de reparo. Todos foram bem acomodados, e o cacique,
pessoalmente, deu-lhes as boas-vindas. Nada faltou a ninguém.
No dia seguinte, após o desjejum, algumas mulheres aproveitaram
para conhecer o outro lado do rio com Lua de Prata, enquanto
Lucília II, com a mãe e o irmão, foi até a praia. As crianças
brincavam com as outras da aldeia. O rei e Raio de Sol conversavam.
—Vou apreciar um pouco a paisagem. Nunca vi tantas flores na
primavera — Loretta falou ao filho.
Andava despreocupadamente. Tudo era muito bem cuidado,
parecia um paraíso.
O cheiro das flores penetrava em seus pulmões. Nunca sentira um
odor tão bom em toda a vida. Pássaros sobrevoavam o caminho.
Parou em uma entrada que parecia um túnel feito por árvores
floridas. Sabia não estar longe da aldeia, pois ainda ouvia as
crianças gritando, e resolveu entrar para ver o que seria. Ficou
deslumbrada. Era um jardim que se abria em forma de estrelas; as
flores ali plantadas eram belíssimas, beija-flores e borboletas
misturavam-se com as cores das flores e folhas. Alguns bancos de
pedra e de madeira rodeados de plantas ornamentais enfeitavam o

ambiente. Nunca vira coisa igual. Como poderia uma aldeia ter um
jardim daqueles? Aquilo era obra de um arquiteto maior.
Se o rei visse aquilo! Por que Lua de Prata não comentava sobre as
riquezas da aldeia? O que mais teria ali que eles desconheciam?
Sentou-se em um dos bancos e ficou olhando ao redor, tudo cercado
de árvores baixas.
Tirou a máscara. Nunca havia sentido o cheiro de mel e flores
juntos; era muito agradável. Percebeu uma porta de saída formada
por flores brancas. Indo até lá, abaixou-se devagar e viu outro
pequeno jardim. No centro dele, havia uma enorme ped branca e
alguns degraus também feitos de pedra.
Olhou para o alto da pedra. Sua altura era mais ou menos de uns
sete metros. O que teria lá em cima? Era um observatório.
Tirou os sapatos, decidindo: "Vou subir, isso é algo fantástico".
Silenciosamente e com muito cuidado, subiu até o último degrau e
deparou-se com uma área de cerca de dez metros quadrados.
O cacique estava sentado em uma das pontas da pedra. Ser voltar-se
para trás, perguntou:
—Deseja alguma coisa, rainha? Embaraçada,
ela respondeu:
—Perdoe-me, cacique, estou realmente encantada com que acabo de
ver.
No alto da rocha havia vários bancos de pedra marcados com
símbolos. O cacique então convidou:
—Rainha Loretta, sente-se, por favor, em um dos bancos, de
preferência no centro. Você não me pegou de surpresa, mas estou
sem máscara e percebo que também deixou a sua lá embaixo.
Loretta sentou-se, trêmula. Como ele via tudo isso se estav de
costas? "Ah, claro!", pensou. "Naturalmente ele me observav
enquanto eu chegava até aqui."
—Perdoe-me, cacique, não tive intenção de causar-lhe
aborrecimentos.


Ele então se virou, e Loretta só teve tempo de abrir a boca i
balbuciar "Raa...". Tombou, amparada por ele. Raul estendeu o
corpo dela sobre o banco e esfregou-lhe algo nos pulsos. Colocou
algo em seu nariz, e ela recobrou os sentidos.
Aos poucos, abriu os olhos, ainda chocada. Ele estava ao seu lado,
segurando-lhe a mão. Loretta abriu totalmente os olhos e não teve
coragem de falar mais nada.
Ficou olhando para aquele homem ali à frente. Sim, era Raul
mesmo. Então o grande espírito das matas sabia. Seu sonho tinha


sido real, Raul estava vivo, mas o que pretendia fazer? Mil coisas
corriam em seu pensamento.
Já consciente, Loretta continuou deitada no largo banco de nedra, o
cheiro das flores e da mata perfumando o ar. Não sabia o que fazer.
Gostaria de morrer ali mesmo onde estava, pois o destino começava
a castigá-la de forma cruel e traiçoeira.
O cacique então aproximou-se dela, tomou-lhe as mãos e, fitando o
horizonte, começou a falar:


— Loretta, nosso passado ressurgiu para nos cobrar o que deixamos
de fazer. Temos muitas coisas ainda para acertar. Continuo amando
Deus do mesmo jeito, ou melhor, mais ainda do que antes. Neste
mundo em que me encontro, eu O encontrei e fui recompensado de
maneira maravilhosa. Quando pensei que o Pai já me havia dado
tudo de bom, Ele me mandou você e seus filhos. Desde o momento
em que pisei aqui pela primeira vez, Loretta, fiquei sabendo de que
um dia nos veríamos de novo. Quem sabe agora possa ajudá-la.
Nunca deixei de amá-la e jamais lhe farei mal algum. Sei que
desejou minha morte, ali mesmo quando estava perdendo a
consciência. Agarrado a uma tora de madeira, pedi a Deus que a
perdoasse. Aquela noite, Loretta, na varanda do castelo, fui apenas
um instrumento. Nós dois erramos muito. Fui egoísta, covarde.
Poderia ter-me afastado de você ou a deixado ir embora, mas com o
coração cheio de emoções a segurei. Levei-a a cometer tantos
pecados! Tudo o que você fez, a culpa também foi minha. Sinto-me

melhor, porque sei que você fez e continua fazendo coisas
fantásticas por seus semelhantes, mas não me perdôo pelo que fez
com as igrejas e os padres de nossa terra. Loretta, minha querida, o
que foi feito está feito, mas vamos reconsiderar a presença de Deus
em seu coração. Depois de tudo que você viu e passou, será que
ainda tem alguma dúvida da existência de nosso Pai criador? Sua
mão nos guia para o caminho melhor. Sua viagem foi interrompida
pela vontade de Deus. Você precisava estar aqui e foi guiada pela
mão divina até o alto desta pedra. Loretta, nenhuma mulher subiu
aqui até agora. Apenas alguns homens, preparados, sobem. Neste
ponto fica o santuário que chamamos de coração da aldeia. Se está
aqui, é pela vontade de Deus e dos grandes espíritos benfeitores da
humanidade. Aqui os chamamos de nomes simples e puros, mas
pouco importa para Deus a forma como O chamamos, o importante
é como o amamos.
Loretta pôs-se a chorar copiosamente. Parecia que se abrira uma
cratera em seu coração. Raul ainda segurava suas mãos.
—Sabe, Loretta, o grande espírito das matas traz para todos nós a
força e a sabedoria de Deus extraídas da natureza. Ele é i forma
mais singela da manifestação de Deus, é o contato direto com Seus
filhos. Não há enganos ou interesses pessoais naqueles escolhidos
por Deus para auxiliar o próximo. Aqui, descobri o verdadeiro
significado da minha existência. Foi aqui também, Loretta, que
descobri toda a bondade Daquele que amo, meu criador: Deus.
Aprendi com Seus filhos mais simples, estes que nasceram no meio
da natureza, que o amor de Deus não requer nada além do amor
por seus semelhantes. Tirei a batina e troquei os crucifixos e o
rosário feito à mão pela pele de um irmão animal que já cumpriu
sua missão e pelas penas das aves que se renovam constantemente.
Hoje vejo o Cristo estampado no rosto de cada um dos meus
irmãos, e meu rosário são as estrelas no céu. Meu altar é no alto
desta pedra, onde abro meu coração ao Pai e confesse todos os meus
sentimentos. Como homem de carne e osso, estou sujeito a erros e


fracassos diariamente, mas nem por isso desisto de viver em busca
de Sua luz.
Loretta criou coragem e sentou-se no banco. Olhou para Raul. Era o
mesmo de sempre: honesto, íntegro e generoso. Sentiu vergonha de
si mesma. Parecia-lhe que estava despida de tudo, exceto de seus
pecados.
—Raul, preciso falar. Se Deus existe, Ele está me castígando pelas
tantas coisas erradas que fiz. Um dia pensei em morrer por achar
que o amava, depois o traí e, por último, planejei sua morte.
Raul balançou a cabeça, e ela pediu:
—Deixe-me falar, quero jogar para fora toda a amargura da minha
alma. E se Deus, como diz você, está me concedendo esta chance,
devo aproveitá-la. Depois, não me importo. Seja feito o que Ele
quiser. E começou a relatar toda sua vida desde aquela

seus planos de vingança, o amor e a entrega de seu corpo a tr° ri' a
morte de Hari e da rainha e até mesmo o remorso de expulsar Mary
de sua terra natal.
Raul ouvia em silêncio, orando com o coração e a mente, como tinha
aprendido na aldeia. Olhava para Loretta. Seu cabelo, que outrora
era cor de ouro, parecia prateado pelos fios brancos. Seus olhos,
antes verdes e brilhantes como duas esmeraldas, agora eram de um
verde acinzentado. Seu belo rosto, um dia liso e brilhante, enchia-se
de rugas, e seu belo corpo curvava-se. Suas mãos longas e bem-
feitas, com os dedos finos, onde anéis os adornavam com uma graça
toda especial, já não eram as mesmas.
Enquanto Loretta falava, parecia que um peso imenso saía de seu
coração. Quando terminou, suspirou longamente. Sentia-se aliviada,
colocara para fora todos os seus pecados. Alguém agora sabia de
seus crimes. Estava em paz.
Raul alisou-lhe o rosto marcado pelo sofrimento e, encostando as
mãos nos lábios dela, propôs-lhe ternamente:
—Loretta, minha querida, quero que você vá descansar. Procure
ficar tranqüila. Não pretendo jamais magoá-la. De tudo o que você


me contou sou responsável por uma parte. Façamos o seguinte: hoje
à noite a lua estará iluminando a aldeia. Logo após o jantar, viremos
até aqui, e desta vez vou mostrar-lhe as novas estrelas que descobri
na imensidão. Vamos falar de nossas vidas desde o momento em
que nos separamos. Para limpar nossa alma, precisamos ter muita
coragem, falar sobre todos os espinhos que colocamos na coroa de
Jesus. Vamos purificar o espírito, gritar para a imensidão o quanto
somos gratos a Deus.
Antes de descerem, ele apontou em direção ao mar, mostrando-lhe
as brancas ondas que se elevavam ao longe.
—Ali é a casa da mãe peixe, Iemanjá. — Depois, virou-se para o
outro lado, onde se via o rio se misturando ao mar, e apontou:
Ali também é a casa da mãe peixe, Iemanjá. — Apontou para o alto
da floresta. — Ali é casa dos grandes espíritos, e aqui é o grande
altar dos homens. Aqui estamos eu e você. — E, apontando Para o
céu, afirmou: — Ali está o Senhor, criador e protetor de todos nós.

Ajudou Loretta a descer. Ela calçou os sapatos, e amb entraram no
jardim. Indo até uma das pequenas árvores florid Raul pegou algo
como um favo de mel e deu-lhe para beber, dizen que iria acalmá-la.
—Coloque a máscara e vamos voltar. Após o jantar, viremos aqui
para tirar o peso de nossas almas. Vamos nos comprometer com o
Pai em reparar todo o mal que fizemos juntos. Deixemos tudo a Seu
critério. Que seja feita a vontade Dele.
Ao saírem do jardim e entrarem na estrada que os levaria à aldeia,
encontraram Lua de Prata e Lucília II, que procuravam por Loretta.
Lua de Prata logo percebeu que algo tinha acontecido com a sogra.
Embora estivesse de máscara, não precisou muito para ver e sentir
que alguma coisa ocorrera.
As moças andaram mais rápido, deixando-os para trás. 0 cacique
tocou no ombro de Loretta e disse-lhe:
—Loretta, sou o que você viu aqui, um cacique que honra sua tribo
e sua gente. Raul desapareceu para sempre na história da
humanidade.


Em torno da mesa, o cacique, na posição de oração que todos já
conheciam, braços cruzados sobre o peito, baixou a cabeça e ficou
por alguns instantes daquela forma. Depois, levantou a cabeça e
falou:
—Retiremos nossas máscaras. Já não corremos risco de nos
contaminar.
Retirou a sua, e todos lhe imitaram o gesto. Loretta estava pálida e
com olheiras. O rei, preocupado com a aparência da mãe,
perguntou:

— Minha mãe, está sentindo alguma coisa? Está abatida!
— Não, meu filho, há muitos anos que não me sinto tão bem.
Foi um jantar cheio de brincadeiras e muita alegria. Alguns
dançaram, e todos se divertiram. Lua de Prata, matando a saudade
da aldeia, dançou e brincou com as irmãs da tribo. O rei e seus
cavaleiros beberam vinho de frutas feito na aldeia e divertiram-se
com os indígenas.
Loretta levantou-se e saiu andando pela estrada já conhecida. Não
sentia medo. O perfume das flores penetrava em suas narinas,
chegando até os pulmões. Num impulso, soltou o cabelo e seguiu
em frente. No alto do céu, a lua iluminava a estrada, e ela podia ver
toda a beleza das árvores adormecidas. Alguns pássaros chilreavam
nos ninhos. Loretta nunca pensara em andar sozinha durante a
noite em plena floresta e numa aldeia indígena.
Entrou no jardim e observou a beleza que ali se estendia a seus
olhos. As sombras das árvores formavam figuras estranhas por toda
parte. Ela sabia que ele estava lá, seu coração lhe dizia isso.
Aproximou-se da abertura secreta e sem medo entrou ali. Tudo
estava tão calmo e sereno... Tirou os sapatos e começou a subir os
degraus. A lua parecia concentrar toda a sua luz naquele lugar, pois
estava tão claro que daria para encontrar uma agulha no chão.

Chegou ao topo da pedra e agora podia ver as brancas ondas do
mar que balançavam distantes. O verde-escuro da mata
assemelhava-se a um tapete com uma serpente enrolada mexendo-
se: era o rio que atravessava a floresta para encontrar-se com o mar
num vaivém incessante. Era como dois corpos se abraçando e se
fundindo numa só alma.
A brisa era agradável, o cheiro do mar misturava-se ao da mata, e a
lua brilhava no céu, formando círculos luminosos à sua volta.
Apenas quem pára para apreciar esses momentos divinos pode
descrever seus sentimentos.
O cacique estava parado, e só Deus e ele sabiam em que pensava.
Virou-se. Seus olhos negros brilhavam, o cabelo grisalho caía-lhe
nos ombros. Foi até onde estava Loretta e a tomou pela mão,
acomodando-a num dos bancos centrais.
Sentou-se em frente a ela e, apontando para o alto do céu, indicou:

— Vamos nos deitar sobre o banco e apreciar os pequenos tesouros
de Deus. — Ela deitou-se, obedecendo à sua sugestão.
Ele então começou a falar: — Olhe para a imensidão do Pai e procure
colocar para fora todo o seu sofrimento. Cada estrela qu brilha é
uma fagulha da imensa luz do Pai criador. Somos com essas
estrelas: por menores que sejamos, temos algo de Deu que
liberamos num gesto ou numa ação. Nossos erros são tanto que
dificilmente percebemos o que vem a ser o certo. Quand
conseguimos perceber e aceitar um momento de paz como est é
porque ainda somos capazes de amar e iluminar alguém. Seu erros
foram tantos e menores não foram os meus. Se nes passagem estou
me segurando, imagine o que a fiz passar e outras épocas. Talvez,
minha querida, você seja apenas instrumento de lapidação da
minha alma.
As estrelas cruzavam o céu num espetáculo maravilhoso Loretta
deixava as lágrimas correrem livremente em silêncio Abria o
coração para Deus e, num gesto instintivo de amor, junto as mãos e
disse as palavras que fazia muitos anos se negava dizer:


— Meu Deus, tenha piedade de mim.
O cacique a incentivou:
—Abra o coração, não tema, fale para Deus o que está ocult em sua
alma. Desprenda-se dos laços negros que lhe sufocam coração. E
necessário, minha querida, ouvir o que diz nossa própri consciência.
Ela começou a falar da infância, de como se sentia feliz a seu lado,
das saudades do pai, da angústia que sentiu quando tev de separar-
se da mãe para ir ao colégio. Falou ainda do remors ao descobrir
que o amava. Da revolta quando ele a rejeitou. De todo o desejo que
sentiu por ele. De todos os sonhos que nasceram em seu coração. Do
amor por Hari e da felicidade que encontrou ao seu lado. De todas
as traições que planejou. Do amor pelo rei, da vontade de ser feliz,
da certeza de seus erros. Da vingança contra a Igreja. Do remorso
pela rainha, do amor pelos filhos, da dor que passou quando o
marido morreu. Da luta e do trabalho que vinha desenvolvendo,
das alegrias e dos sofrimentos que vinha enfrentando. E, por fim, do
medo daquela noite, quando fez tratados com espíritos inferiores.
Já passava das duas da manhã quando desceram da grande edra
branca. Agora se olhavam nos olhos. Pela primeira vez na vida
Loretta sentia-se leve como uma pena. Se morresse naquele
momento, pensou, iria em paz.
Na saída do jardim, recuou assustada e escondeu-se atrás do
cacique. Parada na entrada estava a folhagem que tanto apavorara
Loretta. Era o grande espírito das matas. Raul foi até ele, ajoelhou-se
e encostou a cabeça no chão. Vendo que Loretta estava apavorada,
esclareceu:
—Não tema, Loretta, ele é nosso guia, nossa luz e nosso pai.
Aproxime-se dele, venha até aqui.
Ela aproximou-se. O grande espírito a rodeou, passou algumas
ervas em seu corpo e então falou numa língua que ela não entendia.
O cacique prestava atenção e assentia com a cabeça.



Ele rodeou os dois, apontando para os quatro cantos e depois para
cima, em direção ao céu. O cacique manteve-se ajoelhado e de
cabeça baixa até o outro entrar no mato e desaparecer.
Raul disse para Loretta:
—O grande espírito pede que você mande reerguer os templos para
que o povo volte a reverenciar Deus da forma que mais lhe agradar.
Liberte todos os padres que ainda estão vivos e aprisionados sem
poder exercer sua fé. Onde foi sacrificado um pecador, que seja
erguido um lugar de penitência. Transforme, Loretta, o castelo em
convento. A torre deve ser destruída e em seu lugar deve-se erguer
uma capela. Só assim aquele espírito poderá alcançar a paz que
perdeu. Volte, Loretta, para a corte e faça algo para Deus. Ainda
temos tempo de reparar algumas coisas. Outras, somente o Pai
poderá nos julgar. Certamente passaremos por Seu julgamento.
Temos consciência de nossos pecados. Seja qual for a pena futura,
vamos recebê-la como uma bênção. — E seguiram andando pela
estrada iluminada pela lua, o canto dos pássaros noturnos vindo de
longe, as folhas balançando com a primeira brisa da manhã. Loretta
ainda estava em choque. Parecia que de repente deixara de existir,
dando lugar a outra pessoa.
O cacique da pedra branca pegou a mão daquela mulher que
outrora vira brincando com o cabelo esvoaçante e um sorriso
inocente de criança nos lábios, correndo pelos corredores ou
subindo a escada do velho castelo, gritando seu nome. Aquela
menina loira de lábios rosados que mais parecia uma boneca de
louça estava ali, sofrida e frágil como um pássaro que acaba de
nascer. Precisava fazer alguma coisa por ela. Aliás, precisava fazer
sua parte.
Lembrou-se de seu casamento com Lua Branca, que encheu seu
coração de paz, alegria e tanta sabedoria. Fora muito feliz ao seu
lado, pois conheceu o verdadeiro amor de Cristo com ela. Jamais
poderia esquecê-la, ela fora a luz que clareou sua estrada.


Chegando à aldeia, que estava em total silêncio, o cacique levou
Loretta até sua cabana e disse-lhe:

— Procure descansar. Durma e não se preocupe com nada. Agora
está tudo bem. Vou retornar à mata, pois o grande espírito está à
minha espera. Ouvirei seus conselhos.
Afastou-se sem olhar para trás. Loretta observou-o até ele
desaparecer no meio do mato. Entrou silenciosamente na cabana,
despiu-se e deitou-se, encolhida como uma criança. Ficou pensando
em tudo que lhe tinha acontecido. Sim, Deus de fato existia, não
tinha mais dúvida.
INIMIGOS ESPIRITUAIS

Loretta adormeceu rapidamente, vencida pelo cansaço. Logo seus
perseguidores espirituais vingativos se aproximaram. Estava em
lugar fechado e abafado. Foi cercada por vários espíritos, homens e
mulheres com aparência suja e horrível.
Um deles chegou até ela e pegou-lhe brutalmente o braço. Rindo,
gritou:
—E então, minha rainha! Pensa que vai escapar agora? Lutei muito,
minha querida, e cheguei até aqui. Sou o chefe agora e de mim você
não vai escapar!
Ela então reconheceu aquele rosto deformado: era Hari. Os outros
riam e gritavam:


— Nós queremos uma rainha sábia e querida para nos ajudar em
nossos planos. Chefe, por que não ficamos logo com ela?
— Ainda não! Não posso cortar o maldito cordão da vida. Mas,
quando este se romper, minha rainha, seu destino é ao meu lado. —
E empurrou-a com violência.
Ela acordou sobressaltada.

Sentou-se na cama, ainda tremendo. Sentia dores por todo o corpo.
Os primeiros raios de sol entravam por uma fresta. Voltou a deitar-
se e, olhando ao redor, lembrou-se da noite anterior e do sonho que
acabara de ter. Iria contá-lo ao cacique, talvez ele pudesse ajudá-la.
Como derrubar a lei que ela mesma criara?
Seu país estava completamente estabilizado. O ponto que marcara
bem sua personalidade fora a retirada dos padres e dos católicos em
geral. Ela transformara as igrejas em escolas e hospitais. Em seu país
havia orfanatos sustentados pela corte, onde ficavam os filhos cujos
pais haviam perdido a vida por alguma doença ou acidente. Não
havia filhos de prostituição nem que tivessem sido abandonados
pelos pais. A lei do casamento era rigorosa. Fazer o que o espírito
das matas aconselhara seria quebrar o país, que certamente perderia
a autonomia para a Igreja.
Aquele era um país de jovens que falavam a mesma língua: "Não
aceitaremos padres e católicos em nossa terra." No entanto, o
grande espírito pedia-lhe liberdade para os católicos, a volta das
igrejas e de suas imagens, dos padres e de suas batinas negras.
Colocou as duas mãos na cabeça, sem saber o que fazer ou pensar.
Lua de Prata entrou na cabana com uma bandeja de madeira repleta
de frutas da terra, sucos, broas de milho e de mandioca fresca.
—Bom dia, minha sogra! Fiz questão de vir tomar a primeira
refeição com você.
Sentou-se na cama e comoveu-se com a nora, sempre tão gentil e
carinhosa. Lua de Prata colocou suco de maracujá num copo e
ofereceu-lhe:
—Experimente essa delícia, minha sogra. Tudo isso é da própria
natureza.
Lua de Prata estava radiante, bonita e bem-disposta. "Como é bom
ser jovem, especialmente se temos felicidade", pensou Loretta.
"Minha juventude foi tão diferente! Ah, se pudesse voltar!"


Uma de suas damas entrou trazendo seu traje e comunicou que o
banho estava pronto. Levantou-se, despediu-se da nora e foi cuidar-
se.
Loretta sentiu falta do cacique, mas evitou questionamentos. Olhava
ao redor, perguntando-se onde estaria.
Vendo que se aproximava o meio-dia, não suportou a inquietação e
indagou:
—E o cacique? Por que não está presente?


Foi Raio de Sol quem respondeu:
—Ele só voltará depois que o sol cruzar o meio do céu, ou seja,
depois da metade deste dia. O grande espírito o levou para o alto da
serra. Grandes decisões ele está tomando. Devemos aguardar.
O sol já estava do outro lado da aldeia, no poente, quando o cacique
voltou. Estava sério e parecia abatido. Raio de Sol aproximou-se do
pai.


— Grande cacique da pedra branca, nunca o vi assim! O que lhe
disse o grande espírito? Por favor, meu pai, conte-nos.
— Transmita a todos que logo mais, ao cair da tarde, quero toda a
tribo reunida, todos vestidos nos trajes de reverenciar os
antepassados e os espíritos amigos das matas. Quero você, meu
filho, preparado para o sacrifício.
Raio de Sol empalideceu. O que iria acontecer?
Algo profundamente grave estava para ocorrer na tribo. O cacique
retirou-se sem olhar para trás, indo em direção ao jardim da pedra
branca.
O pajé já estava lá, sentado, virado para o lado do sol nascente. O
cacique, silenciosamente, sentou-se, virado para o lado do sol
poente. Ficaram de costas um para o outro. O pajé falou:
—Meu filho, o céu confirma e a mãe peixe também. Tudo que
caminha, voa ou se arrasta sobre a terra também confirma. Você
deve partir. Nunca mais o verei nesta carne, meu filho, mas
estaremos sempre ligados pelo espírito.

O cacique olhou o rio em forma de serpente correndo lentamente no
meio da verde mata. Seu coração batia acelerado.
—Mais uma vez tenho de deixar minha casa para enfrentar o
caminho espinhoso. Meu pai, como vou suportar viver longe de
tudo isso, dos meus filhos, da minha tribo?
Com os olhos rasos d'água, o pajé respondeu-lhe:
—Com o grande espírito no coração, meu filho. Desde que chegou
aqui trazido pela mãe peixe, já sabia que vinha trazer nova semente
para meu povo e retornaria para ceifar o joio que se estendeu sobre
a casa de Deus. Prepare-se, meu filho. Você deve partir daqui dois
dias. Despeça-se de tudo que lhe pertence, pois só voltará aqui
quando puder correr livre como o vento. Ai estaremos juntos com
Lua Branca e todos os nossos antepassados. À noite, quando a lua
alcançar o céu, leve seu filho para receber do grande espírito das
matas o unguento de cacique da pena dourada. Ele subirá ao trono e
velará por seu espírito enquanto estiver lutando nas tormentas a
que será levado. Em breve, meu filho, outro pajé estará recebendo a
coroa da visão, enquanto receberei nova coroa e liberdade para a
visão total. Neste dia, meu filho, vou confortá-lo em seu suplício e
voltarei para abraçar o vento e correr o mundo sem parar.
Ficaram conversando por longo tempo. O pajé deu-lhe muitos
conselhos e força espiritual. O sol já baixava no horizonte quando se
levantaram. Um de frente para o outro, num gesto de suprema
nobreza, abraçaram-se em silêncio. Já tinham conversado tudo.
A noite, vestido como o grande cacique que era e toda a aldeia
trajada conforme o grau de cada um, reuniram-se em torno de uma
fogueira. Os guerreiros portavam armas. O clima era de respeito e
silêncio totais.
O cacique então anunciou:

— A partir deste momento, Raio de Sol subirá ao trono como o
grande cacique da pena dourada. Será ungido ainda hoje pelo
espírito das matas. Vai ser guiado e preparado pelo pajé e avô, o
caboclo ventania. Daqui dois dias, antes de o sol cruzar a aldeia,

estarei cruzando a casa da mãe peixe para o outro lado, onde ficam
seus filhos brancos. Hoje, entrego meu penacho e minha lança à
minha aldeia, ao grande espírito das matas. Partirei e não quero que
vocês chorem. Lembrem-se de que o povo deve imitar sempre seu
cacique, e eu não vou chorar. Sorri quando aqui cheguei e partirei
sorrindo para aqueles que me deram tanto amor.
Todos, homens, mulheres e crianças de todas as idades, num gesto
de tristeza, sentaram-se no chão com a cabeça nos joelhos. O pranto
fez-se tão forte que possivelmente a mata inteira do outro lado do
rio e do mar pôde ouvir. Os jovens pajés estreoieciam embaixo de
suas folhagens. Apenas uma delas permanecia imóvel. A corte de
Loretta chorava com a emoção dos indígenas. 0 rei, pela primeira
vez, derramou lágrimas naquela terra, abraçando Lua de Prata, que
também chorava.
O cacique pediu ao povo que respeitasse o novo cacique, explicando
que a mãe peixe jamais iria abandoná-los. O grande espírito estaria
sempre presente, e seus antepassados estavam ali para guiá-los.
Encaminhou-se em direção ao filho e levou-o até a fogueira que
ardia, devorando a madeira seca, transformando-a em cinza branca
e perfumada. Retirou seu penacho e ficou na frente do filho. 0
espírito das matas chegou, sacudindo sua folhagem.
Fez-se um enorme círculo, todos de mãos dadas. O grande espírito
deu sete voltas em torno deles, que continuavam um de frente para
o outro. Entre os dois havia a fogueira, cujas labaredas subiam,
elevando-se para o infinito. Só as cinzas brancas ficavam na terra.
O pajé puxou de dentro da folhagem um penacho dourado e
entregou-o para o grande cacique da pedra branca. Este lhe
devolveu o penacho colorido. O grande espírito emitia sons que
lembravam os pássaros noturnos e atravessava a fogueira em forma
de cruz. O fogo obedecia a ele, pois nenhuma folha que cobria seu
corpo caiu queimada.
Pegou a mão do cacique da pedra branca, que atravessou a fogueira
com o penacho na mão. Raio de Sol ajoelhou-se, e, então, ele colocou


o penacho dourado em sua cabeça. O grande espírito tomou-lhe a
mão, e ele passou tranqüilamente pela fogueira, como se fosse uma
porta.
O espírito das matas pediu aos guerreiros alguma coisa, e eles
saíram correndo. Retornaram com folhas perfumadas. Esfregou-as
por todo o corpo do cacique da pedra branca, retirou seu colar e
seus apetrechos e carinhosamente abençoou o penacho e os demais
pertences. Colocou-os lentamente nas labaredas da fogueira, e em
poucos minutos tudo virou cinza.
O cacique ajoelhou-se a seus pés. Abençoou-o, apontando-Ihe o lado
em que estava o povo de Loretta. Sentou-se perto dela.
Dois vincos marcavam seu rosto, seus olhos negros pareciam
cansados.
O filho recebeu do grande espírito alguns apetrechos de couro e
pena e uma lança dourada. Seu corpo foi marcado com o carvão e as
cinzas da fogueira, formando muitos símbolos. Os guerreiros
entoavam à sua volta uma canção triste, e todos os pajés, cobertos
de folhas, dançavam em volta deles.
Todos rodeavam o novo cacique, e cada espírito tocava-lhe de
forma diferente. Cada qual falava uma coisa, à qual todos
prestavam bastante atenção. No final da cerimônia, a tribo toda
gritou:
—Cacique da pena dourada, cacique da pena dourada Ressuscitou
entre nós.
O grande espírito falava, e Lua de Prata, chorando, explicava para
Loretta:
—O cacique da pedra branca agora vai trabalhar sobre outra pedra
e não voltará mais pelas águas, mas com o vento, quando então se
sentará na grande pedra para ajudar nosso povo.
Terminada a cerimônia, os grandes espíritos levaram Raio de Sol,
avisando que ele só retornaria à aldeia dali três dias para sentar-se
no trono dos caciques, quando o filho da mãe peixe já deveria estar


longe. Que a mãe peixe lhe daria novo nome e nova casa, onde ele
deveria cumprir diferente missão.
Antes de sair com os pajés, Raio de Sol disse ao grande espírito das
matas que precisava dar um abraço no pai. Este consentiu. O
cacique da pena dourada foi ao encontro do cacique da pedra
branca. Em silêncio, olharam-se e abraçaram-se. Raio de Sol
acompanhou os pajés sem olhar para trás.

Dois dias depois, o cacique da pedra branca olhou mais uma vez
para a aldeia e seu povo. Era como se estivesse querendo guardar as
últimas imagens dentro de si. Entrou na embarcação, elevou a mão
para o alto e acenou para a aldeia.
Sentou-se ereto no banco da canoa, olhando para a frente, sem falar
nada. Não se virou para trás. No coração levava cada um de seus
filhos e boas lembranças da aldeia. No pensamento
só levava amor, o amor que haveria de ajudá-lo a carregar a nova
cruz de sua caminhada.
A embarcação avançava, mas ele ainda ouvia o pranto do povo à
beira-mar. As águas claras e brilhantes agora faziam cintilar seus
olhos; alguns golfinhos pulavam na frente do barco como se
estivessem a guiá-lo. Duas grossas lágrimas rolaram pelas faces do
cacique da pedra branca, pois sabia que, como homem, jamais
pisaria novamente na aldeia.
Pensava em Loretta. Regressava ao lado dela para o mundo do
pecado, da ilusão e da desventura. Desta vez, estava preparado e
não temeria a grande cruz. Haveria de carregá-la até o fim da
jornada. Ajudaria aquele anjo de Deus a voltar-se para o Pai. Amava
aquela criatura como Jesus ama cada um de seus irmãos. Faria
qualquer sacrifício para vê-la livre das pesadas correntes que
prendem o espírito na decadência da carne.
Em silêncio, a família real respeitava a presença do nobre homem,
que mesmo sem máscara ainda era índio. Em seus olhos havia uma


expressão de bondade que somente os espíritos elevados
conseguem ter.
No navio, solicitou que lhe cortassem o cabelo e trajou-se como
homem comum. Ao lado de Loretta, começou a desenvolver seu
trabalho. Tinha de conquistar-lhe a alma não para a carne, mas para
levá-la de volta ao rebanho do Mestre. Loretta começava a
compreender a bondade de Deus. A família percebia algo estranho
entre eles.
O rei chegou a desconfiar dos dois: estaria havendo um romance?
Ficava a observar o sogro, que já não parecia um cacique, mas um
dos seus. Um homem só abandona uma vida por outra — fora isso
que ele lhe havia dito. E ele estava abandonando a aldeia, que era
sua própria vida, por quê? Certamente a resposta seria Loretta,
pensava o rei. A mãe estava diferente, estranha, falava pouco,
Parecia esconder algo, mas esperaria que ela mesma contasse o que
pretendia. Cada membro da família real tinha uma opinião
diferente quanto à presença do sogro do rei entre eles. Logo
chegariam em casa e então se esclareceria o mistério de tudo aquilo.

Na verdade, nem o cacique sabia exatamente o que aconteceria com
ele naquele mundo ingrato que conhecia tão bem Sabia, sim, que
Deus o enviava para uma nova jornada de trabalho Sua maior
vitória nessa tarefa seria resgatar Loretta.

DE VOLTA À TERRA NATAL

Em Ilhéus, o Senhor Arquimedes reinava no comércio local como
maior exportador brasileiro de café e cacau. Sua família, cujos
membros eram conhecidos como os gringos amigos do rei, era


respeitada e admirada. Seu genro tratava dos negócios que
envolviam relações comerciais com várias partes do mundo.
O filho de Mary estava um rapazinho. Por sua própria vontade e
pelas boas condições da família, foi estudar na França, onde se
formaram seu padrasto e outras celebridades que ocupavam cargos
importantes no país. Sua mãe tinha muito orgulho quando falava
dele para as amigas.
Naquele ano, foi inaugurada com muito sucesso uma das maiores
embarcações da América do Sul, propriedade da família
Arquimedes, fabricada com toda tecnologia, conforto, luxo e
elegância que a ocasião permitia.
Após passar pelos testes de navegação, o potente navio estava
pronto para zarpar, levando a bordo a família mais importante de
Ilhéus: a Arquimedes. Destino: sua terra natal. Desta vez, levava a
esposa, filhos, noras, netos, genro e alguns empregados de
confiança. Apenas uma pessoa da família não estava na tripulação:
Henrique, filho de Mary.
Não mais como uma passageira assustada com seu destino, mas
como proprietária daquele belo e monstruoso navio que rasgava as
águas claras do oceano inibindo as demais embarcações, Mary
recordava sua chegada a Ilhéus.

Estava tão absorta em seus pensamentos que nem percebeu a
aproximação do marido, que a abraçou sorrindo e disse, como se lhe
adivinhasse os pensamentos:

— Aposto que se lembrava de sua chegada aqui em Ilhéus.
— Sim, estava relembrando quando cheguei a esta terra e como
estávamos ansiosos e cansados da viagem, que parecia não ter fim,
mas que valeu a pena — Mary respondeu-lhe, disfarçando o
embaraço.
Continuou lembrando com tristeza sua chegada ao Brasil. Parecia
estar vivendo novamente o momento incerto que a trouxera até ali.
Falou para o marido, abraçado a ela:

— Jamais imaginei que um dia pudesse retornar ao meu país. Para
mim, é como um sonho voltar à minha terra depois de tanto tempo.
— Meu amor, desta vez não temos pressa em retornar, pois estamos
todos juntos. Faço questão de levá-la ao local em que nasceu. Quem
sabe reencontre algum familiar de seu falecido esposo. — Sem
perceber o constrangimento da esposa, continuou falando: —
Nunca lhe fiz perguntas com referência ao pai de Henrique nem
sobre seu passado porque sei que sofreu demais. Para ter saído de
sua terra e aventurar-se mar afora, é porque algo muito sério
marcou a vida de todos vocês. Seja o que tiver sido, minha querida,
eu respeito. Amo você e todos os dias agradeço a Deus pela
felicidade que tive em casar-me contigo e fazer parte de sua família.
Nunca lhe falei, mas Henrique confessou-me que gostaria de
conhecer algum parente do pai. Ele não lhe pergunta nada a
respeito por perceber que você sofre, mas pretende descobrir seus
parentes e pediu-me ajuda. Disse-lhe que conversaria com você,
meu amor. Quaisquer que sejam os parentes de Henrique, é um
direito dele conhecê-los, e você deve permitir isso ao seu filho. Não
quero magoá-la nem mexer com seu passado, apenas reconheço que
ele tem o direito de conhecer a família do pai e sua origem. Por
favor, meu amor, não fique triste nem se aborreça comigo. Vamos
aproveitar esta viagem. Quero levá-la a todos os lugares que você
conheceu e nos quais viveu e tenho certeza de que vai encontrar
alguma pessoa amiga que a levará aos parentes de Henrique e
também aos seus.
Mary, com as faces ruborizadas, parecendo queimar por dentro,
num ímpeto gritou para o marido:
— Vim com você porque acreditei que seria bom para mim, mas
agora começo a arrepender-me de tê-lo acompanhado. Se insistir
nesta conversa, não arredo o pé de dentro deste navio. Quero ter o
direito de ir aonde tiver vontade. Não estou à procura do passado.
Todos os meus parentes estão aqui, a não ser meu filho, que está
estudando fora. Começo a perguntar-me se foi uma boa idéia

quando concordei em vir contigo. Não me obrigue a fazer coisas
que não desejo fazer. O pai de Henrique morreu! Ele contou-nos
não ter parentes próximos e ser sozinho no mundo. Você não
imagina o que sofri quando o perdi. Não posso lhe dizer onde
procurar parentes dele, pois era um soldado foragido, nem registro
tinha na corte. Por isso ficamos com medo quando foi morto: se
descobrissem nosso envolvimento com ele, poderíamos ser
condenados à morte como traidores. Quando descobri que estava
grávida, meu pai tomou a resolução de aproveitar a oportunidade
que o rei oferecia a quem desejasse sair do país. A situação
financeira de meu pai não era boa, mas meu marido deixou-me
certa quantia, que deu para iniciarmos a vida em Ilhéus. Vendemos
nossa vivenda e todos os animais e partimos em busca de uma nova
terra. Meus pais também sofriam por causa da religião do país,
imposta pela rainha. Eles sempre foram católicos, mas não podiam
mais venerar Deus abertamente. Por favor, peço-lhe: fale para meu
filho que ele não tem nenhum parente além de nós e que nos trará
muito sofrimento se continuar insistindo em uma coisa tão dolorosa
para todos nós. Vencemos o medo e estamos mdo rever nossa terra.
Nada fizemos de errado para ninguém, nada devemos à corte.
Somos pessoas honradas e decentes. Tudo Que quero é aproveitar a
viagem para fazer compras e conhecer a corte, o que nunca tive
oportunidade de conhecer quando morava No país. Não estou indo
lá em busca de lembranças; isso superei na muito tempo, quando o
conheci e casei-me com você. Amo-o e Peço-lhe: nunca mais toque
neste assunto.

Arrependido, o marido apertou-a junto ao coração.
—Prometo-lhe, por tudo que é mais sagrado, que jamais voltarei a
incomodá-la com este assunto. Acredito em você e peço-lhe perdão.
Imaginava que todos vocês tivessem sofrido, mas não tanto assim.
Vou tirar da cabeça de Henrique a idéia de procurar parentes, mas
não vou falar-lhe a verdade sobre o pai. Direi que não deixou



registro sobre nenhum parente, e ele acabará esquecendo quando se
envolver com a própria história.

Chegando ao país, tiveram de aguardar, como de praxe, para
desembarcar. O tempo era de quatro dias para pessoas nobres e
saudáveis como a família do Senhor Arquimedes.
Mary e a mãe estavam tensas, quase aflitas. Era uma grande emoção
estarem ali, prestes a rever lugares e pessoas que pensavam ter
esquecido. Voltavam em uma situação bem diferente daquela em
que saíram, mas nem por isso ficavam menos nervosas.
Acomodaram-se em um hotel de luxo, reservado com seis meses de
antecedência. Afinal de contas, era o grande mercador brasileiro
que iria honrar aquele estabelecimento com sua distinta família.
Levavam criados de confiança, pois haviam programado a viagem
com muito cuidado. As babás cuidariam das crianças enquanto as
senhoras estivessem ocupadas com compras e passeios.
Mary e Helen pediram discretamente ao Senhor Arquimedes para
visitar a vivenda em que tinham passado parte de suas vidas. Mary
estava ansiosa por rever o lugar onde nasceu, cresceu e concebeu o
filho.
O Senhor Arquimedes coçou a cabeça e disse-lhe:
—Minha filha, preciso confessar-lhe algo que me chocou tanto que
não tive coragem de contar para você e sua mãe. Nossa vivenda
hoje é um cemitério. Quando vim pela primeira vez com seu irmão,
tive a mesma vontade, mas fiquei transtornado ao deparar com um
campo-santo no lugar de nossa casa.
Mary empalideceu.

—Mesmo assim quero ir até lá. Sei que tudo mudou por aqui. Ver o
cemitério talvez seja até bom para esquecermos de uma vez por
todas nossa passagem por este lugar — disse, após alguns instantes
de silêncio.


Três dias depois, quando o marido de Mary saiu para encontrar-se
com comerciantes a fim de fechar novos contratos, o Senhor
Arquimedes arranjou uma desculpa aos outros membros da família
e saiu, levando apenas a filha e a esposa consigo. Foram rumo à
antiga morada, onde agora era o maior cemitério populai da corte.
No caminho, as duas olhavam a paisagem sem reconhecei quase
nada do que tinham deixado quando saíram às pressas do país. A
vizinhança desaparecera, e as casas deram lugar a fábrica^ têxteis e
de couro.
Pararam em frente ao enorme portão principal do cemitério-Mary e
a mãe desceram da carruagem acompanhadas pelo Senhor
Arquimedes. Nada falavam, apenas andavam olhando para um lad0
e outro.
Mary tentava localizar o local que fora sua casa, mas já não sabia
onde ficava. Percorreram o imenso corredor do campo-santo até o
portão dos fundos. Então Mary emocionou-se: reconheceu sua
árvore predileta. Ela estava florida e balançava com a brisa que
soprava naquela época do ano. Fazendo certo esforço, foi até lá.
Pareceu-lhe que a árvore também crescera. Abraçou o tronco e
chorou. Ao olhar para cima, uma flor caiu-lhe no rosto, e ela
apertou-a junto ao coração. Quantas lembranças lhe vinham à
mente...
Os pais a observavam, respeitando seus sentimentos. MarT então
prosseguiu em sua caminhada e ouviu o barulho da cachoeira.
—Quero ir até lá, vê-la, tocar mais uma vez suas águas J— pediu ao
pai.
Encontraram pelo caminho alguns garotos que se divertiam
Pegando frutas silvestres.
Mary olhava com atenção o caminho, outrora seu cúmplice, que
encobriu sua história de amor com o rei. Chegando à cachoeira, a
jovem senhora sentou-se em sua pedra preferida com a impressão
de que ali o tempo não havia tocado em nada; até os pássaros


pareciam os mesmos. Verificou que nela ainda estavam escritas as
iniciais M e H dentro de um coração.
Alisou a pedra com carinho e lembrou-se do dia em que o rei lhe
fizera um juramento de amor, cravando seu punhal de ouro e
diamante na rocha para marcar as iniciais dos dois, dizendo-lhe ser
tal gesto uma demonstração de amor eterno. E realmente naquele
dia ela tinha-se entregado a ele, recebendo como prova daquele
amor eterno seu filho. Sim, o filho era um amor eterno.
Tocou as águas, banhou o rosto. Os raios do sol formavam um arco-
íris no alto da montanha, iluminando e colorindo a cachoeira.
Voltou-se para o pai.

— Vamos embora, meu pai?
— Sim, minha filha, vamos embora. Não quero que você fique triste.
Tudo mudou por aqui, mas nós também mudamos, graças a Deus, e
para melhor.
Mary abraçou a mãe, que enxugava os olhos.
—Vamos, minha mãe, já vimos tudo que tínhamos para ver.
Percorreram o caminho de volta em silêncio, as mulheres
observando cada detalhe da estrada.
Ao entrarem no cemitério, Helen pediu ao marido:
—Arquimedes, vamos dar uma volta e olhar os nomes escritos nas
pedras? Podemos saber se alguns de nossos amigos morreram e
estão enterrados aqui.
Mary não se opôs. Aquilo parecia um sonho: sua antiga casa, seu
quarto, onde brincava de boneca, agora abrigava corpos mortos.
Andaram muito e encontraram nomes de algumas pessoas
conhecidas, falecidas bastante tempo antes ou recentemente. .
Assim, o Senhor Arquimedes sugeriu:
—Vamos embora. Não viajamos para procurar o passado, e sim
para usufruir de nossos direitos nesta terra. Deixemos a tristeza de
lado. O que passou, passou, acabou.
Saindo do cemitério, Mary olhou para trás e, fitando a solidão que
todo campo-santo parece ter aos olhos carnais, pôs-se a pensar:



quem visse aquele lugar jamais poderia imaginar que um dia
abrigara sua casa e que havia sido ali que ela recebera dentro de si o
filho do rei. Lá sonhara em ser feliz um dia, mas agora tudo era
silêncio, como o segredo guardado em sua alma. Tudo se perdeu no
tempo e no esquecimento, e assim foram enterrados seus sonhos e
seu grande segredo: partira levando um príncipe no ventre, mas ele
jamais poderia conhecer sua verdadeira origem.
Retornaram ao hotel, onde todos os esperavam, inclusive seu
marido, ansioso e preocupado. Correu até ela e, abraçando-a,
perguntou-lhe:

— Vocês se perderam? Estávamos preocupados com a demora!
— Não — respondeu Mary. — Empolgamo-nos com os muitos
lugares bonitos a que meu pai nos levou para conhecer.
O Senhor Arquimedes comentou baixo com o filho:
— Levei Mary e sua mãe aos arredores da cidade. Agora tenho
condições de mostrar às duas sua terra natal, pois quando
morávamos aqui não saíamos do mato.
— Também, naquela época não tínhamos condições financeiras —
acrescentou o filho.
Ao apresentarem-se para o jantar, enquanto atravessavam o salão
de refeições, escutaram de alguns mercadores ilustres que também
estavam por ali:
—O rei vai convocar todos. Ele ditará as novas regras contratuais
pessoalmente.
Assim que se sentaram à mesa, Mary perguntou ao marido:
— Você também será convocado para apresentar-se diante do rei?
— Pois é, ia mesmo comentar com vocês. Parece que a coisa está
ficando complicada por aqui — respondeu, um tanto Preocupado.
— O rei em pessoa está comandando e ditando as regras. Ouvi dizer
que a rainha Loretta está doente e, parece, afastada das decisões da
corte. É uma pena, porque essa mulher é uma potência. Ouvi
comentários de que é uma guerra familiar o velho cacique fez a

cabeça da rainha, mas o monarca não aceitou a interferência do
indígena, afastando a mãe do cargo que ocupava na corte. Falam
muito, mas na verdade ninguém sabe o que está acontecendo
realmente. Vamos esperar para ver. Fui convidad para participar,
juntamente com outros exportadores, de um palestra proferida
pelos conselheiros reais. No final será oferecid um coquetel com a
presença do monarca. Nosso agente está preparando tudo que é
necessário para eu responder ao que foi questionado e também
fazer perguntas de nosso interesse. Levarei um intérprete, e meu
cunhado e meu sogro podem vir comigo, pois cada participante
poderá levar, além do intérprete, mais duas pessoas. Será
conveniente que vocês estejam presentes, até mesmo por uma
questão de hierarquia. Sendo o Senhor Arquimedes um cidadão
desta terra, nada mais justo que represente a família. E finalizou em
tom de brincadeira: — Vamos beber do vinho d rei, uma honra que
nem todos conquistaram, e devemos já cuidar de nossos trajes;
afinal de contas, não somos índios, apena representamos o Brasil.
O Senhor Arquimedes respondeu à brincadeira: — Cuidado, meu
rapaz! Você se esqueceu de que o rei casado com uma índia? E, pelo
que falam, os indígenas falam escrevem melhor a língua do rei do
que eu que nasci aqui.

ENCONTRANDO O REI

Enquanto os homens se preparavam para cuidar dos interesses
comerciais da família, as mulheres aproveitaram para fazer compras
e conhecer todos os lugares e lojas indicados pelo guia.
Andando pelos bairros da grande metrópole, Mary comentou com a
mãe:


— A rainha ergueu uma escola em cada esquina. Será que ela
também educou a consciência?
— Mary, os nobres não têm esse tipo de sentimento. Tudo que
fazem é pelo povo e para o povo. Isso é o que falam, mas tente
contrariá-los e logo receberá a morte como prêmio.
A cidade estava limpa e bem cuidada, e os jardins floridos exalavam
um perfume suave e tranqüilizador. Disso a mãe de Mary tinha
saudade: o cheiro de sua cidade natal era bem diferente.
As construções modernas faziam inveja, eram um modelo para o
resto do mundo. As mulheres observavam tudo com admiração. Ao
passarem em frente ao palácio, pararam para contemplá-lo.
A mãe de Mary comentou baixinho:
—Quem pode acreditar que vivi grande parte da minha vida aí
neste palácio? Vi nascerem príncipes e princesas, convivi com reis e
rainhas... Quem pode acreditar?! Somente nós e mais ninguém.
—Quem pode, minha mãe, acreditar que existe um príncipe que
desconhece sua nobreza e origem? Mas nem por isso ele deixará de
ser feliz. Se Deus quiser, será mais feliz que toda família real junta.
Uma semana depois chegou o dia da palestra. O marido de Mary
arrumou-se com o requinte que a ocasião exigia; o Senhor
Arquimedes e o filho não fizeram por menos. Despediram-se,
recomendando que as mulheres se cuidassem.
Foi uma palestra altamente inteligente. O rei pretendia ajudar os
mercadores, diziam os palestrantes. Iria diminuir os impostos,
facilitando a entrada dos produtos no país, e incentivar os grandes
plantadores de cacau, café, cana-de-açúcar e outros produtos de alto
consumo, dando-lhes mais crédito, para assim melhorarem a
qualidade do que ofertavam.
O Brasil foi representado pelo genro do Senhor Arquimedes, que
ficou animadíssimo com as novas perspectivas oferecidas pelo rei.
Os boatos eram de arrocho contra os produtores, mas na verdade
era mais uma porta que se abria para os que desejassem progredir e

expandir os negócios. Os comerciantes, então, sentiram-se mais à
vontade, e não faltaram elogios enaltecendo o rei.
As 17 horas em ponto entrava no auditório o monarca, exibindo um
manto bordado com fios de ouro e aplicações de pedras preciosas.
Cumprimentou todos com a nobreza e a educação que lhe eram
peculiares.
Sentou-se elegantemente em sua cadeira e assinou os novos
acordos, enquanto todos observavam a caneta de ouro incrustada
de pedras preciosas que parecia ter vida em suas finas e bem
cuidadas mãos. Na mão esquerda usava uma aliança de ouro com
brilhantes, e na direita, um anel com o símbolo da coroa.
Os presentes olhavam-no com admiração e respeito. 0 Senhor
Arquimedes reparou que o cabelo loiro do rei agora tomava um tom
prateado nas têmporas, e a barba bem aparada mostrava alguns fios
brancos que se misturavam, dando-lhe um aspecto realmente
bonito. Alto e esguio, vestia-se com requinte e elegância.
Assim que terminou de assinar os documentos, guardou a caneta,
conversou alguns minutos com os presentes e em seguida propôs
um brinde. Foram abertas garrafas da mais fina bebida i corte,
servida ao rei em um cálice de ouro com o símbolo real, e em taças
de prata, também com a insígnia da coroa, a todos os convidados,
que ganharam a taça como brinde do soberano.
O rei ergueu seu cálice, desejando negócios para todos e paz aos
países, e levou-o aos lábios. Todos o imitaram no gesto.
Despediu-se cordialmente, fazendo votos de que todos se
divertissem e aproveitassem a ocasião para trocar idéias sobre
transações comerciais.
Enquanto ele se afastava do auditório, o Senhor Arquimedes
pensou consigo mesmo: "Ah! Se você soubesse que sou o avô do seu
filho... Aqui estou negociando com o pai do meu neto, um dos
homens mais poderosos do planeta".


Depois, a sós com a mulher, o Senhor Arquimedes comentou com
ela, que nem piscava os olhos de tão atenta que estava ao que falava

o marido:
—O rei é muito educado e não podemos negar sua inteligência e
coragem.
Entregou a taça de prata à esposa. Observando a peça, ela lembrou-
se do tempo em que serviu no palácio.
Dias depois, o marido de Mary chegou sorrindo ao hotel e chamou
toda a família. Exibiu convites para os jogos de sábado, em que toda
a família real estaria presente. Sorrindo para Mary, acrescentou:
—Você vai ver pessoalmente a semelhança entre seu filho e o
príncipe. Torço para que ele esteja presente, pois agora que é um
rapaz pode arranjar uma desculpa e ficar fora do cortejo, mas
espero que ele colabore conosco! Você veio até aqui e não pode
voltar sem vê-lo.
Mary, pálida, olhou para a mãe, que lhe correspondeu na
preocupação. O marido de Mary ainda comentou sobre a
possibilidade de ficarem num camarote próximo ao do rei, o que
deixou toda a família excitada, com exceção dos Arquimedes, que
conheceram a rainha Loretta.
Ficando a sós, Mary perguntou a Helen:
—O que vamos fazer, minha mãe? A rainha Loretta com toda a
certeza vai reconhecê-la e o rei pode reconhecer-me também, pois
mudamos, mas guardamos os mesmos traços. Você pode desculpar-
se dizendo estar com dor de cabeça, e eu ofereço-m* para fazer-lhe
companhia, sugerindo que eles sigam sem nós.
A mãe de Mary ficou pensativa por instantes.
— Eu gostaria de ir e você também quer ir, tenho certeza! Vamos
disfarçar nossa aparência. Coloco um lenço na cabeça. Po meu corpo
jamais serei reconhecida, pode ter certeza, pois engordei mais de
vinte quilos! — exclamou Helen, rindo, continuou: — Você pode
prender o cabelo e usar um chapéu Coloque roupas largas e bem
discretas, que ninguém vai prestar atenção.

Mary, ainda temerosa, ficou de pensar. Em seu quarto imaginou-se
olhando para o rei. O que aconteceria se ele a descobrisse?
De repente, veio-lhe a idéia: usaria um vestido bordado por
costureiras brasileiras, escolheria um bem discreto, que combinasse
com um de seus chapéus, e cobriria o rosto com u véu negro. Assim
estaria segura dos olhares reais.
Combinou tudo com a mãe. Helen inventou que lhe doía o ouvido,
e por isso cobria a cabeça com um lenço colorido. Mesmo não se
sentindo bem, não queria perder a oportunidade de estar perto da
família real, disse a todos.
Mary arrumou-se como planejara. O pai olhou-a e fico orgulhoso de
sua inteligência. A filha estava irreconhecível. Mãe e filha trajavam
roupas simples, mas elegantes, feitas por costureiras brasileiras.
O marido estranhou as vestes de Mary, mas pensou: "Sã coisas de
mulher, quer chamar atenção... Ainda mais que somo estrangeiros,
todos ficam nos olhando, mas discretamente, porque são educados
demais para incomodar alguém".
Chegando ao teatro, foram conduzidos aos camarote reservados.
Mary preferiu ficar com o marido enquanto os irmão e os pais
ficaram em outro.
De onde Mary se encontrava, dava para ver perfeitamente a família
real, embora estivesse um tanto afastada da mira deles. 0 camarote
do rei estava com as pesadas cortinas vermelhas fechadas. Um
mestre de cerimônias animava o ambiente, dando boas-vindas a
todos.
Na entrada, era distribuído um pequeno broche de prata com a
insígnia da rainha para as damas, enquanto os cavalheiros recebiam
um lenço branco perfumado com o selo do rei. O ambiente estava
bem cuidado, e tudo ali tinha sido meticulosamente planejado.
Eram servidos sucos, doces, biscoitos, vinhos e licores à vontade,
sem restrição, para as damas e cavalheiros. Estava incluído no
programa.
Em certo momento, o mestre de cerimônias pediu:


— Senhoras e senhores, daqui exatamente dois minutos as cortinas
serão abertas para que possamos receber nosso rei e sua família.
Peço a atenção de todos e comunico que também vamos dar início
às festividades de hoje. Divirtam-se e gozem do prestígio da
companhia da nobre família real.
Às 15h30 em ponto as cortinas lentamente se abriram. O coração de
Mary deu um salto. Primeiro entraram o rei e sua esposa,
aplaudidos de pé, e logo atrás apareceram a rainha Loretta e os
filhos do rei.
Mary sentou-se para não desmaiar. Sua mãe, no camarote vizinho,
também teve de sentar-se diante do quadro que se apresentava à
sua frente.
O rei vestia calça branca e uma túnica vermelha trabalhada com
pedras e fios de ouro jogada por cima da camisa de seda fina. O
cabelo prateado caía-lhe nos ombros, a barba bem aparada dava-lhe
um charme especial, e os olhos verdes brilhavam ao acenar para o
povo. Parecia mais alto e mais bonito, observou Mary.
O príncipe, filho do rei e herdeiro da coroa, sentou-se ao lado da
rainha Loretta. Ela estava pálida e parecia mais magra e mais velha,
embora ainda fosse muito elegante. Olhando para ela, via-se que era
uma verdadeira nobre, observou o marido de Mary.
O filho do rei e primeiro neto de Loretta era um belíssimo rapaz.
Mary teve a impressão de estar diante do próprio filho. Vestido de
azul-claro, seus olhos brilhavam como duas esmeraldas. Era muito
simpático e também acenava para o público. O cabelo loiro jogado
para o lado dava-lhe uma beleza diferente da dos demais jovens.
Mary observou que alguns fios de barba lhe brotavam no rosto,
juntamente com umas espinhas, como em seu filho Henrique.
Olhava para ele e para o rei e parecia não ver mais nada diante de
si. Ainda bem que tivera a idéia de cobrir o rosto, pois sentia as
faces em brasa. "Deus! E como um sonho... ou um pesadelo! Depois
de tanto tempo, estou aqui, frente a frente com aquele que me jurou
amor eterno: o pai do meu filho!", pensou.

O rei acenou para seu camarote, dirigindo o olhar para Mary, que
ficou paralisada e sem ação. Seu marido disse-lhe baixinho:
—Acene para o rei, meu amor. Mecanicamente, ela abanou a mão,
que tremia. A rainha também acenou, rindo para ela. O rei sentou-
se, e
todos fizeram o mesmo. "Graças a Deus", Mary suspirou aliviada.
Transpirava por todos os poros do corpo. O marido apertou-lhe
mão, que estava gelada, e perguntou-lhe:
—O que houve, não se sente bem? Tome um pouco de água.
—Estou bem, meu amor. Foi a emoção de ver o príncipe, tão
parecido com meu filho. Parece que estou diante do meu
Henrique... Se fossem gêmeos, não seriam tão parecidos.
O marido compreendeu sua aflição e falou-lhe em voz babea:
—Fique orgulhosa, você tem um filho parecido com um príncipe!
Viu a semelhança que existe entre os dois?! Quando o vi pela
primeira vez, fiquei como você, atônito.
O mestre de cerimônias anunciou o início dos jogos. N entanto,
Mary só conseguia prestar atenção no camarote real. 0 rei
conversava baixinho com a esposa, que ria e aplaudia os
participantes das provas apresentadas ao público.
O rei estava sentado entre as duas rainhas, a esposa e mãe. Os filhos
estavam divididos: o príncipe e a princesa loiros sentavam-se ao
lado de Loretta, e as duas meninas morenas, de cabelo negro e
brilhante, ao lado da mãe. A rainha Loretta parecia ausente. Mary
viu que ela acenava para os dois camarotes em frente e logo viu que
neles estavam os irmãos e cunhados do rei.
A rainha usava um vestido rosa todo bordado de pérolas e tinha um
diadema de ouro e pedras preciosas que brilhava no alto


da cabeça. Seu cabelo negro e brilhante descia até a cintura. "É uma
morena lindíssima", observou Mary.
O rei sorria, as meninas morenas aplaudiam e cochichavam entre si,
e o príncipe falava algo para a irmã, que balançava a cabeça, rindo.



Em dado momento, a rainha Loretta olhou em direção ao camarote
em que estava Mary, que disfarçou e fingiu não estar prestando
atenção, embora não perdesse um só detalhe do que se passava lá.
Loretta olhou para Mary tentando descobrir de onde a conhecia. Ela
não lhe era estranha, tinha certeza de que já a tinha visto, só não
lembrava quando.
As garotas olhavam para todas as direções e continuavam
cochichando entre si. Tudo correu muito bem.
Mary não saberia dizer o que sentia. Era como um sonho que
voltava depois de bastante tempo.
Terminados os jogos, os vencedores receberam das mãos dos
monarcas os troféus. O rei agradeceu aos participantes e pessoas
que prestigiaram o evento, comunicando que na saída todos
receberiam uma recordação daquele dia. Toda a família estava de
pé acenando para o público.
Logo as cortinas se fecharam. Artistas iriam continuar se
apresentando. Quem desejasse poderia ficar até o final da exibição,
que aconteceria às 19 horas.
Mary pediu ao marido:

— Vamos embora, estou preocupada com minha mãe, que não se
sente bem. Creio que já vimos as pessoas mais importantes desta
terra: a família real.
Saíram, e cada um recebeu uma pequena garrafa, contendo licor
para as mulheres e vinho para os homens. As crianças ganharam
doces.
A família do Senhor Arquimedes estava eufórica, cada um
comentava alguma coisa que tinha observado na família real. Os
assuntos principais eram a semelhança do príncipe com Henrique e
a beleza da rainha indígena.
A mãe de Mary cochichou-lhe:
—Tive a impressão de que a megera está bem doente. Ela é bem
mais jovem do que eu, mas está parecendo mais velha, você não
achou? — E sem pensar continuou: — Agora o maldito rei parece


mais bonito do que quando era jovem. Sua mulher é bonita, mas
não chega aos seus pés. — Mary apenas ouvia o que a mã falava. —
A única coisa que achei linda mesmo foi o príncipe, qu é a cara do
meu neto — disse Helen, por fim.

— Não posso lhe dizer exatamente o que senti e estou sentindo. Foi
uma sensação estranha. Tive a impressão de que foi apenas um
sonho. Para falar a verdade, acho que foi muito bom ficar frente a
frente com aquele a quem um dia confiei minha vida, a qual desejei
perder depois — disse Mary. — Agradeço a Deus pelo marido que
tenho, por meus filhos e toda a felicidade que alcancei na vida.
Desse rei não guardo a menor saudade. Aliás, diante dele,
perguntei-me: Estive mesmo com esse homem? Pareceu-me um
sonho. Não, um pesadelo!
TUDO TEM SEU TEMPO

Enquanto isso, no palácio, a neta mais velha de Loretta comentava
com o pai:
—Você reconheceu a família do menino que se parece com meu
irmão? Notei que ele não estava presente. O avô estava em um
camarote com uma senhora, que achei ser sua esposa, e outras
pessoas. No camarote vizinho estava o homem que o garoto nos
disse ser seu padrasto, tendo ao lado dele uma moça vestindo uma
roupa estranha. Bem, imagino que seja moda no país deles um
chapéu com véu cobrindo o rosto. Muito esquisita essa moda.


Loretta empalideceu. De vez em quando, ela mesma se lembrava
daquele garoto, que deveria estar um rapazinho tanto quanto o
neto. Ficara intrigada com a semelhança dele com o neto e por ele
ter o mesmo nome do rei.
Recordou que, na época, ao lhe indagar o nome da mãe, exatamente
naquele instante foi anunciado o reinício do espetáculo, e a
pergunta ficou sem resposta. Sua neta agora lhe despertava outra
dúvida: vendo aquela moça, teve a impressão de conhecê-la de
algum lugar, embora não tivesse visto seu rosto.
Algo passou de repente por sua mente: e se fosse Mary? Não, não
poderia ser, era uma loucura tal idéia! Imaginação, coisas do
pensamento.
Enquanto Loretta pensava na possibilidade de a moça ser Mary,
ouviu o rei respondendo para a filha:
—Não prestei atenção. Sei que vi aquele homem esta semana na
reunião que fiz com os produtores estrangeiros. Comerciante
brasileiro, é nosso maior fornecedor de café e chocolate. Parece-me
que ouvi de um dos meus conselheiros que ele veio com a família.
Loretta ficou calada. Não queria começar a encher a cabeça com tais
pensamentos. Seria totalmente impossível! Mas eles vinham mesmo
assim: e se Mary estivesse grávida quando foi embora, só Deus sabe
para onde? E se o garoto fosse seu neto? Teria de investigar.
Na segunda-feira cedo, a família do Senhor Arquimedes estava
acomodada na embarcação para fazer a viagem de volta. Todos
estavam ansiosos para retornar.
Um dia depois, Loretta conversava com um dos conselheiros da
corte e, com toda a astúcia de que sempre fora dotada, entrou no
assunto dos contratos recém-assinados pelo filho. O conselheiro,
respeitosamente, falou-lhe das grandes possibilidades que o rei
abria para o comércio exterior.
Citando a qualidade do café e do chocolate brasileiros, então o
maior e melhor país exportador desses produtos, mostrou-se


interessada em conhecer o nome do mercador brasileiro, dizendo ao
conselheiro:
—Ouvi meu filho comentar que ele trouxe a família para conhecer
nossa terra, é verdade?
Orgulhoso por estar trocando idéias com a rainha sobre assuntos
que fugiam da rotina de seu trabalho, respondeu-lhe, solícito:
—Oh, sim! Ele veio com a família. Na verdade, é brasileiro, mas os
pais são estrangeiros, e ele foi educado na França. Os sogros
nasceram aqui, em um dos povoados distantes da corte. Foram
embora tentar a vida em outro país e deu certo. Implantou no Brasil,
numa cidade chamada Ihéus, seu império. Conversamos muito. Ele
é simpático e inteligente, como o sogro, o Senhor Arquimedes.
Loretta lembrou-se de que sua antiga governanta, Helen, às vezes
lhe falava do marido e o chamava por um nome que não recordava
no momento, mas não era Arquimedes.


Talvez estivesse ficando mesmo velha, pensando tantas bobagens.
Mas o senso de não deixar-se ficar na dúvida deu-lhe uma idéia:
—Ouça, conselheiro, creio que deveríamos dar uma atenção
especial às mulheres da família do nosso grande produtor de café e
chocolate. Falarei com meu filho hoje mesmo e desde já lhe peço que
procure a família do Senhor Arquimedes e marque um chá para
sexta-feira, às 17 horas, no salão de eventos.
O conselheiro ficou satisfeitíssimo. A rainha parecia estar
recobrando a energia e a elegância de comandar com inteligência.
Por que a nova rainha não tinha feito aquilo? "Ah!", pensou ele.
"Ninguém pode substituir a rainha Loretta na forma de governar."
Acertaram os detalhes. A rainha assinou pessoalmente o convite,
carimbando-o com o selo real. Acrescentou convites para nobres
cavaleiros da corte e as respectivas esposas.
Assim que o conselheiro se despediu, solicitou uma audiência para
falar com o filho, em particular, e este imediatamente a recebeu com
todo o respeito que lhe devotava.


— Minha mãe, deseja conversar comigo?

— Sim — respondeu Loretta, sorrindo.
Expôs as providências que tinha tomado, mesmo sem consultá-lo,
por não envolver leis, mas apenas o lado social. Maravilhado, o rei
pensou: "Esta é minha mãe, a rainha Loretta! Que bom ela estar
novamente se interessando em ajudar-me". E apoiou totalmente a
brilhante idéia de Loretta.
No dia seguinte, à tarde, o conselheiro pediu uma audiência urgente
com Loretta. Ela o recebeu, sabendo que ele trazia o retorno do
expediente de que o tinha encarregado.
O conselheiro estava com ar preocupado quando entrou na sala,
observou Loretta.
—Rainha, infelizmente a notícia que lhe trouxe não é bem aquela
que desejava dar-lhe: a família do ilustre mercador brasileiro
despediu-se da corte e embarcou na segunda-feira. Faremos o
possível para a próxima vez não passar em branco. Informarei
Vossa Majestade quando o ilustre comerciante estiver em nosso País
de novo, provavelmente nos próximos seis meses.
Loretta colocou as duas mãos no queixo e suspirou profundamente.
Perdera uma grande oportunidade de tirar suas dúvidas
Pressentia que havia alguma coisa naquela família. Logo após a
saída do conselheiro, pôs-se a conjeturar: Mary e sua família
estavam ali por quê? Teriam algum plano de vingança contra o
filho? E se aquele menino fosse filho de Mary e do rei?
"E um castigo absurdo", pensou ela. "Preciso colocar as idéias em
ordem." Mas e se fosse verdade? Não podia viver com aquela
dúvida, precisava agir. O que poderia fazer para descobrir se suas
suspeitas eram verdadeiras?
Num estalo, encontrou a solução: como o rei investia alto na
produção brasileira, nada mais justo que enviar uma comissão para
acompanhar o investimento. Faria tudo para colocar pessoas de
confiança no comitê a ser formado. Assim, estaria conquistando o
respeito mundial em organização comercial e, ao mesmo tempo,


buscando o que mais desejava no momento: a verdade sobre o
garoto brasileiro.

A VERDADE VEM À TONA

De volta a Ihéus, mais do que nunca Mary dizia ser aquela a sua
terra natal. Por tudo que vira e sentira, ali era o melhor lugar do
mundo. Comentou com a mãe:
—Nunca mais quero pisar naquele lugar. Foi uma experiência dura
para mim, senti-me humilhada diante daquele que um dia me fez
sonhar com o impossível. Olhando para a megera da rainha Loretta,
lembrei-me de como agiu conosco. Foi mesquinha, mas continua lá,
de cabeça erguida, idolatrada como uma santa, quando, conforme
você mesma me falou, era amante do rei enquanto ainda era casado
com a falecida rainha e ela era a sua dama. Moralmente ela agiu
com desonestidade. Eu não, minha mãe. Apenas amei um homem
sem nada cobrar. Foi apenas amor, muito amor. Veja, agora ele está
casado com uma índia, e duvido que ela descenda de algum nobre.
—Vamos cuidar de nossa vida, filha. Deus nos ajudou muito.
Encontramos nesta terra santa a paz que nos faltava e ainda
grandeza e prosperidade.
—Estou pensando em convencer meu marido a não ir mais lá.
Podemos treinar uma pessoa de confiança e enviá-la como
representante. Vou interessar-me mais pelos negócios da família
para poder opinar. Nas próximas férias, convidarei meu marido
para ir à França, pois assim conheço outro país e vejo meu filho. Ele
gosta muito da França. Sempre me diz que lá é seu berço. Se você e
meu pai desejarem, vamos todos juntos. O que acha?


— Vamos ver, minha filha, vamos ver. A idéia é boa. Acho que
Henrique vai ficar muito contente com nossa visita.
— De agora em diante, farei de tudo para afastar meu marido
daquele lugar. Já temos o suficiente para viver em paz, não acha
minha mãe? Essas viagens dele me deixam abalada.
E assim fez Mary. Começou a interessar-se pelos negócios do
marido. Ele ficou tão entusiasmado com a curiosidade da mulher
que cedia a todos os seus pedidos.
Achou brilhante a idéia dela de escolher e preparar um dos gerentes
de vendas para representar as empresas no exterior, pois assim teria
mais tempo para a família e não se desgastaria tanto, podendo,
inclusive, comandar melhor os negócios.
Assim, começou a preparar o jovem Lindolfo. Mary aprovou a
escolha: o rapaz era inteligente, honesto e trabalhador, além de falar
três idiomas. Tinha certeza de que ele iria se dar bem e o marido
ficaria livre do compromisso que tanto a incomodava.
Nas férias, em vez de Henrique ir para o Brasil, o resto da família foi
ao seu encontro. Mary adorou a nova Paris, onde realmente se
sentiu bem. Tudo era muito bonito e fino. Aprendeu diversas coisas
importantes e expressou ao marido o desejo de, no futuro, mudar-se
para lá definitivamente. O marido gostou da sugestão da esposa,
pois amava Paris. Tinha estudado e morado lá por muito tempo.
Conhecia outros países, mas a França era o seu preferido.
Henrique estava um rapagão. Fios loiros formavam uma barba rala,
e sua voz tinha um timbre forte. Alto, com um corpo atlético,
praticava esportes todos os dias, sobretudo natação. Isso fazia sua
mãe lembrar-se do rei, que adorava nadar no lago que se formava
ao pé da cachoeira.
Mary olhava para o filho e recordava-se do filho do rei. Eram
irmãos, com poucos meses de diferença de idade. Vendo-os juntos,
poderia-se pensar que eram gêmeos.

Muito orgulhoso, Henrique exibia para a família suas excelentes
notas e disciplina no famoso internato em que estudava. Destacava-
se em idiomas, música e administração.
Falava perfeitamente a língua dos avós. O padrasto ficou

^pressionado com a habilidade do rapaz. Ele fora um aluno
aplicado, mas Henrique ultrapassava-o na capacidade e inteligência.

Não muito distante dali, a rainha Loretta conseguiu convencer o rei
a enviar uma expedição ao Brasil. O filho ficou orgulhoso da
inteligência da mãe. Lua de Prata, apesar de linda, não tinha
aprendido nada de etiqueta ou comando com sua mãe. Loretta
tentou ensiná-la, mas a esposa era de uma simplicidade fora do
comum.
De fato era importante e necessário formar uma comissão para
serviços no exterior, abrindo um canal de comunicação e
intercâmbio entre os países envolvidos.
Foi assim criado um grupo composto por auditores, conselheiros e
contadores para ir ao Brasil não somente para fiscalizar, mas
também acompanhar e conhecer de perto a produção que abastecia
a corte.
A rainha Loretta parecia ter readquirido o equilíbrio. Havia passado
por momentos difíceis com a chegada de Raul, o ex-cacique.
Logo após a ida do representante da família Arquimedes, o jovem
Lindolfo, ao reino de Loretta, foi solicitada permissão para a
entrada no Brasil da comissão enviada pelo rei. Causou uma
explosão de alegria na próspera Ilhéus a notícia da chegada dos
nobres. Para Mary e sua mãe, porém, isso foi motivo de inquietação.
No meio do ano, desembarcou no porto da cidade baiana a comitiva
real. Vieram três representantes da coroa e seus auxiliares,
totalizando dez pessoas.
Foram preparados as melhores acomodações para recebê-los,
criados foram treinados para atendê-los, e os melhores cozinheiros
foram requisitados para preparar tudo que desejassem provar.


A comissão foi recebida pelas autoridades do país com toda a
pompa que mereciam os representantes de um rei, pois era uma
grande honra para o Brasil receber enviados tão nobres em missão.

Tudo saiu como previra o marido de Mary. Os estrangeiros
maravilharam-se com o clima tropical e a beleza natural da terra. A
família do Senhor Arquimedes organizou um coquetel, em que
estariam presentes todas as autoridades e famílias importantes do
Estado.
Helen empenhou-se em organizar tudo.
—Vamos deixá-los boquiabertos — disse à filha. — Eles pensam que
aqui só existem pessoas ignorantes.
O chefe da comissão real passou muito tempo junto a Lindolfo,
conheceu vários empresários e mostrou-se simpático. Comentando
com o gerente do Senhor Arquimedes que o debcava muito seguro
lembrar-se de que o grande mercador era seu conterrâneo, a
conversa chegou exatamente aonde queria. Tomou nota dos dados
obtidos e verificou pessoalmente todos os passos da família desde a
chegada àquela terra, como adquiriram propriedades e investiram.
Ficou sabendo da menina viúva que chegou inconsolada, do
nascimento de seu filho, do casamento com o fidalgo empresário e
das filhas que nasceram dessa união. Por fim, soube que o jovem
Henrique estudava na França, tendo voltado apenas uma vez para
visitar a família, e que as mulheres da família Arquimedes eram
finíssimas senhoras, sendo Mary a mais bela mulher da cidade.
O informante de Loretta conseguiu todos os dados desejáveis, além
de fazer o trabalho de intercâmbio comercial, assinando projetos e
liberando verbas antecipadas para a colheita de cacau e café.
No dia do coquetel, a cidade estava em plena festa. Chegava gente
de cidades vizinhas, e autoridades de todos os Estados estavam
presentes, acomodadas nas suntuosas casas de amigos e políticos
locais.
Durante as apresentações, um dos conselheiros do rei aproximou-se
da esposa do Senhor Arquimedes e comentou:


—Conheci uma governanta da rainha Loretta que se parecia demais
com a senhora. Eu era muito jovem, mas já trabalhava como
mensageiro. Via sempre aquela senhora servindo a rainha enquanto
ela despachava. Depois nunca mais a vi nas dependências do
palácio.

Helen, sorrindo, respondeu-lhe:
—Com certeza nunca pisei no palácio e muito menos tive a honra
de servir a rainha Loretta. Saímos do povoado em que morávamos
por livre e espontânea vontade, aproveitando a oportunidade que o
rei nos concedeu de sair do país. Viemos para cá e graças a Deus
nos demos muito bem. Tive a oportunidade de conhecer de longe a
família real, quando visitamos o país há pouco tempo. Vi as duas
rainhas ao lado do rei. Encantei-me com todos. Quando morei lá,
nunca tive oportunidade de assistir aos jogos na companhia da
família real.
Logo o conselheiro pediu licença para cumprimentar os demais
convidados e ser apresentado às autoridades e famílias importantes
do país.
Mary aproximou-se discretamente da mãe e indagou sobre o que
queria o sujeito com ela.
—Imagine que ele me disse que conheceu uma governanta da
rainha Loretta parecida comigo. Pode ficar tranqüila: desconcertei-
o, falando que nunca pisei no palácio e só tive a oportunidade de
conhecer a família real na ocasião de minha visita à corte.
Pouco depois, o conselheiro aproximou-se de Mary com muita
cordialidade e sutileza.

— Senhora Mary, estou encantado com tudo o que vi por aqui.
Agora sei o porquê de a senhora não ir tanto à sua terra natal: vive
num paraíso! Fale-me, veio de lá muito criança, não?
— Não, senhor. Já era viúva. Casei-me jovem e meu esposo faleceu
um ano e poucos meses após o nosso casamento. Sabia que a
vontade de meu pai era tentar a vida fora do país, por isso pegamos
os recursos que meu marido me deixou, juntamos com os de meu

pai e viemos embora. Meu marido havia-me falado do Brasil, que
era um país maravilhoso, e sua terra, rica. Não nos aventuramos
como alguns ainda hoje pensam; viemos na certeza do que
queríamos. Trouxemos recursos. As terras daqui até hoje são muito
baratas, comparadas às de nosso país.
O conselheiro encantou-se com a beleza e a inteligência da jovem
senhora. "O rei realmente teve bom gosto. Se tivesse feito dela
rainha, também teria lucrado mais", pensou consigo mesmo. "Creio
que a rainha Loretta vai ficar satisfeita com o material que colhi.
Levo a certeza de que Mary teve um filho do rei e de que temos um
novo príncipe na família real."
Partiram satisfeitos os enviados do rei, e a família de Mary ficou
aliviada por ver-se livre deles.


A cidade de Ilhéus era então a princesa do norte do Brasil.
Trabalhadores libertos de todas as regiões migravam para lá em
busca de emprego, pois ali havia trabalho para todos. O dinheiro e o
luxo corriam entre os nobres como a água na fonte. Do sul do país
partiam navios carregados de especiarias e de mulheres bonitas que
iam tentar a vida entre os ricos de Ilhéus.
Alguns poetas destacavam-se, e os filhos das famílias abastadas
partiam para estudar fora do Brasil, principalmente na França, a
menina dos olhos dos jovens brasileiros. Podiam fixar-se sem
grandes problemas na nação. Os recém-formados voltavam com
cargo garantido na política ou no comércio do país.


Voltando à corte de Loretta, todos os membros da comissão
relataram o que viram e sentiram no país das maravilhas.
Destacaram a terra fértil e o clima tropical que permitiam o plantio
de culturas diversas durante todo o ano.
—O Brasil é uma terra que de tudo dá — comentaram com o rei.



Dois dias depois, o conselheiro-chefe da comissão estava sentado
perante a rainha Loretta. Com as mãos no queixo, ela procurava
controlar-se para não demonstrar a ansiedade que sentia.
O conselheiro entregou-lhe um relatório no qual descrevia todos os
pormenores do que descobrira, conforme tinha pedido a rainha. A
medida que lia o relatório, Loretta empalidecia.
Terminada a leitura, seus lábios tremiam um pouco. 0 próprio
conselheiro pegou uma taça com água, oferecendo-a à rainha. Ela
engoliu com dificuldade.
—Suas suspeitas foram confirmadas, Majestade. O Senhor

Arquimedes e a esposa mudaram de nome, mas os filhos
continuaram usando os de batismo. A Senhora Mary é a mais fina
mulher da região. Chegou a Ilhéus grávida de poucos meses, e
todos souberam que era viúva. Esse foi um dos motivos de a família
ter mudado de país e de vida. O marido dela é nosso fornecedor.
Formado fora do país, filho de pessoas nobres, tem uma cultura
elevada e casou-se com a moça por amor. Eles têm duas filhas e são
felizes. Parece que o passado foi esquecido por todos eles. A família
do Senhor Arquimedes é uma potência. Eu diria que é como se ele
fosse rei do país. Quanto ao filho do rei, estuda na França e é o
orgulho da família. Tem aptidão para línguas e há comentários de
que é músico de muito valor e interessa-se por política. Não sei o
que Vossa Majestade tem em mente, mas creio que da parte deles
foi esquecido por completo o envolvimento da senhora Mary com o
rei. Estiveram aqui a passeio e até participaram dos jogos com a
família real, como bem sabe. Discretamente, fiz algumas perguntas
à Senhora Mary, e ela me disse que Ilhéus é sua terra natal, que ali
está a sua vida. Não acredito que haja mais nenhum laço entre o
passado e o presente.
Loretta agradeceu ao conselheiro e recolheu o relatório.

— Após suas verificações e anotações com senhas conhecidas
somente por Vossa Majestade, aconselho-a a destruir esses escritos,

evitando, assim, aborrecimentos futuros — disse ele, antes de
retirar-se.
Loretta permaneceu por muito tempo trancada em seu gabinete
lendo, analisando e observando cada detalhe referente a seu neto.
Como agir diante daquela situação? Não podia falar ao filho que ele
era pai de um menino brasileiro. "Quanta luta enfrenta uma rainha
nesta vida!", suspirou. Talvez fosse melhor ser uma mulher do povo
e não precisar superar tantas barreiras.
Anotou o que lhe interessava e queimou o relatório. Esqueceria o
assunto por enquanto. Era tudo o que podia fazer.

A CADA UM SEGUNDO SUAS OBRAS


Após várias tentativas junto à rainha Loretta para restabelecer a
liberdade religiosa no país, com as igrejas sendo reabertas, e os
devotos, respeitados, o ex-cacique da pedra branca acabou tomando
uma séria decisão: partiu sem deixar pistas.
Loretta entrou em crise, afastando-se das decisões da corte. Ficou
bastante tempo calada e distante de tudo e de todos. Temia pela
sorte da corte e do próprio Raul.
Ele deixara a tribo, abdicando do cargo em favor do filho Raio de
Sol, e voltou para ajudá-la, conforme orientação do grande espírito
da mata. Ela concordara em receber ajuda, mas, retornando à corte,
tudo se tornou difícil. Não podia retroceder. Tentou adiar a decisão
e convencer o ex-cacique a esperar mais. Ele, porém, estava
determinado: voltara para resolver o que havia deixado para trás;
voltara para salvá-la e iria até o fim.
A pedido de Loretta, o rei ordenou uma busca por toda parte à
procura do ex-cacique, mas foi em vão. Loretta não se conformava.


Teria Raul morrido? Para a tribo não retornara; em nenhum dos
castelos da família D'armis estava. Até nos velhos e abandonados
mosteiros procuraram-no, mas ele não foi encontrado.
Lua de Prata às vezes ficava triste quando falava no pai, mas depois
dizia confiante:

— Meu pai está vivo e fazendo o que lhe mandou o grande espírito
da mata. Ele sempre sabe o que faz, e um dia saberemos onde está.
Talvez nunca mais possa tocá-lo com as mãos, mas toco-o todos os
dias com o amor do meu coração.
Lua de Prata ia à aldeia uma ou duas vezes por ano e sentia muito
orgulho do irmão, o cacique da pena dourada. Ele dava
prosseguimento ao trabalho iniciado pelo pai. A tribo era uma
fortaleza, preservava a própria cultura e usava métodos
desenvolvidos por seus próprios membros, altamente avançados na
área da saúde e da educação. Todos estudavam; não havia
analfabetos.
Loretta pensou em procurar o grande espírito da mata para ter
notícias de Raul, mas a nora disse-lhe que o pajé tinha partido com
o grande espírito. Ela poderia falar com outro grande espírito, mas
não com o que conhecera. O pajé falecera, e o grande espírito agora
voava com ele pelos ares, percorrendo o mundo e protegendo a
aldeia. Só voltaria a falar com os vivos quando o pajé pudesse voar
sozinho e conhecesse todos os lugares sagrados. O novo espírito não
iria atendê-la, pois tudo o que o anterior deixara ele iria respeitar, e
o grande espírito, antes de levar o pajé, havia-a instruído sobre
como proceder. Se Loretta não cumprira o combinado, a
responsabilidade era somente dela, não cabendo a culpa a mais
ninguém.
A rainha ficou deprimida a ponto de pensar em morrer. Não tinha
como mudar uma diretriz depois que forçara a nação inteira a
segui-la. Era tarde.

O ex-cacique fez o possível para que ela entendesse quem era Deus,
e que, se passamos por sofrimentos e humilhações, é para o nosso
próprio bem. Porém, Loretta jamais aceitou isso como regra.
Raul desaparecera sem deixar nenhuma pista. No castelo D'armis,
tudo permanecia intacto. Aos poucos, Loretta foi acostumando-se
com sua ausência, esforçando-se para continuar lutando e ajudando

o filho e o povo. Já não tinha tanta força e disposição como
antigamente, mas ainda era uma mulher altiva e determinada, com
uma personalidade forte. Era admirada por todos.
Bem longe dos olhos que o conheceram como filho do conde, padre,
cacique, pai e avô estava o mais novo assistente do Papa vestido de
preto e afastado do mundo. Com o coração repleto de alegria, Raul
sentia-se em paz. Tudo que deixara para trás lhe vinha por vezes à
mente como um sonho esquecido dentro da memória. Apenas a
lembrança da aldeia, de Lua Branca e dos filhos causava-lhe a
sensação de luz acompanhada de paz.
Ajoelhado no túmulo dos santos, orava diariamente por todos
aqueles que passaram por sua vida, revendo as imagens queridas
dos filhos, de Lua Branca, do povo da aldeia e do grande espírito da
mata. Loretta aparecia diante dele como algo divino.
Em confissões diárias com Cristo, reconhecia que não desejava
voltar ao passado, mas também não queria que as imagens dos que
fizeram parte de sua caminhada desaparecessem.
Recebera o perdão da Igreja. Passou por um novo julgamento
interno, tendo sido absolvido por unanimidade. Recebeu
novamente a hóstia consagrada das mãos do Santo Papa e sentiu
grande emoção quando recolocou a batina preta com que tanto se
identificava.
Sentia-se seguro. Estava em casa e jamais deixaria a segurança da
Casa do Pai por nada. Dali, esperava partir para o reino da paz,
onde poderia reencontrar-se com todos os seus.
Acompanhava fielmente o Santo Papa, aprendendo com ele os
caminhos da Casa do Pai. Servia com alegria e amor aquele que era


seu pai espiritual e dividia com os irmãos o pão da vida, que era a
Igreja.
O ex-cacique da pedra branca estava com o cabelo branco e mais
curvado. Dentro da batina negra parecia mais magro, mas
transmitia uma segurança muito grande para quem tinha
oportunidade de receber suas palavras.
O Sumo Pontífice designou-o para ajudá-lo nas pregações e
celebrações das missas. Semanalmente, celebrava a missa interna e
Preparava os novos irmãos para a grande mesa do Mestre.
Sua bondade e espírito de renúncia o destacavam dos demais.
Próprio Papa estava convencido de que era o homem indicado Para
resgatar o direito dos fiéis de ter suas igrejas de volta e amar a Deus
livremente, sem sofrer punições, no país em que a rainha havia
expulsado os católicos e destruído as igrejas.
Era preciso, pois Cristo assim dissera: juntar o rebanho do Pai não é
trabalho fácil, mas é necessário, e aquele homem era o filho de Deus
mais indicado naquele momento para iniciar a missão. Em Roma,
comentava-se até que seria o sucessor do Papa. Falava e escrevia em
várias línguas, e por isso participava de todos os eventos
humanitários. Representava o Sumo Pontífice pelo mundo, sendo
adorado e respeitado por todos.

TAL PAI, TAL FILHO

As filhas de Mary cresceram tanto quanto a fortuna do pai e do avô.
A família adquirira propriedades luxuosas em Paris e já residia na
famosa França.


O Senhor Arquimedes e a esposa agora faziam excursões pelo
mundo. Mary acompanhava o marido em eventos e cuidava da
educação das filhas.
Henrique era homem feito. Mary olhava para ele e pensava se o
outro também crescera tão bonito e parecido com o pai. O filho
destacou-se na política; apesar de muito jovem, assumira o cargo de
chanceler, tendo sido indicado pelo rei, com o apoio de todos os
nobres e conselheiros.
Falava vários idiomas e relacionava-se com todos os países do
mundo envolvidos no progresso mundial. Seu nome estava em
todas as bocas, especialmente nas das jovens filhas de fidalgos e
pessoas ilustres.
Era também músico respeitado e requisitado pela nobreza, e por
isso apelidaram-no de Chanceler da Música e Chanceler de Ferro.
Tocava piano e compunha belas canções. As vezes, brincava: Se não
fosse político, provavelmente tentaria viver da música.
A França concorria com os países mais avançados do mundo. O
jovem chanceler imprimiu ao país uma política ousada e forte,
criando desagravo com a coroa que dominava o comércio mundial.
Conselheiros vieram negociar com o chanceler da França, tentando
impor-lhe regras e condições. Henrique, porém, enfrentou-os com
punhos fechados e firmeza. Os franceses aplaudiram o Chanceler de
Ferro, que derrubou o topete do rei que se fazia grande diante de
todos. Se fosse necessário, lutariam para defender seus ideais.
Os maiores contratos brasileiros agora eram com a França tendo
sido cancelados totalmente os compromissos da família
Arqui¬medes com o reino de Loretta. Mary sentia-se satisfeita com
isso.
Seu filho era tão ou mais aplaudido que o próprio rei. Os avós
sentiam-se orgulhosos e por vezes comentavam entre si:

— Filho de peixe, peixinho é. Tal pai, tal filho.
O mundo passava por grande transformação; era uma época
marcante na história mundial. Muitos homens se sobressaíram.

Alguns países abriram as portas para o comércio, enquanto outros
faliram.
No meio de toda a turbulência, a França destacava-se, pois o jovem
chanceler transmitia à juventude do mundo inteiro o espírito da
renovação. Era o modelo, o ídolo da moderna política.
Henrique foi concebido na corte de Loretta, nasceu em Ilhéus, foi
alfabetizado e encaminhado aos estudos pelas mãos dos avós, do
padrasto e da mãe. Tornou-se cidadão francês assim que se formou
e não voltou mais ao Brasil, primeiro porque toda a família passou a
residir na França e segundo porque se envolveu com a política, que,
então, lhe tomava todo o tempo.
Mesmo estando distante de Ilhéus, que tanto amava, jamais
esqueceu o Brasil. Facilitou o intercâmbio comercial e cultural entre
os dois países, interligando-os numa política livre e aberta. Abriu as
portas da França aos brasileiros. Comprava todos os seus produtos
e vendia com baixo imposto o que o povo desejasse. Da França para

o Brasil ia de tudo: perfumes, seda, louças, mobílias, livros,
remédios, vinhos, sementes, couro, lã, ferramentas, instrumentos
musicais, além da autorização de uso da língua e música francesas
na cultura brasileira.
Muitas vezes o Chanceler da Música promovia e participava de
eventos musicais com artistas do mundo inteiro. Fazia
apresentações beneficentes em prol de países pobres, incentivando a
música, uma de suas paixões.
O Brasil, especialmente a Bahia, recebeu grandes incentivos nas
áreas cultural e artística. Os poetas baianos receberam muita
influência do Chanceler de Ferro.
Henrique jamais comentava sua origem, brincando sempre com os
familiares:

— Pareço ser francês, mas sei que não sou um. Como brasileiro,
ninguém iria acreditar em mim, porque não me pareço com os
brasileiros. E, da terra da minha mãe, poucas lembranças tenho. Só
fui gerado lá. Então deixemos assim: sou francês, porque fiz da

França minha pátria e aqui encontrei campo aberto para abraçar um
futuro brilhante. Sou brasileiro nas lembranças, e no aconchego do
lar e no coração serei sempre eu mesmo.
O país de Loretta passava por mudanças profundas. A Igreja pedia
apoio na luta para reconquistar o direito dos católicos de ter suas
igrejas de volta. Países uniram-se para defender o pedido de Roma,
e a França, por intermédio do Chanceler de Ferro, foi o primeiro a
levantar-se na campanha pela liberdade da fé.
O país vivia seu momento de glória e logo recebeu suporte de
praticamente todas as nações. A França era modelo de liberdade e
progresso para o mundo e tinha-se destacado nos últimos anos,
superando a corte de Loretta. Nesta, a rainha já não tinha a força e a
disposição de antes. Seu filho tentou resistir, mas acabou gerando
grande conflito no país. Parecia que todas as forças adormecidas
pelo tempo se levantavam contra ele.
A maioria das estátuas de Loretta foi destruída, os jovens tomaram
as ruas pedindo liberdade de culto, os mais velhos queimavam os
livros que renegavam a Igreja, jogando as cinzas em frente ao
palácio.
O monarca olhava com tristeza e apreensão o reino que antes vivia
em plena paz. Perdia a força. O povo, que o amava, agora o odiava
publicamente. Loretta, antes chamada de Grande Rainha, era então
chamada de Grande Bruxa.
O rei pediu apoio para algumas nações no sentido de proteger o
reino do que chamava de invasão dos padres. Foram poucas as que
se uniram a ele, pois a maioria era católica e aliada de Roma. A
França, a maior delas, estava do lado dos católicos.

Foram alguns anos de luta, ao longo dos quais Roma avançou cada
vez mais para recuperar o direito de reerguer conventos e igrejas no
país de Loretta.
Esta sofria e definhava a cada dia. Fora avisada pelo grande espírito
das matas; recordava-se de toda a conversa. Ele lhe havia pedido
que partisse dela a iniciativa de reabrir as portas das igrejas.


Devolveu a Raul o direito de amar a Deus não somente nas matas,
mas também nas cidades. Ele iria ajudá-la a encontrar-se com Deus
e corrigir em tempo alguns de seus erros. O grande espírito lhe
havia pedido que transformasse em um convento o castelo em que
ela, com as próprias mãos, aprisionara e matara um homem. Sim,
ela matara Hari, e quantas outras almas tinham desaparecido no
esconderijo da torre.
Na aldeia, diante do espírito das matas, ela havia concordado, mas,
chegando à realidade da corte, tudo mudou. Tentou segurar Raul,
fazê-lo esquecer do compromisso assumido. O ex-cacique fez de
tudo para que ela cumprisse o prometido, mas foi impossível
convencê-la. Não obteve sucesso e aconteceu o que não esperava:
ele desapareceu.
Seu país estava em guerra, e ela não podia mais aparecer em
público. O povo, que antes a venerava, agora a detestava. Os vivos e
os mortos pareciam levantar-se contra ela.
O rei, abatido, sentia-se sozinho. Ele, que abrira as portas do reino
para o mundo, agora olhava com tristeza o mundo fechando-lhe as
portas. O país sofria com o embargo comercial imposto pelas outras
nações; faltava tudo que antes era ofertado por diversos países.
O povo exigia-lhe que cedesse aos pedidos da Igreja, pressionado
pela fome. Moradores do campo invadiam a cidade, saqueando e
queimando escolas. Panfletos cobriam as ruas: "Queremos comer,
queremos paz, queremos liberdade. Fora a dinastia de Loretta, a
grande bruxa do século!".
O cerco apertava-se, e o rei não viu outra solução a não ser aceitar o
encontro com o chanceler da França, que lhe propunha, pela última
vez, um acordo amigável. Se isso não acontecesse, a solução seria
partir para a tomada do país pela força dos exércitos.

O rei chamou todos os nobres cavaleiros e conselheiros da corte. A
rainha Loretta também foi convidada para participar da reunião.
O monarca teria de assinar o acordo com a Igreja: liberdade para
todos os católicos e reparação dos danos cometidos por seus pais.


Pelo acordo, deveria ainda ceder os recursos necessários para a
reconstrução dos templos e conventos, fazer as pazes com Roma e
permitir que os católicos do país vivessem livres, sem perseguições.
Pálida, Loretta não encontrava palavras para contrariar o filho.
Alguns conselheiros a olhavam, aguardando suas palavras, mas ela
permaneceu em silêncio.
O rei então passou adiante a ata que todos deveriam assinar e
autorizou o conselheiro-chefe a enviar a resposta ao rei da França,
dizendo que receberia o chanceler para negociar o acordo.
—O jovem francês, o Chanceler de Ferro, é um homem do futuro.
Tenho de reconhecer que sabe liderar a nação com punhos de ferro.
O rei da França é um felizardo. Pode dormir tranqüilamente
enquanto o chanceler guia o reino — comentou o rei.
Todos os súditos baixaram a cabeça. O príncipe, sentado entre os
conselheiros, ergueu a cabeça para o pai e disse-lhe:
—Meu pai e rei, peço-lhe licença para lembrá-lo de uma coisa muito
importante: o rei da França criou oportunidades para os filhos de
sua nação. O chanceler não vem da família real; é, sim, um filho do
povo e talvez tenha-se destacado por isso, pela oportunidade que
recebeu, assim como aconteceu com outros cavaleiros, o que faz da
França uma grande potência. Peço-lhe, meu pai, que após o acordo
permita que cavaleiros inteligentes mostrem seu talento político e
nos ajudem na administração. Perdoe-me a ousadia, mas creio que
todos os conselheiros concordam comigo: a liderança do nosso país
está apenas em nossas mãos, nas mãos da família real. Minha avó
Loretta revolucionou o reinado de meu avô, fazendo-nos alcançar
prestígio e prosperidade. Agora é necessário fazer outras mudanças
se desejamos reconquistar o respeito de que sempre fomos
merecedores. Abra, meu pai, novos cargos, novas funções dentro do
reino. Vamos trabalhar juntos no sentido de recompor a paz e o
respeito em nossa nação.


Loretta tinha os olhos marejados de lágrimas, apesar de lutar para
não demonstrar emoções tidas como femininas numa reunião
política. Orgulhou-se do neto. Ele era inteligente e prático
O rei, comovido, mas sem demonstrar emoção, disse-lhe:
—Meu filho, diante de tal situação, reconheço que você tem razão.
Os novos tempos exigem mudanças, e conto com a sua colaboração.
Loretta apenas ouvia. Após todos terem oportunidade de falar, o
rei, voltando-se para ela, perguntou:


— Minha mãe e rainha, nada tem a nos acrescentar?
— Que os tempos mudaram e o príncipe está certíssimo em seu
alerta. E hora, meu filho, de mudanças, e uma delas é deixar-me de
fora dessa decisão, porque minhas idéias já não acompanham os
tempos de hoje. Resta-me a percepção, e posso garantir-lhe que meu
neto está apto a ajudá-lo muito mais do que eu. Conceda-me o
afastamento da mesa de negociações, nomeie o príncipe para
ocupar minha cadeira e faça como ele o aconselhou: coloque um
filho do povo na cadeira deixada vaga por ele. Traga um jovem para
ocupá-la, nomeie um chanceler para a corte.
Todos a olharam respeitosamente, sabendo que ali estava a
verdadeira soberana: ela reconhecia que era tempo de parar, que
seu poder acabara.
O rei ficou um pouco confuso com o pedido feito em público por
sua mãe, a maior conselheira entre todos os conselheiros, pois ouvia
todos, mas a palavra final era sempre dela. Os conselheiros,
cavaleiros e até mesmo a rainha Lua de Prata e o restante da família
real sabiam que a palavra de Loretta era incontestável. O que ela
decidia se tornava lei.
0 príncipe aproveitou o silêncio do pai:
—Outra vez peço licença ao rei para dar minha opinião diante do
pedido de minha avó, na verdade ex-rainha. Sabemos que a rainha
de fato é sua atual esposa. Minha avó carrega apenas o título, mas
não o direito de reinar. Creio que já cumpriu seu dever, fez o
melhor que podia. Agora é hora de cada um assumir sua parte,

contribuindo para o bem-estar geral. Atenda ao pedido dela feito à
mesa, diante de todos. Isso já é uma prova de escolha pela
liberdade. Seus últimos conselhos abrem novos horizontes para a
nação.
Assim, foi estabelecida também em ata a saída definitiva de Loretta
dos assuntos da corte, passando o neto a ocupar sua cadeira. Loretta
despedia-se do reinado.

HÁ SEMPRE UMA NOVA OPORTUNIDADE

O príncipe foi apresentado ao povo como o novo regente da corte, e
seu primeiro pronunciamento foi:

— Abrirei inscrições para os nobres filhos da nação ocuparem
cadeiras na corte.
Foi anunciado o desligamento da rainha Loretta das decisões gerais
da nação. Houve manifestações e passeatas contra e favor, gerando
um início de conflito, logo controlado.
O assunto principal era a possibilidade de pessoas, que não fossem
da linhagem real, ocuparem cargos de confiança na corte. A tradição
era mantida há séculos: os novos conselheiros eram sempre filhos
dos velhos conselheiros, e por isso apenas famílias nobres
ocupavam espaço no palácio. Muitos jovens animaram-se com a
proposta do príncipe.
O país estava agitado com a vinda do chanceler da França. Corriam
de boca em boca diversos boatos. O rei deu ao príncipe plenos
poderes, e este trabalhou arduamente, conseguindo, em pouco
tempo, colocar ordem em vários setores da corte.

O povo estava confiante, voltara a acreditar no rei. Este fez um

e

pronunciamento anunciando a chegada do chanceler francês as
decisões que seriam negociadas entre os dois países. Prometeu
estabelecer a paz e buscar recursos externos. Pediu a compreensão
de todos, demonstrando boa vontade em ceder às vigências
populares. Dessa forma, o país voltou a dormir sossegado.

O rei orgulhava-se do filho. Não havia percebido até então o quanto
era talentoso.
Loretta mudou-se para o castelo D'armis. Todos respeitaram sua
decisão. Ela tinha o direito de viver onde se sentisse bem, e toda a
família a cercava de atenção e carinho.
Instalou-se no quarto preparado, quando se casara com Raul.
Passava os dias andando pelos jardins do castelo, indo até o lago em
que se tinha entregado ainda virgem a Hari e meditando sobre a
própria existência.
Tudo estava silencioso à sua volta. À noite, ficava na varanda
observando as estrelas e revivendo o passado. Por vezes o pranto
lhe vinha, acompanhado de remorso e medo.
Olhava ao redor e perguntava-se: "Onde está Raul, onde? Deus, se
ainda me resta tempo, envie-me Seu filho e meu salvador. Quero
segui-lo, ouvi-lo. Necessito do seu perdão".
Andava curvada. Seu cabelo tornara-se branco, e seus olhos, outrora
verdes como duas esmeraldas que brilhavam à luz do sol, estavam
cinzentos e sem brilho. Sua pele, que antes lembrava um fruto
rosado, transformara-se pelas rugas.
Pediu à família e aos que a serviam que não comentassem nada a
respeito do que se passava no reino. Queria viver seus últimos dias
em paz. Desligou-se por completo da corte e de suas antigas glórias.
O país estava em clima de festa com a expectativa da chegada do
chanceler francês. Loretta percebeu que havia uma agitação
incomum no castelo: damas e cavaleiros corriam, sorriam e
cochichavam. Um medo abateu-se sobre seu coração: seus
familiares não tinham aparecido; teria havido uma revolução e os


seus tinham sido aprisionados?
Chamou uma das damas e perguntou-lhe:

— Todos foram proibidos por mim mesma de comentar qualquer
coisa da corte, mas, diante de algo que me preocupa, fale-me, por
favor, o que está acontecendo por lá.
O exército fazia a guarda para garantir a total segurança do
convidado ilustre. Um destacamento militar acompanhava o
chanceler. O rei em pessoa, junto com o príncipe e nobres
cavaleiros, aguardava o visitante.
Vários homens da guarda pessoal do chanceler, vestidos em fardas
de gala, cumprimentaram os nobres e abriram caminho para a
passagem do chefe de seu Estado.
Elegantemente vestido, apareceu o chanceler. Com seu porte bonito
e altivo e uma invejável postura, Henrique apresentou-se diante dos
olhos curiosos dos nobres e da multidão.
O cabelo loiro caía-lhe sobre os ombros, e a barba dourada cobria
seu rosto. Os olhos verdes faiscavam como duas esmeraldas recém-
polidas.
O rei empalideceu, o príncipe ficou sem palavras, e a multidão não
acreditava no que via: era o próprio rei em pessoa, pensaram os
mais velhos que haviam conhecido o monarca na juventude.
—Ele é idêntico ao príncipe. Se tirasse a barba, confundiria qualquer
um... Como são parecidos! — diziam os mais jovens.
O chanceler aproximou-se, apertou a mão do rei, que notou estar
gelada, e do príncipe, sorrindo. Entre ambos, Henrique sentiu-se
orgulhoso. Quem diria que ele, um dia, estaria sendo recepcionado
pelo grande e temido rei e o príncipe regente?
Aquele que, quando garoto, chamara a atenção da família real por
ser parecido com o príncipe percebia naquele instante que
continuava parecido com ele e o próprio rei, mas agora a situação
era outra.
O comentário era geral: todos queriam ver o sósia do príncipe. A
dama de companhia de Loretta não resistiu à tentação de contar-lhe:


—Senhora, perdoe-me a ousadia, mas tenho de relatar algo: o
chanceler francês é idêntico ao seu neto e chama-se Henrique.
Loretta estremeceu. Lembrou-se do relatório do conselheiro-chefe
da comissão que visitara o Brasil. O filho de Mary era seu neto com
toda a certeza e estudara na França.
Não tinha mais nenhuma dúvida: pai e filho estavam frente a frente,
decidindo o destino da nação. Que destino era este? Seria a mão a
Deus unindo pai e filho? Agradeceu à dama, e esta se retirou.
Concluídas as negociações, os chefes das duas nações anunciaram
as decisões tomadas. Foi um clamor geral. O povo dançou e rezou
de mãos dadas, comemorando a vitória de Deus Músicos entoaram
hinos de louvor ao Senhor; outras pessoas levando bandeiras com o
símbolo da cruz, dirigiram-se ao palácio e, na frente dele,
manifestaram-se:
—Viva o novo rei! Viva o chanceler!
No último dia de sua estada, o chanceler confessou ao rei e ao
príncipe:
—Conheci Vossa Majestade ainda garoto. — Apontando para o
príncipe, acrescentou, sorrindo: — Guardo suas luvas e também um
broche valioso que ganhei da rainha Loretta. Perdoem-me a
curiosidade, mas senti a falta dela. O que houve com ela?
Impressionado, o rei respondeu:
—Minha mãe não passa bem. Afastou-se do cargo e repousa em um
dos castelos da família.
A conversa prolongou-se. O rei lembrou-se de que o chanceler era
filho adotivo daquele que um dia fora seu maior fornecedor
brasileiro e puxou assunto sobre as origens do rapaz. À vontade,
Henrique relatou:
—Na verdade nasci em Ilhéus, embora seja um pouco filho desta
terra. Minha mãe enviuvou e partiu para o Brasil, levando-me no
ventre. No Brasil, minha família instalou-se e prosperou, graças a
Deus! Meu padrasto formou-se na França, e lá eu também me senti
em casa. Minha mãe apaixonou-se pela nova Paris, e nossa família


passou a viver lá. Naturalizei-me francês, mas minhas origens
partiram daqui. Minha mãe contou-me que possivelmente tenho
muitos parentes por parte de pai, mas ela não chegou a conhecê-los.
Meu pai foi soldado e morreu lutando pelo país. Por isso estou
satisfeito com nosso acordo de paz. Indiretamente sou também
beneficiado através dos meus parentes.
Um tremor percorreu o corpo do rei, mas mesmo assim ele arriscou-
se a fazer a pergunta que lhe veio repentinamente ao pensamento:
—Como se chamava seu pai? Como se chama sua mãe?
—Meu pai chamava-se Henrique. Minha mãe, Mary, deu-me o
nome de meu pai possivelmente para tê-lo perto dela. Pouco me
falou dele, apenas que o amou demais. Quando criança, eu a
aborrecia com perguntas sobre eles dois. Certo dia, contou-me que
namoravam escondidos em uma cachoeira que, em toda tarde de
sol, terminava num grande arco-íris formado no alto da montanha.
Eu perguntava demais. Curiosidade de criança! Também me contou
que meu pai desenhou numa das pedras que havia perto da
cachoeira as iniciais de ambos como prova de amor. Depois, percebi
que sofria com minhas perguntas e parei de atormentá-la. Ela foi
muito feliz com meu padrasto, falecido recentemente, e agora está
em uma excursão por Roma com uma de minhas irmãs.
O rei pegou uma taça e levou-a aos lábios. Não poderia ser verdade

o que ele temia: Henrique, seu filho! Sem perceber a sensação que
causava nos demais, perguntou:
—Você nasceu em que mês e ano?
O chanceler, rindo da curiosidade do rei, respondeu-lhe e depois se
dirigiu ao príncipe:
—Agora, mate a minha curiosidade: fale-me sua idade. Enquanto o
filho, sorridente, passava ao outro os dados de
seu nascimento, o rei relembrava o desaparecimento de Mary.
Estaria ficando louco? Não queria acreditar que suas suspeitas
pudessem ser verdadeiras.

O chanceler voltou à França deixando boa impressão ao povo
daquele país. Comentava-se que era a cara do rei. No palácio, às
escondidas, uma garota olhava para o francês com paixão e
admiração. Era a filha do rei, a princesa Diana.
Enquanto o jovem príncipe trabalhava abrindo pastas e formando
ministérios, os conselheiros percorriam o reino para favorecer e
proteger os que desejassem cultuar santos católicos.
Chegaram mensagens de diversos países parabenizando o rei pela
sábia decisão, reabrindo as portas para o comércio em geral. De
Roma o rei recebeu consideração e a confirmação de que, dali seis
meses, uma comitiva estaria chegando à nação para implantar nos
corações adormecidos a luz da fé.
O soberano passava as noites andando de um lado para o outro.
Lua de Prata tentava ajudá-lo com palavras simples, mas sinceras e
cheias de amor. "Meu marido sofre com toda essa mudança, mas
assim que as coisas se acalmarem voltará a ter paz no coração",
pensava. Mal sabia ela que as noites maldormidas do esposo tinham
outro motivo: o chanceler da França.
Certa tarde, o rei ausentou-se. Acompanhado apenas por um dos
homens da guarda pessoal, foi até o castelo D'armis, onde se
encontrava a mãe.
Loretta o recebeu com um abraço afetivo e carinhoso. Parecia outra
pessoa. O rei ficou penalizado olhando para a mãe: sempre tão
altiva e bem-disposta, agora vivia completamente sozinha e
afastada do mundo.
Quando ficaram a sós, deitou a cabeça no colo dela, suspirando
amargamente. Loretta alisou o cabelo do filho, notando que
prateavam. "Mais do que nunca está parecido com o pai", observou.

— Meu filho, o que acontece? Você está magro e abatido. Por acaso
está doente? Nunca o vi assim tão debilitado! O que se passa? Abra
o coração. Perdoe-me se fui egoísta em deixá-lo com tantos
problemas a resolver. Se tiver vontade de falar, eu o ouvirei. As

vezes, o que sai do coração da mãe vale mais que as palavras de
todos os amigos.

— Minha mãe, quem está em seu colo não é o rei, mas seu filho, um
homem desesperado. Aprendi com você a manter a dignidade e
decidir o que é melhor para o povo, mas agora sofro como um
homem comum. Fiz o que o mundo queria, e a população está feliz.
Povo feliz, rei satisfeito, não é assim? O rei está realizado, mas o
homem está infeliz, e por isso vim aqui, a seus pés, não como
monarca, mas como filho. — E relatou os encontros que teve com o
garoto brasileiro, agora chanceler da França. — Não pode haver
tantas coincidências, minha mãe. Preciso saber se Henrique é ou não
meu filho.
Pela primeira vez na vida Loretta não pensou para falar.
—Vou contar-lhe tudo desde o início, filho. Bem sabe que forcei a
família de minha governanta a sair do país. Apenas não sabia que a
moça estava grávida nem para onde foram. Juramos não tocar mais
no assunto e assim fizemos.
A rainha confessou também suas suspeitas desde que vira o garoto,
tão parecido com o neto, e que ficara impressionada com o nome
dele. Fez o filho lembrar-se de quando lhe sugerira enviar uma
comissão ao Brasil para acompanhar os negócios. Na ocasião,
confiou ao conselheiro-chefe da comitiva, já falecido, a missão de
investigar o que suspeitava. Retornando ao reino, ele apresentou-
lhe provas concretas de que Mary era a moça com a qual ele estivera
envolvido na juventude. Os pais trocaram de nome, mas os filhos
continuaram com os originais.
Para os habitantes de Ilhéus, ela era uma jovem viúva desesperada
que perdera o marido em batalha. A família, que já tinha vontade de
tentar a vida em outro país, no sentido de ajudar a moça a
reconstruir a vida decidiu mudar-se para o Brasil.
Contou-lhe que vira Mary apenas uma vez, de longe, no porto,
antes do embarque, e que, quando estivera na corte acompanhada
do marido e dos pais, teve a sensação de que a conhecia.

—Quando minhas netas lembraram que o menino parecido com o
príncipe era filho do fornecedor brasileiro que a acompanhava, senti
que havia algo estranho.
Após revelar ao filho tudo o que sabia a respeito de Henrique e de
sua família, ambos permaneceram em silêncio por instantes. Foi o
rei quem falou primeiro:
—Minha mãe, o que fazer? Preciso de sua ajuda. Loretta ponderou
sua resposta:
—Meu filho, a mão de Deus junta o que tentei espalhar. Sei que
abriu as portas de nosso país para Roma. Sei também que em breve
ouvirei os sinos das igrejas tocando, chamando os fiéis para a missa.
Não tardará e verei cruzando por aqui procissões de padres e
nobres acompanhando o rei e sua família. Vejo que Deus age
segundo Sua vontade. Ele sabe esperar com sabedoria o momento
certo e não é vingativo; é, sim, amigo que dá oportunidade até
mesmo àqueles que, como eu, destruíram Suas obras. Ele está
agindo, e Sua vontade é maior. Tenho certeza absoluta de que não
preciso fazer mais nada. Ele já decidiu o que é melhor para todos
nós. Fique calmo, meu filho, e procure perdoar-me. Cometi muitos
erros levada pela ambição e a falta de fé. Deus fará por nós o que for
melhor, principalmente para vocês, que são inocentes. Esperemos o
porvir. Henrique é seu filho, sim, e Mary está morando na França
com a família.

As igrejas reabriam as portas. 0 país de Loretta dividia-se na fé e
houve muitos conflitos e rebeliões em todo o território. Cada qual
defendia suas teorias, e os católicos retomavam com alegria a
liberdade de amar a Deus dentro dos templos.
Reformou-se um antigo convento para receber os enviados de
Roma. Vinham assumir definitivamente as igrejas como
representantes da casa de Deus.
O rei cumpria rigorosamente o acordo assinado com os países
aliados à Igreja, especialmente com o chanceler da França. Designou
uma guarda especial para fazer a segurança dos representantes


papais.
A catedral estava totalmente pronta para recebê-los, tendo sido
todas as instalações bem inspecionadas por uma comissão formada
por membros da Igreja indicados por vários países.
O soberano da França comunicou ao rei Henrique que ele em
pessoa, acompanhado do chanceler e de alguns membros da família
real, gostaria de homenagear os padres enviados de Roma, pedindo
permissão para tal.
Foi como uma bomba; a notícia espalhou-se rapidamente. O país,
que tinha sofrido e perdido muito nos últimos tempos, agora
recebia a oportunidade de reerguer-se. O pedido foi aceito, e o país
preparou-se para receber o requintado rei da França e o belo
chanceler.
A comitiva de Roma chegou em três embarcações de porte médio. O
Santo Papa liberou, para tão especial missão, um cordeiro do
rebanho do Senhor, passivo e ao mesmo tempo portador de enorme
disposição ao trabalho na casa do Pai.
Toda a família real e a corte foram receber os enviados. Assim
fizeram também as pessoas que resgataram o direito da fé,
enchendo as ruas. Guardas espalhados por toda parte garantiam a
segurança de todos.
O tempo estava frio e sombrio. Os padres, com chapéus e batinas
negras, amedrontaram um pouco os jovens, que até então não
haviam tido contato com eles.
O cortejo seguiu até o convento. A primeira atividade seria a
preparação de uma missa em praça pública, onde seriam montados
palanques especiais para acomodar reis e rainhas de outros países
que participariam da grande conquista de Cristo.

Lua de Prata, durante todo o trajeto, olhava para o cardeal que
representava o Papa e liderava os padres envolvidos na missão. Ele
vestia uma pesada e larga batina negra, andava meio curvado e na
cabeça tinha um chapéu preto de abas largas. A barba branca e
comprida transmitia uma paz muito grande.


Por instantes, os olhos de ambos se cruzaram. Pareceu-lhe que o
coração ia saltar fora do peito, tamanha a emoção que expe
rimentou ao olhar o religioso. Sentiu vontade de chorar, mas com
seguiu controlar-se para não deixar as lágrimas rolarem na frente da
multidão.
Percebeu enorme doçura naqueles olhos e pensou no pai: Por onde
andaria ele? Lembrou-se do grande espírito das matas: somente nele
e no pai encontrara tanta ternura no olhar.
Emocionada, ao retornar ao palácio, em seus aposentos deu vazão
às lágrimas. O rei andava tão absorto nos últimos tempos que já não
tinha tempo para ela. Veio-lhe uma saudade muito grande da aldeia
e de seus irmãos. Precisava ir até lá, já fazia quase um ano que não
os via. A saudade era demais! Procurava não aborrecer o marido,
mas sofria muito por estar solitária.
As filhas, agora duas lindas moças, eram princesas bastante
cobiçadas pelos países vizinhos. Foram educadas e preparadas para
casar-se e reinar ao lado dos maridos. Morenas, de cabelos negros e
lisos, tinham os traços finos do pai. A mais moça era parecida com a
avó Loretta na ambição e na astúcia.
Mal podia imaginar Lua de Prata que, desde a vinda do chanceler
da França ao país, a filha mais nova arquitetava um plano: casaria-
se com o Chanceler de Ferro custasse o que custasse.
Lua de Prata sentia que o marido vivia distante e aborrecido-Já não
a procurava como antes. Era atencioso e gentil, mas parecia
pensativo, doente e envelhecido. Via com certa tristeza que ele ía
deixando nas mãos do príncipe todas as decisões importantes.
Certa manhã, tomou coragem e pediu para falar-lhe a sós. Este a
recebeu espantado, pois era a primeira vez que a esposa 0
procurava para uma audiência como cidadã comum.
Assim que entrou, observou que ela estava com olheiras pela noite
mal dormida. Sentiu remorso por não estar cumprindo os deveres
esponsais para com ela.


Recebeu-a educadamente e convidou-a para sentar-se na cadeira
real, o que ela recusou, desculpando-se.
—Meu marido, vim até aqui para fazer-lhe um pedido-gostaria de
visitar meus parentes na aldeia. Estou saudosa do povo e de meu
irmão. Desejo vê-los.
O rei entendeu então o quanto estava em falta com todos eles.
Prometera ao cacique da pena dourada que levaria Lua de Prata
duas vezes por ano à aldeia e agora lembrava-se de que não tinha
ido nenhuma vez naquele ano, que já chegava ao fim.
Tomou-lhe as mãos e levou-as aos lábios.
—Perdoe-me, meu amor! Não tenho sido bom companheiro nos
últimos tempos. Deixei-a de lado sem perceber que estava sofrendo.
Bem sabe que não posso afastar-me da corte, mas vou ordenar que
tudo seja preparado para sua viagem. Se nossas filhas desejarem,
poderão acompanhá-la. Caso não queiram ir, não insista. Vá e fique
lá o tempo que desejar. Apenas lhe peço que não me abandone.
Abraçaram-se, e Lua de Prata viu os olhos do rei cheios de lágrimas.
Também chorou, mas não falou nada. Devia mesmo estar cansada e
saudosa, por isso andava tão sensível, pensou.
Combinaram que partiria dali três dias. Lua de Prata convidou as
filhas para acompanharem-na; a mais velha ficou contente com a
viagem, porém a caçula desculpou-se, dizendo não estar desejosa de
ficar no silêncio das matas. Resolveram então que a princesa Luana
iria com a mãe, e Diana ficaria na corte, representando as mulheres,
ao lado do pai e do irmão.
Diana começou a preparar-se para conquistar o belo jovem francês.
Iria seduzi-lo para casar-se com ele porque o amava e queria ser
amada por ele. Desde a primeira vez que o vira, guardava um
segredo dentro do coração: amava Henrique e lutaria com todas as
forças para tornar-se sua esposa.
Uma semana depois que a mãe e a irmã partiram, Diana mal
conseguia suportar a ansiedade: o rei da França e a comitiva real
estavam chegando à corte e iriam hospedar-se no palácio do pai.


UM AMOR IMPOSSÍVEL


A corte estava em festa com a chegada da nobreza francesa. Após o
cerimonial político, a que apenas os homens estavam presentes, foi
anunciado um jantar de gala no palácio, onde a princesa Diana
apareceria ao lado do pai e do irmão recepcionando as mulheres da
França e de outros países amigos.
Diana preparou-se não como princesa, mas como uma pantera que
quer dominar e conquistar todos os machos à sua volta. Apareceu
deslumbrante. O pai e o irmão não acreditaram quando se
apresentou diante deles.
Não havia um olhar masculino naquele ambiente que não fosse para
ela. Alguns eram de admiração pela beleza exótica da princesa;
outros, de paixão e desejo.
Naquela noite, o rei poderia tornar-se o homem mais poderoso do
mundo se a filha tivesse aceitado a proposta de casamento de um
rei do Oriente. Este mandou consultá-la se gostaria de ser sua
quinta esposa. Possuía uma das maiores fortunas do mundo e
estava ali não porque fosse católico, mas por ser um político
importante. A princesa gentilmente recusou o pedido.
Diana só tinha olhos para Henrique, que a fitava hipnotizado.
Nunca imaginara que a indiazinha se transformaria naquela
belíssima mulher. Seu coração batia aceleradamente cada vez que
ela o olhava.
Após o jantar, artistas começaram a apresentar-se, encantando os
convidados. Henrique aproximou-se lentamente de Diana e
sussurrou-lhe:


—Posso ser executado por minha ousadia, mas preciso dizer-lhe
que amo a França e por ela jurei minha vida, mas, diante de você,
pedirei de joelhos a meu rei que me venda a seu pai como escravo
para poder viver somente para servi-la.
A princesa enrubesceu. Seus olhos brilhavam como duas pérolas
negras escondidas por trás dos grandes cílios. Estava tão próxima
de Henrique que lhe sentia o hálito e o perfume.
Os olhos verdes e cintilantes do jovem chanceler estavam fixos nos
de Diana. Ela lhe respondeu:

— E eu, Henrique, pedirei de joelhos a meu pai que o receba nesta
corte se desejar ver-me feliz ou me entregue ao rei da França para
que me torne a esposa de seu nobre chanceler.
— Você me permite implorar a meu rei para pedi-la e casamento
para seu chanceler?
—Aceito sua oferta — respondeu, maliciosa.
—Por favor, não brinque comigo. Fale-me francamente: o que acaba
de dizer-me é verdadeiro?
—Sim, eu o amo de todo o coração. Quero ser sua esposa.
—Conversarei com o rei da França e ele falará com seu pai. Não
sairei desta corte sem a certeza de que será minha esposa. Quero vêla
amanhã no jardim próximo à saída leste. Espero-a às 16 horas.
Não falte, pelo amor de Deus — implorou o chanceler.
O rei notou os olhares entre a filha e o chanceler da França. "Meu
Deus, não faça isso comigo! Abri as portas do meu país, estou
abrindo as portas dos conventos e das igrejas e farei tudo que me
pedir, mas não permita que isso aconteça com meus filhos", pensou,
angustiado.
Disfarçadamente, o rei da França não perdia um só movimento dos
passos da princesa. Ela seria sua, de uma forma ou de outra. A
rainha da França estava gravemente enferma, mas, como possuía
várias amantes, não sentia falta dela. Diante daquela beldade,
porém, lamentava não estar viúvo.

Como a esposa não tinha muito tempo de vida e em breve seria um
viúvo bastante cobiçado, a coroa da França já tinha destino certo:
Diana. Além dos lucros que levaria para a coroa, possuiria a mais
linda mulher que seus olhos já haviam vistos.
No outro dia cedo, o chanceler procurou o rei da França. Estava
nervoso. Nunca se aproximara do monarca para pedir algo para si,
mas agora se arrastaria a seus pés por toda a vida para obter o amor
de Diana.
Assim que fez o pedido, o rei tossiu nervosamente. Quando
imaginaria que o chanceler fosse pedir-lhe o que ele também
desejava para si? Andou de um lado a outro, virou-se para o rapaz e
perguntou-lhe:

— Sabe o que está me pedindo?
— Sim, Majestade, tenho consciência do pedido que lhe faço —
respondeu imediatamente.
O rei sentou-se e ficou olhando fixamente nos olhos do jovem
Henrique. Lembrou-se do juramento real: ao fiel e digno súdito
conceda o que de melhor pensou em ter para si. Portanto, teria de
ceder Diana ao seu honrado chanceler. "Infelizmente um rei não
pode ter tudo que almeja", pensou.
Balançou a cabeça e estendeu a mão para o rapaz.
—Farei seu pedido ao rei, e antes de partimos deixaremos acertada
a aliança entre a França e a corte do rei Henrique.
O chanceler agradeceu, feliz como uma criança que recebe o melhor
presente do mundo. Ansiava pela hora do encontro com Diana para
contar-lhe as boas-novas.
Pensativo, o soberano da França lembrou-se: "O rei tem outra filha,
pelo que me disseram. Será tão bela quanto Diana? Vou informar-
me. Se não fico com esta, quem sabe a outra não pode ser minha...
Preciso manter boas relações com o rei Henrique e seu filho".
A tarde, a princesa livrou-se das acompanhantes e esgueirou-se pelo
jardim, rumo ao encontro marcado com o chanceler. No meio dos
arbustos, ele a esperava, transbordando de alegria e paixão.

Assim que ela se aproximou do esconderijo, puxou-a para si e, ante

o susto da moça, abraçou-a. Ficaram escondidos nas sombras das
robustas árvores floridas que enfeitavam e perfumavam os jardins
do palácio.
Naquele momento, o rei assinava os expedientes para a inauguração
da primeira catedral do país. Estavam presentes diversas
celebridades, e o Monsenhor enviado de Roma seria o responsável
pela cerimônia inaugural.
O monarca estipulou o prazo de uma semana para os pastores de
Cristo percorrerem todo o reino, levando a bênção aos fiéis e dando
início à grande batalha: unir o rebanho que Loretta havia
dispersado.
A primeira missa seria celebrada na catedral pelo Monsenhor às 10
horas do dia seguinte, e os religiosos continuariam as pregações,
tendo a segurança e a proteção do monarca.
Toda a realeza estava presente na catedral. O Monsenhor vestia-se
de preto e tinha uma estola branca que dava um ar singelo à barba
comprida como flocos de neve. O cabelo ralo e branco transmitia
dignidade.
Após o almoço, alguns visitantes partiram, enquanto outros se
preparavam para seguir viagem no dia seguinte. O rei da França
pediu uma audiência particular com o rei Henrique, que se mostrou
gentil em recebê-lo.
O francês desejava manter boas relações com o outro, por vários
motivos. Um deles era sua filha mais velha, que não estava
presente, que ficou sabendo ser até mais bonita que a irmã.
Sentados frente a frente, iniciaram a conversa. O monarca da França
expressou o desejo de manter as portas de seu reino abertas para
Henrique e convidou-o para visitar o país, levando a família, o que


o filho de Loretta acolheu com muita satisfação.
Após acertarem vários detalhes importantes, o rei da França pediu
ao outro que liberasse os súditos e afastasse os guardas para não
ouvirem o que diria em seguida, por tratar-se de algo confidencial.

O rei Henrique empalideceu. Teria o outro conhecimento da
identidade de seu filho?

— Meu nobre amigo, tenho um último e mais caro pedido a fazer-
lhe: meu chanceler, o mais fiel dos súditos que tenho dentro do
reino, deseja a mão de sua filha, a princesa Diana, em casamento.
Ambos estão apaixonados. Sabe como são os jovens de hoje. Sei que
talvez tenha preparado sua filha para casar-se com algum rei ou
príncipe, mas asseguro-lhe: daria de bom grado a mão de minha
própria filha ao chanceler se assim ele me pedisse. Confesso que
cheguei a sonhar com essa possibilidade, mas a eleita do coração do
chanceler é sua filha, que corresponde aos sentimentos dele.
Henrique sentiu uma pontada no coração e levou a mão ao peito.
Tudo pareceu rodar à sua volta. O rei francês levantou-se para
sustentá-lo e oferecer-lhe um copo com água. Ficou em silêncio, sem
entender o porquê do choque causado, pois o companheiro era
muito liberal em questão de casamento, já que ele próprio se casara
com uma índia.
Henrique se refez lentamente e respondeu ao rei:
—Meu amigo, falarei com minha filha, a princesa Diana. Não posso
lhe responder imediatamente, mas prometo que, dentro de três dias,
antes de seguir viagem, voltamos a conversar sobre este assunto.
Enquanto isso, nos jardins do palácio, escondidos entre as árvores
floridas, Henrique e Diana trocavam juras de amor.
Diana tinha herdado a astúcia de Loretta e trazia no sangue a
liberdade indígena. Não queria perder o chanceler por nada e já
havia decidido: "Serei a esposa de Henrique; portanto, pouco me
importa esperar pelo casamento para pertencer a ele de corpo e
alma". Por isso, ao despedir-se dele, disse:
—Esta noite, deixe a porta do quarto entreaberta. Irei ao seu
encontro. Nada mais quero neste mundo a não ser você.
O moço empalideceu: não poderia tirar a honra de uma princesa
dentro da casa do pai. Fora educado dentro de um regime livre, mas
severo em questões morais. Seria o fim de sua carreira!

Percebendo-lhe o embaraço, a princesa acrescentou:
—Vou apenas vê-lo, isso não é pecado! Depois de amanhã você
partirá e não sei quando o verei novamente — e afastou-se,
sorrindo.
Henrique observou-a enquanto se afastava. Só pensar que ficaria
sem vê-la atormentava-lhe a alma. "Deus!", pensou ele. "Preciso
deixar tudo combinado e voltar para casar-me com Diana o mais
rápido possível."


0 rei da França mandou chamar o chanceler, a quem comunicou o
que se passara entre ele e o pai de Diana.
O chanceler ficou preocupado. Por que o rei não dera a resposta de
imediato? Teria outros planos para Diana? Desesperado, perguntou:
—E se ele recusar a mão de Diana, que faremos?
—O primeiro dever de um homem é pedir, depois ele mesmo
decide o caminho a seguir. Aguardemos — respondeu o rei
calmamente.
Durante o jantar, o rei, abatido, mal tocou na comida. Olhando para
ele, o príncipe pensou: "Meu pai está cansado! Não descansou nos
últimos dias. Ainda bem que logo, logo, poderá tirar uns dias de
folga e quem sabe ir ao encontro de Lua de Prata para repousar um
pouco".
Antes do horário habitual, o rei pediu licença e anunciou que estava
se retirando, mas o filho continuaria representando a casa. Pediu
que a filha o acompanhasse.
Diana estremeceu. Sabia que o rei da França tinha pedido sua mão
em casamento ao Chanceler de Ferro. Com certeza o pai iria
consultá-la sobre o pedido do rei. Trocou um olhar com Henrique e
seguiu o pai. Assim que entraram nos aposentos reais, o pai,
ansioso, comunicou: —
Diana, minha filha, o rei da França pediu-me sua mão em família
devem renunciar aos sentimentos pessoais em favor do povo.
Atravessamos um momento difícil em nosso país, o povo se divide,



estamos enfraquecidos, e seu casamento com um francês será visto
como uma traição. Se consinto nele, terei de conceder trânsito livre
para todo cidadão da corte ir e vir da França. Estarei entregando nas
mãos do rei nossa coroa. Por favor, minha filha, eu lhe imploro: não
me obrigue a mais uma humilhação. Um dia, na juventude,
renunciei a um grande amor em favor da coroa. Depois conheci sua
mãe e reencontrei o sentido da vida. Você é jovem. Amanhã tudo
isso terá passado e você encontrará alguém de quem irá gostar tanto
ou mais que o chanceler.
Diana colocou as mãos no rosto e pôs-se a chorar. Não acreditava no
que ouvia: então o pai não aceitava dar sua mão ao chanceler.
Olhou para ele e disse-lhe, com voz sofrida:
—Você se casou com uma índia com o consentimento de minha avó.
O povo aplaudiu seu gesto de humildade. Meus tios e tias casaram-
se com índios, cavaleiros e damas da corte, mas vejo que guarda
orgulho e preconceito dentro do coração. Henrique é um chanceler
honrado que em nada envergonharia o reino ou a coroa. O povo o
aplaude até mais que ao rei. Se não permitir meu casamento com
ele, enviarei um pedido a Roma para entrar num mosteiro. Se deseja
que eu renuncie à vida, prefiro um convento a ficar neste palácio.
O rei levou a mão ao coração. Não podia falar a verdade para
Diana, dizer-lhe que amava Henrique tanto quanto a ela, que eram
irmãos e por isso não deveriam casar-se, que ele não guardava
nenhum orgulho no coração ou preconceito contra os filhos da
França.
Diana saiu correndo do quarto do pai. Atravessou os corredores
chorando em desespero, passando pelas damas, que não
entenderam nada. Jogou-se em seu leito, soluçando. Queria morrer!
Como viver sem Henrique? Era preferível morrer. Se o pai não
retrocedesse, consentindo no casamento, ela também partiria para
sempre daquele lugar.
Ocorreu-lhe então uma idéia: combinaria com Henrique de fugir
com ele. Renunciaria a tudo e a todos. Pouco lhe importava a coroa.


Não pedira para ser princesa, queria mesmo era ser feliz.
O palácio estava em total silêncio. Diana dispensou as damas,
alegando precisar ficar sozinha para repousar. Cuidadosamente,
atravessou os corredores que levavam até os aposentos em que se
recolhera o chanceler. Empurrou a porta entreaberta, jogou-se nos
braços de Henrique chorando e contou-lhe a conversa que tivera
com o pai.
Com a experiência política que possuía, Henrique percebeu que o
rei inventara uma história para afastar Diana dele, mas por quê?


Na realidade, seu casamento com Diana beneficiaria o país, abriria-
lhe as portas do mundo. Alguma coisa séria envolvia o rei. Só havia
uma explicação: tinha dado a mão de Diana para algum príncipe ou
rei e aguardava o momento certo para dizer à filha.
Abraçou-se a Diana e disse-lhe:
—Não chore, minha querida, você será minha esposa. Meu rei hoje
me disse algo que agora compreendo: o dever de um homem é
pedir em primeiro lugar, depois ele determina o seu destino.
Ficaram muito tempo conversando e planejando o que fazer. O
chanceler acalmou Diana e pediu que ela retornasse aos seus
aposentos e descansasse. Prometeu-lhe discutir pessoalmente com o
rei a situação deles e que não desistiria dela por nada no mundo.
Diana ficou mais tranqüila com a certeza de que Henrique a amava
e iria levá-la consigo, de uma forma ou de outra. Ela esperaria,
confiante em seu amor. Ele fizera-lhe uma promessa, e ela sabia que
tudo que ele determinava cumpria.
Logo cedo, o rei arrumou-se para sair, comunicando aos presentes
que assim que terminasse o desjejum sairia para uma visita ao
castelo D'armis. Diana apressou-se em pedir:
—Meu pai e rei, posso lhe fazer companhia?
O pai assentiu, satisfeito, pois era uma oportunidade para conversar
com Diana sobre o assunto ainda sem solução.
A manhã estava nublada, mas não fazia frio. Diana estava abatida,
observou o pai. "Pobre filha, como deve estar sofrendo! Ah, Deus,



por que isso foi acontecer?!", amargurou-se.
Durante o caminho, conversaram sobre a falta que faziam Lua de
Prata e Luana, a beleza da catedral e a tranqüilidade que o
Monsenhor transmitia aos fiéis.
Assim, chegaram ao castelo D'armis sem tocar no assunto. "Na volta
terei mais argumentos. Depois que conversar com minha mãe,
estarei mais seguro para falar", pensou o rei, ao passo que Diana
raciocinou consigo mesma: "Ele veio falar com minha avó. Tenho
absoluta convicção de que ela continua sensata e vai dizerlhe que o
temor dele não é aplicável. Coitado do meu pai! Eu o arno tanto.
Acho que está cansado, mas depois que conversar com a avó Loretta
tudo vai mudar". E, sonhando, desejou: "Quero que Henrique
conheça minha avó mais de perto. Quem sabe quando nos casarmos
eu a convide para passar uma temporada conosco".
Loretta os recebeu com muito carinho; abraçou e beijou a neta com
verdadeira ternura. Amava bastante os filhos do falecido marido, os
seus próprios e os de seus filhos, pensou, olhando para Diana.
—Minha querida, você está tão linda, mas parece-me cansada. Foi a
viagem até aqui que a deixou assim?
—Acho que sim, vovó — respondeu a neta carinhosamente.
Perguntou dos outros membros da família e soube que Lua
de Prata e a neta Luana estavam na aldeia.
Olhou para o filho e percebeu que ele fora até ali porque algo sério
acontecia. Sabia da inauguração da catedral e dos padres que
desembarcaram na corte. Seria alguma coisa relacionada com isso?
Serviu-lhes um lanche e chamou uma de suas damas para
acompanhar Diana pelos jardins, recomendando que não se
afastassem demais dos arredores do castelo e voltassem para o
almoço.
A sós com a mãe, Henrique deitou-se no macio divã de carvalho
talhado e desenhado por mãos de artista, afundando o corpo nas
almofadas de penas de ganso. Loretta colocou a cabeça do filho no
colo.


O rei começou a chorar. Loretta passou as mãos enrugadas no
cabelo prateado de Henrique.
—O que está acontecendo, meu filho? Abra o coração para sua mãe!
Entre lágrimas, o rei contou a ela que teria de comunicar ainda
naquele dia ao monarca da França se consentia ou não o casamento
de sua filha, mas não encontrava solução. Como poderia negar a
mão da filha a um homem tão correto e nobre como o chanceler da
França?
O próprio rei francês revelou-lhe que daria a mão de sua filha de
bom grado e muito gosto se o rapaz assim tivesse pedido. Tinha
tentado fazer com que Diana desistisse da idéia, mas sabia que ela
estava magoada e firme em sua decisão de casar-se com o chanceler.
Loretta ficou paralisada, com um suor frio percorrendo-lhe a
espinha.
"Deus, podia acontecer tudo, menos isso!", pensou. Havia-se
afastado da coroa, mas a situação exigia sua participação urgente.
Levantou a cabeça de Henrique e respondeu-lhe:
—Meu filho, volto com você para a corte.
O rei olhou-a assustado e ao mesmo tempo esperançoso: sua mãe
era luz no fim do túnel.

— Chega o momento em que Deus me obriga a corrigir um dos
meus erros. Você consentirá o pedido do casamento feito pelo rei da
França!
— Minha mãe, não posso permitir isso, eles são irmãos! — gritou.
— Ouça-me primeiro, depois é sua vez de falar — Loretta procurou
acalmá-lo. — Você vai propor o seguinte: dará a mão de sua filha
após minha estada com a família do chanceler. Caso fique
comprovado que nada impede a união de ambos, o noivado será
anunciado, e o casamento, marcado. Vou acompanhá-lo sem
levantar suspeitas. Com certeza o rei da França tomará você como
modelo: sua maneira de consentir a união de seus filhos é elegante e
nobre, pois a honra real é mais enaltecida. Falarei com Mary, e
juntas encontraremos uma saída para meus netos. Se Deus nos

coloca frente a frente, é porque acha necessário. Que seja feita então
Sua vontade para evitarmos maiores sofrimentos para ambos. Se
Deus mostrar-nos que é necessário revelar a verdade a eles,
encontraremos a forma mais justa de contar-lhes tudo.
O rei sentiu um aperto no coração. Sua mãe iria embora,
sacrificando-se para ajudá-lo. Seria justo?
— Não seria melhor já contar toda a verdade para os dois? —
perguntou ele.


— Eles não têm culpa de nossos erros e não temos o direito de fazêlos
sofrer. E depois será bom para mim, pois aliviarei meu coração
do peso de uma das minhas culpas. Não é um castigo que Deus está
me dando, é uma oportunidade.
Loretta chamou as damas e ordenou que arrumassem as malas, pois
viajaria com o filho e não sabia quando voltaria. Fez uma rápida
reunião com os principais criados da casa. Anunciou que levaria
apenas duas das criadas, aquelas que fossem solteiras; as casadas ou
noivas deveriam ficar cuidando do castelo normalmente.
Quando Diana voltou, estava corada pela caminhada que fizera.
Vendo as malas da avó sendo colocadas em uma carruagem à parte,
ficou sem entender nada. O pai chamou-a e disse-lhe:
—Sua avó vai nos acompanhar.
Mostrando-se alegre, Loretta logo chamou a neta para almoçar e em
tom de brincadeira acrescentou:
—Sua avó não agüentou ficar muito tempo longe da corte. Você não
vai ficar aborrecida comigo, vai, Diana?
A princesa abraçou a avó, sorrindo. Tinha certeza de que a ida de
Loretta era para ajudá-la.
Almoçou com apetite fora do comum. Estava radiante. A avó era
fantástica, e Henrique iria conhecê-la de perto. Então ela poderia
observar o quanto era bom e inteligente.
Partiram. No caminho, Diana brincou com a avó, a quem amava e
admirava sinceramente. "Vovó é uma guerreira. Brigou pela
felicidade e ficou com vovô até o fim", pensou a jovem, orgulhosa

de ser sua neta. Falavam muitas coisas a seu respeito, mas ela sabia
que nem tudo era verdadeiro. "Se for, pouco importa, pois ela lutou
pelo que queria", concluiu.
O rei parecia mais tranqüilo ao lado da mãe. Antes de chegar ao
palácio, virou-se para Diana e falou:

— Vou atender ao pedido do rei da França com algumas ressalvas.
— Que ressalvas, meu pai? — O coração de Diana bateu mais forte.
Loretta respondeu:
—Irei para a França conhecer de perto a vida do chanceler. Assim
que retornar, tudo será resolvido, eu lhe prometo.
Diana pulou no pescoço da avó. Claro! Ela, muito sábia, arrumara
um jeito de convencer o rei a consentir seu casamento com o
Chanceler de Ferro.
O chanceler Henrique ficou encantado diante de Loretta. Mostrou-
lhe o broche que ganhara dela quando menino. Após o jantar, os
reis isolaram-se para selar o último acordo pendente: a mão de
Diana.
Enquanto isso, Loretta conversava com o chanceler e a neta. Ainda
não tinha comentado nada com ele, pois aguardava o retorno do rei:
ele mesmo anunciaria a ida dela para a França na comitiva real.
Loretta observava o neto. Era tão bonito! Lembrava o avô e era
idêntico ao príncipe. Nobre e inteligente, tinha realmente o sangue
real.
Instantes depois, os reis os chamaram. O rei da França iniciou a
conversa:
—Henrique, meu fiel súdito e Chanceler de Ferro da minha querida
França, acabo de receber uma proposta que me parece
completamente justa e honra todas as pedras da coroa francesa: a
avó de Diana acompanha-nos até a França para conhecer sua digna
vida, depois retornamos para anunciar o noivado e marcar o
casamento com a princesa Diana. O que me diz?
O Chanceler de Ferro olhou para Loretta e, orgulhoso, respondeu:

—Serei o homem mais feliz do mundo em compartilhar com sua
presença meus dias de espera, grande rainha Loretta. A França
sentirá orgulho em hospedá-la.
Henrique beijou as mãos de Loretta tentando imaginar de onde lhe
vinha tanta sabedoria, pois era uma dama nobre e ao mesmo tempo
corajosa. Percebera que Diana tinha a determinação da avó, o que
lhe agradava muito.
O jovem despediu-se de Diana no jardim. Pedindo para visitá-lo em
seu quarto, ele a repreendeu severamente:
—Por favor, Diana, depois de toda essa demonstração de respeito
por parte de seu pai e de sua avó, eu me sentiria um traidor! Vamos
aguardar, minha querida, pois em breve estarei de volta e terei o
consentimento de seu pai para nos casarmos o mais rápido possível.
Que o período entre noivado e casamento não dure mais que três
meses!
Loretta partiu em companhia do chanceler e da comitiva real.
Originou intenso burburinho sua saída da corte. Os boatos corriam
de um lado para outro. Levantou-se inclusive a hipótese de que os
padres haviam pedido que se retirasse do país. Alguns falavam que
ela tinha cortado relações com a família real; outros comentavam
que temia que os religiosos reabrissem seu processo com a Igreja e
pedissem sua condenação.
O rei estava cansado, muito cansado, deixando a fadiga
transparecer nitidamente. O filho aconselhou-o:
—Vá ao encontro de Lua de Prata e descanse um pouco ao seu lado.
Cuidaremos de tudo por aqui.
O rei aceitou a sugestão do filho, e Diana acompanhou-o na viagem
para a aldeia. Não via a hora de dar a boa notícia à mãe e à irmã.
Entristeceu-se ao pensar que talvez fosse a última vez que veria os
parentes indígenas; depois do casamento com Henrique,
dificilmente os visitaria novamente.
Foram bem recebidos. Lua de Prata estava refeita; a aldeia
devolvera-lhe a alegria de viver. Desabafara com a cunhada que


daria tudo para ficar com eles na aldeia: sua vida na corte já não
tinha sentido, o rei vivia ausente, envolvido com os próprios
problemas, cada uma das filhas vivia a própria vida, e ela estava em
plena solidão.
Com a chegada da filha e do marido, que lhe contaram as
novidades, animou-se. Entristeceu-se apenas com a saída de Loretta
da corte. Certa noite, quando o grande espírito visitou a aldeia, ela
humildemente lhe pediu proteção para a sogra.
Ao ouvir as notícias sobre os padres, lembrou-se do Monsenhor e
sentiu um aperto no coração. Vira tanta bondade em seu olhar que
começava a pensar que os frades eram como os pajés e os caciques:
só traziam paz ao povo.
Seus olhos encheram-se de lágrimas. Quanta saudade do pai! Se
pudesse saber onde estava... Perguntou ao grande espírito pelo pai,
e este lhe disse:
—As sementes de uma árvore podem espalhar-se pela terra e
misturar-se com outras, formando novas matas para os grandes
espíritos, mas seus frutos serão sempre reconhecidos em qualquer
parte do mundo.
Ela não entendeu bem a mensagem, mas iria com o tempo tentar
compreendê-la.

NADA FICA SEM RESPOSTA

Chegando à França, o rei insistiu para que Loretta ficasse
hospedada em seu palácio. 0 chanceler, por sua vez, convidou-a
para ficar em sua mansão com seus parentes, argumentando que a
mãe, viúva pela segunda vez, ficaria muito contente em tê-la como
hóspede.


Loretta declinou gentilmente o convite, argumentando que, por
medida de segurança para ambos, seria conveniente que ela se
instalasse no palácio. Impôs uma condição: que a mãe e os avós de
Henrique a visitassem e que ela pudesse visitá-los também.
Após acomodar-se, ficou sabendo da doença da soberana da França
e dispôs-se a fazer-lhe uma visita. O rei, ainda jovem e cheio de
vida, devia sofrer muito com a doença da esposa. Lembrando-se do
quanto tinha sofrido com a enfermidade do marido amado, ficou
penalizada com a situação do rei.
Ele tinha apenas uma filha, uma mocinha de dezesseis anos, magra
e tímida, sem a beleza que agrada aos prazeres masculinos. Sentiu
pena da garota, que vivia enclausurada no palácio.
"Vou transformar essa menina em uma verdadeira princesa",
pensou consigo mesma.
Diante da delicadeza da moça, percebeu que era muito simples e
não tinha malícia alguma como mulher, bem diferente de sua neta
Diana. Se a garota fosse ambiciosa, teria conquistado o chanceler
Henrique, e ele ganharia o que perdeu ao nascer: uma coroa. Logo
pediu perdão a Deus pelo pensamento.

Loretta pediu a Henrique que não avisasse os familiares da chegada
dela, pois gostaria de fazer-lhes uma surpresa e sentir o clima
familiar. Ele concordou e programou o encontro, num chá, em que
reuniria vários nobres da corte francesa.
No dia marcado para o evento, um belíssimo sol iluminava a tarde,
e o ar estava perfumado. O clima na França era excelente naquela
época do ano.
A cidade parecia um conto de fadas. Viam-se belas mulheres
enfeitadas e cheirosas por toda parte. Flores cobriam os parapeitos
das casas, e jardins bem cuidados ornamentavam as ruas.
Em frente ao salão nobre, as damas desceram, e, em seguida,
Henrique, dando a mão para a distinta senhora que o
acompanhava. Entraram no recinto, e todos os presentes voltaram a
atenção para o jovem chanceler e sua elegante acompanhante, a


qual ele guiava para uma mesa adornada com flores, onde já
estavam sentadas a mãe e a avó dele.
Quando Loretta se aproximou da mesa, a mãe de Mary levou a mão
ao peito devido ao susto, e sua filha ficou parada, olhando para o
filho e a senhora, tentando lembrar quem era ela. Voltando-se para
a mãe, viu-a pálida. Loretta agradeceu a Henrique e sentou-se ao
lado da antiga governanta.
Henrique apresentou Loretta aos parentes e logo depois, pedindo
licença um instante, retirou-se. Loretta colocou a mão no braço de
Helen, que usava agora o nome de Mariene, e disse-lhe:
—Estou aqui, minha amiga, em uma grande missão. Preciso de você
e de Mary para que juntas possamos ajudar Henrique. Não tema,
pois o que me trouxe à França foi o destino de nosso neto.
Precisamos conversar, afim de que entendam o que se passa. Mary,
não me odeie. Sei que não posso esperar seu perdão, mas, por favor,
não me odeie.
Mary nunca imaginara passar um dia por aquela situação. Sua mãe
começou a rir:


— Será que a senhora é mesmo a rainha Loretta? Não posso
acreditar que estou diante de minha senhora.
— Mariene, aqui não estão nem a rainha nem a governanta; estão
duas avós e uma mãe que precisam unir-se para ajudar alguém que
amam. Aprendi a amar meu neto e darei a vida por ele.
Combinaram um encontro para a tarde do dia seguinte. Henrique
voltou sorrindo, parecendo um adolescente apaixonado.
—Minhas queridas mãe e avó, perdoem-me se não lhes contei antes
a grande novidade. Prometi à rainha Loretta que só falaria para
ambas em sua presença. — Segurando as mãos de Mary, disse: —
Seu filho, minha mãe, está completamente apaixonado pela mais
linda mulher que já pisou neste mundo. Chama-se Diana, é neta da
ilustre convidada aqui presente e filha do rei Henrique.

Mariene oscilou na cadeira, mas Henrique acudiu-a para que não
caísse. Mary, sem uma gota de sangue no rosto, pegou um copo de
vinho e tomou tudo de uma só vez.
Loretta ofereceu um pouco de bebida a Mariene, dizendo-lhe:
—Não precisa ficar assustada, minha amiga. Minha neta é uma
nobre princesa, e seu neto, um digno súdito da França. O motivo de
minha estada aqui é exatamente este: negociar as alianças de nossos
netos.
Mary estava gelada. Nunca lhe passara pela cabeça que isso
pudesse acontecer com o filho. Eles eram irmãos! Henrique não
poderia desposá-la em hipótese alguma.
Com toda sua experiência de comando, Loretta levou o assunto por
um caminho suave, fazendo com que as duas mulheres
entendessem o porquê de sua visita à França.
Tudo parecia correr normalmente aos olhos dos demais. Loretta era

o centro das atenções. Os nobres franceses queriam apertar a mão
da respeitável rainha.
Antes de despedir-se, Loretta confirmou o encontro para o dia
seguinte e falou baixinho ao ouvido de Mary:
—Cuide de sua mãe, pois ela não me parece muito bem. Procure
ficar calma. Se Deus quiser, tudo vai dar certo para todos nós.
No outro dia, mais tranqüilas, as duas senhoras foram ao encontro
da grande dama. A sós, entreolharam-se, e Loretta então falou:
—Mariene, precisamos nos unir para ajudar Henrique. Por nada
neste mundo imaginei que ele fosse passar por isso. Você não me
contou que Mary estava grávida quando partiram da corte. Por
quê?
—Não sabíamos. Os primeiros sinais apareceram no navio. —Mary,


o rei já sabe que Henrique é seu filho. Imagine quanto
está aflito com a descoberta. Contei-lhe toda a verdade e quero que
saiba o quanto ele sofreu com sua partida. Na época, acreditou que
você não o amasse tanto quanto dizia. Sua vivenda foi transformada
em um grande cemitério, como já deve saber. Com esse gesto, ele

quis apagar as lembranças que você deixou em sua vida. Ele nunca
mais voltou àquele lugar. Viveu ao lado da esposa até a morte, sem
envolver-se em aventuras com as mulheres da corte. Quando
conheceu Lua de Prata, a rainha ainda vivia, embora já não se
levantasse da cama. Apaixonou-se por Lua de Prata e, quando
enviuvou, casou-se com ela. Viveram todos esses anos em plena
paz, apesar das diferenças culturais. Lua de Prata deu-lhe duas
filhas: Luana e Diana, que agora são duas belas moças. Vocês
devem ter visto as meninas quando crianças, não é mesmo? O
destino foi nos aproximando cada vez mais e cobra-nos agora a
verdade.

— E o que vamos fazer agora, senhora? — indagou Mary. — Como
dizer a meu filho que ele não pode casar-se com a filha do rei,
porque o rei também é seu pai?!
— E por isso que vim até aqui, Mary! Juntas temos de encontrar
uma solução, uma forma de não magoá-los tanto. Seria um choque
muito grande para os dois uma revelação como esta.
Ao retornar da aldeia, Lua de Prata parecia estar mais confortada. O
esposo dava-lhe mais atenção. As filhas só falavam no casamento de
Diana, mas o rei mudava de assunto sempre. Lua de Prata percebeu
que algo na união desagradava ao rei, mas não entrou no assunto.
Extremamente discreta, respeitava os sentimentos alheios acima de
tudo, pois, quando menina, aprendera na aldeia que isso é algo
sagrado.
Na corte, havia muita agitação com a chegada de novos padres e a
construção de igrejas, que se espalhavam por todos os lugares. O
Monsenhor peregrinava por todo o país juntando as ovelhas do
Senhor, como dizia. Desenvolvia um belo trabalho de ajuda ao
próximo, recebendo e ouvindo todos os cristãos que o procuravam.
As pessoas já o tinham como um enviado do Céu para libertá-las da
opressão e permitir-lhes amar a Deus em liberdade.
A família real recebeu um convite cheio de carinho e palavras de fé.


Seriam batizados os primeiros cristãos da corte de Loretta, e o
Monsenhor convidava o rei e sua família para assistir à grande
comunhão com Cristo.
O rei examinou o convite e passou-o a Lua de Prata, que leu e releu

o texto lembrando-se do sereno olhar do Monsenhor. Não sabia
explicar por que, mas toda vez que o recordava pensava no pai.
Seus olhos enchiam-se de lágrimas.
— O rei vai comparecer? — perguntou ela.
— Não, não vai comparecer, mas pede à rainha e a suas filhas que
representem a coroa neste importante evento para a corte —
respondeu sério e pensativo.
Intimamente Lua de Prata sentiu muita alegria. Queria ir à igreja,
ver de novo o Monsenhor. Precisava daquele olhar que tanto lhe
transmitia paz e amor.
Confirmada a presença da família real no dia da celebração, as
primeiras bancadas foram preparadas para acomodá-la. A igreja
estava repleta de flores que exalavam suave aroma. Os hinos
cantados pelos frades, acompanhados pelo som de uma harpa,
levavam paz a todos os corações, sensibilizando-os.
Os religiosos cantavam em alguma parte da igreja sem ser vistos, o
que fez Lua de Prata lembrar-se do grande espírito das matas. Ele
ajudava a tribo sem ser visto, transmitindo calma e segurança para a
aldeia. Também usava os filhos para preparar os fiéis para o espírito
maior, Deus, e enviava mensagens e conselhos.
Certamente o Monsenhor fazia o mesmo papel do pajé da tribo: era
mensageiro do grande espírito, por isso ela sentira tanta saudade do
pai, grande cacique que entendia todas as comunicações do espírito
das matas.
Ela prestava atenção a tudo. Alguns padres entraram cantando e
ajoelharam-se em frente ao altar iluminado por velas. Logo depois,
entrou o Monsenhor; a música e o canto pararam; reinou um
silêncio total dentro da igreja.
Vestido com uma pesada e comprida batina negra, usando uma

sobrepeliz branca, com o cabelo e a barba parecendo flocos de
algodão, ergueu a mão e abençoou todos os presentes em nome de
Cristo.
Deu-se início aos trabalhos espirituais. O Monsenhor pregou a paz,


o amor e a união entre os homens, lembrando aos fiéis o quanto
Cristo amou e continuava amando a humanidade. Pediu aos irmãos
igualdade e fraternidade.
Lua de Prata deixou-se levar pelas palavras de conforto dele. Em
dado momento, ele falou do enorme amor de Cristo por todos que
estavam ou não ali, parecendo olhar dentro dos olhos de cada um
dos presentes. Hipnotizada, Lua de Prata nem piscava. Tinha
certeza de que conhecia seu olhar, só não sabia de onde.
O Monsenhor batizou os fiéis e deu-lhes a hóstia consagrada em
nome de Cristo. Depois, dirigiu-se até a frente do altar, e um dos
padres convidou todos que desejassem receber o corpo de Cristo a
se aproximar.
Num impulso, Lua de Prata encaminhou-se até o altar, ajoelhou-se
e, olhando para cima, abriu os lábios. O Monsenhor colocou a hóstia
em sua boca, dizendo-lhe:
— Aceite Cristo em seu coração, minha filha. — E tocou a cabeça
dela com uma das mãos.
Terminada a cerimônia, abençoou todos e retirou-se, acompanhado
dos outros padres. Lua de Prata voltou ao palácio sentindo uma paz
e uma alegria muito grande no coração.

TRANSFORMAÇÕES


Na França, Loretta dedicava parte de seu tempo à princesa Ane,
filha do rei francês. Esta parecia outra pessoa: arrumava-se com
requinte, combinando roupas e jóias, mudou o penteado e passou a
maquiar-se. Por trás daquela menina sem graça apareceu uma nova
e linda mulher.
Certa tarde, correu a notícia de que a rainha da França acabara de
falecer. Como o rei ficara abatido e contristado, o chanceler tomou a
frente de tudo.
Loretta disse muitas palavras de conforto ao soberano. Havia
passado por aquilo e sabia o que significava. Embora o rei não
amasse a rainha como mulher, via-se que ele lhe tinha carinho.
Para surpresa geral, a princesa destacou-se diante da morte da mãe.
Henrique ficou impressionado com a mudança de Ane e tinha
certeza de que havia o dedo da rainha Loretta na benéfica
transformação da princesa.
Usando um traje negro e um véu por cima do cabelo loiro, Ane
estava muito bonita. Até então, ele nunca tinha percebido que era
uma mulher elegante, dotada de diferente beleza.
Após decretar luto oficial por uma semana, o rei recolheu-se. Ane
pediu para vê-lo e qual não foi o susto dele quando a filha, forte e
decidida, pediu para acompanhar o chanceler na preparação do
funeral da mãe. Queria representar a coroa da França, se assim o pai
permitisse. Ainda assustado diante da atitude da filha, ele
perguntou:

— Você tem estado com a rainha Loretta?
— Sim, meu pai, todos os dias tenho estado na companhia
dela.
O rei concordou com o pedido da filha, que se aproximou dele e
abraçou-o com carinho.
—Se me permite, meu pai, pedirei à rainha Loretta que lhe faça
companhia neste momento doloroso para todos nós. A morte é um

processo difícil.O rei estava realmente abalado. Casara-se por
conveniência, para ter a coroa da França, mas, ao conviver com a
esposa, uma mulher simples e bondosa, passou a gostar de sua
companhia. A única coisa que lamentava era ela não lhe ter dado
um herdeiro. Agora viúvo, havia nova esperança de gerar um filho
para sentar-se no trono.
Por mais que tentasse, a imagem de Diana não lhe saía da mente.
Teria de esquecê-la, pois em breve ela estaria na França, sim, mas
como esposa do chanceler. Imaginava que Luana fosse parecida
com ela — quem sabe transferisse o sentimento para a irmã. Em
breve começariam a chegar propostas de casamento, mas ele é que
iria fazer uma: pediria a mão de Luana em casamento e dividiria o
trono com o da rainha Loretta. Talvez ela pudesse ajudá-lo com sua
experiência de mulher sábia.
Estava cabisbaixo, pensando na vida, quando Loretta se aproximou
silenciosamente dele, que ergueu a cabeça, mostrando os olhos
cansados e entristecidos.
Loretta tocou-lhe no ombro, depois sentou-se à sua frente e falou-
lhe:
—Meu amigo, um rei também vive momentos de dor e de solidão.
Ninguém melhor do que eu para entender o que se passa em seu
coração. Procure descansar. Após a cerimônia fúnebre, vai sentir-se
melhor. Fique despreocupado, pois a princesa Ane está à frente da
coroa transmitindo ao povo a sua dor e mostrando a nobreza de ser
sua filha. Nos últimos dias, empenhei-me em ajudá-la a desenvolver
seu potencial. Ela é nobre e inteligente, digna de receber a coroa de
qualquer rei como verdadeira rainha.

Loretta aproveitou os dias de luto para confortar o monarca, que se
apegara a ela como se fosse seu filho.
Quinze dias depois da morte da rainha da França o chanceler estava
despachando, quando alguém anunciou a princesa Ane. Pedindo
licença aos presentes, imediatamente ele se prontificou a recebê-la.
Vestia um gracioso vestido bege e um chapéu branco enfeitado com


flores naturais. Usava poucas jóias, como Loretta ensinara.
Cumprimentou o chanceler e foi diretamente ao assunto:
—Henrique, o que me traz até aqui é o seguinte: desejo que meu pai
descanse pelo menos uma semana. Durante esse período, você deve
assumir comigo os negócios da coroa. Quero acompanhá-lo, pois
assim vou aprendendo o ministério de meu pai.
Henrique olhou para a moça que estava à sua frente: não era a
mesma garotinha feia e sem graça que conhecera, mas uma mulher
altiva, bonita e decidida.

— A princesa pode contar comigo para o que for necessário. Estarei
às ordens — respondeu-lhe, com consideração.
— Vou convencer meu pai a ausentar-se por uns dias e amanhã
mesmo assumirei o trabalho ao seu lado.
Despediu-se e saiu, andando com muita elegância. Henrique
observou-lhe os movimentos sem acreditar. Nunca tinha percebido
como Ane era bonita e charmosa.
Naquela tarde, a princesa procurou por Loretta e foi informada de
que a rainha estava com os familiares do chanceler. Sua dama
segredou-lhe ter ouvido dos cavaleiros da corte que o rei aguardava
o retorno de Loretta para oficializar o noivado de Diana com o
chanceler.
Ane surpreendeu-se com a notícia. Então o belo chanceler, para
quem outrora tinha medo de levantar os olhos, estava comprometido
com a neta da rainha?
"A princesa deve ser linda e inteligente para ter sido escolhida por
ele", pensou, enciumada.
Procurou o pai e contou-lhe o que havia feito, pedindo-lhe que lhe
desse a oportunidade de assumir temporariamente a coroa. Era uma
prova pela qual ela necessitava passar para acreditar em sua
capacidade. Conforme lhe ensinara Loretta, era uma princesa e
poderia tornar-se rainha para qualquer rei.
O pai sensibilizou-se com a demonstração de amor da filha. Pegou
sua mão, acariciou-a e disse a ela, sabendo que o chanceler estaria à

frente de tudo:
—Está bem, minha princesa. Vou expedir hoje mesmo uma nota
instituindo-a como minha representante até o meu retorno.
Ane abraçou o pai, cheia de contentamento.
—Gostaria que convidasse a rainha Loretta para acompanhá-lo, pois
quero demonstrar minha capacidade sem o amparo dela.
Dois dias depois, Loretta acompanhava o monarca a um dos
castelos de propriedade da coroa. O lugar era belíssimo, ideal para o
repouso da mente e da alma.
A noite, o rei sentou-se em uma confortável poltrona na varanda.
Loretta foi com ele e ficou olhando para as estrelas, lembrando-se
dos tempos em que ela e Raul observavam o céu juntos. A última
vez que fizeram isso fora na aldeia, quando ele era o cacique da
pedra branca. Por onde andaria? O que estaria fazendo? Por que
desaparecera daquela forma? Eram perguntas que se fazia a todo
instante.
O rei interrompeu-lhe os pensamentos:
—Rainha Loretta, preciso de sua ajuda. Quero que me ouça e depois
me oriente como uma grande amiga e mãe, pois é assim que a tenho
hoje. Aprendi a gostar de você e a respeitar sua dignidade. O que
fez por minha filha somente uma grande rainha dotada de
inteligência e nobreza poderia ter feito. — E abriu o coração para
Loretta, que o ouviu em silêncio, sem interrompê-lo.
Quando terminou de falar, parecia mais calmo e tranqüilo. Então foi
a vez de Loretta desabafar:
—Meu rei, meu amigo e meu filho, pois é assim que aprendi a
considerá-lo: minha situação em sua corte é muito mais séria do que
imagina. — E relatou desde o nascimento de Henrique, enfatizando
que estava sendo difícil encontrar uma saída para desfazer o
compromisso de Henrique com Diana. Eles não poderiam casar-se
em hipótese alguma. Pediu ao rei que, juntos, pensassem em como
dizer aos dois que não poderiam tornar-se marido e mulher sem
magoá-los ou causar-lhes danos.


O rei até esqueceu-se de seus problemas, paralisado que ficara com

o que acabara de ouvir. Confiava em seu chanceler e gostava dele
como um filho. Por nada no mundo queria vê-lo sofrer, mas não via
outra alternativa a não ser prepará-lo para a grande revelação e
confortá-lo em sua dor. Até seus planos de casar-se com a neta de
Loretta tornaram-se inviáveis: não queria trazer lembranças de
Diana ao Chanceler de Ferro.
Combinaram então que o rei prepararia Henrique para a verdade e
logo depois Loretta embarcaria de volta a seu país, levando uma
grande dor para Diana. Ela diria que o chanceler desistira do
noivado: estando longe e pensando melhor, descobriu não amar
tanto a moça para comprometer-se. Acertaram detalhadamente as
providências a serem tomadas.
O rei via em Loretta uma fonte de sabedoria com ponderação. "Que
mulher espetacular é esta, capaz de qualquer sacrifício para ajudar
os seus!", admirou-se.
Retornando à corte, encontraram a França em plena euforia. A
notícia que corria pelos bares, teatros e demais lugares públicos era
a de que a princesa havia deixado o casulo para brilhar como uma
linda borboleta.
No dia seguinte, antes mesmo de o monarca descer ao salão
imperial, foi informado de que o chanceler o aguardava. Estranhou
a visita tão cedo; se bem o conhecia, só poderia ser coisa muito
importante.
Arrumou-se rapidamente e desceu, encontrando Henrique sério e
com olhar grave. Após cumprimentá-lo, chamou-o ao gabinete real
sem esperar que pedisse audiência.
Sentado, o rei observou-o. "Vai ser muito difícil a minha missão,
mas é necessária", pensou. O rapaz, de pé, pois não quisera sentar-
se, afirmou:
— Meu rei, não sou digno nem mesmo de estar em sua presença.
O monarca empalideceu diante da declaração e ordenou
energicamente:

— Fale, Henrique!
— A dignidade de um homem está em sua coragem de ser sempre
fiel, assumindo por completo suas ações. Implorei ao rei que
pedisse a mão de uma princesa em casamento, e isso lhe custou
hospedar sua avó e outros compromissos que não estavam na
programação. Envolvi meus parentes e agora estou aqui para
confessar-lhe que estou envolvido com outra princesa. Peço-lhe,
Majestade, que se faça justiça. Nunca ousei levantar os olhos para
sua filha, jamais me passou pela cabeça a possibilidade de amá-la e
desposá-la, mas, nesses dez dias em que se ausentou, estive
próximo da princesa e, sem que tivéssemos forçado nenhuma
situação, descobrimos que nos amamos. Penso agora em Diana
como uma irmã querida. Descobri em Ane a outra parte da minha
vida. Venho pedir-lhe humildemente que desfaça com a rainha
Loretta meu pedido de casamento, pois jamais poderia casar-me
com Diana amando Ane. Coloco à sua disposição o meu cargo. Se
Vossa Majestade achar conveniente exilar-me do país, partirei hoje
mesmo para o Brasil e nunca mais voltarei a incomodá-lo. Por fim,
asseguro-lhe de que não encostei um dedo sequer em sua digna
filha.
O rei nunca imaginou que aquilo pudesse acontecer. Era um
verdadeiro milagre! "Ah, grande rainha Loretta..." Tinha certeza de
que ela preparara sua filha com a boa intenção de ajudar a França. O
rei suspirou, aliviado. Deus era magnífico!
—Henrique, meu filho, acho que posso chamá-lo assim. Você não
cometeu nenhum crime contra a coroa da França ou o rei Henrique.
Como não foi anunciado nenhum compromisso diante da corte, não
vejo a razão de sua preocupação. Quanto ao amor repentino pela
princesa Ane, preciso saber dela o que houve para ter condições de
avaliar sua declaração. Caso ela confirme o que me diz, considere-se
meu futuro genro. Aguarde, por favor, aqui em meu gabinete. Pode
sentar-se! Nada prova sua infidelidade.
Saiu e pouco tempo depois entrava a princesa acompanhada por

Loretta. Ane estava rosada como um morango silvestre, e seus olhos
azuis brilhavam como as tardes de verão no céu da França.
Virando-se para Loretta, o rei disse:

—Minha amiga e mãe Loretta, achei por bem chamá-la para esta
reunião familiar. Fui procurado por meu chanceler que pede para
desfazer o pedido inicial de noivado e casamento com sua neta
Diana. Confessou-me ter-se apaixonado por minha filha Ane a
ponto de fazer loucuras, como, por exemplo, largar a França ac
deus-dará. Só me resta confirmar o fato com minha filha.
Ane levantou a cabeça, olhou para Henrique, que sustentou o olhar,
e declarou:
—Amo o chanceler de todo o coração. Não procurei por isso,
simplesmente aconteceu, meu pai e minha benfeitora rainha Loretta.
Não tive intenção de causar-lhe nenhum incômodo e muito menos
trazer sofrimento para sua neta.
O rei olhou para Loretta e percebeu o sorriso de alegria em seu
olhar. Ela apenas ouvia, como sempre. Era um de seus métodos:
ouvir o orador para depois manifestar-se.
—Meu filho, considero-o meu verdadeiro neto e tenho certeza de
que Diana vai entender. Levarei para minha corte a notícia de seu
casamento com a princesa Ane, a quem aprendi a amar como neta.
Aproveito para parabenizá-los pelo brilhante trabalho que fizeram
juntos. Fiquei sabendo que a França os apoia e acho que não devem
esperar mais para anunciar o amor que os une, oficializando o
noivado e marcando a data do casamento.
O rei levantou-se.
Só me resta comemorar o grande acontecimento. Como ainda é
muito cedo para tomar champanhe, que tal o café da manhã juntos?

— Abraçou o chanceler e a filha e perguntou-lhes: — Quando —
poderei anunciar o noivado e o casamento?
—O mais breve possível, Majestade — respondeu Henrique, nas
nuvens.
A mesa, acertaram os detalhes. A rainha Loretta pediu ao rei que a


acompanhasse até a corte, a fim de desfazer pessoalmente o pedido
de casamento junto ao rei Henrique. Conhecia a neta, sabia que ela
iria sofrer e aborrecer-se, mas logo estaria bem para encontrar um
novo amor.
Diana parecia-se com ela em muitas coisas e fazia Loretta lembrar-
se da própria vida: primeiro apaixonou-se por Raul a ponto de fazer
loucuras. Depois, enlouqueceu de paixão por Hari e cometeu o
maior pecado de sua vida. Por fim, amou o rei e tudo que veio dele,
seus filhos e seus netos. Sim, amou o esposo verdadeiramente e
continuava a amá-lo mesmo depois de morto.
Poderia ter-se casado novamente quando enviuvou. Ainda era
jovem e bonita e havia recebido vários pedidos de casamento, mas
seu coração pertencia ao rei, que se fora tão jovem também,
deixando-lhe muita saudade. Quanta falta fazia em sua vida!
O rei concordou em acompanhá-la. Viajariam dali uma semana.
Loretta deu as boas-novas a Mary e à sua mãe. As três choraram de
alegria. Deus havia-se compadecido de Henrique, e elas não
precisariam magoá-lo.
Loretta despediu-se de todos, prometendo a Ane e Henrique que
voltaria para o casamento. Se tudo saísse como planejava, o rei
Henrique também viria para as bodas do Chanceler de Ferro, como
prova de que aceitara o pedido de desculpa da França.
Henrique tinha certeza de que ela era capaz de fazer qualquer coisa.
Abraçando-a, perguntou:
—Posso chamá-la de minha avó? Amo-a do fundo do meu coração.
Trêmula e com os olhos cheios de lágrimas, a rainha retribuiu o
abraço, respondendo:
—Meu querido neto, também o amo e, por favor, chame-me sempre
de avó.


OS MALES QUE VÊM PARA O BEM


Foi anunciada a chegada da rainha Loretta e do rei da França. Diana
não se continha de alegria. Fizera mil planos para seu casamento e
sonhava com Henrique todas as noites. Arrumou-se com esmero e
foi esperá-lo com o coração saltitando de ansiedade. Assim que o rei
e a avó desembarcaram, ficou pálida: não o avistou entre ambos. O
que teria acontecido? Estaria doente? Levou a mão ao coração,
sentindo um estranho pressentimento.
Loretta cumprimentou todos e abraçou Diana, que permanecia em
silêncio. Isso ela tinha herdado da avó: manter a dignidade e o
orgulho diante da corte. Puxou-a para perto e disse-lhe:
—Diana, minha querida neta, temos muito que conversar. Henrique
está bem, muito bem, mas não pôde vir. O rei veio especialmente
para falar com seu pai.
Diana sentiu uma ponta de esperança. Então o rei vinha em pessoa
tratar de seu casamento, só podia ser isso. Como o chanceler era
importante! Que sorte a sua!
Seguiram para o palácio, e Loretta recolheu-se para descansar. O rei
foi aconselhado também a repousar. À noite jantariam em família,
quando conversariam e o rei francês explicaria a todos o motivo de
sua visita.
Antes de recolher-se, Loretta falou baixinho para o filho:
—Não haverá casamento, fique tranqüilo.
Diana observava o rei da França, que a fitava com embaraço.
Pressentiu que algo estava errado com seu noivado. Aguardara
tanto tempo pela chegada da avó trazendo a felicidade, que era
Henrique, mas ela apareceu acompanhada pelo rei, que não
escondia haver um problema.
Tentou arrancar alguma informação das damas de Loretta, mas foi
em vão.
—Alguma coisa não está bem! O que pode ter acontecido com
Henrique? Morro se não me casar com ele — desabafou com a mãe.


Lua de Prata abraçou-a.
—Diana, você é uma princesa por parte de pai e herdeira natural do
espírito das matas. Ele saberá o que é melhor para você. Procure não
ser uma criança mimada e não entristeça seu pai com caprichos e
pensamentos infantis.
Pelas damas, Diana soube apenas da morte da rainha e da
quantidade de propostas de casamento que chegavam de vários
países cobiçando a coroa francesa. "O rei é um belo homem. Se não
estivesse tão apaixonada por Henrique, também iria concorrer à
coroa francesa. Quem sabe minha irmã não a deseja? Seria
maravilhoso para nós", imaginou.
Sentados em volta da mesa estavam os membros da família real.
Loretta deu início à conversa:
—Como todos aguardam o que tenho a dizer, vou direto ao assunto,
sem rodeios. O rei da França deixou compromissos importantes em
sua nação para honrar-nos com sua palavra de consideração para
com a coroa de nosso país. De volta à corte, Henrique descobriu que
não ama a princesa Diana. Foi uma paixão repentina, como um
incêndio controlado. Muitas vezes, os fatos acontecem
independentemente de nosso querer, principalmente os do coração.
Quando a rainha da França faleceu, acompanhei o rei em um retiro
fora da corte, ficando o chanceler e a princesa Ane, sua filha, no
comando da coroa. Aconteceu o inesperado: Henrique e Ane
apaixonaram-se. Quando retornamos, ele procurou o rei e colocou a
vida à disposição da França, disposto a aceitar qualquer castigo do
monarca, mas assumindo a descoberta de seu verdadeiro amor por
Ane. Ela, por sua vez, confirmou que corresponde ao sentimento do
chanceler. Não vi nenhum descaso para com nossa família, pois o
chanceler foi de uma honestidade fora do comum. Aceitei seu
pedido de desculpa. Portanto, fica desfeito o pedido de casamento
feito pelo rei da França em favor do seu chanceler. — Virou-se para
a neta e pediu-lhe: — Quero que você, Diana, entenda e desculpe o
chanceler francês diante de seu pai e do rei da França.


Diana procurou sentir os pés, mas não achou o chão. Um nó
apertava-lhe a garganta, o coração batia acelerado. Naquele
momento sentiu ódio de todos, principalmente da avó. Loretta
falara com muita tranqüilidade, como se sua vida não fosse nada.
Sentiu vergonha, muita vergonha, e baixou os olhos para que
ninguém notasse a dor que tomava todo o seu ser.
—Diana, sente-se bem? Diga para nós se aceita o pedido de
desculpa do chanceler da França! Sua avó aceitou, eu aceito, agora é
sua vez de falar — pediu o rei Henrique.
Amargurada, Diana tinha a sensação de ter engolido uma taça de
fel. Levantou o olhar e encontrou os olhos azuis do soberano da
França, que a observava atentamente. Num impulso, decidiu:
"Henrique me pagará caro esta traição. Se pensa que vou esquecê-lo,
está enganado". Olhando para o rei como uma serpente olha para
um pássaro, respondeu:
—Desculpo o chanceler da França e agradeço ao monarca pela
consideração que teve comigo e com meu pai. Nada temos contra a
França ou qualquer um de seus filhos. Nossa amizade será sempre a
mesma, ou melhor, será mais forte. Com a presença de minha avó
por lá, creio que nossos laços estreitaram-se mais ainda.
O rei da França corou. "Que moça espetacular! E realmente neta da
grande Loretta", pensou, e uma esperança ressurgiu em sua mente:
"Quem sabe não tenho uma chance? Levaria comigo o maior
tesouro que a França já conheceu".
Lua de Prata ficou preocupada. A filha não estava sendo sincera.
Ficara o tempo todo sonhando com a volta de Henrique e falara-lhe
um pouco antes que morreria se não se casasse com o chanceler.
Agora fazia exatamente o contrário. A mãe, esperando que chorasse
e se revoltasse, ficou espantada com sua tranqüilidade.

Após o jantar, assistiram a um concerto em que se entoaram
belíssimas melodias românticas. Diana, sentada próxima ao rei,
dirigiu-lhe sorrisos e olhares provocadores, o que deixou Lua de
Prata contrariada. Durante o recital, foram servidos vinho e


champanhe trazidos pelo rei da França. Diana levou uma taça de
bebida aos lábios e disse ao monarca:
—Adoro os vinhos franceses. Tudo que vem de lá é maravilhoso e
talvez tenha sido por isso que fiquei encantada com o chanceler. Na
verdade, acredito que minha paixão maior não foi por ele, mas sim
pela França. Quero pedir-lhe desculpa pelo grande transtorno que
lhe causei, fazendo com que deixasse a França justamente neste
momento em que necessita refazer sua vida. Reconheço que fui
precipitada demais e de hoje em diante vou redobrar meus
cuidados, ser mais responsável, para não causar aborrecimento para
pessoas dignas como você.
O rei contemplou-a, entorpecido pela bebida e a paixão que o
dominava.
—Sou rei, mas também sou homem. O que vou confessar-lhe agora
peço-lhe que fique entre nós.
Diana encorajou-o maliciosamente com os olhos.
—Sim, prometo guardar segredo e fico lisonjeada por confiar-me
um.
Olhando dentro dos olhos negros de Diana, disse-lhe:
—Amo-a, como nunca amei ninguém em minha vida, desde o
primeiro dia em que a vi! Desde o primeiro instante você tornou-se
a luz dos meus olhos. A rainha ainda vivia e confesso que alimentei
esperança de, assim que ela descansasse, casar-me com você.
Quando o chanceler me procurou pedindo sua mão, o dever
obrigou-me a renunciar à minha própria vida. Agora que estou
viúvo continuo a amá-la e sua mão está livre. Pergunto-lhe: posso
ter uma esperança? Responda-me, por favor.
Diana fingiu espanto e surpresa.
—Vossa Majestade me pegou de surpresa! Tem certeza de que o
vinho não lhe subiu à cabeça? Poderia me pedir isso amanhã pela
manhã com as mesmas palavras?
Sentindo-se magoado, o rei afirmou:
—Repito isso quando e onde você desejar, mas me responda agora:


tenho uma chance?
Se o rei fala sério, antes de deixar o reino de meu pai deve sair
comprometido com sua filha. — Diana sentia-se vitoriosa. —
Amanhã deve repetir-me tudo isso à luz do sol! Não quero


— desculpá-lo mais uma vez.
O rei apertou-lhe a mão disfarçadamente.
—Amo-a, amo-a, amo-a! Não partirei daqui sem levar seu coração.
Quero casar-me com você e conhecer o que chamam de felicidade,
que nunca tive ao lado de mulher alguma. Para você serei um
homem comum, não apenas o rei.
Os cavaleiros presentes começaram a retirar-se. Diana dirigiu um
olhar de cumplicidade ao rei da França e afastou-se com os demais.
Lua de Prata seguiu-a, entrou com ela nos aposentos e perguntou-
lhe:
— Minha filha, o que deu em você? Enlouqueceu? Entendo que
tenha ficado magoada, mas isso não lhe dá o direito de envergonhar
seu pai.
— Minha querida mãe, você não entendeu nada! Não envergonhei
meu pai, apenas descobri que Deus existe e é muito amigo de todos.
Ainda bem que Henrique caiu em si, pois até ontem eu estava cega,
iludindo-me com um amor que nunca existiu. Não o amei. Foi
apenas uma paixão repentina. Como disse minha avó, um incêndio
que controlei dentro de mim. Preciso descansar e você também.
Lua de Prata abraçou a filha e disse-lhe:
—Minha pequena, o amor verdadeiro lhe virá quando menos
esperar.
—Tenho certeza — disse Diana, beijando a mãe.
No dia seguinte, Loretta passeava pelo jardim quando avistou o rei
olhando ansioso em direção à escada que dava para o bosque. "O
que se passa com ele?", tentou imaginar. Em seguida, viu Diana
descendo a escada, sorrindo para ele. Seu cabelo negro brilhava,
voando ao vento, e ela, vestida de branco, parecia um anjo moreno.
Quando a viu, o rei correu ao seu encontro e tomou-lhe as mãos,

beijando-as delicadamente. Diana ainda olhou ao redor,

certificando-se de que não eram vistos. Desceram de mãos dadas.
Loretta ficou preocupada. Não entendia, ou melhor, não queria
acreditar no que estava acontecendo. Não era de seu feitio observar
a vida alheia, mas tratava-se de sua neta, que bem sabia estar
magoada.
Desceu a escada também e avistou os dois conversando, sentados
sob uma trepadeira florida. Um beija-flor voava entre as flores.
Diana sorria para o rei, apontando o pássaro.
Minutos depois, Loretta levou a mão ao peito diante da cena que
presenciou. O rei levantou a neta delicadamente, abraçando-a, e ela
correspondeu ao abraço. Beijaram-se demoradamente. Loretta virou
as costas e saiu de lá, compreendendo o que se passava.
Diana realmente se parecia com ela. Mal saíra de uma paixão, já se
entregava a outra. Quem sabe se não viria a amar o rei da França
tanto quanto Loretta amara o marido?
Conversou com o filho, contando-lhe o encontro com Mary, como
fora o nascimento de Henrique e tudo mais que ficara sabendo a
respeito de ambos.
Quando terminou de falar, percebeu que o rei tinha os olhos cheios
de lágrimas. Afagou-lhe as mãos, dizendo:
—Seja feita a vontade de Deus. Passei muito tempo afastada Dele, e
Ele nunca deixou de amparar-me.
O rei suspirou aliviado. Loretta achou melhor comentar o que tinha
visto, pois assim o filho já iria pensando na decisão certa a tomar.

— Meu filho, o destino tem-me empurrado para situações que não
programei. Acabo de presenciar algo no jardim que vai deixá-lo
confuso: vi Diana e o rei da França abraçados. — Omitiu o beijo,
evitando uma situação desagradável ao rei, pois Diana era atrevida
e, quando desejava algo, atirava-se de cabeça.
— Ora, minha mãe, talvez Diana o tenha abraçado em
agradecimento pela gentileza de ter vindo até aqui desfazer
pessoalmente o pedido do chanceler.

— Não, meu filho, o abraço que presenciei foi de paixão entre um
homem e uma mulher.
No fim da tarde, o rei da França pediu uma audiência com o filho
de Loretta. Assim que ficaram a sós, o monarca francês falou:
—Meu amigo, perdoe-me, pois agora estou aqui diante de você não
como rei, mas sim como um homem comum para fazer-lhe um
pedido. Vim pedir a mão de sua filha Diana em casamento, desta
vez para o rei da França, que desde o dia em que a viu ficou
enlouquecido de amor por ela. Como bem sabe, muitas vezes
renunciamos à própria vida em favor daqueles que nos servem
fielmente. Diana confessou-me que não estava apaixonada pelo
chanceler e sim pela França, que não está magoada e concorda em
casar-se comigo e assumir a coroa da França como minha rainha.
O rei Henrique suspirou. Sabia que a filha estava mentindo, pois
conhecia-lhe a ambição. Nada o impedia de consentir o casamento
de Diana, e por isso disse ao outro:
—Se Diana estiver de acordo, seu pedido será aceito.
O monarca francês respirou aliviado. Aquela viagem fora presente
dos deuses. A noite, Henrique reuniu toda a família para anunciar o
noivado de Diana com o rei da França.
O casamento foi marcado dali quatro meses, tendo em vista que o
da princesa Ane com o chanceler seria em três meses. Mesmo
impaciente para levar Diana como sua rainha, o rei sabia ser
necessário casar a filha em primeiro lugar para depois pensar na
própria felicidade.
Apenas Lua de Pfata não conseguiu segurar as lágrimas diante da
família real, pois sabia que a filha não estava sendo sincera. Não foi
por amor que tomara aquela decisão, mas sim por orgulho ou talvez
até mesmo por vingança.
Já no leito, Diana sorria. Mostraria para Henrique que não se deve
brincar de amor com o coração alheio. Lembrou que ficara com ele
em seu quarto, o que em sua terra obrigava qualquer cidadão ao
casamento. Se falasse com o pai, este o obrigaria a casar-se com ela.



Mas não valia a pena: seria rainha da França e ele pagaria caro pelo
que fez. Ela tinha-se oferecido a ele, mas ele recusou-a, claro!,
porque buscava algo maior: a filha do rei francês. Do jeito que era
ambicioso, talvez tivesse a esperança de tornar-se rei, já que o
monarca não tinha filhos.
Queria vingar-se dele, sim! Como rainha iria humilhá-lo de todas as
formas. Teria-o a seus pés. Odiava essa tal de Ane, mesmo sem
conhecê-la, e já tinha um plano de guerra contra ela. No outro dia
cedo, procurou o pai:
—Meu pai, tenho um pedido a fazer-lhe.

— Se puder atendê-la, farei com todo o prazer — respondeu-lhe
solícito.
— Gostaria que meu noivado permanecesse apenas entre nós e não
fosse oficializado ao mundo. Gostaria que só fosse anunciado um
mês antes do casamento, já com o convite, evitando assim falatórios
e aborrecimentos para todos nós. O rei da França necessita de paz
para tratar do casamento da filha, acertar seus negócios e preparar-
se para nossas bodas. Creio que a notícia de nosso noivado geraria
muitos transtornos para ele.
O rei sensibilizou-se com a preocupação da filha em zelar pelo bem-
estar do país e proteger o futuro marido. Diana parecia-se com a
avó: era ponderada e ao mesmo tempo determinada, bem diferente
de Luana, que se parecia com a mãe.
Ficou acertado, então, com o monarca francês que o noivado ficaria
em segredo. Diana o fez jurar que nem mesmo para Ane ou o
chanceler iria contar. O rei deu sua palavra. Diana sorriu e brincou,
satisfeita:
—A palavra de um rei vale mais que qualquer moeda de ouro. Vou
esperá-lo já vestida de noiva, tamanho é o meu desejo de unir-me a
você!
A princesa aproveitou os momentos que o pai lhe concedera ao lado
do rei e não escondeu a ansiedade em entregar-se a ele. Este, porém,

era um homem honrado e resistiu aos encantos da noiva, dizendo a
si mesmo que quatro meses passavam voando.
Retornou à França, sentindo-se o homem mais afortunado de toda a
história. Em breve casaria-se com a mais linda mulher que seus
olhos já tinham visto. Suspirava de paixão, fechando os olhos, ao
lembrar-se do rosto ousado da noiva.
Mandaria erguer estátuas, criaria moedas, selos e marcas com a face
dela e a colocaria na corte de todas as formas possíveis. Assim que
ela chegasse à França, ordenaria aos ourives talhar as mais ricas
jóias para a esposa.

A VITÓRIA DO ESPÍRITO

Loretta despediu-se dos familiares, alegando ansiedade em retornar
ao castelo D'armis. Queria descansar. Também sentia saudade das
flores de seu jardim.
Antes, Lua de Prata chegou-se até ela.
—Rainha Loretta, vou fazer-lhe um pedido: gostaria que me
acompanhasse até a catedral em que o Monsenhor desenvolve seu
trabalho. Quero que veja como o olhar daquele homem faz bem.
Quando nossos olhos se encontram, não consigo segurar as
lágrimas. Vem-me um aperto ao coração e lembro-me de meus
antepassados, especialmente de meu pai, que não esqueço um só
dia.
Loretta estremeceu. Ela ir à igreja? Olhou para a nora e in¬dagou:
—Você já pensou no que está me pedindo?
—Sim, por isso mesmo a convidei. Vamos até lá, minha sogra! Vai
fazer-lhe bem conhecer um lugar como aquele. Depois de tanto


tempo e sofrimento, pode encontrar a paz que anseia dentro de si.
'Talvez seja uma oportunidade de reconciliar-me realmente com
Deus", ponderou Loretta e, sem muito pensar no que poderia sentir
ou provocar nos fiéis da corte, acabou concordando. Apenas pediu
sigilo; não queria causar tumulto e comentários. Iriam à missa das
18 horas.
Vestida de preto e usando um largo chapéu negro com véu que lhe
cobria o rosto, Loretta entrou na igreja junto com a nora.

Começou a sentir-se mal. Uma angústia muito grande oprimia-lhe o
peito, e o ambiente a sufocava. Comentou baixinho com Lua de
Prata:
—Não estou me sentindo bem...
—Daqui a pouco, quando o Monsenhor chegar, vai sentir-se melhor.
O canto dos padres, acompanhado de uma música suave, enchia o
ambiente de calma e paz. Velas acesas iluminavam o recinto,
tornando-o sereno e aconchegante ao mesmo tempo.
Minutos depois de sua chegada à igreja Loretta viu o Monsenhor
entrando vestido em uma batina negra. Ajoelhou-se em frente à
imagem de Cristo pregado na cruz e depois, voltando-se aos fiéis
que lotavam a igreja, abençoou a todos em nome de Deus, de Seu
filho Jesus Cristo e de Sua mãe Maria Santíssima.
Olhando para o religioso, tentou lembrar-se de onde o conhecia. De
repente, por baixo do véu, arregalou os olhos num gesto de espanto
e medo. Abriu a boca, mas não conseguiu pronunciar o nome que se
formou em seus lábios. Sentiu uma pontada no coração e tombou de
lado, amparada por Lua de Prata e uma dama.
O Monsenhor dirigiu-se com passos rápidos até o banco em que
estava Loretta e pediu ajuda aos outros padres, que se aproximaram
prontamente.
Tomaram-na nos braços e levaram-na para outro lugar. Passando na
frente do altar, reverenciaram a imagem de Cristo, tendo nos braços

o corpo desfalecido de Loretta. Lua de Prata e a dama seguiram com
eles.

O Monsenhor deixou um auxiliar rezando a missa e foi
pessoalmente acudir a filha de Deus. Pediu para colocarem Loretta
em uma cama alta, coberta com lençol branco, e suspendeu o véu
que lhe cobria o rosto. Massageando-lhe os pulsos, levantou a
cabeça dela e soprou-lhe as narinas. Lua de Prata estremeceu, ele
usava técnicas da tribo.
O homem pediu gentilmente que todos se retirassem, deixando-o a
sós com a paciente. Assim que ela voltasse a si, ele os chamaria.
Esfregou algo nos pulsos da rainha e pingou algumas gotas,
preparadas por ele mesmo, na boca de Loretta. Após alguns
segundos, ela abriu os olhos, encontrando os de Raul, que lhe
segurava as mãos.

— Está se sentindo melhor, Loretta? — perguntou, sorrindo. — Que
bom recebê-la na casa de nosso Pai. Deus seja louvado hoje e
sempre! Loretta, sua vinda até aqui foi uma vitória muito grande
para o seu cansado espírito. Você está na casa de Deus, e se Ele
consentiu que reconhecesse em mim algo do passado foi no sentido
de ajudá-la. Faço meu trabalho conforme o Senhor permite. Estou
conseguindo juntar o povo de meu Pai, portanto não disperse o
rebanho que tanto lutei para unir. Não comente nada de mim com
os filhos de minha alma. Estou próximo deles e protejo-os com meu
amor. Se Deus permitiu que se lembrasse de mim, foi apenas para
você abrir o coração e entrar para o rebanho. Ainda lhe resta tempo.
Vou cuidar de você e de nossos entes queridos como Deus ama e
protege a cada um de nós: em silêncio. A caridade não pede
propaganda. Alie-se a mim, Loretta, eu lhe peço em nome de Deus.
Veja como Deus tem sido generoso com você: facilitou seu caminho,
dando-lhe tempo e oportunidade de reparar seus pecados. Abra
aquele castelo em que Hari foi sacrificado, transforme-o em um
convento; faça do calabouço que guarda os restos mortais dele e de
tantas outras criaturas uma capela em que a oração possa dispersar
as trevas que reinam por ali. Transforme o castelo D'armis também
em convento, onde as orações e a caridade nos sustentem a fim de

desfazermos as mágoas e lágrimas lá derramadas. Juntos
poderemos reconstruir parte da ponte que nos leva de volta à casa
do Pai.
Loretta estremeceu. Tentou falar alguma coisa, mas a voz não saiu.
O Monsenhor chamou os parentes da enferma e recomendou
repouso absoluto. Pediu ajuda aos padres, que prepararam o meio
mais confortável de transportar a mãe do rei até o palácio.
Nessa altura, já corriam histórias pelos quatro cantos da corte: a
rainha Loretta fora castigada por Deus ao entrar na igreja que havia
profanado, tendo perdido os sentidos e sido amparada pelo
Monsenhor.

0 médico da corte exarninou Loretta e recomendou a Lua de Prata e
ao rei:
—Ela sofreu um grande choque. O coração dela está abalado e é
possível que não volte mais a andar.
Em desespero, o rei perguntou a Lua de Prata:
—Por que levou minha mãe à igreja? Não imaginou que ela poderia
sentir-se mal ao lembrar-se de tudo que sofreu por causa dela? Não
vou perdoá-la se algo mais grave acontecer com ela. Ainda hoje
estava bem e muito disposta e agora está aniquilada por sua causa!
Por que insiste em tornar-se católica, Lua de Prata? Seus costumes
pareceram-me bem diferentes na tribo. Pelo que me recordo, falava
com o espírito da mata, mas agora se confessa com os padres.
Retirou-se apressadamente, passando pelas filhas sem dar-lhes
atenção. Lua de Prata chorou amargamente. Não fizera por mal;
insistiu, sim, em levar a sogra até a igreja, mas no sentido de
despertar nela a paz. Caso Loretta não melhorasse nos próximos
dias, pediria ao rei para levá-la à tribo, onde o grande espírito
poderia curá-la, tinha certeza. Iria dedicar-se noite e dia a ela, oraria
a Deus, o grande espírito da mata, para ajudar a sogra a recuperar-
se.
Passou a noite velando a doente, que fitava o vazio. De vez em
quando, duas lágrimas escorriam-lhe pelo canto dos olhos. No dia


seguinte, chegou uma mensagem, assinada pelo Monsenhor,
pedindo autorização para visitar Loretta.
Lua de Prata disse para a sogra:
—Minha senhora, responda com um gesto ao que vou perguntar-
lhe: o Monsenhor quer vê-la. Você deseja ou não sua visita?
Loretta, fazendo enorme esforço, balançou a cabeça num gesto
afirmativo.
Quando Raul entrou, os olhos de Loretta adquiriram novo brilho.
Estendeu a mão para ele, que a tomou entre as suas e acariciou o
cabelo dela. Lua de Prata viu que lágrimas escorriam dos olhos da
sogra.
O Monsenhor falou-lhe muito sobre Deus e em seguida perguntou-
lhe:


—Gostaria de ir para o castelo D'armis, rainha Loretta? Velarei por
você todos os dias. Jamais vou abandoná-la.
Lua de Prata estranhou a pergunta. Como ele poderia saber que ela
estava no castelo D'armis? Alguém podia ter comentado com ele...
Caso a sogra desejasse, ela a acompanharia e ficaria o resto de sua
vida ao seu lado.
Loretta gesticulou que gostaria, sim, de ir ao castelo D'armis. O
Monsenhor conseguiu fazer com que engolisse um caldo, e ela
pareceu mais tranqüila. O rei entrou nos aposentos da mãe e viu o
religioso ao lado dela. Percebeu que Loretta estava mais corada e
com melhor aparência. Aproximou-se, beijou a fronte da mãe e quis
saber:
—Está melhor, minha mãe?
A rainha esboçou um sorriso e apontou o Monsenhor com a mão. O
rei cumprimentou-o e sentiu um frio percorrer-lhe o corpo diante da
estranha sensação de que ele lhe era familiar. Era bobagem pensar
assim, pois vira o padre quando chegou à corte.
—Majestade, sua mãe precisa descansar em um lugar mais
tranqüilo e arejado. Tenho certeza de que o ar das montanhas do
castelo D'armis vai fazer-lhe muito bem. Se permitir, cuidarei dela



pessoalmente para que nada lhe falte — recomendou o Monsenhor.
O rei ia perguntar-lhe como ele sabia do castelo e do desejo da mãe,
quando esta falou baixinho:
—Meu filho, por favor, esse é o meu desejo. Quero ir e o Monsenhor
irá me ajudar.
Lua de Prata pôs-se a chorar baixinho ao lado da cama. Graças a
Deus a sogra falara! Loretta pegou a mão da nora e disse-lhe:
—Você fica, minha filha. Cuide de minhas netas e de meu filho.
Chegando ao castelo D'armis, Loretta pediu que parassem a
carruagem para olhar as rosas que se abriam embelezando o vasto
jardim. Acomodou-se nos aposentos preparados para seu
casamento com Raul. O Monsenhor ficou no cômodo ao lado, ou
seja, em seu antigo quarto como conde Raul.


Lua de Prata retornou ao palácio real entristecida e amargurada.
Sua vontade era ficar no castelo ao lado da sogra e, principalmente,
do Monsenhor. Ele acalmava seu coração, transmitia-lhe enorme
paz.
Diana iria casar-se e ela precisava estar presente, mas prometera a
Loretta que uma vez por semana iria visitá-la. As damas de
confiança da sogra estavam atentas em servi-la dia e noite, e o
Monsenhor pedira afastamento das tarefas da Igreja para dedicar-se
à rainha.
O rei estava completamente aborrecido. Por vezes bebia mais do
que podia e passava por Lua de Prata sem olhá-la. Não escondia de
ninguém o quanto sofria com a doença da mãe.
Certa noite, gritou para a mulher:
—Se minha mãe morrer, jamais vou perdoá-la! Nada que você me
deu a supera! Você mudou para pior depois que se uniu aos padres.


— E saiu transfigurado dos aposentos, deixando Lua de Prata aos
prantos.
No castelo D'armis, o Monsenhor orava com todo o coração,
pedindo ajuda a Deus para Loretta. Ao seu lado, via nitidamente

sombras escuras passando pela janela e espalhando-se no aposento.
Loretta começou a passar mal; faltava-lhe ar, debatia-se. Em dado
momento, arregalou os olhos, agarrando-se desesperadamente ao
padre.
—Ele está aqui! Hari está aqui! Ele diz que está me esperando, que
não vai sair daqui até que eu morra. Veja só! O quarto está cheio de
maus elementos que riem de mim. Eles me chamam de "nossa
rainha". Por favor, Raul, ajude-me! Hari ri de você, chama-o de
nomes horríveis.
Raul continuou a orar, e, depois de muito custo, Loretta adormeceu.
Saiu, dirigindo-se ao topo da montanha, onde o silêncio era
quebrado apenas pelo canto dos pássaros noturnos.
A lua iluminava a noite. Ajoelhou-se na relva, elevou o pensamento
ao grande espírito da mata, pedindo que viesse ajudá-lo a salvar
Hari e seus acompanhantes; que auxiliasse Loretta a desfazer o
compromisso de dor.

Ainda estava de olhos fechados quando um vento passou por ele e,
balançando uma árvore à sua frente, parou. Tinha certeza: era o
grande espírito que o ouvira e estava ali. Chorando, aproximou-se
da árvore, ajoelhou-se e pediu:
—Meu Pai, ajude-me. Preciso salvar aqueles irmãos pequenos,
salvar minha irmã pequena, salvar-me para merecer a liberdade de
voar ao vento.
Começou a sentir uma paz tão grande dentro de si que, recostando-
se à árvore, logo adormeceu. Sonhou que era o grande cacique da
pedra branca. Sentado em uma pedra, observava as estrelas,
enquanto o pajé aproximava-se dele. Não estava sozinho. Vinha
com o grande espírito da mata.
Pôs-se de joelhos a seus pés, e este despejou sobre sua cabeça uma
essência perfumada que lhe envolveu todo o ser. O grande espírito
suspendeu-o no ar, chamando-o de filho.
—Leve e coloque no local em que eles estão — disse, entregando-lhe
as folhas que trazia consigo.


Acordou, abrindo devagar os olhos e ainda sentindo o perfume
derramado pelo espírito no sonho. Uma brisa agitava o ar. Por
instantes, viu a aldeia, os jardins floridos, as crianças correndo, a lua
iluminando os córregos, e escutou o barulho do mar e do rio,
parecendo uma serpente saindo da mata e chegando ao oceano.
Viu o filho sentado na pedra conversando com o grande espírito da
mata. Estava tão diferente! Forte e maduro, era um verdadeiro
cacique. Os netos que não conhecia estavam entre os guerreiros da
tribo.
Sobrevoando a aldeia, viu Lua Branca, o cabelo negro balançando-se
ao vento, o sorriso de criança e os olhos negros como duas
jabuticabas brilhando, iluminando mais que a lua.
Ela aproximou-se dele, beijou-lhe a fronte e afastou-se, sempre
sorrindo. Raul despertou por completo. Vestido com a batina,
lembrou-se de que estava ali por outro motivo. Levantou-se e notou
que ao lado havia uma ramagem que exalava cheiro agradável.
Uma sensação de paz encheu seu coração. Colheu algumas folhas
daquele arbusto e saiu andando lentamente. A lua já havia
atravessado o céu. Ele devia ter dormido algumas horas.
Caminhou calmamente, o sereno da noite umedecendo seu cabelo
branco. Lembranças da aldeia apertavam-lhe o coração. Nunca se
tinha desmembrado daquela forma desde o dia em que partira da
tribo. Reviu a aldeia, viu o filho, os netos e a pedra branca, que
continuava protegida como sempre fora, pois era um templo
sagrado, abençoado pelo grande espírito. Depois de tanto tempo,
ele veio ao seu encontro, benzeu-o e chamou-o de filho.
Colocaria as folhas que levava embaixo do travesseiro de Loretta.
Tinha certeza de que o grande espírito as havia preparado. Entrou
silenciosamente no jardim e dirigiu-se aos aposentos da rainha. Na
frente da porta do quarto de Loretta, percebeu um vulto. Orou em
pensamento, e a sombra desapareceu. Tudo estava silencioso.
Passou o resto da noite acordado, relembrando cada detalhe de seu
transporte espiritual.


Lua Branca... Quanta saudade sentia dela! Era pura como a flor que
nasce entre os arbustos da floresta, era como uma fonte de água
límpida que se escondia entre as pedras, era como aquelas folhas
perfumadas, pois exalava amor para todos que dela se
aproximavam.
Não amou apenas a matéria de Lua Branca, mas sua alma e
grandeza. Agradecia sempre a Deus pela felicidade que ela lhe
havia proporcionado. "Ah, minha mãe peixe, virgem da Conceição,
tende piedade de nós. Protegei minha amada aldeia e todos os seus
filhos", rezou em pensamento para Nossa Senhora. Não importava
que nome lhe dessem, era a única em seu coração.
Antes de o dia clarear por completo, foi ver como estava Loretta.
Esta lhe pareceu mais corada, e suas mãos, antes sempre geladas,
agora estavam quentes. Ao vê-lo, abriu um sorriso e contou:

— Tive um sonho tão estranho... Imagine, estava com você,
ajoelhada diante de um altar com a imagem de Jesus, e rezávamos
de mãos dadas. Você flutuava e transformava-se em luz. Eu não
conseguia sair do chão, mas estava muito feliz porque você me
amparava; sentia-me segura com sua presença ali perto de mim.
Acordei e estou me sentindo tão bem que sinto vontade de levantar-
me. Será que posso andar, Raul?
—Loretta, minha amada criança, esqueça o passado. Você pode
levantar-se e ainda fazer muitas coisas boas por si mesma.
Raul chamou duas criadas, que ajudaram Loretta a levantar-se,
deram-lhe banho e vestiram a rainha com esmero. Com alguma
dificuldade, mas ajudada por elas e pelo Monsenhor, desceu até a
varanda, de onde podia ver o jardim florido ainda molhado pelo
orvalho da noite.
Comeu bem e estava animada. Mais tarde chegou Lua de Prata
acompanhada por quase todos os membros da família real. Todos
amavam Loretta. O rei ficou entusiasmado quando viu a mãe tão
bem-disposta.

Lua de Prata foi até o Monsenhor, beijou-lhe as mãos e, com os
olhos cheios de lágrimas, agradeceu-lhe:
—Obrigada, meu pai espiritual, pelo que está fazendo por minha
sogra e por todos nós.


Passaram-se três meses. Loretta recuperava-se dia a dia. O
Monsenhor voltou às suas atividades na Igreja, mas dia sim, dia
não, ia ter com a rainha. Ela dormia melhor e alimentava-se bem.
Aguardava sempre ansiosa pela chegada do padre.
Certa tarde, sentada na varanda, avistou de longe uma carruagem
que se aproximava. Como sua vista já não a ajudava a ver como
outrora, perguntou para uma das acompanhantes:
—Quem se aproxima? Você pode ver?
—Sim, senhora. E uma carruagem da família real, mas não consigo
ver quem é.
"Deve ser Lua da Prata. Ela tem sido como uma filha para mim.
Meu filho teve muita sorte quando se casou com ela", imaginou
Loretta.
Quando o carro chegou perto do portão principal, um criado correu
para receber os visitantes. Loretta foi informada:
—Senhora, é sua neta, a princesa Diana, e o rei da França. Loretta
ficou feliz com a notícia. O casal aproximou-se. A neta beijou-a e
abraçou-a, seguida do rei da França, que estreitou Loretta entre os
braços, dizendo-lhe:


— Mãe querida, quanta saudade senti de você e como me
entristeceu sua doença! Vejo que está melhor. Gostaria de levá-la
para a França, minha boa e querida mãe Loretta. Ane e Henrique
sentiram muito sua falta no casamento deles e mandaram-lhe
muitos abraços e beijos, além de um baú de presentes, que já pedi
para o criado trazer até aqui. Vim cumprir minha palavra com o rei
Henrique e dar-me o direito de ser feliz. Levarei para a França a
maior e mais bela rainha que a nação já teve. Amo sua neta Diana
tanto quanto minha querida França e darei a vida por ambas.

Loretta olhou para Diana, linda em sua juventude plena, e
imaginou: "Com certeza, a França terá a mais bela rainha de todos
os tempos. Só não sei dizer se fará o rei feliz como almeja, mas seja o
que Deus quiser".
Continuaram conversando. Agradeceu o convite do rei, mas disse-
lhe não agüentar a viagem. Estava feliz por ele e pela neta. Desejou
muita felicidade para ambos e, antes de despedir-se, afirmou ao rei
que, se fosse possível, antes de partir do mundo queria ver
Henrique e Ane mais uma vez.

DIANA, A NOVA RAINHA


O palácio acomodou reis e rainhas de muitos países vizinhos para o
casamento de Diana. Estava sendo um dos mais concorridos, pois,
além de a França ser uma nação das mais respeitáveis, era símbolo
mundial da liberdade.
Aquele fora o acontecimento mais importante dos últimos tempos.
Os dois países agora dividiam a coroa. O rei francês não tinha
herdeiros, mas, casado com Diana, o povo via a possibilidade de
mudar essa realidade.
Após o acordo entre os monarcas, uma comitiva partiu levando o
rei e sua nova rainha. Os franceses aguardavam-nos em clima
festivo. Corriam de boca em boca comentários sobre a juventude e
beleza da nova rainha.
Henrique ficou feliz por Diana e disse para a mulher:

— Ane, vamos fazer o possível para ajudá-la. Gostaria que
procurasse gostar dela como se fosse sua verdadeira irmã.
A princesa prometeu que faria tudo para deixá-la completamente à
vontade. Só de pensar que Diana era neta da rainha Loretta, a quem

tanto devia, despertava nela sentimentos de gratidão.
Henrique, que cuidava dos negócios da corte, organizou tudo para
que a chegada do rei e da rainha fosse bem-sucedida, conforme
requeria a ocasião. Ane encarregou-se de preparar os aposentos de
Diana com esmero e requinte. Não economizou luxo nem beleza.
Nem a própria mãe tivera algo igual ao que preparou para a jovem
madrasta. Separou todas as jóias usadas pela mãe para entregá-las à
nova rainha da França. Elas pertenciam à coroa, e cada nova
soberana as usava até o fim do reinado.
O bom gosto e o refinamento dos melhores profissionais da corte
transformaram os aposentos da rainha Diana em um verdadeiro
conto de fadas. As damas que iriam servi-la falavam sua língua e
foram treinadas para desempenhar adequada e elegantemente seu
papel.
Assim que o casal chegou, a cidade ficou em alvoroço, o povo
querendo ver de perto a tão comentada rainha. O rei determinou
três dias de festa, com a distribuição de uva, queijo e vinho para
todos.
A apresentação de Diana seria no teatro principal, para onde o rei a
levaria para receber a homenagem dos artistas e nobres em geral e
apresentar-lhe os cavaleiros da corte francesa, que jurariam a vida
por ela diante do monarca.
Ane encantou-se com a beleza da jovem madrasta. Esta, porém, a
tratou com certa frieza, não demonstrando interesse por sua
amizade. A esposa do chanceler preferiu acreditar que Diana estava
se sentindo em terra estranha e logo iria procurá-la, até mesmo para
agradecer-lhe.
No dia seguinte, Ane andou em vão para lá e para cá. O pai
informou-a de que a viagem tinha deixado a esposa cansada. Como
não tinha costume de viajar, sentia-se enjoada.
No terceiro dia seria sua apresentação à corte. Preocupada, Ane
procurou falar com as damas designadas para ajudar a rainha, que
lhe contaram que esta dispensara a todas, ficando unicamente com


duas acompanhantes que trouxera de seu país, e que elas só se
comunicavam com as damas da rainha.
A princesa, através do pai, pediu para falar com a madrasta. Ela
devia estar precisando de ajuda; afinal, seria sua apresentação, e
toda a família deveria estar unida. Por isso, era importante que
conversassem antes.
Pouco depois, uma das damas procurou Ane dizendo que a rainha
queria vê-la. Solícita, saiu apressada e, ao entrar nos aposentos da
madrasta, empalideceu: Diana estava deitada completamente nua,
enquanto as damas massageavam seu corpo com creme. Seu cabelo
negro estava preso.
Ante a aproximação de Ane, ela disse, sem se mexer:
—Perdoe-me a forma como a recebo, é que estou me preparando
para esta noite. Uso uma técnica diferente da sua, Ane. Para sentir-
me bem, passo por todo esse processo. Agradeço a boa vontade em
ter colocado suas damas à minha disposição, ou melhor, as damas
da corte! — disse, com um sorriso irônico. — Prefiro, no entanto, as
que trouxe da corte de meu pai, pois já estão acostumadas comigo.
Além disso, ainda não me considero rainha plena antes de ser
coroada diante da França. Por isso, faço uso dos recursos enviados
por meu pai, o rei Henrique. Agradeço mais uma vez sua gentileza
em querer ajudar-me, mas pode ficar tranqüila que não vou fazer
feio diante de seu pai. Está tudo planejado. Nós nos veremos logo
mais, à noite.
Ane saiu decepcionada com a frieza da madrasta. Talvez fosse
questão de cultura: ela era filha de uma índia e podia ser que o
espírito de independência provocasse tudo aquilo.
Junto ao esposo, desabafou:
—Henrique, você conheceu Diana melhor do que eu. Ela tratou-me
quase com indiferença. Em nada se parece com a rainha Loretta.
Henrique abraçou-a.
—Minha querida, Diana é diferente de você em tudo! Não tem sua
classe nem sua nobreza, mas aos poucos irá aprendendo.


A noite, Ane arrumou-se como uma verdadeira princesa. Ao lado
de Henrique, formavam um belo casal. O Chanceler de Ferro vestiu-
se também elegantemente, pois se apresentaria ao lado do rei e de
sua rainha e, além do mais, era genro do monarca.
Todos aguardavam a chegada da rainha para seguir ao evento.
Faltando um minuto para a hora que o rei marcara de encontrá-la,
apareceram suas damas. Vinham na frente, abrindo caminho para
Diana, que não parecia mulher de carne e osso, mas uma deusa das
histórias encantadas.
Todos ficaram estáticos diante da beleza exótica da nova rainha. Ela
não usava nenhum dos vestidos desenhados e feitos à mão por anos
a fio que encontrara no guarda-roupa. Nunca tinham sido usados
pela falecida rainha, pois foram terminados quando ela já estava
acamada e ficaram para uso da nova esposa do rei.
O rei ficou deslumbrado com a beleza de Diana, mas, notando que
ela não usava nada da coroa francesa, perguntou-lhe:

— Diana, você não está usando a coroa nem mesmo as jóias. Por
quê?
— Meu marido, a coroa está aqui, e você deve coroar-me na frente
do povo, pois ela pertence à França, não ao meu país. Quanto às
jóias e roupas, depois que for apresentada tomarei posse do que me
pertence por direito.
O rei sorriu. Ela era tão sábia quanto a avó.
Só então Diana olhou para Henrique, que enrubesceu diante da
hostilidade de seu olhar. Apenas acenou com a cabeça para ele, sem
lhe estender a mão.
Sua pele morena contrastava com o vestido prateado, bordado com
fios de prata e pérolas. O cabelo negro e liso brilhava, chegando até
a cintura. Usava um colar de pérolas, brincos e pulseiras que
ganhara da avó Loretta. Combinavam com o vestido que usava.
Tinha sido presente de seu avô, que amou Loretta e fez dela a
grande e temida rainha.
'Tomara que este vestido me dê tanta sorte quanto deu para minha

avó. Pretendo fazer da França meu país e desenvolver aqui o que
Loretta fez na corte de meu avô", pensou Diana, já saboreando a
vingança.
Assim como a avó derrubara os padres em seu reinado, ela baniria o
cargo de chanceler. Se quisesse continuar no país, Henrique teria de
servi-la como simples serviçal, enquanto faria de Ane uma princesa
inútil.
O povo louvou a chegada do rei e, quando este levantou a cortina,
mostrando a nova rainha, foi uma explosão de palmas. Ela
cumprimentou o povo, mostrando uma humildade e doçura que
estava longe de sentir.
Depois, respeitosamente, pediu ao rei que a coroasse diante do
povo. Este colocou a coroa cravejada de brilhantes e pedras
preciosas adornando-lhe o belo cabelo negro. A França curvou-se
aos pés de Diana.
O rei levou-a até o trono, e todos os nobres cavaleiros apresentaram-
lhe armas, prestando juramento e lealdade. Na vez de Henrique,
quando ele se abaixou cumprimentando-a e desejando-lhe
felicidade, ela o olhou nos olhos e disse:
—Certamente, Henrique, já me sinto a pessoa mais feliz do mundo.
Começou, então, uma vida de glória para Diana, responsável pelo
aumento do comércio na França. Fez no país o mesmo que Loretta
fizera na corte do avô.
Apenas duas pessoas sofriam na corte francesa: Henrique e Ane.
Diana começou uma perseguição oculta. Tudo que o chanceler
pretendia fazer, quando trazia ao rei, este já tinha projetado.
Constantemente humilhado, aos poucos foi caindo em depressão.
A rainha Diana criou novo círculo de amizades para cercar o rei de
gentilezas. Henrique pouco conversava com o soberano e, quando
participava de alguma cerimônia familiar, saía delas ultrajado.
Diana tratava Ane com um descaso tão grande que chegava a
revoltar até suas próprias damas.
Quando nasceu a filha de Ane, Diana disse-lhe em tom de


brincadeira:
—Se a França dependesse de você para ter um herdeiro, precisaria
esperar talvez por um neto seu ou até um bisneto.
Diana estava grávida de três meses e, exibindo a barriga que ainda
não aparecia, completou:
—Tenho certeza de que aqui está o futuro rei da França. A nova
rainha da França soube que a avó tinha convertido o
castelo D'armis em um convento para meninas órfãs, e aquele que o
avô apreciava muito, nas montanhas, fora transformado em um
mosteiro para meninos.
Estranhou a mudança de Loretta. Havia expulsado os padres e, de
repente, construíra os maiores conventos da história, vivia rodeada
por religiosos e aquele velho Monsenhor não a largara por um só
minuto desde que ficara doente.

O DESENCARNE DE LORETTA

Uma grande tristeza abalou o reino do rei Henrique: a mãe falecera.
Loretta morrera nos braços do Monsenhor, que, após sua morte, se
enclausurou no mosteiro das montanhas. Ninguém mais o viu. Era
muito estranho o apego dele por Loretta.
Dois meses depois da morte da rainha, os pais de Diana partiam
para a França a fim de receber o neto que estava para nascer. A
moça ficou muito feliz. Fazia dois anos que deixara a terra natal e
nunca mais tinha visto os pais. Ansiava por vê-los e saber da mãe
notícias de todos, inclusive dos parentes indígenas. Lembrou-se
então do avô cacique. Que fim teria tido? O povo falava demais,
dizia que ele era o conde Raul D'armis, mas ela nunca acreditara
nessa história.


Sua avó deixou-o ficar no castelo por bondade até que um dia ele
desapareceu sem deixar rastro. Coitada de sua mãe! Sofria por isso,
mas o que poderia fazer?
Suspirou profundamente e envolveu-se com os assuntos que mais a
interessavam no momento: a retirada definitiva de Henrique da
corte francesa. Ele parecia velho e cansado, o povo criticava seu
trabalho, e ele já não era solicitado para representar a França.
No auge estava David, um jovem ambicioso e inteligente que Diana
praticamente elegeu para substituir Henrique, colocando-o diante
do rei como inteligência suprema.
Certo dia, o marido de Diana sentiu a hostilidade dela por Henrique
e perguntou-lhe:

— Por acaso está insatisfeita com meu genro, minha rainha?
— Meu marido e rei, preocupo-me com o futuro da França. Ou você
esquece que também sou responsável por isso? Afinal de contas,
serei a mãe do próximo rei. Temos de pensar que amanhã a França
dependerá do que fizermos hoje. Não quero investir em uma nação
fracassada para meu filho governar, e sim em uma próspera. Sinto
muito, mas o que vou dizer-lhe vai magoá-lo. Sei que ama Henrique
como um filho e eu também o considero muito, mas ele já não faz
um bom trabalho e o povo não confia nele como antes. Por isso,
creio que está na hora de mantê-lo no palácio como mantém seus
cavaleiros de estimação. Trate-o bem, valorize-o, mas não lhe dê
nenhuma responsabilidade que envolva a coroa. Temos tido grande
retorno com o jovem David, além de economia para os cofres da
França. Podemos contratar três assessores para dar-nos cobertura e
deixar Henrique fiscalizando-os. Ele é bom em organização e muito
honesto em tudo que faz, mas não vejo por que mantê-lo no cargo
de chanceler. Aliás, deveríamos acabar com esse título envolvendo
funções que considero desnecessárias.
O rei ficou pensativo. O que Diana falava infelizmente não era
mentira: o povo não acreditava mais em Henrique. Jovens recém-
formados destacavam-se na política e na economia do país, e ele

teria de incentivá-los, dando chance aos que se sobressaíam.
—Você tem uma maneira rápida de expor seus pensamentos, mas
devo reconhecer que está certa. Preciso tomar uma decisão urgente.
Henrique parece-me cansado, não está afinado com o resto do
mundo, pouco tem saído da França, e David tem feito realmente um
excelente trabalho. Vou estudar cuidadosamente sua proposta.
Reconheço, minha rainha, que sou muito sentimental, mas você,
não, é prática até demais! Também, teve a quem puxar, é neta da
grande e inesquecível rainha Loretta.
Diana sorriu, abraçando-o.
—Sabe, meu rei, percebo muitas coisas, mas às vezes não falo,
temendo magoá-lo, pois conheço sua sensibilidade. Por exemplo:
Henrique mudou demais depois do casamento, não é verdade?
Você já ouviu dizer que por trás de um grande homem há sempre
uma grande mulher? Pois é. Infelizmente, Ane acomodou-se e tem
levado Henrique a esquecer os interesses da coroa. Adoro sua filha,
mas pouco me envolvo com ela, exatamente para deixá-la à
vontade. Senti, desde minha chegada aqui, um tanto de
ressentimento por parte dela. Até procurei compreender; afinal,
tomei o lugar de sua mãe. Assim que entrei no palácio, vi que fez
tudo para humilhar-me, achando que eu fosse uma princesa
selvagem e iria me sentir mal no meio de tudo que havia me
arranjado de propósito. Infantilidade pura! Ela esqueceu-se de que
cresci ao lado da rainha Loretta, que também lhe ensinou boas
maneiras e etiqueta. Minha avó foi uma das maiores damas que
qualquer corte já conheceu. Convivi com ela, aprendendo desde
pequena a me portar. Outra coisa me preocupa: eles sonharam ter
um filho, claro!, que seria o herdeiro da coroa. Mas nasceu uma
linda princesa e senti a mágoa de Diana olhando meu ventre. Quero
pedir-lhe, por Deus: assim que nascer meu bebê, vigilância absoluta
vinte e quatro horas por dia, pois temo por sua vida.
O rei empalideceu. Isso jamais lhe passara pela mente: o ciúme de
Ane.


— Diana, minha amada, você está nervosa! Ane e Henrique jamais
seriam capazes de tamanha maldade. Afinal de contas, se tiver um
filho, ele será o herdeiro da França e não apenas meu filho. Quem se
atreveria a mexer com o futuro rei?
— Meu marido, numa mente infantil passam muitas coisas, e Ane é
como uma criança. Perdoe-me falar assim dela, mas realmente ela o
é e merece cuidados.
A sós, o rei começou a cismar: e se Ane de fato estivesse magoada
por ter dado à luz uma menininha? Ficou tão feliz em ser avô de
uma princesa com cara de boneca, mas, se tivesse sido um menino,
seria o primeiro homem descendente dele e, conseqüentemente, o
primeiro na sucessão real.
Diana tinha visão de águia, e ele iria ter cuidado dali em diante,
inclusive com ela mesma. Até o parto, reforçaria discretamente a
segurança da esposa. Arrepiou-se só de pensar em algo acontecendo
com Diana ou seu filho. Sonhara tanto em dar um herdeiro para a
França, e no ventre da mulher estava a grande chance. Ela tinha
razão: carregava o maior tesouro francês.
Estudou o que poderia fazer com Henrique e Ane para afastá-los da
corte até o nascimento do filho. De repente, teve uma idéia:
mandaria Henrique ao sul para fiscalizar terras que tinha por lá.
Justificaria-se dizendo que a coroa estava sendo roubada pelos
administradores e precisava de alguém com a capacidade dele para
fiscalizar o patrimônio.
Ficariam num dos melhores castelos da família real, e ele poderia
fazer um bom levantamento das propriedades. Mataria dois coelhos
com uma cajadada só.
Sentiria falta da filha e de Henrique, mas era uma forma de sentir-se
bem e protegê-los também. Estando longe, Ane não iria sentir-se tão
humilhada quando nascesse o bebê de Diana, que, se Deus ajudasse,
seria um menino. Se acontecesse, a França iria comemorar oito dias.
Escreveu uma mensagem, carimbou-a e enviou-a ao genro,
convocando-o à sua presença. Colocou como observação no

envelope: "Assunto confidencial". Recomendou ao mensageiro que

o entregasse em mãos.
A noite, olhando para Diana, ficou imaginando: "Ela é tão esperta
quanto a avó! Realmente Ane exagerou nos preparativos do
casamento, imaginando que Diana ficaria inibida... Minha pobre
filha, cresceu muito carente!".
Diana, vendo-o pensativo, perguntou-lhe:
—O que há, meu rei? Não se sente bem?
—Está tudo bem, minha querida. Acho que devo tranqüilizá-la com
uma decisão que tomei. Enviarei Henrique e Ane ao sul do país. —
E contou-lhe seu plano.
Escondendo a alegria que sentia, parabenizou-o:
—Você tomou uma decisão nobre e inteligente. E uma
oportunidade para Henrique desenvolver um belíssimo trabalho
que irá resgatar para ele mesmo a confiança que o povo perdeu, sem
contar no quanto pode prosperar se fizer boa administração de
nossos bens.
No dia seguinte, Henrique apresentou-se no gabinete real.
O sogro explicou-lhe a missão. Henrique até suspirou aliviado,
aceitando-a com alegria. Era uma oportunidade de fazer seu
trabalho. Estava cansado e desanimado com a corte.
Jamais desabafaria com o rei sobre o que estava sofrendo ou
passando desde a chegada de Diana. Tinha certeza absoluta de que
ela se casara com o rei para vingar-se dele. Aproveitava todas as
ocasiões para humilhar Ane. Tentou conversar com Diana, mas esta
nunca o recebeu, sempre mandando dizer-lhe estar muito ocupada.
Aos poucos, envolveu pessoas e mais pessoas em seu projeto de
vingança. O alvo era ele: Henrique. O rei nunca percebera nada,
pois ela fazia as coisas de tal forma que não dava para provar suas
artimanhas.
Ane vivia triste e magoada, vendo o rei como um joguete nas mãos
de Diana. A princesa amava demais o pai e sofria por não poder
fazer nada contra Diana. Henrique já tinha pensado em pedir



licença ao rei e mudar-se para o Brasil com Ane e a filha, mas não
podia fazer isso com a esposa. Criada na França, ela jamais iria
adaptar-se aos costumes brasileiros.
Deus, porém, tinha ouvido as preces de Ane. Iriam embora para o
sul do país. Certamente ela iria sofrer com a falta do pai, mas ao
mesmo tempo, longe dos olhos de Diana, viveriam em paz.
Pobre rei, tão apaixonado e tão cego! Henrique ficara muito feliz ao
saber do casamento de Diana com o sogro, porque sempre a
imaginou como neta da magnífica rainha Loretta, mas em nada
eram parecidas.
Deu a notícia a Ane, e esta caiu em prantos. Ir embora da corte? O
sentimento que experimentava era que seu pai a expulsava de sua
vida e também a neta. Abateu-se tanto que Henrique ficou
preocupado com sua saúde.
Animou-a, mentindo que ele mesmo tinha sugerido a missão ao rei,
pois ficara sabendo que alguns dos cavaleiros do rei roubavam-no e
gostaria de verificar isso pessoalmente.
Ane ficou mais conformada. Sabia que o clima naquela época do
ano era magnífico, e o sul, muito bonito. Olhando por outro ângulo,
seria maravilhoso ficar longe de Diana e de suas provocações.
Lembrou-se de Loretta e sentiu saudade. Tanta nobreza, tanta
bondade... Como alguém poderia ter vivido em contato com ela e
ser tão má? Diana não amava seu pai, pensava. "Casou-se com ele
para nos atingir."
Henrique partiu para o sul, levando consigo Ane e a filha, Deise.
Ane não foi despedir-se de Diana, e Henrique fez o mesmo. O pai
abraçou Ane e a netinha, que já abria os primeiros sorrisos.
Com os olhos cheios de lágrimas, sentiu um aperto no coração. Na
verdade, mandava a filha embora, o que não deveria estar
acontecendo. Só então percebeu uma tristeza profunda nos olhos de
Ane.
Estaria a filha feliz? Deus, envolvera-se tanto com a própria vida
que se esqueceu da fdha! E se Ane estivesse infeliz com Henrique?


O que poderia lhe acontecer longe de seus olhos?
Aproveitou um momento em que Henrique se ausentou e puxou a
filha pela mão, levando-a até o seu gabinete. Sentou-se ao seu lado,
abraçou-a e perguntou:
—Ane, perdoe-me. Acho que cometi um erro muito grande
deixando-a tão só. Fale-me, por favor: você está feliz com seu
casamento? Não minta para mim! Se não desejar acompanhar
Henrique, você e sua filha ficam, e prometo-lhe dar-lhes mais
atenção.
Ane começou a soluçar, levando as duas mãos ao rosto.
—Meu pai, Henrique é a melhor pessoa do mundo. Vivemos muito
bem, graças a Deus. Amamos um ao outro e nos respeitamos. Estou
triste, sim. Desde que se casou com Diana, não temos mais tempo
para falar a sós. Estamos indo embora, mas vou ter coragem agora e
falar-lhe o que me oprime a alma. Diana não perdoou Henrique por
não ter se casado com ela. Acabou com a carreira dele e afastou-me
de sua vida. Parto agora com meu marido e minha filha e tenho
certeza de que ela vai continuar a nos perseguir. Fique atento, meu
pai. Diana é inteligente como a rainha Loretta, mas não usa o
mesmo método que a avó. Usa a inteligência para destruir-se e
destruir os outros.

Pálido, o rei levantou-se e disse:
—Ane, minha filha, entendo seu ciúme como filha, mas não vou
admitir que fale essas tolices de Diana. Vejo que ela tem razão a seu
respeito: você não passa de uma princesa mimada. Nunca pensou
que pode ser a responsável pelo fracasso profissional de seu
marido? Fica enchendo a cabeça dele de tolices e não percebe que
está lhe fazendo mal.
Ane levantou-se também, tremendo. A vontade que tinha era de
gritar ao pai que ele estava cego, mas sabia ser inútil. Disse apenas:
—Um dia a verdade surgirá, meu pai. Lembre-se de que o amo.
Quero, entretanto, ficar o mais longe possível de você e de sua
mulher.


Saiu da sala, deixando o pai para trás. Abraçou a filha e pensou:
"Nunca mais desejo retornar a esta terra, nem você virá, minha filha.
Jamais vou lhe contar que é neta de um rei que ficou cego".

Dois meses depois da partida de Henrique, a França ficou em
polvorosa. Nascera o filho do rei. A nação agora tinha um herdeiro,

o filho de Diana. O país estava enfeitado de ponta a ponta, a
bandeira francesa tremulava anunciando o sucessor do trono.
O rei Henrique ficou muito sentido com a partida do chanceler e
intrigado quando soube que um novo jovem assumira o lugar de
Henrique, e que este se tornara desacreditado pelo povo.
Foi Lua de Prata quem lhe abriu os olhos:
—Meu marido, tenho certeza absoluta de que Diana não é feliz. E
apenas uma rainha. Acredito que se casou apenas para estar
próxima do chanceler e de sua esposa e não sossegará enquanto não
vê-los liquidados.
O filho de Loretta empalideceu; Lua de Prata poderia estar certa. E
se fosse verdade o que dizia, com a saída dele dos olhos do rei,
poderia fazer o que bem entendesse com os dois.
O chanceler era seu filho também. Diana tinha destruído a própria
vida e tentava fazer o mesmo com a vida do irmão e de sua família.
0 rei estava cansado e triste. Sua mãe morrera, deixando um vazio
muito grande em seu coração. Lembrava-se do sofrimento final
dela: apontava para os cantos do quarto, falando com os olhos
arregalados que Hari estava ali, rindo da agonia dela.
Coitada! Estava tão mal que falava para os filhos da rainha falecida
que tinha planejado a morte da mãe deles, que a matara. Todos
sabiam que não era verdade. Acontecera o contrário: fora a rainha
que tentara matá-la.
Falava também que tinha mandado matar Raul. Hari jogou-o no
mar, mas ele salvou-se indo até a aldeia e, depois, transformou-se
no cacique da pedra branca. Chorando, dizia ter envolvido o
jardineiro do castelo D'armis na morte de Hari.


Em seguida, falava que amara o rei. Chamava por ele e agonizava
como se estivesse afogando-se. Nas poucas vezes em que ficou ao
lado dela, não agüentou ver seu sofrimento. Quem fora sua mãe
para acabar assim, louca e debilitada?!
Pedia a ele que contasse a Henrique a verdade, que não esperasse
por sua morte. Na última vez em que a visitou, apontando para os
quatro cantos do quarto, Loretta disse-lhe:
—Meu filho, todos estão aí: seu pai, a rainha, minha mãe, meus tios
e até o grande pajé. Mas eles também estão aí e falam que vão me
levar. Hari é o chefe deles e vai vingar-se de mim.
Estava cabisbaixo, pensando no sofrimento da mãe e na abnegação
do Monsenhor para com ela, quando entrou o rei da França. Vendo
sua tristeza, este lhe perguntou:
—O que se passa, meu amigo? Temos motivos de sobra para sorrir e
você está triste?!
Henrique balançou a cabeça.
—Bem sabe o que me dói na alma. Não encontrei meu filho aqui e
sei que ele não está nada bem. Estou preocupado com meus filhos,
tanto Diana quanto Henrique e sua família. Por favor, ajude-me.
Preciso falar com a mãe do chanceler para saber que providência
tomar.
O genro olhou-o, preocupado.
—Farei o que me pede. Enviarei um mensageiro à procura de Mary.

Dois dias depois, o rei Henrique, aflito, torcia as mãos e andava de
um lado para o outro. Mary viria falar com ele. Depois de um pouco
de agonia, ela entrou, alta e elegante. O cabelo mantinha-se loiro, e
os olhos azuis brilhavam. Vestida com requinte, não se parecia em
nada com a menina tímida de sua juventude.
Ao vê-la, Henrique ficou emocionado. Aproximou-se dela tremendo
e com lágrimas nos olhos. Mal pôde falar:
—Mary, depois de tanto tempo a vejo!
Ela estendeu a mão para cumprimentá-lo. Henrique convidou-a
para sentar-se. Pareceu-lhe que o passado cobrava-lhe na alma sua


falta de experiência e coragem de ter lutado por ela.
—Mary, perdoe-me por tudo. O mais infeliz sou eu, acredite! Só
fiquei sabendo de meu filho alguns anos atrás, quando ele já era
chanceler da França. Creio que não deseje falar-me nada a respeito
de sua vida e não tenho o direito de perguntar. Apenas quero que
saiba que sofri muito quando partiu sem deixar pistas. Até construí
um cemitério onde a amei, na intenção de enterrá-la dentro do
coração. Nunca imaginei que levava um filho meu no ventre.
O rei abriu-se, falando e contando toda a sua vida. Jamais se portara
daquela forma com alguém como o fazia com Mary. Nada mais o
segurava, e ele desabafou as mágoas. Em silêncio, Mary o ouvia.
Quando comentou sua cisma de que Diana casou-se por revolta,
Mary levantou-se e disse-lhe:

— Tenho absoluta certeza de que ela é infeliz e aos poucos está
levando meu filho e a esposa para a morte.
— Mary, por Deus, ajude-me! Vamos juntos ao encontro de nosso
filho. Vou levá-lo comigo e dar-lhe o que de direito lhe pertence.
Assumirei perante a corte e o mundo a paternidade de Henrique. Só
então poderemos ter paz.
— E o que fará com Diana? Ela vai cair em desespero e ainda está se
restabelecendo do parto.
O rei avaliou o tempo e sugeriu:
—Iremos daqui quarenta dias, se assim você aceitar.
Combinaram então de encontrar-se mais vezes para conversar a
respeito da revelação da paternidade do filho de Mary. Esta contou
ao rei que fazia tempo que não voltava ao Brasil devido à situação
do filho.
Despediram-se, e Henrique ficou olhando Mary afastar-se.
Conservava a elegância e a beleza da juventude em seus traços.
Como amara aquela mulher! Agora percebia o quanto tinha sido
tolo em perdê-la.
Lua de Prata ficou a par de toda a história e, como digna filha da
aldeia do cacique da pedra branca, aconselhou o esposo:



— Volto com suas ordens. O príncipe cuida de tudo como sempre,
e, assim, quando retornar, ele estará preparado para receber o irmão
que já conhece e estima.
O rei pediu-lhe que ficasse, pois poderia acompanhá-lo, porém ela
insistiu em voltar para deixá-lo mais tranqüilo. Luana também
precisava dela. Aproximava-se a chegada do primeiro filho, e, na
verdade, Lua de Prata estava saudosa de tudo.
Diana ficou contente com a permanência do pai entre eles,
entendendo o retorno antecipado da mãe pela preocupação para
com a irmã. Ficou sabendo que seu irmão estava de casamento
marcado com uma princesa oriental para dali seis meses. Diana iria
com o rei da França prestigiar as bodas do irmão e rever a terra
natal.
Lua de Prata viajou, deixando o marido na corte francesa. Sua
incumbência não era nada fácil.
Ao chegar ao palácio, ficou sabendo da doença que se abateu sobre
o Monsenhor. Este se tornara uma pessoa muito querida. Em
poucos anos abriu dezenas de igrejas espalhadas pelo país e
transformou os dois castelos doados por Loretta nos maiores
internatos religiosos do mundo, onde nobres de várias partes do
planeta iam estudar.
O Monsenhor estava no convento das montanhas, local que antes
fora refúgio, descanso e lazer de muitos reis e rainhas. A torre foi
transformada em sala de oração, onde o silêncio era quebrado
apenas pelo vento ou o canto de algum pássaro que fazia morada
nas pedreiras próximas.
Lua de Prata pediu ao príncipe que providenciasse uma pequena
comitiva para acompanhá-la até o local em que estava o Monsenhor.
Precisava vê-lo, pelo menos mais uma vez. O enteado tinha a
inteligência do pai e a bondade da mãe e logo atendeu Lua de Prata,
que seguiu ansiosa por chegar onde estava o enfermo.
Foi bem recebida pelos responsáveis; afinal de contas, era a rainha,
a visita mais importante da corte para o Monsenhor. Levada ao leito

do doente, chegou perto dele e ajoelhou-se, chorando.
O cansado religioso ergueu com dificuldade a mão e afagou a
cabeça de Lua de Prata. Seus olhos enuviados olhavam-na com
doçura, enquanto a rainha acariciava-lhe os poucos fios de cabelo
branco. Desabafou, chorando:
—Meu pai espiritual, desde o primeiro momento em que o vi
encontrei a paz em meu coração. Vejo em seus olhos os de meu pai,
que me deixou sem dar-me nenhuma notícia. Sofro porque ele
sempre foi tão amoroso comigo e custa-me crer que me tenha
abandonado. Abençoe-me para eu conseguir continuar vivendo
com minha dor.
O quarto encheu-se de paz. O Monsenhor segurou a mão da rainha,
que chorava de emoção. Só de pensar em perdê-lo, sofria.
—Meu pai, não me deixe, preciso tanto de você — suplicou-lhe aos
prantos.
O sol escondeu-se no horizonte quando o Monsenhor demonstrou
uma melhora repentina. Pediu para ir até a janela, pois queria ver as
montanhas e as primeiras estrelas que apareceriam em pouco
tempo.
Lua de Prata alegrou-se com sua melhora. Ele pediu para abençoar
a todos os seus filhos espirituais. Os padres que o acompanhavam
choravam em silêncio.
A lua nova brilhava no alto da montanha, e seus reflexos prateados
entravam pela janela, chegando até o leito em que ele se encontrava.
O enfermo chamou um auxiliar e pediu:
—Por favor, traga-me aquele baú. — Apontando-o, disse para Lua
de Prata: — E seu. Prometa-me abri-lo somente em sua aldeia.


Ela estranhou o pedido, mas assentiu com a cabeça, prometendo
abrir o baú na presença do cacique da pena dourada e do restante
da tribo.
Olhando para Lua de Prata, estendeu a mão em sua direção, e ela a
tomou entre as suas, levando-a aos lábios.
—Quero beijar sua fronte, minha filha querida — pediu ele.



Encostou os lábios na testa de Lua de Prata. A rainha continuava
alisando-lhe o rosto. Os olhos do Monsenhor, fixos no rosto dela,
foram ficando nublados. Olhando na direção da porta, ele
exclamou, sorrindo:
—Lua Branca, meu amor, você está aqui? Grande cacique, grande
pajé, grande espírito da mata, vocês vieram me buscar? — Olhou
para Lua de Prata ainda sorrindo e abriu a boca, deixando sair as
últimas palavras: — Sua mãe a abençoa, minha querida filha Lua de
Prat...
Com expressão de alegria no rosto, o Monsenhor parou de respirar
e soltou a mão de Lua de Prata. Ela desesperou-se. Como poderia
ele saber o nome de sua mãe, falar de seu povo? Nunca havia
comentado nada com ele.
Por mais que tentassem tirá-la dali, ela não queria sair, não se
conformando com a morte do benfeitor. Um dos padres informou-a
de que precisavam vesti-lo com a batina preparada para a ocasião.
—Quero acompanhar o processo. Ele foi meu pai espiritual e em
nada me envergonho diante dele.
Trouxeram água perfumada com essências que ele mesmo havia
preparado. Lua de Prata assustou-se: aquele perfume era usado na
aldeia quando morria um dos seus. O padre então abriu a batina do
Monsenhor, e Lua de Prata arregalou os olhos. O que viu
desenhado no peito dele foi o suficiente para fazê-la cair.
Os padres socorreram-na ali mesmo. Quando voltou a si, um deles a
fez beber algo. Estava chocada. O Monsenhor era seu pai, e ela
convivera com ele sem reconhecê-lo como tal.
Lembrou-se do dia em que levou Loretta à igreja. Então ela o havia
reconhecido, mas como? Reencontrara o pai, mas perdia-o em carne
e osso para sempre.

Em silêncio total, acompanhou o enterro. Lágrimas desciam de seus
olhos com tristeza. Pediu ao príncipe, e este concedeu que o
Monsenhor fosse enterrado ao lado da rainha Loretta. Olhando para

o túmulo, disse para si mesma: "Aqui fica para sempre uma parte da

minha vida: os restos carnais do grande cacique da pedra branca ao
lado de minha sogra e amiga".
Voltou à corte levando o baú e o juramento de só abri-lo na frente
do irmão e de sua gente. Estava deveras abatida e envelhecida. O
negro cabelo que outrora era motivo de orgulho na aldeia do
cacique da pedra branca agora estava opaco pelos fios brancos que
apareceram repentinamente em sua cabeça.
Após tomar algumas providências em família, Lua de Prata
resolveu partir para a aldeia sozinha.
Assim que entrou na embarcação que a levaria para a tribo, olhou
para trás e disse para si mesma: "Adeus, pedaço de chão que tanto
bem me fez, que tanta felicidade me ofertou. Adeus, meus amados.
Volto para casa. Acredito que já cumpri por aqui tudo que Deus
mandou".
Chegando à aldeia, dispensou a embarcação. O irmão não a
reconheceu: parecia ter envelhecido dez anos, e sua tristeza era
visível. Abraçou a irmã e não lhe fez perguntas. Esperaria a hora
certa para conversarem.
No dia seguinte, Lua de Prata já tinha visto todos os parentes
indígenas. Chorando, resolveu descer em direção ao rio. Na trilha
da árvore mágica, parou, e o coração bateu forte com a surpresa que
teve: à sua frente apareceu o grande espírito das matas. Ajoelhou-se
onde estava, e ele chegou-se até ela, tomando-lhe as mãos.
Sacudiu muitas folhas sobre ela. Aos poucos Lua de Prata
recuperou a paz que perdera ao ver o corpo do pai. O espírito deu
algumas voltas ao redor dela e depois começou a falar-lhe:

— Ele vive; logo, pode ir aonde deseja. Vai estar com o vento e as
estrelas, cruzando rios, mares e florestas. Nunca abandonou você
nem a aldeia. Fez dela um templo, implantou a fé e a esperança e
trouxe ensinamentos. Levou para as igrejas a essência da aldeia, a
simplicidade, a igualdade, a união e o perdão para o reino em que
você era rainha. Deu-lhe os melhores momentos de sua vida e veio
ao seu encontro quando mais precisou dele. Logo você irá ao

encontro do vento e será levada aos braços de seus pais. Apenas não
sofra com a alegria daqueles que a amam.
Deixando Lua de Prata tranqüila, o grande espírito cruzou sua
cabeça, entrou na mata e desapareceu. Ela andou até a beira do rio.
A brisa fresca soprou sobre seu rosto, e ela respirou calmamente,
enchendo os pulmões.
Falou baixinho:
—Mãe, você me abraça no vento. Sinto todos vocês me abraçando,
me beijando. Sei que está aqui, mãe querida. — Com os olhos
fechados, sentiu o carinho da brisa passando por todo o corpo.
Estava bem.
Lembrou-se de que, quando criança, o pai a levava para o outro
lado do rio, aos pés da serra, onde se concentravam correntes de
vento. As vezes pareciam música; outras, assovios.
—São nossos entes queridos conversando entre si. Estão felizes
porque estamos aqui — explicava-lhe.
Ficou muito tempo sentada na margem do rio ouvindo o murmúrio
do vento. Quando voltou para a aldeia, encontrou o irmão e todo o
povo olhando-a com amor e bondade. Ali os irmãos viviam em paz,
todos se amavam, pois os grandes espíritos sopravam harmonia
entre eles.
Estava com uma nova aparência, observou o cacique da pena
dourada. Ela então anunciou:
—Recebi uma grande missão do cacique da pedra branca. Agora
podemos chamá-lo assim, pois ele se foi para o mundo dos grandes
espíritos e, portanto, ganhou a liberdade.
Pediu a presença de todos e contou sobre o último pedido do pai:
—Ele encarregou-me de abrir um pequeno baú na frente de vocês.
Preciso cumprir a promessa que lhe fiz. Antes, quero contar-lhes
tudo o que aconteceu a ele após ter saído para a nova missão.
Narrou tudo o que sabia dele até seu desaparecimento e também o
reencontro na igreja, onde aprendera que Deus era um grande
espírito bondoso em qualquer lugar. Os homens trocavam Seu



nome, mas o amor pelos filhos era o mesmo.
Falou sobre seu último encontro com ele no mosteiro e que só
descobrira sua identidade quando lhe abriram a batina e viu o
símbolo do cacique da pedra branca em seu peito.
Contou que morrera sorrindo e falando com Lua Branca e outros
membros da aldeia. Falou também sobre o grande espírito das
matas. Todos prestavam atenção ao que Lua de Prata falava.
Quando terminou de falar, buscou o pequeno baú e pediu que todos
os membros da aldeia acompanhassem sua abertura, conforme fora
pedido.
Os mais velhos e os mais jovens da aldeia estavam presentes. Pediu
auxílio ao irmão para abrir a caixa. Dentro havia alguns escritos
cuidadosamente protegidos, dois terços, dois livros sagrados, um
cordão de ouro feito a mão, presente de Lua Branca ao esposo, e um
bracelete indígena feito de pedras preciosas, presente do sogro no
dia do seu casamento.
Abriu os escritos. Um deles estava destinado a ela e outro a seu
irmão, Raio de Sol. O cacique pediu:
—Lua de Prata, leia para nós o que está escrito. Se ele pediu para
abrir o baú na aldeia, é para que todos pudessem ouvir.
Lua de Prata começou a ler:
—Minha querida filha Lua de Prata, quando estiver lendo esta carta,
certamente estarei tentando galgar as alturas, recomeçando uma
nova etapa da minha vida...
Quando Lua de Prata terminou a leitura das recomendações
deixadas pelo pai, toda a tribo chorava em silêncio. Os guerreiros
estavam cabisbaixos em respeito à sua memória, e as lágrimas
desciam dos olhos do cacique da pena dourada.
No final da carta, recomendou que o cordão ficasse com Lua de
Prata, e o bracelete, com Raio de Sol. Pediu que começassem a ler os
livros e explicar ao povo que Deus confia muitas tarefas a Seus
filhos em lugar e tempo por Ele escolhidos.


A mãe peixe, ou Nossa Senhora da Conceição, jamais deixaria de
protegê-los. Agora, no mundo da liberdade, se fosse possível,
acompanharia os pequenos e os grandes espíritos e voltaria a todos
os lugares em que trabalhou para ajudar a quem amava.

Raio de Sol levantou-se e saiu em direção ao jardim sagrado.
Atravessou as flores, penetrando no jardim da pedra branca, onde
os ancestrais fizeram suas orações. Fora ali que receberam
inspiração para comandar a tribo. Agora era sua vez de decidir o
destino da aldeia. Parado, olhou para as brumas do mar, que lhe
traziam muitas lembranças.
Virou-se para o rio. Este parecia uma serpente que se mexia e se
enroscava ao encontro do mar. Seu pai por certo era filho da mãe
peixe e cumprira uma missão que não poderia ser confiada a
qualquer um.
Ele, Raio de Sol, nunca poderia cumprir uma tarefa como a que fora
confiada ao pai, o cacique da pedra branca, mas faria todo o
possível para amparar a aldeia e transmitir ao povo a grandeza de
Deus.

A REVELAÇÃO

Na França, o rei Henrique preparava-se para viajar. Diana
estranhou o interesse do pai pelo sul do país. O que pretenderia?
Esperaria sua volta e então acabaria definitivamente com o chanceler
e a esposa.
Mary acompanhava discretamente o rei em sua comitiva. Nos
últimos dias, haviam-se encontrado freqüentemente. Andava
nervosa, reclamava Helen, custava a dormir, passava as noites


andando sem conseguir conciliar o sono.
Embora idosa, a mãe tinha boa saúde e disposição e observava tudo
que se passava à sua volta. Era conselheira das netas, já casadas. Sua
sensibilidade e percepção pareciam ter aumentado mais ainda com
a idade.
Certa tarde, vendo Mary arrumando-se para sair, perguntou-lhe
sem rodeios:

— Mary, você está apaixonada? Só me lembro de tê-la visto assim
quando namorava o rei às escondidas. Vamos, fale-me de uma vez o
que está acontecendo! Agora você se arruma bem, vive se olhando
no espelho, mudou o cabelo e o perfume e parece ter rejuvenescido
dez anos. Claro que estou feliz em vê-la tão bem, mas quero que
confie em mim e diga-me o que ocorre.
Mary ficou vermelha. A mãe lia o que se passava em seu coração.
Como nunca havia mentido para ela, sentou-se e contou o que se
passava, assegurando-lhe, porém, que apenas cuidava do filho.
Viajaria com o rei ao encontro de Henrique para revelar tudo sobre
seu nascimento.
A mãe balançou a cabeça.
—Já vi que o destino é como uma fonte: a gente represa aqui, ela
arrebenta ali.
No dia da partida, Mary recomendou às filhas que cuidassem bem
da avó até que ela retornasse da visita ao filho distante. O rei e Mary
estavam juntos novamente e desta vez nada temiam.
Na terceira noite de viagem, Henrique convidou-a para apreciar a
lua cheia que brilhava sobre o mar. Sob o luar, os olhos de ambos
encontraram-se, e Henrique aproximou-se dela, abraçando-a com
força. Beijaram-se repetidas vezes. Ofegante devido à emoção, o rei
disse:
—Mary, Mary, por favor, não me abandone! Dessa vez renuncio a
tudo e a todos para ficar ao seu lado. Não me abandone. Você
sempre foi a razão do meu viver. Agora que a reencontrei, não
posso deixá-la ir embora de novo.

Mary fechou os olhos. Era como se nunca tivessem se separado;
dentro dela explodia o amor que nunca morrera. Sabia que o rei era
casado, mas o destino os unia novamente.
Ao chegarem ao castelo em que viviam o chanceler e sua família,
Mary foi recebida com muita alegria. Ane estranhou a presença do
pai de Diana em companhia da sogra. Esta lhe falou:
—Ane, não se assuste. Viemos até aqui para falar com meu filho e,
claro, com você também.
Percebendo o carinho entre os dois quando se olhavam, a princesa
pensou: "Minha sogra e o rei, não pode ser! Perdão, Deus, por meu
mau pensamento".
Avisado da chegada da mãe acompanhada do filho de Loretta,
Henrique apressou-se em voltar ao castelo em que estavam.
Tinha descoberto muitas fraudes na administração das
propriedades reais, tendo emitido diversos relatórios que seriam
enviados à corte. Ficou imaginando o que estaria o sogro de seu rei
fazendo ali. "Bem, só conversando com ele para descobrir", pensou.


No caminho, lembrou-se da rainha Loretta, que fora tão boa com ele
e Ane. Recordou-se também da perseguição de Diana. Contente
com a notícia do casamento dela com o rei da França, sonhou vê-los
felizes, mas descobriu que ela havia-se casado para vingar-se dele.
Ao entrar na sala, beijou Ane e a filha e correu até a mãe. Abraçou-a
e beijou-a e depois cumprimentou respeitosamente o monarca. Este
se pôs de pé e disse-lhe:
—Henrique, não vou me demorar. Minha visita aqui é rápida,
porém muito séria.
O chanceler sobressaltou-se, olhando para Ane e Mary.
—Estou às ordens, Majestade.
—Acho que não devemos fazer rodeios; afinal de contas, somos
todos adultos — começou o rei, olhando para as duas mulheres.
Ane entregou a filha à babá, pedindo que os deixasse a sós.
Fechadas as portas da sala, o rei prosseguiu:



—Henrique, o que nos trouxe aqui é algo que envolve nossa família
em particular. Bem — hesitou —, conheci sua mãe quando ela tinha
apenas dezesseis anos. Amávamo-nos muito e aconteceu o
inevitável. Eu já era rei e também casado. A mãe de Mary era
governanta de minha mãe, que descobriu nosso romance e,
preocupada com a corte, interferiu nele sem me consultar.
Resultado: a família toda foi embora para o Brasil, e Mary levou
você no ventre. Só fiquei sabendo de sua existência pouco tempo
atrás.
Henrique teve a impressão de que tudo era um sonho. Então Diana
era sua irmã?
—Amo sua mãe e desta vez lutarei com todas as forças para ficar ao
seu lado — finalizou o rei. — Quero que você e Ane venham
comigo. Conheço bem meu filho e sei que vai adorar saber que tem
um irmão. Venha ajudá-lo na corte, deixe-me recompensá-lo por
tudo que não pude fazer antes. Falarei com Diana. Sabendo que são
irmãos, tenho certeza de que vai parar de persegui-lo e tentar ser
feliz. Ela tem um filho e, creio, encontrará nele força suficiente para
viver.

Henrique olhou para Mary, que chorava em silêncio.

— Minha mãe, por que mentiu tanto para mim? Agora começo a
entender sua aflição quando me aproximei da corte do rei Henrique.
Como nunca desconfiei disso?
— Meu filho, não julgue sua mãe, pois ela teve motivos para agir
dessa forma. Perdoe-nos. Estamos aqui pedindo-lhe desculpa.
Ofereço-lhe trabalho por ser meu filho e, principalmente, por sua
capacidade.
Mary tomou-lhe as mãos e falou:
— Você não pode imaginar quanto sofri... Busquei sempre dar o
melhor de mim a você. Sei que as coisas não têm volta, mas estamos
lhe falando a verdade.
— O que você acha de tudo isso, Ane? — perguntou o chanceler à
esposa.

— Todos nós estamos sofrendo muito, inclusive Diana. Se
recebemos uma oportunidade de acertar nossas vidas, por que
manter o orgulho e prosseguir errando? — argumentou ela,
calmamente.
Henrique abraçou a mãe e voltou-se para o rei, que se aproximou
abrindo os braços. Choraram juntos.
Ficou então acertado que Henrique voltaria dali dois meses, quando
terminasse o levantamento pedido por seu rei. Embora tivesse sido
enviado até lá pelos caprichos de Diana, descobrira muitas coisas
que certamente iriam interessar ao monarca e queria, por isso,
terminar o que começara.
O rei iria conversar com Diana e contar-lhe a verdade sobre o irmão.
Falaria também com o genro a fim de levar o chanceler para a sua
corte. Renunciaria ao trono em favor do príncipe regente. Os dois
irmãos, juntos, fariam um bom reinado. Por fim, falaria com Lua de
Prata. Tinha certeza de que iria entendê-lo. Iria embora com Mary
para qualquer lugar do mundo como um homem comum. Precisava
viver em paz consigo mesmo.
De volta à corte francesa, soube da grande tragédia: Lua de Prata
falecera na aldeia, vítima de mal súbito. Não deu tempo de socorrêla.
Diana estava inconsolada, muito triste e revoltada com a
ausência do pai. Este ficou ao seu lado e resolveu demorar-se um
pouco mais até ela melhorar. Só então contaria a ela sobre Henrique.
Um mês se passou. Ele próprio também ficou bastante abatido com
a morte de Lua de Prata. Fora uma esposa maravilhosa, pura e
repleta de bondade. Nunca se esquecia do dia em que a conhecera,
quando se encantou com sua delicada beleza.
Ficava horas absorto, pensando nas falecidas esposas, mulheres
encantadoras que lhe deixaram filhos saudáveis, mas Mary era a
única que preenchia seu ser por completo. Não existia apenas
atração física, mas também paz e segurança. Apesar de todo o
sentimento que nutria por Lua de Prata, não abriria mão de Mary.
Precisava dela mais do que nunca.

O genro aproximou-se, dando-lhe um tapinha nas costas.
—Meu amigo, creio que está na hora de falarmos toda a verdade
para Diana. Vamos nos sentir melhor. Ela é uma mulher forte e
decidida. Após a partida de Henrique e de minha filha, tenho
percebido nela uma ansiedade muito grande. Sinceramente chego a
pensar que se casou comigo apenas para ocupar a vaga da coroa
francesa e, principalmente, estar próxima de Henrique e reduzi-lo
ao que planejou. Amo minha esposa e, agora que me sinto o rei
mais feliz do mundo com o nascimento do meu filho, quero
conquistar o coração de Diana e ajudá-la a gostar de mim.
O rei Henrique concordou. Ambos foram então à sua procura.
Encontraram-na com o filho nos braços, elegantemente vestida e
preparada para sair. O marido beijou-a e tomou o filho nos braços,
cheio de orgulho e carinho. Era um homem extremamente sensível.

— Diana, viemos aqui para falar-lhe, mas vejo que está de saída. E
algo urgente o que tem a fazer fora da corte ou pode esperar?
Podemos interromper?
— Ia apenas comprar algumas coisas para o nosso reizinho —
respondeu nervosa.
Encaminharam-se para a sala de conferências. Diana estava
preocupada. O que queriam falar-lhe? Teriam descoberto alguma
coisa? "Oh não!", pensou ela. "Não pode ser verdade."
O marido ajudou-a a sentar-se, e o pai começou a falar:
—Minha filha, temos uma coisa muita séria para contar-lhe. Não sei
como vai reagir, mas chegou a hora de conhecer a verdade. — Após
ter revelado sua história com Mary e a descoberta de Henrique,
finalizou: — Amo todos vocês, meus filhos, e quero reparar um
pouco o mal que causei ao seu irmão Henrique.
Diana levantou-se, suando. O marido, amparando-a, deu-lhe um
copo com água e açúcar. Tremendo, ela virou-se para o pai e disse:
—Meu pai, acabei com a vida do chanceler, desmoralizando-o
perante a França, para dar-lhe uma lição, porque achei que tivesse
se casado com Ane por interesse, não por amor. Também arranquei



Ane da casa do pai. Nunca tive um sentimento de carinho por eles,
e agora você vem me dizer que Henrique é meu irmão? Por que não
me contou antes? Por que me deixou amá-lo como homem? E agora,

o que farei? — E desabou em pranto.
Ficou chorando por muito tempo, assistida pelo marido. Quando
conseguiu controlar-se, pediu, bastante abatida:
—Preciso ver Henrique, preciso ver Ane! Quero morrer! O pai
também chorava. A situação era dolorosa para ambos. Quinze dias
depois, o rei Henrique estava de volta à corte
com o coração aliviado do peso de muitos anos. Reuniria a família e
participaria a ela suas últimas emoções. Tinha deixado Diana bem.
Ela agora tinha a chance de ser feliz ao lado do marido. Tudo se
resolveria acertadamente para todos, acreditava. Pretendia
renunciar ao trono e deixar os dois filhos, bastante inteligentes e
capazes, reinando. O único senão era a falta e a saudade da mãe, a
mulher mais importante de sua vida.
Recebeu muitas condolências pela morte de Lua de Prata. Os filhos
estavam bem. A corte estava equilibrada, o príncipe era um jovem
digno e competente. Ficou sabendo da morte do Monsenhor e da
última descoberta feita acerca dele: era seu sogro. Ele sempre
estivera ao lado da mãe. Por certo ela sabia disso. Que amor divino
tivera aquele homem por todas as criaturas que chamava de filhos
do grande espírito ou Deus!
Os castelos doados pela mãe transformaram-se em grandes
internatos. Neles concentravam-se os grandes mestres, e Loretta,
amada e depois odiada, recebia grandes manifestações de carinho
do povo, que voltava a vê-la como benfeitora dos pobres.
Os súditos cobravam uma nova rainha, querendo que o monarca se
casasse novamente. Chegavam ofertas de casamento de reis do
mundo inteiro oferecendo-lhe suas filhas, algumas de até quinze
anos.
O príncipe regente, já casado e muito querido, chamou o pai em
conferência:

—Meu pai, como sempre dizia a avó Loretta, "a voz do povo é a voz
do rei". Você precisa casar-se. Se tomar a decisão que tem em mente
agora, nosso país sofrerá um dano irreparável. Meu irmão Henrique
pode vir a ser um grande ministro e, com certeza, o homem mais
competente da corte. Ele preferiu não participar desta nossa
conversa por não querer interferir em sua vida pessoal, mas o
caminho é este: case-se.
O rei coçou a barba prateada e tossiu, olhando para o filho.

— Bem sabe que Mary é a mulher da minha vida. Ela nunca me
exigiu casamento, mas acho que está na hora de reparar um pouco o
meu erro. Se o povo a aceita, se quer ver o terceiro casamento do rei,
irá vê-lo.
— Tenho certeza de que minha avó ficaria satisfeita com sua
decisão. Falam que os mortos podem ver e sentir o que passamos, o
que espero seja verdade. Por certo ela está muito feliz com o que
está acontecendo. Enfim, meu pai, você pode reparar seus erros e
assim honrar a memória dos nossos antepassados. Estou
convencido de que toda a família se sentirá feliz. A corte vai
explodir de alegria ao vê-lo casar-se com uma mulher não tão jovem
nem rainha, mas do povo. O importante é que todos verão a
felicidade em seus olhos. Henrique também ficará contente. Se já era
amado pela corte, imagine agora, que se tornará enteado do rei! Ele
mesmo não quis ser reconhecido publicamente como seu filho, mas
enteado é outra coisa. Claro, você deve recomeçar sua vida com
Mary falando a verdade ao povo: ela é mãe de seu ministro, e o
povo certamente observará a semelhança entre nós dois: filho e
enteado. E os que comentarem a seu respeito com a mãe dele, não
os leve para a pena de morte — finalizou, brincando, o príncipe.
Cinco meses depois, o filho de Loretta preparava-se para casar-se
novamente, desta vez na presença do clero. Católicos e não
católicos, todos foram convidados.
O rei liberou comida, doces, frutas e um abono equivalente à
compra de mantimentos para cinco pessoas a todas as famílias do

país. Era a primeira vez na história de um rei que isso acontecia.
Mary não quis aparecer antes do dia do casamento. Muito nervosa,
por várias vezes perguntou ao rei se era mesmo necessário casar-se.
Estava feliz e em paz, mas ele explicou-lhe a importância e o dever
que um rei tinha para com o povo.
Os comentários eram diversos: o rei ia casar-se com outra índia, ou
uma princesa católica, ou uma sobrinha do rei francês. Falava-se
tudo, menos a verdade.
Diana veio com a família. Estava mudada. Ficou muito feliz em
rever os irmãos, tios e primos e manifestou o desejo de ir até a
aldeia da mãe: queria ver os parentes indígenas e conversar com o
tio para saber dos últimos momentos de Lua de Prata.
Soube da história do Monsenhor, na verdade o cacique da pedra
branca, seu avô. Por isso a mãe o amava tanto! Ele morreu
segurando as mãos dela e agora deveriam estar juntos, correndo no
vento.
Abraçou-se a Mary e a Henrique, chorando emocionada.
—Meu irmão querido, a vida nos tem ensinado tantas coisas... Estou
contente por meu pai e sua mãe. E uma história de amor com final
feliz.
Henrique notou que Diana sofria. Algo não estava certo na vida
dela. Não lhe perguntou nada, mas, a sós com Ane, comentou:
—Você percebeu que minha irmã está infeliz? O que podemos fazer
para ajudá-la? Ane, ela tornou-se sua maior amiga. Tente
aproximar-se do coração dela para saber o que acontece e como
podemos auxiliá-la.
Naquela mesma tarde, quando as duas passeavam juntas pelos
jardins do palácio, Ane entrou no assunto:
—Diana, percebemos que você demonstra alegria para com todos,
mas está infeliz consigo mesma. O que se passa, irmã querida? Seja

o que for, esqueça que sou a filha do rei da França e sua cunhada.
Acima de tudo, sou sua melhor amiga, uma irmã que deseja
confortá-la.

Diana empalideceu e começou a chorar.
—Ah, Ane, é difícil viver neste mundo! Tenho inveja de minha mãe,
que morreu, foi embora, mas deve estar feliz. Só não me matei
porque tenho meu filho. Seu pai é o melhor homem deste mundo e
não merece estar casado comigo. Casei-me com ele sem amá-lo.
Queria vingar-me de Henrique e de você, confessei isso a ele e a
meu pai. Hoje, amo-o sinceramente, mas guardo remorso dentro de
mim. Minha consciência pesa demais. Cada dia que olho para meu
filho e vejo a alegria nos olhos do rei chego a desejar a morte! Ane,
traí seu pai! Envolvi-me com David, o chanceler que tomou o lugar
de Henrique. Estava perdida e confusa, carente de amor e de
amigos, quando David apareceu jovem, belo e cheio de planos. Aos
poucos, deixei-me levar pela paixão e acabei nos braços dele.
Ajudou-me a destruir a carreira de Henrique, tomando-lhe o lugar.
Claro que nunca revelei a ele nada sobre nós. Fiquei grávida e sei
que o filho é dele. Seu pai nada desconfiou, tamanha fora sua
alegria. Quando engravidei, o rei estava fora; quando retornou, já
estava grávida de quase um mês. Nada falei para David. Logo que
soube de minha gravidez, foi-se afastando de mim e, quando meu
filho nasceu, anunciou seu casamento com uma princesa estrangeira
que havia conhecido um ano antes. Então, vieram de uma só vez a
notícia da morte de minha mãe, a verdade sobre Henrique e o
casamento de David, que eu acreditava me amar. A França
comemorou o nascimento de meu filho sem saber que eu estava
sendo castigada de forma cruel. Olho para meu filho e seu pai e às
vezes tenho vontade de gritar toda a verdade. Não sei o que fazer!
Ane, por favor, fale-me alguma coisa. Se minha avó Loretta
estivesse aqui, ela me diria o que fazer.
Ane abraçou-a.
—Diana, não sou tão sábia quanto sua avó, mas posso dizer-lhe o
que penso a respeito de tudo isso.
Diana arregalou os olhos. Queria ouvir algo que lhe aliviasse o
coração.


—O que está feito, Diana, está feito. Você é filha de um rei, tem a
inteligência de sua avó e a nobreza de sua mãe. Se a França já elegeu
seu filho como o futuro rei, você não pode jogar o país na lama. Seu
filho é nobre, pois tem seu sangue e o de seu pai, que é rei; portanto,
não há mentira, ele é um nobre legítimo. Se o rei da França lhe deu

o título de príncipe francês, ninguém está autorizado a tirá-lo dele, e
seu filho será rei. Diana, todos estamos sujeitos a errar, mas
podemos, da mesma forma, corrigir os erros. Veja seu pai: depois de
tantos anos, Deus ofereceu-lhe oportunidade de retificar um erro do
passado. Tente ser feliz deixando tudo como está. Olhe o caso de
seu irmão Henrique, que nada precisou fazer para que as coisas
acontecessem. Deus existe, Diana, e sempre faz o melhor por todos
nós. Faça o possível para viver bem com meu pai, pois ele a ama. Sei
que para haver o equilíbrio total entre um casal é necessário existir
amor entre os dois. Esse amor existe entre você e meu pai: seu filho.
David já não se encontra na França; portanto, esqueça-se dele. O
povo a adora, meu pai nunca foi tão feliz, e a França hoje é um dos
países mais cobiçados do mundo. Todos os outros investem no
futuro contando com o futuro monarca, seu filho.
Diana enxugou os olhos e olhou para Ane.
— Você não está magoada comigo, Ane?
— Claro que não! Estou feliz por você ser minha amiga e irmã. Sabe
de uma coisa? Vou pedir a meu sogro para liberar meu marido por
alguns dias e irei com você até a aldeia de sua mãe. Nunca estive
entre os índios, mas acho que vou gostar muito. Seu irmão conta-me
várias histórias de indígenas brasileiros, entre os quais conviveu. —
E continuou narrando fatos sobre o Brasil. — Que tal o ano que vem
irmos para o Brasil?—perguntou empolgada.
— Acho que nossos filhos são muito pequenos para uma viagem tão
longa — disse Diana.
— Tenho muita vontade de conhecer o Brasil. Pelo que me conta
Henrique, é um lugar lindíssimo, onde o céu é mais azul durante o
dia e, à noite, um verdadeiro tapete de estrelas cadentes.

Diana ficou sonhando com tudo que ouvia. Lembrou-se de que as
frutas brasileiras eram realmente muito gostosas. Só não gostava da
escravidão — falava-se de enorme sofrimento entre o povo negro.
Foram abordadas pelo rei da França. Olhando para Diana, esta lhe
pareceu mais linda do que nunca. Como lhe fizera bem estar em
casa!
—Minha esposa, não esqueça que tem à sua espera um filho que
vale todos os tesouros acumulados da França. Estou com saudade
dele e, embora não fique bem o rei implorar à rainha para ver o
filho, peço-lhe: por favor, leve-me até ele.
Ane sorriu para Diana e trocaram um olhar. Ela abraçou o marido
como se pela primeira vez, fechando os olhos por alguns segundos.
Ane percebeu que a madrasta estava sendo sincera. Saíram os três,
abraçados, para o quarto do futuro rei da França, que abriu um
sorriso e estendeu os bracinhos aos pais. Ane brincou com o garoto,
chamando-o de pequeno príncipe.
Ane mandou buscar sua filha e colocou os dois juntos. Logo
apareceu o rei Henrique acompanhado de Mary. Ambos brincaram
alegremente com as crianças por um tempo e depois pediram
licença para retirar-se, a fim de cuidar de algumas coisas relacionadas
ao casamento. Os demais continuaram brincando com os
pequenos.
—Nunca senti tanta saudade de minha avó Loretta como neste
momento. Ah, se ela estivesse aqui, participando conosco desta
alegria! — exclamou Henrique, sério.
Diana virou-se para ele e disse:
—Ainda sou jovem, você também. Se por acaso vier a ter uma filha,
receberá o nome de nossa avó.
O rei da França olhou-a com ternura. Também aprendera a gostar
de Loretta e, se tivesse uma filha, realmente lhe daria o nome da
rainha.
No dia do casamento do rei, o povo enchia as ruas para ver mais de
perto a nova rainha, que nunca esteve tão bela. A coroação seria na


catedral. Foi a pedido de Mary que o rei aceitou casar-se na igreja,
na presença de toda a família real.
O cortejo começou com a saída do monarca usando uma vestimenta
branca, bordada de ouro, e uma capa de veludo vermelha e dourada
com o brasão real. Parecia mais jovem. Estava acompanhado pelo
irmão, o filho, o genro e o seu primeiro ministro e cercado por
vários cavaleiros da corte, todos em trajes de gala, pois era um dia
importante na vida do soberano.
Muitos reis e suas famílias acompanharam o cortejo até a catedral. A
noiva viria acompanhada pelas mulheres da família real e alguns
cavaleiros.
Como todo noivo, o rei fora levado até o altar preparado para a
cerimônia. Entre a imagem de Jesus Cristo e a de Maria Santíssima
estava a coroa, cujo brilho chamava a atenção dos presentes.
"Quantas mulheres ostentaram essa coroa", pensou o irmão do rei.
Lembrava-se da mãe, a primeira que vira, usando-a; depois foi a vez
de Loretta, de Lua de Prata, linda moça que encantou os olhos da
corte, e, agora, de Mary.
Lembrou-se do dia em que o irmão chegou embriagado, ofendendo
a rainha Loretta, falando coisas horríveis. Ele só não o esmurrara
porque achou covardia bater em um bêbado. Recordou-se de ter
visto Mary, muito nova, entrando com a mãe em uma das
dependências do palácio. Era muito bonita, parecia uma boneca de
louça.
Também veio-lhe a lembrança do pai, um bom rei. Graças a Loretta,
a família permaneceu unida. Sentia muita saudade dela, que fora a
mãe que conheceu em vida. O povo fora ingrato com ela antes de
sua morte, mas, agora, colocava-a no altar. Ainda bem que nunca a
magoou, daria sua vida por ela.
Nisso seus pensamentos foram interrompidos pelo som da música,
que começou a soar. Todos se levantaram. A noiva entrava na
igreja, cujo chão estava forrado com um tapete vermelho e coberto
de pétalas de rosas brancas.


Todos os convidados observavam com curiosidade a figura alta e
elegante que entrava acompanhada pelo primeiro ministro. O povo
ficou sem entender nada.
Embora houvesse muitos comentários em voz baixa, o rei estava
com o olhar fixo naquela que vinha lentamente ao seu encontro. Os
anos pareciam não ter passado para nenhum dos dois, tamanha a
emoção que tomava conta de seus corações.


Quando o primeiro ministro entregou a noiva ao rei no altar, este se
ajoelhou diante dela e beijou-lhe as mãos. Até os padres
entreolharam-se, sem compreender. Nunca o tinham visto de
joelhos diante de uma imagem ou pessoa, mas agora ele o fazia
diante da futura rainha.
Olhando para ela, o rei disse, trêmulo:
—Mary, nunca pedi nada a Deus. Neste momento faço um pedido a
Ele de todo o coração: que me perdoe por tudo que você sofreu por
minha causa. Prometo fazê-la feliz, meu amor.
Levantou-se e suspendeu o véu que cobria o rosto da futura mulher.
Deu-se início à cerimônia. Os convidados, mesmo sendo fidalgos e
bem-educados, não deixaram de cochichar a respeito da noiva.
Após a coroação, Mary sentou-se ao lado do marido, usando a
mesma coroa que um dia Loretta usara. Helen estava sentada bem
próxima e sorria. "Bem diz o ditado brasileiro: o que é do homem, o
bicho não come. De que adiantou a gente ir embora para aquele fim
de mundo do outro lado do mar? Agora estou aqui, de volta, vendo
Mary ser coroada como rainha", pensou.
Quando começaram os cumprimentos, foi até a filha e abraçou-a,
dizendo:
—Pena que seu pai não esteja mais entre nós... Ele sempre a chamou
de "minha rainha", lembra-se?
As duas ouviram nitidamente:
—Vocês é que pensam que não estou aqui, minhas queridas!
Entreolharam-se. Mary disse baixinho:
—E a voz do meu pai.



Quebrando o protocolo, o primeiro ministro foi cumprimentá-la
antes dos demais membros da família real. O rei abraçou-o com os
olhos cheios de lágrimas e a rainha beijou-o, o que foi notado por
todos os convidados.
Ane levou a filha até os avós, que se entreolharam emocionados.
Mary pegou a pequena no colo e disse ao rei:


— Nossa neta.
— Tão linda quanto a avó — complementou ele.
O casamento do monarca foi tema de conversa entre reis, rainhas e
pessoas do povo em geral, na corte e em vários países. Todos se
perguntavam: "0 que deu no rei Henrique? A mulher que escolheu
para casar-se não é jovem nem famosa, apesar de ser uma bela
senhora".
Logo chegaram perto da verdade: ela era a mãe do mais ilustre
homem nomeado ministro, que era a cara do príncipe e do próprio
rei e tinha o mesmo nome dele. Claro, ele era filho do monarca com
a nova rainha! O soberano reparava com o casamento uma aventura
da mocidade, comentavam os mais velhos.
Isso trouxe uma grande popularidade para Mary, especialmente
entre as mulheres. Visitava obras de caridade deixadas por Loretta e
as mantinha com muito critério. Incentivava a cultura e a religião.
Muitas e muitas vezes o casal real visitava o grande cemitério, indo
até a cachoeira. O rei decretou que apenas a monarquia podia
freqüentar o local. Foi construído um santuário em volta da cascata,
descrita como lugar santo por poetas e músicos.
Mary visitou a aldeia de Lua de Prata algumas vezes, acompanhada
de membros da família real, além de Henrique e Ane. Henrique
narrou para a tribo a experiência vivida no Brasil com os indígenas
locais, expressando admiração pelo trabalho desenvolvido pelo
cacique da pena dourada.
Respeitava-o, porque era sábio e bondoso com o povo. Apreciava o
que fora deixado pelo grande e saudoso cacique da pedra branca.
As vezes lamentava não tê-lo conhecido.

O rei Henrique afeiçoou-se aos dois grandes internatos fundados
pela mãe. O grande castelo D'armis e o das montanhas tinham-se
transformado nas duas maiores escolas do mundo, motivo de
orgulho para o país. Realmente a mãe fora uma rainha
incomparável, sorria ele, satisfeito, olhando o jardim coberto de
rosas vermelhas e aveludadas, paixão da rainha Loretta.
Certa ocasião, o primeiro ministro chamou-lhe a atenção:

— Contaram-me que neste jardim ainda se conservam as rosas
preferidas da rainha Loretta e que aquela varanda, onde hoje é um
observatório, era seu ponto preferido para observar as estrelas que,
dizem, ela tanto amava. Pode me contar mais alguma coisa sobre
isso?
O rei abraçou-o, suspirando:
— Ah, meu filho, quanta saudade sinto de minha mãe! Ela foi para
todos nós a maior estrela que já brilhou nesta terra. Realmente ali
era o seu lugar favorito, mas também de seu primo e primeiro
marido. Não posso esconder: ele foi padre, marido, prisioneiro, o
cacique da pedra branca, meu sogro e, por fim, Monsenhor e amigo
da família. Hoje, a capela de oração é exatamente onde ficavam os
aposentos dele e de minha mãe. As jóias deixadas ali foram
enterradas por minha ordem. Quando entro na capela, sinto uma
paz muito grande, Henrique. Minha mãe tinha um carinho muito
especial por este castelo. Foi feliz aqui, sei que foi. Os dois
reencontraram-se, e minha mãe quis morrer aqui. Por isso, vamos
conservá-lo do jeito que ela desejou: uma escola para jovens do
mundo inteiro. Sua avó era inovadora.
Henrique lamentou não ter conhecido o Monsenhor, que deixou
tantas marcas de amor para a humanidade.

A REENCARNAÇÃO


Na França, a filha de Diana crescia e era muito parecida com a
bisavó Loretta, de quem tinha herdado o nome. O pai orgulhava-se
dela. Era inteligente e cativante e tinha um carisma especial quando
falava.
O rei Henrique aguardava a visita dos parentes franceses com
alegria. Diana também ansiava por rever os seus. Assim que
chegaram, correu para abraçar o pai, e logo a pequena Loretta
estava diante dele altiva e decidida:
—Meu avô, sou sua neta Loretta e orgulho-me de você.
O rei olhou-a por um instante, e seus olhos encheram-se de
lágrimas. O olhar brilhante e a determinação da neta, quando
falava, lembravam-lhe sua mãe. Parecia estar diante dela quando
menina. Apertou-a nos braços, beijando-lhe as faces coradas, e
respondeu, emocionado:
—Também me orgulho muito de você, Loretta.
A pequena Loretta passou a mão pela barba do avô.
—Sei que minha avó ficaria muito feliz se me visse também. Sou
parecida com ela e tenho o seu nome. Vou ser igual a ela, meu avô.
Pode acreditar, serei uma grande rainha.
O filho de Luana, moreno, de olhos negros e muito inteligente,
observava admirado a pequena Loretta. Nessa época ele tinha nove
anos de idade, e ela, cinco. Sem tirar os olhos dela, falou para si
mesmo: "Vou casar-me com ela. Fomos feitos um para o outro. Ela é
linda!".
No país do rei Henrique reinava a paz. Os filhos governavam com
muita sabedoria. A família real tinha-se tornado numerosa, e seus
netos eram cavaleiros respeitáveis. Entre todos, um deles destacava-
se: o filho de Luana. Sua aparência lembrava a dos indígenas,
porém era o melhor dos cavaleiros nas armas e o orgulho da família.
Foi organizada uma festa para celebrar os dezoito anos do
casamento entre o rei e Mary. Todos os familiares estariam


presentes, inclusive os franceses.
A medida que os membros da família real chegavam, eram
apresentados uns aos outros. A maioria não se reconhecia, e muitos
nem sequer se conheciam ainda, como os que viviam na aldeia, que
nunca se haviam encontrado com os da corte. Por isso o rei decidira
promover o encontro familiar.
Ao ser apresentado à prima francesa, o filho de Luana fitou-a nos
olhos, fazendo-a estremecer. Os olhos da moça diziam o que o
coração já sentia. No decorrer da festa, os dois jovens não viram
mais nada, pois seus olhos encontravam-se a todo momento.
Isso não passou despercebido pelos outros membros da família.
Antes de a princesa Loretta retornar à França, o cavaleiro pediu-a
em casamento ao rei da França. A união fora marcada para dali um
ano, pois o monarca queria dar a maior festa que a França já vira. As
duas irmãs ficaram felizes: iriam ser sogras dos próprios filhos.
Um ano depois, a princesa Loretta chegava ao palácio. O velho rei
olhava para a neta e revia a mãe. Parecia um menino diante dela.
Quando a chamavam, ele fechava os olhos para ouvir a voz da mãe.
"Ela é a cópia perfeita de minha mãe", pensava.
Então, aconteceu uma grande tragédia: o príncipe regente morreu.
Durante uma caçada com os tios e os primos, estava no alto de um
desfiladeiro e rolou montanha abaixo. Quando o recolheram, já
estava morto.
O primeiro ministro ficou muito abalado, inconsolado com a morte
do irmão. Ambos se amavam verdadeiramente. Transtornado, o rei
Henrique perdeu a vontade de viver. Assim começou a grande luta
de Loretta, sua neta. Não largava o avô em nenhum momento e
falava-lhe coisas boas que o deixavam mais seguro. Aos poucos, ele
foi melhorando.
A princesa cuidou praticamente de toda a família e da corte, falando
ao povo e ordenando aos ministros o que deveriam fazer na
ausência do rei e do primeiro ministro. Logo se cogitou seu nome
como sucessora da bisavó. Todos contentavam a semelhança física e


a personalidade idêntica à da gfande rainha. O povo colocava
cartazes em frente ao palácio: "Queremos Loretta como nossa
rainha".
Passados doze meses, os monarcas coroavam os netos como seus
sucessores no trono. O povo aplaudiu-lhes o gesto, recebendo os
dois jovens com muito entusiasmo. Nas ruas, o riome Loretta
enfeitava árvores e casas.
O velho Henrique, sentado ao lado de Mary, apertava sua mão,
sorrindo. Olhando os cartazes, disse em voz #lta:
—Minha mãe está de volta. A grande rainha Loretta voltou! Mary
olhou para o jovem casal exibindo o cetro real. Loretta,
portando a coroa, era a figura viva da falecida rainHa. Fitando o
novo rei, pensou consigo: "Raul era moreno, e, pelo que ouvi do
grande espírito na aldeia de Lua de Prata, eles voltariam. Não serão
eles?".

— Está arrependida de ter cedido seu lugar à grande rainha
Loretta? — brincou o rei, vendo-a pensativa.
— Acho, meu amor, que desta vez eles vão acertar.
— Vão acertar o quê, Mary?
— Estava sonhando com o passado, vendo sua mãe na nova Loretta
e Raul no novo rei católico.
E, realmente você tem razão, Mary. Se eu fosse supersticioso,
acreditaria no que disse o espírito da aldeia de Lua de Prata: eles
voltarão para uma nova caminhada e talvez acertem dessa vez.
Olhando bem, meu neto parece-se com o cacique da pedra branca,
ou melhor, com o bisavó Raul, meU ex-sogro, e minha neta é a
figura da bisavó, minha inesquecível mãe. Meu neto é muito
católico, e minha neta, muito decidida e bondosa. Bem, Mary, se é
ou não verdade que os espíritos voltam a nascer, não posso afirmar,
mas de uma coisa tenho certeza: estou muito contente por eles e, se
—for verdade que voltaram, sou o homem mais feliz do mundo
porque tenho minha mãe duas vezes em uma só vida. Quem sabe
até meu pai apareça entre eles como filho. Não foi isso o que disse o

espírito da mata?

— Acenando para o povo, seguia o cortejo. Os jovens monarcas iam
na frente, e em seguida o velho rei e Mary, acompanhados do
primeiro ministro e toda a família real, inclusive dos monarcas e
nobres franceses que homenageavam o novo casal de soberanos.
Assistindo a tudo isso, vários espíritos estavam presentes, sorrindo
e acenando para a família real. Entre eles, destacava-se o pai do
velho rei Henrique, que olhava para Loretta com os olhos cheios de
lágrimas, tal era sua emoção.
Hari olhava para Loretta pensativo. Ainda lhe doía na alma o
grande amor que sentia por ela. Preparava-se para reencarnar, seria
gêmeo da irmã, a falecida rainha, que olhava para Loretta com
admiração e simpatia, já sentindo orgulho da futura mãe.
O pai de Henrique gritou, emocionado:
—Filho, em breve estarei em seus braços e nos braços de sua mãe
que tanto amo. Desta vez ela será minha mãe, e você, meu bisavô,
não é engraçado? O importante, filho, é que estaremos juntos, não
interessa o grau familiar.
Alguns pajés e espíritos ligados à família real sorriam, fazendo sinal
aos demais, chamando-os para regressarem às suas colônias. O
velho pajé comentou:
—Preciso retornar ainda hoje à aldeia do cacique da pena dourada.
Haverá uma celebração de casamentos e batizados em que preciso
estar presente. Prometi isso ao cacique da pedra branca antes de ele
voltar à carne.
O cortejo imperial seguia sob os olhares carnais, e o espiritual, sob
os olhares dos espíritos.
O cacique da pena dourada preparava-se para a grande cerimônia.
Do alto da pedra branca olhava a mata, o mar e o rio, cada um
cumprindo sua missão.
Como Deus era bom! O espírito da mata havia-lhe confir¬mado: seu
pai era um rei que estava entre os reis. Ele lia muito a Bíblia, que
afirmava ser Jesus Cristo o grande Rei dos Reis. 0 cacique da pena

dourada rezou com toda a fé:
—Grande rei Jesus, olhe por todos os espíritos desta aldeia, mas,
Senhor, por favor, leve meu abraço aos filhos da mãe peixe.
Pensava sempre no cacique da pedra branca, seu pai, e em Loretta.
Antes de morrer, Lua de Prata contara-lhe a história dos dois.
As ondas do mar estendiam-se a distância. Imaginava o pai sendo
trazido pela mãe peixe, ou Maria Santíssima. Pouco importava o
nome que Lhe dessem... Ela é a mãe de todos, mãe de Jesus.
Ajoelhou-se com as mãos juntas em direção ao céu, rezou um Pai-
Nosso e uma Salve-Rainha e pediu:
—Mãe amada, onde eles estiverem, abençoe-os.
Não sabia explicar o porquê, mas sentia que Raul e Loretta estavam
juntos novamente.


— Desta vez eles conseguirão, com a ajuda de Deus.
— Sim, conseguirão, com a ajuda de Deus — respondeu-lhe o
espírito da mata, que estava ao seu lado.
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Amor e Ambição - Maria Nazareth Dória
 
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   Digitalização: M. Loureiro

Sinopse:

Loretta era uma jovem nascida e criada na corte de um grande reino europeu entre os séculos XVII e XVIII. Determinada e romântica, desde a adolescência guardava um forte sentimento em seu coração: a paixão por seu primo Raul. Um detalhe apenas os separava: Raul era padre, convicto em sua vocação.

Sem esperanças de conquistar o coração de Raul, Loretta perde irremediavelmente o seu grande amor para a Igreja. Começa aí a sua saga: inconformada com seu destino, jura vingança, não medindo esforços para isso. Entre novos amores e desencantos, o tempo vai passando, e Loretta se apaixona pelo rei Henrique em uma das festas da realeza. O relacionamento de ambos se inicia, e seu sentimento é correspondido...


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Boa leitura


Abraços.

M. Loureiro

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"O verdadeiro homem mede a sua força, quando se defronta com o obstáculo."

(Antoine de Saint-Exupéry)





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