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[MISTURANDO-IDEIAS] LANÇAMENTO Livros Loureiro: Anjo de Quatro Patas - Walcyr Carrasco

Walcyr Carrasco

Anjo de quatro patas

A verdadeira amizade
entre um homem e seu cachorro



Este é o Uno, o cachorro que mudou a vida de Walcyr Carrasco. Os
acontecimentos aqui relatados são verdadeiros e também são ficção.
O autor filtrou a realidade através de sua emoção e maneira de ver o
mundo criando uma história que une ficção e vida real. Mas o que
importa é que Uno existiu e os anos de convivência entre eles
construíram uma relação de companheirismo e amizade
absolutamente autêntica.

Minha ligação com Uno estava além de qualquer explicação, como costuma
ser a de alguém com seu cachorro. Durante milênios os cães vivem ao lado
dos humanos. Tornaram-se parentes próximos, com relacionamentos
carregados de afeto e comunicação. (...)
Sua presença impediu que o deserto tomasse conta de mim, que me tornasse
um ser estéril. Seus uivos, suas lambidas, suas corridas, caçadas, ternuras,
tudo que desfrutamos juntos me manteve vivo.

Watcyr Carrasco é autor de livros, peças teatrais, roteiros e novelas
de televisão. Foi jornalista durante boa parte de sua vida. É cronista


da revista Veja São Paulo há cerca de quinze anos. Entre seus livros
destacam-se A senhora das velas, Pequenos delitos, para adultos, Em
busca de um sonho (autobiográfico), A palavra não dita e Vida de droga,
para jovens. Já recebeu três vezes a menção de Altamente
Recomendável da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, o
prêmio Shell de Teatro por Êxtase e o prêmio Contigo pela autoria
da novela Alma Gêmea. Apaixonado por bichos, vive atualmente
com Ísis, a vira-lata Morgana, o shitzu Kauê, e dois gatos, Merlin e
Shiva. Não consegue ver um cachorro na rua sem querer levar para
casa e, se pudesse, convenceria todo mundo a ter um. Em maio de
2008 foi eleito membro da Academia Paulista de Letras.


DEDICATÓRIA

A todos vocês que, como eu,
amam os cães.


MEUS LATIDOS

Quando o pessoal da Editora Gente me convidou para escrever um
livro, propôs uma série de contos sobre animais. Topei. Garanti que
escreveria contos sobre cães e outros bichos de estimação. Mas não
consegui. Sentava no computador e lembrava do meu cachorro
husky siberiano, Uno. Dos bons momentos. Da vida a seu lado. Era
como se ele latisse no meu coração: -Conta nossa história, conta!
Decidi falar sobre a amizade e o companheirismo que ele me
ofereceu. Sobre como é bom ter um cachorro. Uma vez escrevi um
livro infantil do qual Uno foi personagem: Mordidas que podem ser
beijos (Moderna, 2001). Mas nele suas aventuras foram pura
imaginação. Agora é bem diferente. Se alguém perguntar se os
acontecimentos deste livro são verdadeiros, responderei que sim.
Mas que também são ficção.
O autor filtra a realidade através de sua emoção e maneira de ver o
mundo. Escolhe os fatos a serem narrados, a maneira como são
encadeados, o tempo e o espaço em que ocorrem. Nem mesmo em
uma biografia alguém é exatamente como foi. Posso ler várias
biografias sobre um mesmo personagem e em todas me
surpreenderei com aspectos novos.
Mudei nomes, características e identidades de algumas pessoas para
preservar a privacidade delas e também a minha. Em outros casos,
mantive nomes e acontecimentos.
O que importa saber é que Uno existiu, e que minha emoção é
absolutamente verdadeira. Foi meu husky. Meu cachorro.

Fico feliz por termos convivido tantos anos.


1

Meu irmão Cláudio resolveu ficar milionário criando cachorros. Ele
e minha cunhada Bia fizeram as contas:
-Começamos com um casal. Na primeira ninhada a cadela terá uns
dez filhotes. Vendemos oito e ficamos com mais um casal. Na outra
teremos vinte cãezinhos. Adotamos mais dois e...
Pelas contas, estariam ricos dali a dois natais. Negociar com cães
parecia melhor que jogar na loteria!
-Vamos fazer fortuna com os peludinhos! -entusiasmou-se meu
irmão.
Optaram por um par de huskies siberianos. Huskies estavam na
moda, após um filhote aparecer com destaque em uma novela de
televisão. São lindíssimos. Se não conviveu com algum
pessoalmente, você já deve tê-los visto em algum filme de esquimós.
Matilhas de huskies puxam trenós na neve. Podem ter pêlo cinza,
negro, branco ou cor de mel. Olhos azuis ou castanho-claros. São
muito parecidos com lobos. Não latem, uivam! Possuem um charme
indescritível. Qualquer pessoa se apaixona por um husky à primeira
vista.
Inicialmente, os dois futuros milionários não possuíam amor
especial pela raça. Parecia um bom investimento. Huskies eram
vendidos a peso de ouro. Esse fenômeno ocorre com freqüência no
circuito dos canis e pet shops. Raças viram moda, tal como um novo
comprimento das saias ou a cor da estação. Quando eu era menino,

o máximo era ostentar um pequinês bem peludinho. Em certa época
se tornou chique raspar os pêlos dos poodles, deixando um topete na
cabeça, um no rabo e um cinturão no corpo. Até hoje são conhecidos

como cachorros de madame. Dálmatas transformaram-se em
coqueluche. Depois foi a vez dos huskies. Os filhotes eram
disputadíssimos. Havia filas para adquiri-los.
Cláudio quase saiu no tapa para conseguir uma fêmea e um macho
de bom pedigree, ainda filhotes. Foi vitorioso. Adquiriu o máximo
em aristocracia canina. O pai de Luna, a fêmea, veio do Canadá e foi
capa de uma revista canina. O macho, Thor, também ostentava um
impressionante pedigree. Casal mais chique não poderia haver. Os
filhotinhos eram adoráveis, mas exigiam cuidados. Bia, minha
cunhada, passou semanas preparando mamadeiras e ajeitando
cobertores. Se ventava ou chovia de noite, ela e meu irmão saíam da
cama e enfrentavam as intempéries para abrigar melhor os
pequenos huskies. Os cães sempre foram saudáveis, mas os humanos
viviam espirrando. Finalmente minha cunhada, pintora, desfez o
ateliê que havia em um quartinho dos fundos da casa em que vive
no interior de São Paulo e montou uma suíte para huskies.
-Quando vender os filhotes, construo um ateliê com parede de
vidro no quintal -planejou ela, pupilas transformadas em cifrões.
Ocorreu o inevitável. Diante de um filhotinho, ondas de amor
brotam até do coração mais endurecido. Meu irmão e minha
cunhada já são bem sensíveis. Não conseguiram nem tentaram
resistir. Apaixonaram-se perdidamente pelos cães. Viviam com os
dois no colo. Ainda não tinham filhos. Cantavam para os huskies,
beijavam na testa, coçavam a barriga e comentavam, felizes como
papais:
-Viu só o que a Luna fez? Pegou um osso e escondeu no quintal!
-Ai, que gracinha, o Thor nas duas patas para pedir comida. Ah,
que guloso! Malandrinho! Malandrinho!
Registraram o canil com um derivado de seu sobrenome: Karras.
Quando ia visitá-los, passava a tarde ouvindo comentários
entusiasmados:
-Eu falo e parece que ela me entende!
-Cachorro é muito melhor que gente.


Meses depois, Luna não havia engravidado. Gastaram uma grana
no veterinário em exames. O resultado:
-A cadela está bem, mas o macho é estéril.
Pode haver investimento pior do que começar um canil com um
cachorro estéril? Pode sim, como vieram a demonstrar os fatos:
negociar cachorro é negócio de cachorro.
Os dois não se conformavam.
-A gente tinha que escolher justo um filhote estéril?


Thor abanava o rabo. Imediatamente era perdoado.
-Não é sua culpa, querido, mas você nos deu um baita prejuízo! explicava
Bia.
-Uauuuauuuuuuuuuu -uivava Thor.
E os sonhos de riqueza rápida? Não desistiram.
-Só vai demorar um pouco mais para dar lucro -concluiu Cláudio.
Foram até outro canil e explicaram a situação. Pegaram emprestado
um macho para uma gravidez em consórcio: a ninhada seria
dividida meio a meio.
-Este é seu marido, Luna! -apresentou minha cunhada.
-Luna vai casar, Luna vai casar! -cantarolou meu irmão.
O noivo se aproximou. A noiva ergueu o rabo e arreganhou os
dentes. O feliz consorte farejou seu traseiro.
Digamos que foi amor à primeira vista.
Semanas depois, Luna estava grávida.
Mais contas com o veterinário e remédios morderam a poupança
dos futuros milionários. Os planos continuaram a todo vapor:
-Se ela tiver dez filhotes, damos cinco para o canil que emprestou o
macho e ficamos com cinco.
-Vendemos todos. Quero pintar a casa e trocar a pia -lembrou
minha cunhada.
-Melhor ficarmos com uma cadela e vendermos nove. Depois,
emprestamos outros dois machos e se cada uma tiver dez...
Mais contas! Os sonhos de riqueza continuaram de vento em popa,
mas era preciso investir. Os cães continuavam dando despesas. E



haveria muitas mais pela frente. Seria preciso dinheiro para as
vacinas, ração e veterinário dos filhotes até que fossem vendidos.
Meu irmão aumentou o número de aulas que dava na universidade.
Minha cunhada diminuiu os dias da faxineira e aumentou suas
horas de trabalho doméstico.
Em uma noite fria, Luna foi para um canto, quieta. Estranha.
-Os filhotes devem nascer hoje -avisou o veterinário ao atender a
ligação preocupada.
Os olhos de ambos brilharam de ternura misturada com ambição.
(São assim os sentimentos humanos, um tanto contraditórios.)
-Se tivermos sorte, nascem uns doze -comentou Cláudio,
esperançoso.
-Já ouvi falar de até quinze -concordou Bia, olhos faiscando.
Passaram a noite em claro. A cada cinco minutos minha cunhada ia
verificar.
-Não nasceram ainda.
Deitava. Dali a pouco, saía da cama. Observava Luna. Adoçava a
voz:
-Tudo bem, querida? Vai virar mamãe cachorra?
Ao amanhecer, iniciaram-se os sinais de parto. Emocionados, meu
irmão e minha cunhada ficaram esperando o nascimento dos
filhotinhos. Seus sentimentos oscilavam entre o amor desmedido
pelos cães e as perspectivas financeiras. Nasceu o primeiro filhote,
cor de mel.
-Ai, que coisa mais linda! -exclamou Bia.
-Já, já vem mais um. -anunciou meu irmão.


Ficaram olhando. Um minuto. Cinco. Dez. Vinte. Seus pescoços
doíam com a expectativa. Bia encostou-se em um lado da parede,
ele no outro.
-Que demora!
Luna acomodou-se amorosamente com a cria. Mais meia hora.



Indiferente a suas preocupações, Luna descansava com o
cachorrinho, um macho. As angústias do parto pareciam deixadas
para trás.
Meu irmão e minha cunhada se olharam, surpresos.
-Só um?
-Ih... só um!
Mais tarde, o veterinário explicou:
-É raríssimo, mas pode acontecer ninhada de um só. Nunca um
projeto de riqueza desabou tão depressa!
Meu irmão abriu uma cerveja e declarou:
-Acabou essa história de criar cachorros pra vender. Vamos ficar
com o filhote.
Como não era possível dividir o cãozinho ao meio para entregar ao
outro canil, ainda tiveram de desembolsar algum dinheiro por ele!
-O nome dele será Uno, porque foi único -declarou minha
cunhada, com o cachorrinho no colo.
-Também podia ser Prejuízo -rosnou meu irmão. Era só conversa.
Ambos já estavam irremediavelmente
apaixonados pelo pequeno husky.
Há males que vêm para o bem. Como disse antes, negociar
cachorros pode ser um empreendimento de alto risco. Não basta
querer dinheiro, é preciso ter muito amor porque as ciladas são
inúmeras. Os fatos provaram que o prejuízo poderia ter sido muito
maior. Bia e Cláudio tinham uma amiga que conseguiu concretizar
planos exatamente iguais aos que eles possuíam no início da
empreitada. Comprou dois casais, investiu em novos procriadores,
encheu-se de filhotes e chegou a ganhar uma grana, que usou para
ampliar os negócios. Tarde demais, descobriu que criar cães não é o
mesmo que possuir uma mina de diamantes. Muitos compradores
de huskies se decepcionaram. Eu, que amo a raça, posso contar com
imparcialidade.
Apesar de grandes, da aparência de lobo e do uivo assustador,
huskies não servem como cães de guarda. São dóceis. Adoram


crianças. E não se consegue adestrá-los. Alguns treinadores
cometem o erro de dizer que são burros. Coisa nenhuma. Possuem
uma inteligência peculiar, uma personalidade forte. Francamente,
não estão nem aí para ficar guardando os pertences dos humanos.
No fundo, não nos pertencem. Eles, sim, são nossos legítimos
donos!
Fogem e não sabem voltar para casa. Vieram das planícies geladas,
onde não existiam fronteiras ou propriedades individuais. São
oriundos da vastidão da neve. Sabem ir, ir, ir. Dificilmente
conseguem voltar. Embora, como contarei mais tarde, Uno fosse
uma exceção, pois sabia voltar pra casa. Portanto fogem e não
voltam! Muitos proprietários de huskies se surpreenderam ao
descobrir que eles são capazes de escalar muros como gatos (sim,
são) e desaparecer para sempre, provavelmente adotados por uma
nova família. Às vezes uivam longamente. E são teimosos!

A raça saiu de moda. O golden retriever tornou-se a nova coqueluche.
Em todos os canis, os huskies deixaram de atrair compradores.
De repente a futura milionária, amiga de meu irmão, se viu com 300
filhotinhos encalhados! Sem comprador à vista! Gastou todas as
economias vacinando e alimentando os trezentinhos. Com a
poupança arrasada, implorava pela caridade alheia.
-Pode contribuir com um pacote de ração? -pedia aos amigos.
Pior. A maior parte dos filhotes costuma ser vendida até completar
três meses. Depois disso o cachorro já está grande. A pessoa prefere
um filhotinho para se acostumar na casa desde pequeno. A pobre
ex-quase-milionária levava caixas de cães a todas as feiras de
animais. Ficou com calos nos dedos fazendo lacinhos para enfeitar o
cocoruto das fêmeas. Teve cãibras na boca de tanto sorrir para eventuais
clientes. Cansou os braços de tanto botar filhotes no colo de
criancinhas e murmurar:
-Olha só, ele gostou de você.
Fez liquidação no canil, oferecendo os huskies a preço de custo. Só se
livrou de alguns. Ficou com 293 encalhados. Quem ama os cães não


é capaz de soluções radicais. Gastou tudo o que tinha para alimentálos,
tentava mantê-los, mas alguns começaram a se reproduzir e...
Segundo a última notícia, os cães continuavam crescendo fortes e
saudáveis, devorando toneladas de ração. Já a grana...
Meu irmão e minha cunhada livraram-se desse destino. Ficaram
com os três: Luna, Thor e Uno. Seria uma família feliz, se não fosse a
eterna competição entre machos, que costumam se estranhar. No
começo, Uno e Thor rosnavam um para o outro. Logo passaram a se
atacar. Minha cunhada os separava com gritos e água fria. Uma
loucura.
Chegou a minha vez de entrar na história.
Passei por uma fase difícil e dolorosa. Perdi uma pessoa querida
após uma doença devastadora. Eu a acompanhei durante todo o
desenrolar. Fui seu enfermeiro, seu amigo e seu amor. A experiência
ainda não parecia terminada. Eu continuava abrindo sua parte do
armário, pegava suas roupas e botava no nariz, tentando sentir seu
cheiro, captar seus últimos sinais sobre a Terra. Olhava suas
gavetas, seus papéis, as lembranças, bilhetes, postais que guardava.
Se saía para um cinema, um papo com amigos, compras, o que
fosse, me dava uma vontade enorme de voltar para o apartamento,
como se ela ainda estivesse lá, me esperando. Ao entrar, voltava à
realidade e dava um nó na garganta. Ia até suas coisas para
novamente pegar, cheirar, ver e chorar, chorar e chorar...
-Nunca mais vou amar de novo! -dizia para mim mesmo, com
plena convicção.
Era uma perda tão sofrida que não queria correr o risco de amar
mais uma vez e novamente perder.
Eu me sentia no buraco. E não pretendia sair dele.
Muita gente me aconselhava a dar a volta por cima, a esquecer.
Tinha horror de ouvir esses conselhos. Nada é pior do que perder
alguém e ouvir:
-Não se desespere.


Só se eu não tivesse amado para não sofrer. Somente um amigo,

André, me deu razão.
-Se você tem que chorar, chore. Se quer se esconder, se esconda.
Respeite seu momento.
Tinha que desocupar o apartamento repleto de recordações, onde
cada móvel, cada parede me lembrava de uma passagem triste.
Além do mais, era alugado. Há anos construía uma casa em um
condomínio distante, de chácaras, em uma cidade próxima. Estava
prestes a ser terminada. Sempre havia sonhado com a casa própria,
mas a construção se arrastava havia anos. Tive pouca grana a maior
parte da minha vida. Os financiamentos impunham juros e
correções monetárias. Eram difíceis de obter. A maior parte dos
imóveis, inacessível para meu bolso. Minha companheira fazia
trabalhos eventuais na área de moda, mas nunca recebeu salário
fixo. Era um tanto descabeçada. Quando recebia, comprava roupas
novas, presentes para mim, comidas extravagantes. Eu segurava a
estrutura: aluguel, comida, empregada, luz, água, impostos. A casa
era fruto de um longo projeto. Economizei muito, durante anos.
Com dificuldade comprei um terreno em um bairro distante. O país
passava por sucessivos planos econômicos, um diferente do outro.
Em um desses, meu terreno valorizou-se muito, porque em razão da
baixa renda da poupança, todo mundo estava tirando dinheiro do
banco e aplicando em imóveis. Era minha oportunidade. Resolvi
vendê-lo. Fui até o dono da imobiliária:
-Quero vender o terreno para comprar um pequeno apartamento.
-Não prefere uma casa?
Meus olhos brilharam. Resumindo: havia uma casa em construção
muito, mas muito mais distante ainda que o terreno, em um
condomínio quase rural. A obra estava parada havia dois anos, mas
já tinha as paredes e a laje. Maravilha das maravilhas, o terreno do
fundo dava para uma reserva florestal onde corria um riacho com
uma pequena cascata. O dono da imobiliária fez uma transação na
qual entrou como parte principal o tal terreno, minha pequena


poupança e até meu carro, com uns seis anos de uso. Saí da
imobiliária a pé para pegar ônibus na estrada, mas proprietário de
uma casa. Ou quase.
Casa? Eu nunca construíra coisa nenhuma. Imaginava que seria fácil
terminá-la. Que fantasia! Nos dois anos seguintes, fui comprando o
material pouco a pouco e concluindo a obra por partes. Comecei
pelo telhado. Um amigo indicou um especialista, que foi até lá e
perguntou:
-Como será o telhado?
-Assim -respondi desenhando no ar com os dedos. Ele fez
exatamente como mostrei e o telhado está lá até
hoje. Talvez por milagre. Quando consegui, botei as janelas. Depois

o piso, de tijolo. O terreno era enorme, com mais de 2 mil metros. Só
tive dinheiro para plantar grama na metade. A outra continuou
cheia de mato. Durante todo esse tempo fomos construindo a casa.
Com a doença, tudo parou. Trabalhei em dobro e guardei dinheiro
para emergências. Meu maior terror era ser obrigado a interná-la
em um hospital público, onde eu não pudesse estar a seu lado e
segurar sua mão quando partisse. Não tínhamos plano de saúde,
pois na época não era algo tão comum quanto hoje. Juntava cada
centavo para, quando chegasse a hora, pagar um hospital, mesmo
simples, e acompanhá-la em seus últimos momentos. Mórbido?
Quem amou e perdeu sabe do que estou falando. Minha
necessidade de estar a seu lado e transmitir minha ternura era até
física. Mas ela faleceu em casa. O dinheiro ficou no banco.
A melhor homenagem seria terminar a casa e mudar. A pedido de
sua mãe, seu corpo fora cremado. As cinzas, espalhadas no próprio
jardim do crematório. Não havia túmulo para visitar, um lugar para
honrar sua memória. No jardim da casa em construção, porém,
havia uma lembrança viva de seu amor. Vou explicar. Durante toda
minha infância, os natais foram tristes. Minha mãe era dona de uma
lojinha e passava a véspera de Natal trabalhando. No dia seguinte,
exausta, fazia um almoço comum e botava algumas frutas secas na

mesa. Hoje entendo que fazia o melhor possível. Devia estar exausta
após dias de trabalho intenso. Quando menino era difícil ver meus
amigos correndo para a ceia, para festas familiares, com parentes
vestidos de Papai Noel ou comemorando de alguma outra maneira,
enquanto eu ficava sozinho na porta do pequeno comércio de
mamãe, admirando as luzes acesas em outras casas e os ruídos de
festa. Sentia uma enorme necessidade de ter um Natal como o dos
outros. Essa alegria, só tive como adulto. Estávamos sem dinheiro.
Mesmo assim, ela resolveu que não podíamos passar sem uma
árvore de Natal. Quase na véspera, saiu à luta. Encontrou um vendedor
com alguns pinheirinhos sobrando. Pechinchou. Voltou com
um pinheiro torto, que decoramos com algumas bolas vermelhas.
Foi a primeira árvore de Natal de minha vida adulta, e eu nunca
esquecerei seu carinho ao me oferecer a árvore. Depois do Dia de
Reis, plantei o pinheiro em frente à casa em construção. Foi
crescendo, ainda torto. Nossa árvore de Natal, que estaria sempre
naquele lugar para me lembrar daquele gesto de carinho.
Gastei o dinheiro guardado para a doença deixando a casa em
condições habitáveis. Estava exausto e precisava me mudar. A casa
era a melhor opção: novo lugar, novos ares. Durante a doença,
havia atingido o limite das minhas forças. Aprendi a dar remédios,
ouvir instruções médicas, fazer curativos, passar horas do lado
segurando sua mão, simplesmente para ela saber que eu estava lá.
Nunca fui um tipo atlético. Mas a carregava no colo para ir ao banheiro
e esperava a seu lado, enquanto fazia suas necessidades.
Arrumava sua roupa e a levava de volta. Percebia seu corpo se
tornar cada vez mais leve, consumido pelo câncer. Como meus
sentimentos eram contraditórios! Dias e noites eu torcia pelo fim,
porque era horrível contemplar seu sofrimento, mas ao mesmo
tempo tinha esperanças de que ela não partisse nunca. Quando ela
se foi, não consegui entender por que pedi a Deus que a levasse,
pois me sentia rasgado por dentro, alucinado de dor. Como pude
desejar o que não queria?


Eu a amava, amava tanto que nunca mais queria amar ninguém.
Minha vida afetiva acabara. Estava fechado para o mundo e para o
amor.
Mudar para longe parecia a solução ideal. Queria ficar solitário, no
meu canto. Não tinha forças e muito menos vontade para
reconstruir a vida afetiva, me apaixonar novamente, ir adiante.
Sorria, triste, e pensava: "Parem o mundo que eu quero descer!".
Nem todo mundo achava bom que eu fosse para tão longe. Minha
mãe foi visitar a casa e chorou.


-Mas você vai morar neste fim de mundo? Vai ser assaltado!
Assumi uma atitude corajosa.
-Assaltado posso ser em qualquer lugar.
-E o mato atrás da casa? Os ladrões podem se esconder atrás das
árvores.
-Mamãe, não estamos num filme de faroeste com os apaches
escondidos para atacar. A mata até me protege. Nenhum ladrão vai
atravessar o rio, o mato e pular a cerca, pegar a televisão, pular de
volta e atravessar o rio de novo com a televisão na cabeça, vai?
Reuni meus móveis e mudei. A casa ficou bem vazia, mas não
importava. Com o tempo compraria mais mobília, se tudo corresse
bem. A família morria de preocupação.
-Você devia sair, se divertir! -aconselhou meu pai. Me divertir de
que jeito, se minha garganta doía como
se apertada por um torniquete de ferro?
Em conversas privadas, meus irmãos, cunhadas e pais resolveram
fazer alguma coisa. Meu irmão Cláudio propôs:
-Quem sabe se ele arrumasse um cachorro?
Todos concordaram. Desde menino, eu gostava de cães. Ele se
prontificou a resolver o problema e me telefonou:
-Você precisa de um cachorro!
Concordei. O terreno era grande. Queria um cão. Pensava em um
pastor alemão bem bravo para latir e atacar ladrões a dentadas.
Seria mais seguro na casa.



-Tenho um para você! -trinou Cláudio do outro lado da linha.


-É grande, pode me proteger? -perguntei.
O silêncio do outro lado poderia ter me alertado. Meu irmão
disfarçou:
-É bem forte, tem presença.
-Ah, bom.
-Nunca esteve na situação de precisar defender alguém. Mas acho
que se alguém for agressivo, ele defende.
Eu acho! Vivo dizendo para quem me cerca jamais dizer "eu acho".
Quem acha não sabe. Não prestei atenção no detalhe do "eu acho".
Aceitei.
-Ah, que bom, eu estava mesmo pensando...
-Ótimo! Ele tem dois anos e...
-Não é grande? Não vai me atacar?
-Ele é muito dócil, não se preocupe. Você vai gostar dele, tenho
certeza. Seu nome é Uno!
Combinamos que o cão, já grande, seria entregue no fim de semana
seguinte, pois Cláudio mora em uma cidade próxima. No sábado,
fiz um almoço para três e esperei. No início da tarde, meu irmão
ligou para avisar que ia se atrasar. Em tom de voz misterioso,
explicou que seria melhor ir à noite.
-Por quê? É só uma hora de estrada!
-Por causa da polícia.
Estranhei. O que tinha a polícia a ver com um cachorro?
Chegaram quase de madrugada. Na época, Cláudio possuía um
utilitário com caçamba. No escuro -no condomínio não havia
iluminação de rua -, vi a silhueta da minha cunhada agachada com
um cachorro de porte médio na caçamba. Com uma das mãos
agarrava a coleira. Com a outra, segurava-se para não voar para
fora.
-Desculpe o atraso, tive que vir a cinqüenta por hora no máximo. A
Bia veio na caçamba.
-Por quê? -perguntei ingenuamente.



-Ah, é que pusemos o Uno acorrentado na parte de cima, mas ele
se revoltou. A Bia teve que viajar na caçamba, o que é proibido.
-Mas na viagem eu fiquei ajoelhada com a cabeça entre as pernas
do cachorro e a polícia rodoviária não me viu! -confessou ela,
vitoriosa.
Estranhei. "Que maneira esquisita de transportar um simples cão",
pensei inocentemente. Ela pegou o cachorro, que parecia muito
assustado. Com a ajuda de meu irmão, desceu, sem soltar o
cachorro da corrente.
E, pela primeira vez, eu e Uno nos olhamos.
Seu pêlo era cor de mel. Tinha um olho azul e outro castanho. Quis
me aproximar para acariciá-lo, mas ele puxou a corrente e saiu
correndo com minha cunhada atrás.
-Pare, Uno, pare!
-Eu pensava em dar um nome mais significativo, tipo Merlin expliquei.
-Pode tentar -respondeu meu irmão enquanto desembarcava meio
pacote de ração, um pote para comida e água e uma manta rasgada.
-Mas o nome completo é Uno of Karras. É um nome aristocrático.
Karras é o nome do canil que eu fundei, registrei e que já estou
fechando.
Minha cunhada entrou no jardim e conseguiu prender a corrente
num pilar da varanda.


-O husky odeia ficar preso, enlouquece com a coleira -ela explicou -,
mas é preciso para ele se acostumar aqui.
Fomos comer. Ouvi os primeiros uivos. Altos, cortantes.
-Vai acordar toda a vizinhança! -assustei-me.
-É impossível calá-lo quando uiva -explicou meu irmão.
Comemos espaguete ouvindo o barulho. Na casa do vizinho, um
pouco distante, alguém acendeu as luzes. Um vulto saiu pela janela
para descobrir o motivo do escândalo. Senti um olhar enfurecido na
nossa direção. Abaixei um pouco para que ele não me visse através
do vitrô da cozinha.



Felizmente os uivos cessaram.
-Viu só? Foi só um pouquinho -sorriu meu irmão.
-Ele deve estar estranhando a casa -concordei -Vou até lá um
pouco, fazer presença para ele se acostumar comigo.
Uno mordera a coleira e fugira. Era esse o motivo do fim dos uivos.
-Ah, não se preocupem -sorri. -Deve estar no quintal.
-Talvez sim, talvez não. Ele é bem capaz de ter escalado a cerca.
Pode ter fugido para a mata -suspirou minha cunhada.


Demos uma batida rápida no quintal.
-É melhor esperar até de manhã -propus. -Lá na reserva florestal
tem cobra.
-Temos que achar o Uno senão ele se enfia na mata e não volta
mais! -argumentou Bia.

Achei duas lanternas. Os três saímos pelo portãozinho do fundo.
-Uno, Uno! -gritei mata adentro.
-Ai, socorro! -gritou minha cunhada ao tropeçar em uma pedra.
Caiu sentada dentro do riacho. Eu e meu irmão conseguimos içá-la
com dificuldade. Com o pé torcido e toda suja de barro, Bia
arrastou-se para casa.
Eu e Cláudio andamos pela mata durante umas duas horas,
chamando pelo cachorro. Nem sinal. Eu me sentia muito mal,
sozinho. Ia perder um cachorro que mal havia chegado? O que o
destino tinha contra mim?
Com mãos e rostos arranhados por espinhos, teias de aranha presas
nas roupas, tênis imundos de lama e folhas secas nos cabelos,
finalmente desistimos da busca:
-Ele sumiu. O jeito é voltar -concluiu Cláudio. Fomos capengando
até a casa. Só queria um chuveiro
quente e me atirar na cama.
Bia nos esperava sentada na varanda, cochilando, de banho tomado,
com Uno deitado a seus pés. Era a própria imagem da paz familiar.
-Onde ele estava? -rugiu meu irmão.



-Quando voltei, apareceu e me seguiu. Ficamos aqui esperando.
Por que demoraram tanto?
-Ainda pergunta? Por que não foi avisar que ele tinha voltado?
-Torci o pé, esqueceu?
Enquanto o casal discutia, Uno os observava com ar de
desaprovação. Como se não tivesse nada a ver com o assunto.


-O importante é que ele apareceu. Eu preciso é de banho e cama! disse
eu.
Os dois concordaram, exaustos.
-Mas que baile esse cachorro nos deu! -exclamei. Minha cunhada
me encarou, sorriu e disse com a mais
absoluta sinceridade:
-Bem-vindo ao mundo dos huskiesl
Só então tive um lampejo do que me esperava. Por pouco não
amarrei minha cunhada e o cachorro de volta na caçamba. Mas era
tarde. Eu olhei mais uma vez para o cão, e ele me encarou com os
olhos cintilando de ternura. Que sedutor! Sentei-me no chão e o
abracei longamente, sentindo seus pêlos macios, seu cheiro, e uma
imensa vontade de tê-lo perto de mim.



2

Uno passou dias estranho. Já tinha 2 anos e estranhou a ausência de
meu irmão e minha cunhada. Às vezes, de noite, uivava solitário
para a Lua. Eu ia abraçá-lo, mas ele fugia. Nossos breves contatos


ocorriam quando eu punha ração na sua vasilha. Ficava me
observando de longe. Assim que eu me afastava, aproximava-se
para comer. Sempre com um olhar selvagem que aos poucos
descobri ser pura angústia. Lembro-me de certo fim de semana em
que um amigo foi me visitar. Saímos para almoçar fora, mas esqueci
uma janela aberta. Ao voltar Uno estava dentro de casa e havia
destruído vários travesseiros e espalhado a espuma pela casa toda.
Meu primeiro impulso foi castigá-lo. Depois pensei em minha
própria dor. Não acordava de noite com dor de garganta, de tanto
pensar no meu amor perdido? Não sentia dor física de tanta falta de
alguém que não voltaria mais?
O mesmo devia acontecer com Uno. Também sentia falta de amor.
Perdera os abraços de Bia, que o alimentara desde filhote. Adeus às
brincadeiras de meu irmão! Não convivia mais com outros dois
cães. Passava a maior parte do dia sozinho em casa, quando eu saía
para trabalhar. Na época, trabalhava como redator de uma revista.
Minhas finanças não eram suficientes para pagar uma empregada
diária. Tinha uma faxineira duas vezes por semana. Eu mesmo
cuidava de Uno. Ao sair, deixava sua comida. Ao voltar, enchia
novamente seu pote de ração. Meu cachorro passava os dias
solitário, numa casa estranha, distante do carinho a que estava
acostumado. Compreendi seu sofrimento. Assim, apesar dos
travesseiros destroçados, não briguei. Preferi me aproximar. Ele me
olhou estranhamente, com medo talvez. Para que não fugisse, eu o
abracei em um gesto rápido. Coloquei sua cabeça em meu colo.
Conversei:
-Agora somos só nós dois, Uno. Meu cachorro!
Não iria brigar por causa de uns travesseiros. Era mais importante
que nos tornássemos amigos. Ele ficou algum tempo com a cabeça
debruçada na minha perna, sentindo meu cheiro. Em seguida
recuou. Pela primeira vez, deitou-se pertinho de mim. Desde aquele
dia, passou a ficar por perto sempre que eu estava em casa.


Nem tudo foi exatamente como eu pensava. Logo descobri que Uno
era uma nulidade como cão de guarda. Pior ainda: a revelação
ocorreu justamente quando apareceu um leão nas imediações da
minha casa.
Exatamente, um leão! É a mais absoluta verdade. Segundo soube, na
região havia um criador ilegal de leões. Não é tão incomum quanto
parece. Quando repórter, cheguei a entrevistar pessoas que criavam
animais selvagens como bichos de estimação. Nunca vou esquecer
de um casal que tinha um leão. Foi um filhote lindinho. Cresceu
cheio de amor pelos donos. Parecia um gatinho, ou melhor, um
gatão. Até que, certa noite, a família (o casal e o leão) assistia à
televisão na sala. Lá pelas 11 horas o casal decidiu dormir. O marido
levantou do sofá e foi desligar a televisão. Imediatamente o leão
rugiu.
Ameaçador, fitou marido e mulher. A televisão continuou ligada,
com os dois refugiados no sofá. E o leão assistindo.
Acabou a programação. Na tela só chuvisco. O marido tentou
desligar novamente. O leão rugiu de novo, ainda mais forte.
O casal continuou sentado. O leão assistindo. A noite passou com os
três diante do chuvisco da TV. Só foram resgatados quando ele não
apareceu para trabalhar e ninguém atendeu ao telefone na casa.
Preocupados, os amigos chamaram a polícia. O leão foi capturado e
entregue a um zoológico. Tiveram sorte: foram salvos antes do
horário do almoço!
A mulher de um amigo, quando criança, criou uma onça. Morava
numa casa de esquina e passava os dias brincando com a bichana no
jardim. Eram íntimas, ela e a onça. O veterinário aconselhou:
-Só não durma junto. A onça pode sonhar que está caçando.
A menina não obedecia. De noite, abria a porta e colocava a onça em
sua cama. Nunca aconteceu nada de mau. A garota cresceu, casou e
levou a onça junto. Até o dia em que a felina morreu porque, para
nossa grande tristeza, certos bichos vivem menos que a gente.


Não fiquei surpreso ao saber da existência de um criador de leões,
ainda mais numa região campestre. Pelo que soube, vivia a alguns
quilômetros de mim. Tinha vários leões, em jaulas, e gastava
fortunas em carne para alimentá-los. Era ilegal, claro. Mas morava
longe e nenhuma autoridade sabia dos leões. Até que um deles
fugiu.
E para onde foi?
Refugiou-se na reserva florestal atrás da minha casa. Um morador
de um condomínio próximo deu de cara com o leão durante sua
corrida matinal em torno de um lago. Dispararam os dois. Ele aos
gritos para um lado e o leão rugindo para o outro. Os jornais
noticiavam as andanças do bichão. Todos os dias eu lia uma notícia
semelhante à do dia anterior: "Ainda não foi encontrado o leão
desaparecido nas imediações da Granja Viana".
À noite, quando eu chegava do trabalho, na portaria do
condomínio, o rapaz da guarita avisava:
-Cuidado com o leão!
Como tomar cuidado com um leão? Minha casa não tinha portão
automático. Para botar o carro na garagem, eu precisava descer,
abrir o cadeado, o portão de ferro e entrar. Descer novamente,
fechar, e abrir a porta da cozinha. Para me proteger, só havia um
alambrado bem fajuto em torno do quintal. Cumprir todas essas
tarefas cotidianas com um leão à solta atrás da cerca de casa foi uma
sensação e tanto! E por semanas inteiras! Haja adrenalina!
E quem disse que dentro de casa eu estaria seguro? Bastava uma
patada para o leão abrir uma das portas-balcão! Todas as noites eu
entrava em casa, trancava as portas, verificava as janelas e pensava:
-Se pelo menos eu emagrecesse, não seria tão apetitoso!
No dia seguinte, procurava avidamente novas notícias no jornal.
Mais uma vez me certificava de que o tal leão ainda não havia sido
encontrado, mas que fora visto de novo pertinho de casa!


Na primeira noite tive a ilusão de que Uno me salvaria. Imaginei
meu bravo husky atirando-se sobre o leão. Quase chorei ao imaginálo
dando a vida por mim. Chamei:
-Uno, Uno... vem cá.
Veio com o rabo entre as pernas. Mesmo assim, eu o encarei
esperançoso.
-Se o leão aparecer, você me salva?
Uivou timidamente. Após anos lendo livros e vendo filmes sobre
cães heróicos, eu imaginava que todos eles possuíssem uma vocação
inata para oferecer a vida pelos donos. Meu husky parecia bem
longe de ter esse talento.
Enquanto tentava encaixar a chave na porta da cozinha, ouvi um
ruído suspeito no gramado. Podia ser o leão! Tentei fazer com que
Uno refletisse sobre seu dever como cão de guarda.
-Uno, seja um cachorro corajoso e fiel. Se for o leão, me salve.
Enfiou o rabo ainda mais profundamente entre as pernas. Nervoso,
eu não conseguia abrir a porta. Deixei a chave cair. Tive que
procurar no escuro. Achei. Tentei abrir de novo. Uma coruja voou
sobre o telhado e quase morri do coração ao ouvir o pio. Finalmente
consegui. Entrei na cozinha. No umbral, Uno me encarava com a luz
da lâmpada cintilando nas pupilas.
-Uno, seja um bom cachorro e verifique se o leão está aí.
Mais ruídos no quintal. Podia ser um rato ou um leão; eu estava
apavorado. Precisava fechar a casa. Uno continuava imóvel. Refleti:
"Se for um leão, vai palitar os dentes com meu cachorro".
Escancarei a porta.
-Venha, inútil!
Ergueu o rabo e entrou na cozinha. Bati a porta e passei a chave.
Respirei fundo. Uno me encarou com jeito de "estou faminto". A
vasilha de ração havia ficado fora. Peguei um prato fundo, botei
arroz, feijão e carne. Devorou tudo alegremente. Olhei pelo vitrô.
Um vulto corria pelo mato, mas não parecia um leão. Era bem



menor. Uno eriçou os pêlos, olhou ferozmente para a porta e
rosnou.
-Ah, safado, agora que você está aqui dentro dá uma de valente?
Fiz um sanduíche e comi. Ele ainda tentou filar um bocado. Para
ficar em paz, ofereci-lhe um pedaço de pão -meu cachorro adorava
pão. Reclamei:
-Você não vale a ração que come! Continuou mastigando, sem me
dar importância.
Fui para o quarto. Ele me acompanhou. Fiquei lendo na cama, com
Uno deitado no chão. "Estou bem-arrumado se depender desse cão
de guarda", pensei .
A caçada ao leão durou mais alguns dias. Nunca soube exatamente
como terminou, pois a notícia sumiu dos jornais. Alguns seguranças
do condomínio garantiram que foi capturado. Outros, que se
embrenhou na mata. Não devorou ninguém, pelo que soube. Nós,
os moradores, fomos nos acalmando. Descobri também que a mata
produzia seus próprios sons: pássaros noturnos, coaxar de rãs, o
vento nos ramos das árvores. Se pulasse da cama com o coração na
boca a cada ruído, não dormiria mais. Acostumei-me a sentar na
varanda todas as noites e a passar algum tempo admirando a Lua e
as estrelas. Em São Paulo, eu não tinha essa relação profunda com o
céu. Mal levantava a cabeça para olhar as estrelas. Descobri que é
uma coisa mágica. Passei a contemplar a noite horas inteiras, a
perder a noção do tempo. Reencontrei um hábito de minha infância,
quando morava no interior e conversava com as estrelas. Às vezes
conversava com elas como se fossem minhas amigas. Ou deixava o
dia passar pela minha cabeça, os pensamentos flutuarem, sem me
fixar em nenhum, até sentir uma grande paz. Era minha meditação.
Quando tive certeza de que nenhum leão saltaria na varanda para
me devorar, sentei numa poltrona de palha e voltei a conversar com
as estrelas. Embora tivesse optado por isso, eu me sentia muito
solitário. Morava longe dos meus amigos, em uma casa isolada, com
a mata ao fundo. Ao mudar, pensava que minhas cicatrizes se


fechariam, que a dor deixaria de vir em ondas. Como em um passe
de mágica. Não foi o que aconteceu. Descobri que um amigo mais
velho tinha razão. Quando falei em mudar, ele me avisou:
-Não importa para onde for, vai carregar você mesmo.
A frase parece óbvia. No entanto possui uma grande sabedoria.
Pensei em mudar de ambiente, de local, em ficar longe do agito, das
pessoas que haviam me acompanhado durante aqueles meses tão
difíceis, porque ao vê-las eu revivia meu sofrimento. Mas levei a dor
dentro de mim. Meu sentimento não era como um pacote que se
pode esquecer em algum lugar para continuar o caminho mais leve.
A ferida ainda estava aberta. Sangrava.
Diante das estrelas, lembrei de cada etapa da doença. A descoberta
do câncer já instalado. A primeira consulta com um médico amigo,
que pediu os primeiros exames e certamente desconfiou do pior,
pois nos aconselhou um especialista. A ida a um médico
importante, cujos honorários eu paguei com dificuldade. Tive sorte.
Foi um médico generoso que chegou a arrumar amostras grátis para
nos ajudar com os remédios mais caros.
O aluguel levava parte de meus ganhos. Abandonei a construção da
casa. Mesmo que estivesse pronta, não teria mudado para tão longe.
Era preciso viver em um local de fácil acesso, onde o auxílio
pudesse ser rápido, mesmo porque em algumas fases o tratamento
provocava enjôo e dores.
A situação era grave. Só eu podia trabalhar, e ganhava menos do
que precisávamos. Pegava trabalhos extras para fazer em casa:
pequenas traduções e artigos, sempre apavorado com a
possibilidade de faltar dinheiro para algum tratamento essencial.
Amigos maravilhosos ajudaram, conseguindo transfusões em
hospitais públicos e remédios doados por familiares de pessoas
falecidas da mesma doença. Na frente dela eu sorria, contava como
tinha sido meu dia, fazia fofoca. Sozinho, todos os dias eu rezava:
"Deus, por favor, não a deixe sofrer".


Falei com o especialista. Expus minha situação: não havia dinheiro
para uma longa internação em um hospital particular, como eu
desejava. As filas para os hospitais públicos eram intermináveis.
Mas e se fosse preciso? Falei também sobre meus sentimentos:
-Mesmo que fosse fácil colocá-la em um hospital gratuito, não
quero abandoná-la em uma enfermaria durante semanas, talvez
meses. Quero permanecer junto dela.
-Eu vou ser franco, só serão possíveis tratamentos paliativos respondeu
o médico. -Já vi casos assim. Só aconselho internação se
a dor for insuportável e for preciso sedá-la no hospital.
-Eu quero que ela fique em casa, perto das coisas de que gosta,
ouvindo minha voz, recebendo amigos.
Talvez minha atitude pareça estranha, porque a maioria das pessoas
quer internar seus doentes, como se a estada no hospital fosse a
garantia de um tratamento mais eficiente e desse uma esperança
extra. Mas eu lera os livros de uma psiquiatra norte-americana,
Elizabeth Kubler Ross, conhecida por seu trabalho com pacientes
terminais. Depois de conviver com inúmeros doentes, a doutora Elizabeth
escreveu livros para preparar o paciente para a passagem.
Neles, ensina a família e os amigos a tornar esse momento o mais
lindo possível, dizendo que a morte é a última grande experiência
de vida. Segundo ela, o doente deve ficar em casa, talvez até com a
cama no meio da sala, cercado de afeto, flores, ouvindo as vozes das
pessoas, sentindo o cheiro da comida, vendo quem entra e quem sai.
O especialista concordou.

-O melhor será ela ficar com você enquanto for possível.
Para isso, seria preciso gastar mais. Meu dinheiro não dava sequer
para pagar uma enfermeira, mas tínhamos uma empregada
dedicada, que se tornou uma irmã. Cuidava de tudo durante o dia,
e eu à noite. O computador ficava no quarto ao lado, transformado
em escritório, onde eu trabalhava. Ficava atento ao som da voz de
minha companheira, e me levantava várias vezes para falar com ela,
servir água, dar os remédios, pegar na mão. Dormia em um sofá ao


lado da cama, atento ao menor ruído, a qualquer suspiro, e talvez
por isso até hoje tenho um sono estranho, porque durmo
profundamente mesmo em um terremoto, mas desperto ao menor
murmúrio.
Contei tudo isso para as estrelas, repisando fatos e sentimentos.
Chorei. Seu rosto pálido, magro, a cabeça com raros tufos de
cabelos, tudo isso ia e vinha em minha mente. A dor explodiu.
Solucei e mais uma vez minha garganta parecia estar sendo
espremida por um colar de ferro que se apertava cada vez mais.
Olhei para as estrelas. Perguntei:
-Por que tudo isso aconteceu comigo, justamente comigo? É tão
difícil amar, amar tão profundamente! É horrível estar aqui, sem
ninguém!
Meu cachorro saltou para a poltrona a meu lado. Ergueu-se. Apoiou
as duas patas dianteiras em meu ombro e lambeu minha orelha
direita. Continuei chorando, porém meu coração bateu comovido.
Ele mordeu delicadamente o lóbulo da minha orelha. Até me
assustei. Tinha dentes grandes, e eu já comprovara a força de suas
mandíbulas ao vê-lo quebrar um osso a dentadas. Surpreendi-me ao
descobrir que mordia delicadamente, com carinho. Ficou algum
tempo lambendo e dando pequenas mordidas na minha orelha.
Minha tristeza foi substituída por um sentimento de alívio. Abracei-

o. Afundei a cabeça nos seus pêlos.
-Meu amigo! -murmurei.
Descobri que não estava mais sozinho.

3

Há um grande engano na relação entre nós, humanos, e os cães.
Gostamos de acreditar que somos donos do animal, e que ele nos
obedece de rabo abanando por reconhecer nossa superioridade.
Tudo não passa de um estratagema do cachorro para obter uma
vida confortável. A raça superior é a canina. Provo. O homem
trabalha para o cão. Enquanto eu me enervava no trânsito indo para

o meu emprego na revista, Uno descansava na grama. Se eu passava
o dia em longas reuniões, ou terminando algum texto em cima do
prazo, trabalhando como um louco, meu cachorro corria atrás dos
passarinhos. Ao voltar para casa, acabado, no início da noite, não
tinha sequer tempo para um banho. Uno uivava, e eu era obrigado a
servir a ração. Ainda sentia prazer em vê-lo comer! Quem mandava,
afinal, em nossa relação? O cachorro, é claro!
No máximo, para fingir que tinha alguma serventia, rosnava para
alguém que passava na rua, num arremedo de cão de guarda
profissional. De vez em quando me presenteava com algum rato do
mato morto. Huskies são bons de caça, e se algum rato aparecia no
jardim, não se salvava. Generoso, Uno colocava o rato na minha
porta, como recompensa pelo meu bom comportamento.
-Outro rato, Uno! Já disse pra parar de trazer ratos!
Dava fim ao cadáver, morrendo de nojo. O husky encarava-me
pacientemente, talvez refletindo sobre a ingratidão humana, pois eu
nem sabia agradecer um presente.

Existem, de fato, bravos cachorros que guardam shoppings e
empresas, ou auxiliam a polícia em aeroportos. Só algumas raças se
resignam a trabalhar. A maioria dos cães contenta-se em ser
alimentada, aquecida, escovada e acariciada. Seu maior trunfo é o
olhar. Quem resiste à expressão cheia de amor de um cachorro?
Muitas vezes, a relação de posse é total, e ai do humano
desobediente! Uma amiga, moradora do mesmo condomínio que
eu, acreditava ingenuamente ser dona de uma fêmea de pastor
alemão. Todos os dias ambas repetiam a mesma rotina. A humana
chegava de tarde. A cachorra a esperava no portão e delicadamente
pegava suas mãos com os dentes. Depois a conduzia através do
jardim até a porta de entrada, quando de rabo abanando a canina
soltava a humana. Certo dia, a moça voltou cheia de sacolas de
compras. Quando a cachorra foi pegar sua mão, esquivou-se.
-Hoje não.
A cadela rosnou, atacou. Aos gritos, a humana foi socorrida pelo
marido.
O casal amava a agressora. Não conseguiam entender o motivo de
tanta fúria após anos de convivência. Não tinham coragem de
descartá-la. Mas... e se tivesse se tornado perigosa? Acabaram, os
três, em um psicólogo de animais, que foi taxativo:
-É muito simples. A cachorra acha que é sua dona. Todos os dias a
pega no portão do jardim e a leva com a boca até a porta. Ela se
revoltou porque você não obedeceu!
Ficaram os três se olhando sem palavras e sem latidos, marido,
mulher e cadela.
Foi preciso um longo treinamento até demonstrarem à canina que
não ela era realmente a dona dos humanos. A peluda sofreu um
ataque de depressão com a perda de autoridade. O casal se
preocupou. Finalmente a humana aceitou ser conduzida, todos os
dias. Submeteu-se, enfim, à autoridade indiscutível da verdadeira
líder familiar: a cachorra!


Há na televisão por assinatura, em um canal internacional, um
reality show com uma treinadora de cães. Sua especialidade é mudar

o comportamento do cachorro, que freqüentemente dita as regras
da vida doméstica. Meu amigo Vicente assistiu, faz algum tempo, à
história de um pequinês que dominava a casa. Dormia na cama do
casal com a mulher. Quando o marido ia deitar, atacava-o aos
latidos e mordidas. O homem refugiou-se no quarto das crianças.
As visitas também não eram bem-vindas. Amigos eram expulsos
pelo feroz pequinês. Proprietário total do território, o peludinho
obrigava a dona a passar o dia todo acariciando-o no quarto,
enquanto o marido e as crianças viviam pisando em ovos para não
irritar o cãozinho. A treinadora diagnosticou:
-Ele é o dono de vocês.
Sem pancadas, sem violência, tratou de mudar o comportamento da
pequena fera. Quando ele se comportava mal, virava as costas e
dizia:
-Muito feio.
E não lhe dava importância. Ávido por conquistar seu afeto, o
pequinês passou a fazer suas vontades. A treinadora adestrou
também os moradores humanos. Ensinou-os a resistir ao
autoritarismo canino. A não oferecer tanto amor em troca de maus-
tratos. Em dez dias, o pequinês mudou completamente. Passou a
dormir em um cestinho. O marido voltou à cama e à vida conjugal.
As crianças perderam o medo. Os amigos voltaram a visitá-los. A
família recuperou a harmonia.
Só contei essas histórias para explicar como Uno tomou posse da
casa. Era um cachorro gentil, e ainda me lembro de seu olhar com
emoção. Mas meus horários passaram a ser rigidamente controlados
por meu cachorro.
De manhã, eu acordava um pouco mais cedo para supri-lo de água
e ração. Se dava tempo, escovava seu pêlo. As despedidas eram
longas.
-Tenha um bom dia, Uno. Qualquer coisa, me telefone.


Eu o abraçava várias vezes. Quando saía, me acompanhava com o
olhar através do portão.
Mesmo morando longe, eu voltava para casa no horário. Se havia
alguma festa, saía de novo. Era preciso cuidar da refeição noturna
de meu cachorro e, sobretudo, saber se estava bem. Ficava sem jeito
por qualquer atraso.

-Uno, querido, tive um imprevisto. É culpa da minha chefe.
Corria a botar a ração, que ele comia com expressão de mágoa.
Na maior parte das noites, via televisão. Ele se deitava ao meu lado
no sofá. Passava a mão na sua cabeça, brincava com seu focinho.
Puxava seu rabo. Ele rosnava e fingia me morder. Mas sempre de
brincadeira. Ficávamos brincando durante muito tempo.
Só se abatia em dia de trovoadas. Tinha horror. Botava o rabo entre
as pernas e se escondia em um canto. Eu ia até lá abraçá-lo,
confortava.
-Eu estou aqui, Uno. Aqui. Eu tomo conta de você.
Ele botava a cabeça no meu colo e eu o acariciava.
Há algo incrível a respeito da perda. Seja por falecimento, seja o fim
de um amor. Achava que o sofrimento não ia passar nunca. Às
vezes as lágrimas vinham aos meus olhos. Abraçava meu cachorro,
sentia que ele era meu alicerce, meu único ponto de apoio nesse
mundo. Mas a dor se aplaca. Durante muito tempo lutei comigo
mesmo como se deixar de sofrer fosse uma traição. Aos poucos,
deixei de ficar com a voz embargada cada vez que falava seu nome.
Ou de sentir o peito esmagado quando lembrava do calor de sua
mão. E de minhas palavras em seu leito de morte.
-Eu te amarei para sempre -prometi pouco antes da passagem.
Eu estava fechado para qualquer relação. A presença de Uno me
acalmava, e descobri que ainda podia sentir ternura. Contudo os
sentimentos não morrem, e a lembranca continuava viva dentro de
mim, uma cicatriz aberta e dolorosa. Quando pensava em minha
vida, via uma sucessão de perdas. Amigos do peito afastaram-se
porque a vida nos conduziu a caminhos diferentes. Na infância tive


uma grande amiga, e toda a família acreditava que um dia nos
casaríamos. Mudei de cidade e nunca mais a vi. Mais tarde vivi meu
primeiro amor, e ainda me lembro dela com emoção. Uma vez ou
outra, durante a vida, tive notícias a seu respeito, e sempre penso no
que poderia ter sido minha vida se tivéssemos nos casado. Os bons
amores ficam guardados. Sabe como é? Imagino um salão com uma
estante de cristal repleta de vasos, um mais lindo que o outro, uns
pequenos, outros enormes, cada qual uma jóia única. Às vezes me
detenho diante de um deles, aprecio, observo, e digo para mim
mesmo: "Que lindo! É tão bom de olhar!"
Cada sentimento que vivi, cada relacionamento rompido ou
terminado é como se fosse um vaso guardado na estante. No meu
coração, acendo uma luz sobre o vaso e contemplo sua beleza.
Penso:
-Como foi bom! Onde estará agora? Como terá sido sua vida?
E desejo do mais fundo de mim mesmo que os anos tenham sido
legais para aquela pessoa, com experiências positivas, benéficas.
Cada vaso merece seu destaque, e tem seu lugar no meu coração.
Quando uma amizade termina, um amor chega ao fim ou um amor
se vai, deixa tristeza e mágoa. Mas, com o tempo, fica a impressão
da pessoa legal que passou por minha vida, a beleza da relação. Um
vaso, uma jóia única, um amor.


Fico horrorizado quando encontro pessoas que, após um casamento
ou uma grande paixão, entram em batalha. Torturam-se. Atingem
extremos de mesquinharia. Maridos que se recusam a dar pensão
aos filhos. Mulheres que exigem mais do que o ex pode oferecer.
Pessoas que dão um espetáculo de egoísmo. Eu me pergunto:
-O que foi feito daquele amor? Como duas pessoas que foram tão
apaixonadas, tão íntimas, são capazes agora de fazer tanto mal uma
à outra?
Na estante do meu coração, o vaso ficaria rachado, ou em cacos.
Por que eu falei tudo isso?



Não me sentia pronto para me apaixonar. Mas também não
suportava continuar sozinho. Vivendo tão solitário, o mais difícil
era ouvir os vizinhos. Os sons de um jantar, o ruído de uma risada,
uma voz de criança. Se estava próximo de alguma casa, o tinir dos
talheres. Pode haver algo mais doméstico do que o tinir de garfos e
facas? Família. Tinha amigos, sem dúvida. Mas cada um levava sua
vida, com seus relacionamentos, seus amores. Muitos estariam
dispostos a vir se eu pedisse socorro. Entretanto não se pede socorro
todos os dias. A solidão é como uma doença crônica. Atormenta.
Dói. Só não vem a crise aguda, aquela que faz gritar por ajuda. Era
terrível a sensação de ir a um restaurante, sentar sozinho em uma
mesa. Olhava em torno, via casais e grupos de amigos rindo,
conversando. Eu me sentia excluído. Lia uma reportagem sobre um
novo local, vinha a vontade de conhecer o cardápio. Depois me
imaginava entrando, sozinho, sendo recebido pelo maitre sem jeito,
olhar de dúvida:

-Quantos são?
-Um só.
Ele me levava, invariavelmente, a uma mesa de fundo. Em muitas
ocasiões, era obrigado a chamar o garçom várias vezes, pois passava
por mim como se eu fosse invisível. Preferia atender duplas que
chegavam depois de mim. No cinema, sentava-me sozinho em uma
sala cheia e ouvia as pessoas rirem, comerem pipoca, enquanto eu,
isolado, esperava o início. No final, os outros iam para uma pizza,
uma cerveja, sei lá. Eu caminhava até o carro, dirigia até minha casa.
No máximo, parava no caminho para um hambúrguer rápido, em
um fast-food, onde estar sozinho não era visto como um estigma.
O sinal de alerta foi dado no meu aniversário, quando descobri que
estava a um passo de nem sei o quê. Acordei, recebi os parabéns por
telefone de meus irmãos e minha mãe, que vivia em outra cidade.
Minha família nunca foi particularmente unida, e nunca tivemos o
hábito de realizar muitas comemorações. Além disso, cada um de
nós vivia em uma cidade diferente. No trabalho, onde eu estava


havia poucos meses, ainda não havia formado laços. Ou talvez não
fosse um sujeito tão simpático como gostaria, porque só fiz
amizades efêmeras. Mesmo no aniversário recebi somente
cumprimentos corteses, de praxe. Para evitar festas constantes que
perturbavam o desempenho profissional, a empresa decidira que as
comemorações deveriam se limitar a uma por mês, para
homenagear todos os aniversariantes de uma vez só.
Assim, naquele aniversário, terminei o expediente, «ias não queria
voltar para casa. Resolvi me dar um presente, já que não ganhara
nenhum. Fui a um shopping. Comprei um livro que queria fazia
tempo e uma camisa pólo. Devorei um bife grelhado com fritas, até
um pouco gorduroso. E resolvi comemorar com um doce -uma extravagância,
pois queria perder a barriga. Tenho predileção por
pudim, porque minha avó paterna, grande cozinheira, fazia um
delicioso, receita antiga, tradicional. Era muito afetiva, minha avó.
Mesmo não sendo a mesma receita, todo pudim tem aparência
semelhante aos dela, e me sinto imediatamente atraído. Também
sou doido por bombas de creme. Parado diante da vitrine, hesitei.
Qual comeria? Em seguida, resolvi: "Hoje é meu aniversário. Vou
querer os dois".
Fui até a caixa e pedi a ficha. Uma senhora simpática imprimiu o
tíquete, sorrindo:
-Já vi que gosta de doces.
-Estão com um jeito delicioso, e perdi a vergonha de ser guloso.
-A gente tem que aproveitar! -ela concluiu, com mais um sorriso.
E me entregou o troco.
Já com o tíquete na mão, dei alguns passos em direção à vitrine.
Virei-me. Voltei e senti uma enorme vontade de contar:
-Sabe, hoje é meu aniversário.
A mulher me olhou surpresa. Ficou constrangida. Abaixou o rosto e
comentou:
-Ah, é?


Rapidamente, voltou a contar o dinheiro do caixa. Afastei-me, sem
jeito. Peguei os doces e fui comê-los sozinho em um banco da praça
de alimentação, mas sem sentir seu sabor. Havia um vazio no meu
estômago que alimento nenhum poderia suprir. Eu me sentia
envergonhado. Quase implorara por uma palavra de conforto. Por
um sorriso e um parabéns. Não esperava mais nada, a não ser um
contato gentil. Minha necessidade humana foi demais para a
mulher acostumada a palavras rápidas, eventuais, sem exigência de
emoção. Ela se assustara.
Voltei para casa. Meu cachorro estava no portão, à espera. Não
tinha nenhuma idéia do significado de um aniversário, no entanto
podia sentir minha necessidade de afeto -os cães são mestres em
desvendar a emoção do dono. Sentei-me na sala, e ele veio até mim,
encostou a cabeça em meu colo mais intensamente do que fazia
todos os dias. Eu o ergui, abracei e disse, como diria a partir de
então, muitas vezes:
-Ah, meu cachorro. Somos só nós dois!
Nos dias seguintes, cheguei à conclusão de que não podia continuar
vivendo com tão pouco contato humano. Thomas Morton foi um
monge trapista -ordem religiosa na qual os membros não podem
falar entre si, pois fazem o voto do silêncio -que escreveu vários
livros sobre sua experiência. O mais famoso tem o sugestivo título
de Nenhum homem é uma ilha. De fato eu não era uma ilha, e talvez
não suportasse os abismos de tristeza a que a solidão poderia me
levar. Qual seria o próximo passo, depois de implorar por uma
palavra amiga da mulher da doceria? Abraçar o segurança do
condomínio e chorar no seu ombro? Fazer confidências para o
carteiro?

Resolvi me esforçar na outra direção. Conhecer gente. Roberta, uma
antiga companheira de trabalho, morava com o marido e os filhos
em um condomínio próximo. Telefonei no fim de semana seguinte
para dizer que morava por perto e gostaria de visitá-la. Ela me
convidou para um churrasco. Passei uma tarde rindo, falando dos


antigos tempos de trabalho, da vida profissional -ela estava em
uma fase de reavaliação, após deixar um emprego de muitos anos.
Também gosto de cozinhar, e de repente várias pessoas se
convidaram para comer em casa no sábado seguinte.
-Não vou dar conta sozinho -respondi.
-Eu ajudo -ofereceu-se uma voz feminina.
Era Tati, uma amiga da minha amiga. Já ouvira falar dela, mas só
fui apresentado naquela tarde. Sabia que fora casada e tivera um
filho no final da adolescência. Para minha surpresa, morava no meu
condomínio. Tinha 30 e tantos anos, estava um pouco fora de peso,
com o rosto redondo e simpático, e parecia cheia de energia.
-A Tati cozinha muito bem -disse Roberta.
Em alguns minutos, combinamos tudo. Tati me ajudaria com a
comida. No sábado, chegaria antes dos outros. Trocamos endereço e
telefone.
-Vou levar uma sobremesa -completou ela.
Quase suspirei de alívio. O sábado seguinte estava garantido.
Não era só isso. Bem, um homem reconhece sinais. A mulher
também. Ninguém precisa ser explícito, porque nos pequenos
detalhes tudo é sinalizado. No almoço, Tati foi acompanhada
apenas pelo filho, Guel. Portanto estava sem ninguém. O rápido
oferecimento de ajuda parecia também um sinal de "podemos nos
conhecer". Era uma situação comum. Homem sozinho,
aproximando-se da maturidade, conhece mulher na mesma
situação, e se aproximam.
Tati não era bonita, mas muito simpática. Gestos ágeis, sua voz às
vezes se tornava aguda. Ao conhecê-la, fiz um esforço enorme para
não comparar seu jeito com as maneiras delicadas, o tom de voz
suave, os olhos profundos de quem eu perdi. Precisava tocar a vida
para a frente. Nem todo relacionamento tem que desembocar em
casamento. Pode ser um companheirismo, um envolvimento. É bom
ter alguém para sair, para estar junto, para curtir os bons momentos.
Tati dera o sinal verde.


Fiz a barba para esperá-la no sábado seguinte. Botei bermuda e
camisa pólo, mas me preocupei em combinar as cores e assumir
uma aparência mais apresentável. Curioso, Uno observou meus
preparativos:
-Vou receber uma amiga, Uno, e acho que vai ser muito bom.
Sua expressão era de dúvida. Expliquei.
-Você é um bom companheiro, Uno, mas preciso de algum
relacionamento humano. Aposto que você também vai gostar dela.
Ele ergueu o rabo e retirou-se com dignidade para o jardim. Deitou-
se embaixo de uma árvore, decidido a não participar de coisa
alguma.
Tati chegou pouco depois. Da porta senti seu perfume. Trazia uma
torta de maçã.
-Fiz pra gente.


-Entra, entra.
De longe, ela e meu cachorro se observaram algum tempo.
-Tati, este é o Uno. Uno, esta é a Tati.
-Adoro cães. Tenho cinco! -ela ciciou cheia de ternura.
-Viu só, Uno, ela gosta de cachorro!
-Vem cá, vem, vem! Pst, pst, pst!
Tati foi até ele. Agachou-se bem perto, sorrindo.
-Ah, que coisa mais linda.
Uno ergueu-se e virou de costas. Ergueu o rabo e colocou o traseiro
no nariz de Tati. Em seguida, afastou-se. O sorriso dela desabou.
-Ih, ele é arisco. Amenizei:
-Só no começo. Depois pega amizade. É um cachorro muito afetivo.
Tati observou duvidosa o focinho de Uno, que aparecia no meio da
folhagem onde se escondera. Ela decidiu não radicalizar, já
percebendo a importância de Uno na minha vida:
-Adoro cães! -frisou mais uma vez.
-Vamos fazer a salada? -perguntei.
Enquanto fomos para a cozinha, tive a inesperada sensação de que
meus namoros dependiam da aprovação de meu cachorro!



4

Durante todo o almoço, Uno permaneceu arredio, enquanto eu e
meus convidados ríamos na varanda. Tati ainda tentou aproximar-
se de novo, mas ele afastou-se orgulhosamente de rabo em pé.
-Sabia que os huskies foram uma das últimas raças domesticadas?
Ainda são muito próximos dos lobos. -comentou Aluísio, marido
de Roberta.
-O Uno tem um jeito selvagem. Uiva e não late. -concordei.
Falamos sobre cães, já que todos tínhamos algum. Roberta havia
ganho um filhote de são-bernardo. Estava apaixonada por ele, mas

o marido não.
-Quando crescer não vai caber no quintal -resmungava.
-A gente dá um jeito.
-Você não estava falando em mudar pra um apartamento?
Minha macarronada foi aplaudida. A sobremesa de Tati, mais
ainda.
-Minha irmã sempre cozinhou muito bem! -afirmou Roberta.
Mais tarde, Tati deu mais uma dica:
-Agora você precisa retribuir a visita -murmurou docemente.
Respondi à altura:
-Basta você me convidar para jantar.
-Quarta-feira?
Na noite marcada, após comer a ração, Uno preparou-se para
assistir à televisão.
-Hoje tenho um compromisso! -expliquei.



Ele me encarou como se eu tivesse dito algo inacreditável. Suspirei.
Sentei-me na varanda e botei sua cabeça nos joelhos. Cocei-lhe as
orelhas.
-Uno, você precisa entender que humanos e cachorros são muito
diferentes. Para você que é cão, tudo é mais simples. Se quer
carinho, você deita de patas para cima. Dá leves ganidos pedindo
atenção e alguém vem coçar sua barriga. Eu gostaria de ser assim.
De ter coragem de me aproximar de qualquer pessoa, até numa
festa, e me oferecer de patas para cima. Mas não posso. Nós somos
complicados. É preciso conhecer alguém, fazer charme, perguntar o
signo, de qual filme gostou, que prato prefere... E aí quem sabe ela
me deixe ficar de patas para o ar. Você tem que compreender, Uno...
Eu sinto... sinto uma enorme necessidade de carinho, para não falar
de outras coisas.
Ele me ouviu atentamente, porém continuou com o mesmo olhar de
dúvida. Não tiro sua razão. Às vezes eu também tenho dificuldade
de entender o comportamento humano, principalmente no que se
refere à vida amorosa.
Botei uma camisa branca, um jeans novo. Traje muito estudado, mas
cuidadosamente casual, planejado centímetro por centímetro para
causar boa impressão. Ao passar perfume, observei meu rosto no
espelho, sem expressão, sem alegria. Como se eu fosse ao médico e
não a um encontro amoroso. "A vida tem que continuar", decidi.
Com os tênis na mão, caminhei até a sala. Sentei. Meu maior desejo
era telefonar dando uma desculpa, ficar em casa. Mas não podia.
"Tenho que lutar contra mim mesmo! Reunir forças!"
Ouvi os passos leves de Uno, que entrara na casa. Agarrei-o pelas
orelhas.
-Só vou jantar, ter uma noite agradável. Posso? No seu olhar se
acentuava a reprovação.
-Bem, goste ou não, Uno, eu vou. Você já teve sua ração, eu ainda
não comi a minha. É só isso que vou fazer, receber minha ração. E
talvez abanar o rabo. Alguma coisa contra?


Suspirei:
-É uma estratégia para sair do poço, meu cachorro. Conhecer
alguém, sair, cortar bolo no aniversário, botar bola em árvore de
Natal e abrir presente no Dia dos Namorados. O.k., você tem sido
um grande amigo, e tê-lo aqui tem sido muito bom. Mas eu preciso
de companhia humana. Ter alguém para dividir uma pizza.
É fato. Cachorro entende tudo o que a gente fala. Não simplesmente
as palavras, mas os sentimentos e as emoções. Sua expressão me
dizia: "Uauuuuhhhaaa... você é mesmo um humano complicado. Ela
é como um osso que você quer morder".
-O.k., Uno, pense você o que quiser. Eu vou. Você não é meu
pai, não é minha mãe, não é meu irmão. É um cachorro e pouco
sabe dos humanos.
"Vá, vá! Mas depois não venha ganindo procurar consolo."
Ergui-me. Abri a porta. Uno saiu para o jardim atraído pelo grito de
uma coruja. Peguei uma garrafa de vinho e caminhei até a casa de
Tati. Todas as vantagens desse novo relacionamento gritavam
dentro de mim.
-Ela mora perto, o que já facilita as coisas. É separada,
independente. Não vou ter que assumir compromisso, pelo menos
de cara. E cozinha bem.
Eu sou um sujeito facilmente seduzido pelo estômago.
Era uma casa pequena e confortável, com um jardim cheio de flores.
Procurei a campainha. Imediatamente, iniciou-se uma sinfonia de
latidos estridentes. Acompanhada por gritos de Tati.
-Parem! Parem!
Os latidos só aumentaram. Senti uma onda de perfume. Era Tati,
que veio abrir o portão, seguida por cinco bolas de pêlo que
saltitavam em torno, ainda latindo.
-Entre, entre! Eles não mordem.
Um cãozinho atirou-se na barra da minha calça. Seus dentinhos não
rasgaram o jeans, mas todos ficaram ainda mais nervosos..



-Desculpe, este aqui tem mania de morder as visitas, mas é exceção.


Pare, Xico, pare!
Agarrou o selvagem no colo. Os outros corriam em torno de mim,
latindo sem parar.
-Entre, entre, eles latem assim só no começo. Depois se acostumam.
Na sala, duas velas quadradas estavam acesas sobre a mesa de
jantar. Sofás estampados com flores, cortinas idem, almofadas...
-E o Guel, seu filho? -perguntei cautelosamente.
-Foi estudar na casa de um amigo.
Outro bom sinal de que o terreno estava livre. Da cozinha emanava
um cheiro delicioso.
-Vou servir lasanha, gosta?
-Adoro... Ah, o vinho! Entreguei a
garrafa.
-Bote em cima da mesa, vou prender o Xico. Fiquei sozinho na sala,
cercado pelos outros quatro que
agora me observavam silenciosamente. Dei um passo cauteloso em
direção à mesa. No mesmo instante, histéricos, os peludinhos
saltaram latindo em torno.
-Silêncio! -ordenei.
Latiram ainda mais. Dei dois passos e botei a garrafa na superfície
de madeira. Os quatro enlouqueceram. Se eu fugisse levando as
cadeiras não latiriam tanto. Tati voltou, aos gritos.
-Parem! Quietos! Parem!
Voltei para o sofá. Os cãezinhos latiram mais um pouco, depois se
acalmaram.
-Como se chamam?


-O que está preso é o Xico, você já sabe. Estes são o Xaxá, o Mané, a
Olívia e a Estrela, porque tem essa man-chinha branca no alto da
testa.
-Fêmeas?
-Castradas. Os machos também.



Explicou a história. Tinha uma única cachorrinha, a Olívia. Quando
ela cruzou, nasceram cinco.
-Ia vendê-los, pretendia ficar com só mais um. Tinha acabado de
construir a casa e planejei botar armários na cozinha. Quando vi as
coisinhas lindas, peludinhas, não tive coragem de me desfazer.
Fiquei com todos, menos uma cachorrinha que dei para minha
prima.
Lembrei-me de meu irmão e minha cunhada. Mais uma que não
resistira ao poder de sedução canino!
-Ainda bem que você castrou. Senão já seriam uns trinta.
Rimos. Ela um tanto nervosamente.
-É... e o pacote de ração anda caro. Estou desempregada, sabia?
-Não, a gente não falou sobre isso.
-Nem vale a pena, já faz mais de um ano! Abro o vinho?
Acomodei-me no sofá. Um a um, os peludinhos deitaram-se em
torno de mim, Xaxá com a cabeça sobre meu colo.
-Viu só? Já são seus amigos! -disse ela voltando com duas taças
cheias.
Peguei a minha, brindamos.
-Saúde -ela disse.
-A nós! -respondi.


Trocamos olhares simpáticos.
-Então, você também adora cães.
-Já nasci cachorreira. Prefiro os pequeninhos. Observei-a com
desconfiança. Seria capaz de não gostar
do meu Uno?
-Eu adoro o meu husky.
-Ah, sim, huskies são lindos. Mas muito desobedientes. Só fazem o
que têm vontade.
Quase comentei sobre as pequenas feras que ela criava. Eram algum
exemplo de obediência? Achei melhor perguntar:
-Eu não conheço bem as raças. Qual é a deles?
-Schnauzer. Tão peludinhos!



Tremi. Se nosso relacionamento se estreitasse, eu teria que adotar os
peludinhos? Abdicar de Uno? Serviu salada, depois veio a lasanha.
-Só vou beber um pouquinho, comigo sobe depressa!
-Mas você falou que está desempregada... Conte mais. Deu um
rápido currículo. Fora diretora de uma grande
fábrica de relógios de parede. Vendiam para supermercados, lojas
de departamentos. Ganhava participação nas vendas.
-Fiz a casa com essa grana.
-E seu ex-marido não ajuda?
-Qual deles, o primeiro ou o segundo?
-O pai do seu filho.
-Ah, o primeiro! Não dá um centavo, nem pra ajudar nos estudos.
-Você não brigou?
-Ele também anda matando cachorro a grito. Que expressão
engraçada, não? Matar cachorro a grito...


Sua saga era parecida com a de muitos executivos. A fábrica fora
vendida para um grupo internacional. Na passagem, Tati não fora
absorvida.
-Nem liguei quando saí. Achei que seria muito fácil arrumar outro
emprego porque minha experiência na área é muito boa. Coisa
nenhuma. Cansei de distribuir currículos. Esgotei todos os amigos,
parentes e conhecidos que poderiam me apresentar alguém. O
problema é que já tenho 40 anos.
-Não parece -menti.
-Hoje em dia o mercado está cheio de jovens executivos com muito
gás. Depois de um ano fora, não estou mais otimista. Fica cada vez
mais difícil arrumar colocação.
Conversamos sobre as dificuldades do mercado. Ela sofria muito
com a situação, pois a irmã ajudava nas despesas. Sempre fora
independente. Mesmo durante o segundo casamento, com o dono
de uma empresa, muito rico, continuara a trabalhar.
-Que pretende fazer?



-Comecei a fabricar velas decorativas. Terminamos a lasanha. Ela
recolheu os pratos e botou
sorvete em duas taças.
-Estas aqui, você que fez? São lindas -elogiei para me fazer de
simpático.
-Gostou? Tenho muitas.
Levou-me até uma espécie de ateliê repleto de velas coloridas e
aromatizadas, realmente bonitas. Pegou uma das maiores e botou
na minha frente.
-Esta aqui tem tudo a ver com sua casa. Escolheu outra.


-Esta também.
Foi uma situação difícil, pois eu não sabia o que dizer. Era presente?
Devia agradecer com um "obrigado"? Ou ela estava me oferecendo
as velas para comprar? Perguntava o preço? Ou seria deselegante?
Fiquei constrangido.
-É mesmo. São lindas. Também gosto desta aqui. Mostrei uma
redonda. Tati reuniu as três diante de
mim. Sorriu, à espera das minhas próximas palavras. Ainda hesitei.
-Você... ahn... só vende para empresas... lojas?
-Ah, não. O pessoal daqui do condomínio também compra muito.
-Eu acho... bem... fico com as três, são mesmo muito bonitas.
Ela sorriu docemente. Embrulhou-as.
-Também adoro estas velas, são as mais lindas que fiz. Vou buscar
uma sacola para você levar.
Com um fio de esperança de que fossem presente, perguntei.
-Quanto é? Assumiu ar pensativo.
-Deixe eu calcular!
Oh, céus! Para saber o valor de três velas, apenas três, era preciso
uma calculadora? Anotou a soma em um pa-pelzinho e me
entregou. Perdi o ar. Custavam o mesmo que um casaco que eu
pretendia comprar! Mas era tarde para voltar atrás.
-Você acha que é muito?
-Não, não, são tão lindas. Legal. E assim me deixei ser tosquiado.



-Um café? -perguntou ela enquanto eu preenchia o cheque.
Sentamos no sofá com xícaras nas mãos, os cãezinhos acomodados
em torno.
-O Xaxá gostou de você. Ele não é assim com todo mundo. Prova
que é uma boa pessoa.
"E não sou um anjo, depois de pagar tanta grana por velas que nem
queria?", pensei. Apenas sorri:
-É que eu gosto muito de cachorro e os seus perceberam. Talvez
tenham sentido o cheiro do meu.
Passei a mão nos pêlos de Xaxá. É tão bom acariciar um cachorro!
Ele acomodou-se melhor no meu colo. Uma lufada de vento trouxe


o aroma das damas-da-noite.
-Adoro essa flor -comentei.
-Eu também.
-Você pensa em montar uma fábrica de velas?
-Não sei se vale a pena. A margem de lucro é pequena, porque a
parafina é muito cara.
"Ah, é? Nesse caso, quanto deveria custar uma vela? O preço de um
terno Armani?"
-Comprando parafina em quantidade não barateia?
-A concorrência é grande. Tem gente com preço muito baixo no
mercado porque compra de cemitério.
Eu pensara já ter ouvido de tudo nessa vida. Mas essa não! A máfia
da parafina?
-De cemitério?
-É, existem gangues que roubam a cera derretida das velas dos
túmulos, derretem e revendem a um preço muito baixo.
Olhei meu pacote com as velas, preocupado.

-Mas você...
-Não, sempre comprei parafina em representante comercial.
-Ah, bom.
-Agora arrumei um fornecedor independente. Tem um preço muito
bom.



-Estas velas são de cera de cemitério?
-Essas não. Imagine. Fique tranqüilo. Nem sei se o meu fornecedor
está nesse esquema de parafina raspada de túmulo. É melhor nem
fazer perguntas!
Oh, céus! "Nunca vou acender essas velas. Imagino a energia que
elas têm!"
-Um licor?
-Só o fundinho do copo.
Acomodei-me ainda mais enquanto ela me servia uma bebida
horrivelmente adocicada. Nossas mãos se tocaram.
-Que dedos pequenos você tem! -comentei.
Nada melhor que um elogio para iniciar um contato físico. Peguei
sua mão. Ela sorriu, meio sem jeito. Mesmo depois de vários
casamentos, envolvimentos, namoros e rolos de todas as formas,
pessoas de 40 anos conseguem ficar tão constrangidas quanto
adolescentes.
-A sua também é pequena -ela comentou.
-Tenho mão e pé pequenos. Olha. É pouco maior que a sua.
Medimos. Fechei a minha sobre a dela.
-Só pé e mão -alertei. Ela riu maliciosamente.
-Você fica bonita quando ri assim.


Seu sorriso abriu-se ainda mais. Um homem sabe quando uma
mulher quer beijar. Curvei-me, um tanto lentamente. Ela manteve o
sorriso fixo, os olhos à espera. Senti um frio na perna. Um frio?
Um dos cãezinhos fizera xixi na minha calça.
Gritei surpreso.
-Ih, olha!
-Xaxá, vai ficar de castigo -ela gritou. O peludinho
fugiu para o jardim.
-Ele sempre faz isso, vivo lavando a capa desse sofá. Desculpe.
Olhei meu jeans pingando. Tentei lembrar se tinha outra calça limpa
para ir trabalhar no dia seguinte. Agora que minha situação



melhorara, era urgente achar uma empregada que viesse em casa
todos os dias. Disfarcei:
-Ah, não é nada. Só vou passar um pano molhado. Mas eu estava, é
claro, cheio de nojo.
-Tire a calça, eu lavo onde molhou.
-Mas...
-Se eu tivesse roupa emprestava pra você voltar pra casa. Mas aqui
somos só eu e meu filho, que é bem menor que você. Do seu
tamanho, só saia. Quer?
-Não, mas... tirar a roupa?
-Já cansei de ver homem de cueca.
Torci que minhas meias estivessem limpas. Tirei tênis e jeans. Fiquei
de sunga na frente dela, constrangidíssimo. Ela fingiu naturalidade.
-Já volto.
Foi para a área de serviço. Fiquei na sala, de pé, observando com
precaução os três peludos restantes. Com um jeans eu me sentia
seguro. Seria muito pior se algum se dependurasse com os dentes
em minha cueca. Ouvi a torneira aberta. Tati limpava o jeans. Em
seguida, um ruído na porta. Guel, filho de Tati, parou estarrecido na
sala:
-Que negócio é esse? Fui para
trás da mesa.
-Ah, é que...
Impossível que me ouvisse. Os cãezinhos quicavam em torno dele,
expressando sua alegria com latidos estridentes. Durante algum
tempo tentamos conversar aos berros, mas não nos ouvíamos. Tati
voltou com a calça na mão.
-Mãe, pode me explicar que história é essa? -gritou Guel, mais
estridente que os cãezinhos.
Tati gritou de volta.
-Você não ia ficar na casa do seu amigo?
-E você ia cair na farra, mãe?



Mais latidos. Gritos. Latidos. Era enlouquecedor. Arranquei as
calças das mãos de Tati.
-Ainda está molhada! -gritou.
-Tudo bem! -bradei.
Vesti-me apressadamente. Um cachorrinho mastigava a ponta de
um dos meus tênis novos. Quando tentei puxar, ele cravou os
dentes ainda mais profundamente.
-Não force! Será que você não sabe lidar com um cãozinho? -gritou
Guel.
-Ele vai acabar com meu tênis! -gritei de volta. Guel acariciou sua
cabeça. Ergueu dente por dente.
-Viu só? É só tratar com jeito que ele obedece! -latiu, ao me
entregar o calçado.


Observei a marca dos dentinhos pontiagudos na ponta. Sairiam?
Senti o tecido molhado na perna.
-Lavei bem o xixi -disse Tati. Guel, surpreso:
-Você mijou na calça?
-Não, o cachorrinho.
-Ah, bom. Vou comer alguma coisa. A sós com Tati,
tentei ser gentil.
-Vou indo. A lasanha estava o máximo. Foi uma noite ótima.
-Desculpe pela mijada.
-Que é isso? Quem tem cachorro sabe que às vezes... Guel voltou da
cozinha com um prato cheio de lasanha
fria.
-Se ele fez isso é porque ficou nervoso. Deve ter sido alguma coisa
que você fez.
-Eu?
-Filhote, vai comer lasanha fria? Deixa que eu esquento!
-Não, tudo bem, já é tarde -respondeu Guel com raiva.
Mais um segundo e me botava pra fora. Disfarcei mais um pouco.
De tanto sorrir já sentia cãimbra na boca.
-Bem, eu... é... eu vou... -Já?



Quanta falsidade! Ficar naquele clima?
-Acordo cedo, vou trabalhar. E... ah... Se você souber de alguma
empregada... Só estou com faxineira.
-Claro... Vou com você até o portão.


Caminhamos em silêncio.
-Adorei sua casa -comentei.
-Então precisa voltar.
-Claro. Eu ligo.
-Vou esperar.
Quando fui beijar seu rosto, ela virou de leve e toquei seus lábios.
Saí. Na esquina, virei o rosto e ela ainda estava no portão.
-Foi bom, apesar de ter sido obrigado a comprar as velas -concluí
para mim mesmo.
Em casa, respirei fundo. O ar da noite era maravilhoso. Quem mora
longe do centro sabe do que estou falando. A casa toda exalava paz.
Para minha surpresa, durante todo o encontro, eu não pensara no
meu amor perdido. Senti-me até culpado, mas em seguida refleti:
"Esteja onde estiver, ela quer me ver feliz, seguindo minha vida!".
Olhei o céu, vi uma estrela.
-Talvez seja você, cuidando de mim aí de cima!
O silêncio era espantoso. A solidão total. Nem os pequenos ruídos...
Percebi que faltava alguém.
-Uno, Uno!
Dentro de casa não estava, pois deixara a porta trancada. Procurei
no jardim. Acendi as luzes. Procurei. Tudo vazio. Os portões da
frente e do fundo continuavam fechados.
Mas meu cachorro não estava mais lá. Uno havia
desaparecido.



5

Abri o portão do fundo, que dava para a reserva florestal. Chamei:
-Uno, Uno!
Nem sinal. Logo além havia um pântano. Mato cerrado. Rio e
cachoeira. No negrume da noite seria impossível encontrá-lo. Refiz


o caminho até a casa de Tati. Luzes acesas. Bati. Ela saiu de roupão,
e percebi que estava muito mais gordinha do que parecia quando
bem-arrumada. Muito menos charmosa do que meia hora antes.
-Esqueceu alguma coisa?
-O Uno sumiu. Achei que podia ter me seguido até aqui, não sei,
entrado no seu jardim.
-Meus cãezinhos teriam dado o alarme. Mas venha. Palmilhamos
seu jardim, de maneira impessoal, quase
como estranhos. O encontro não programado nos distanciava. Uno
não estava lá. Confessei, angustiado:
-Tenho medo de que ele desapareça para sempre. Huskies não
sabem voltar para casa.
Tati sorriu docemente.
-Se ele sumir eu arrumo um cachorrinho bem peludo pra você!
Quase respondi: "E quem disse que eu quero?". Mas tentei ser
simpático:
-É que sou doido pelo Uno. Bem, vou indo.
-Até.
Trocamos um rápido beijo no rosto, sem o toque sedutor do
primeiro.
-Vou falar com o pessoal da segurança do condomínio.



Fugas de cães não eram incomuns. Eu e o segurança saímos no
carrinho de patrulha. Percorremos todas as ruas. Nenhuma pista.
-Deve ter se embrenhado na mata -refletiu o rapaz.
-É o que me preocupa -respondi tristonho.
Voltei para casa quase de madrugada. Sentei-me na varanda,
arrasado. Encarei a noite.
Amo os cães desde menino. Sou cachorreiro, como dizem. Joli era
um vira-latinha branco. Minha família vivia no interior, em um
sobradinho comprado com dificuldade. Alugávamos a parte de
baixo para um bar, uma lavanderia e uma livraria evangélica tocada
por duas missionárias, uma inglesa e outra sueca. Joli dormia no
meu quarto, era meu querido companheiro. Eu o amava. Mamãe o
soltava todos os dias para passear na rua. Depois voltava sozinho
para casa. Isso era comum na cidade onde eu morava. Joli era
conhecido no quarteirão, nunca atacava ninguém. Mas um dia
voltou da rua muito estranho. Quieto. Amuado. Na manhã seguinte
não estava no meu quarto. Fomos encontrá-lo no quintal, entre
poças de vómito. Fraco. Gania e soltava um líquido esverdeado pela
boca. Mamãe concluiu: -É veneno.
Havia gente que dava "bolinha" a cachorros. Ou seja, veneno
envolto em carne moída. Algumas faziam isso simplesmente porque
se irritavam com os latidos. Ou temiam mordidas. Foi terrível
assistir à agonia de Joli. Faltei na escola. Fiquei ao seu lado. Mamãe
levava água, que ele bebia com avidez. Ainda no finzinho da vida,
Joli lambeu sua mão, como se dissesse.
-Eu gosto de você!
E morreu. Foi colocado em um saco de estopa, e a última lembrança
que tenho é de seu pequeno corpo delineado pelo tecido grosseiro,
antes de ser levado embora.
Dali em diante mamãe resistiu a várias das minhas tentativas de
adotar um novo cachorro. Cheguei a trazer uma vira-latinha
castanha e magricela, chamada Patativa. Foi rapidamente doada a
uma amiga da família. Finalmente aceitamos ficar com uma


cadelinha já crescida: Julieta, de remota origem pequinesa. Nossa
empregada da época, dona Irene, se irritava muito com o nome.
-Cachorro não pode ter nome de gente! -dizia.
-Gente é que não pode ter nome de cachorro! -eu respondia.
Metido a intelectual, eu batizara a cachorra com o nome da heroína
de Shakespeare. Julieta era alegre. Certa vez foi capturada pela
carrocinha. Quando cheguei em casa, mamãe havia desistido de
procurá-la.
-Agora não adianta mais -disse.


-São três dias de carência -insisti.
Eu não podia faltar na aula, e tinha trabalho em grupo no dia
seguinte. Não podia faltar. Mamãe resgatou Julieta, que voltou de
rabo abanando. Mais tarde, comentou:
-Nem sei como pude pensar em não ir. O que me deu?
A cadelinha me acompanhou por vários anos. Éramos muito
ligados. Logo no início de minha vida adulta, fui viver nos Estados
Unidos. Passei dois anos fora. Quando voltei, Julieta me recebeu na
porta, com latidos de felicidade. Só de ouvi-la me senti em casa.
Mas três ou quatro dias depois, ao chegar de noite, após um dia
procurando emprego, mamãe me recebeu na porta arrasada.
-A Julieta foi atropelada. Saiu de casa como todos os dias para
passear. Um carro vinha a toda na curva, ela foi pega em cheio.
O pequeno corpo já fora levado. Eu me senti despedaçado.
-Ela sentia saudade de você -disse mamãe. -Às vezes, quando você
estava fora, ficava parada diante da porta esperando você chegar.
Dias antes da sua volta, ficou agitada, alegre, como se soubesse que
você estava vindo. Dá a impressão de que aguardou você voltar
para morrer.
Mais uma vez, prometi nunca mais ter cachorro. Cumpri a
promessa por um bom tempo. Quando fui viver sozinho, tive
Brigite, uma fêmea de pastor alemão capa preta, de origem
duvidosa. Nunca cresceu o suficiente, talvez por falta de comida
quando filhote. Quando chegou era tão pequena que parecia um



rato. A casa onde eu vivia na época tinha um quarto de empregada
vazio. Antes de sair, forrava o chão com jornais, botava água e
ração, e a deixava trancada enquanto trabalhava. Ao voltar, limpava
tudo -quanta sujeira! -e passava algum tempo com ela no colo,
conversando. Também cozinhava para minha cachorrinha. O
veterinário havia exigido uma dieta especial, com arroz e cenoura.
Até crescer um pouco, seu único contato com o mundo fui eu.
Talvez por isso me adorasse. Se eu estava dentro de casa, ficava na
porta ganindo, e eu entendia:
-Querido! Querido!
Se eu sentava, pulava no meu colo. Brava, atacava quem se
aproximasse de mim. Às vezes me irritava.
-Pare de latir, Brigite!
Uma noite estava mais doce, mais calma. Imaginei:
-Essa pequena fera está melhorando.
No dia seguinte, amanheceu morta. Chorei sem parar. Depois, levei-
a ao veterinário.
-Quero descobrir a causa.
De tarde, o resultado: envenenamento.
Suspeito do vizinho, mas ele também tinha cães. Quem mais podia
ter jogado veneno no meu quintal para matar a pequena Brigite, que
nunca mordeu ninguém? Até hoje não sei. Mas não consigo
entender tanta crueldade.
Veio Tieta. Minha vida amorosa sempre teve muitos altos e baixos.
Na época, eu vivia um novo relacionamento. Um dia, uma cachorra
desgrenhada me seguiu na rua. Parei em casa, abri o portão e ela
entrou. Descobri pelas pessoas do bairro ser uma cadela muito
popular, que morava nas ruas. Ninguém sabia quem dera seu
nome, porém era

Tieta em homenagem não ao livro de Jorge Amado, mas à novela
nele inspirada. Tieta não me largava, dava a impressão de que
sempre vivera ao meu lado. Veio o Plano Collor. Para quem não
viveu aquele momento, eu explico. Para salvar o país da


hiperinflação, o presidente Collor congelou todas as contas
bancárias: poupança, investimento, conta corrente. Cada pessoa só
podia dispor de uma determinada quantia. Foi uma loucura. Gente
que havia vendido seu imóvel ficou subitamente sem nada. Empresários
não tinham como honrar a folha de pagamento. Eu estava
desempregado, e contava com minha poupança. Meu
relacionamento também começou a fazer água. Sozinho eu não
poderia manter a casa. Passei o contrato para uma conhecida e
mudei para um apartamento pequeno e mais barato. Na ocasião,
refleti: "A Tieta está acostumada à liberdade das ruas. Não vai
suportar um lugar tão menor". Eu estava errado, é claro. Os cães
não suportam ficar sem amor, o resto é detalhe. Deixei Tieta com a
nova inquilina. Sempre me arrependi. Minha situação financeira
melhorou em alguns meses. Eu teria conseguido mantê-la. Ainda
lembro do dia em que acordei morrendo de vontade de vê-la.
Peguei o carro e bati na porta de minha antiga casa. A inquilina me
recebeu, surpresa.
-Parece até que você adivinhou! A Tieta está tendo filhotinhos!
Fui até o quartinho dos fundos onde ela passava pelo parto, o
terceiro filhotinho nascendo. Todos com aparência de dobermanns, o
que já era suficiente para identificar o pai. O vizinho tinha um

dobermann.

-Tieta virou mamãe! -exclamei.
-Não se aproxime, ela pode morder! -disse a inquilina.
Estendi a mão e Tieta me lambeu. Nunca esqueci, pois ela superou o
impulso atávico de proteger a cria por causa do amor que sentia por
mim.
Meu arrependimento cresceu nos meses seguintes. Encontrei
antigos vizinhos, que comentavam:
-A nova dona não se importa com a cachorra. Deixa solta. A Tieta
vive suja, abandonada.
Assim que minha situação se estabilizou, voltei a namorar, a relação
consolidou-se rapidamente e logo dividíamos o mesmo teto.



-Quero trazer minha cachorra de volta -disse eu. Fomos até minha
antiga casa.
-Espero que você não se importe, mas eu queria ficar com a Tieta de
novo -expliquei.
-A Tieta morreu.
-Por que você não me ligou?
-Achei que não tinha importância.
Desde então prometi nunca abandonar novamente um cachorro.
Agora, na varanda, sofria pelo sumiço de Uno.
Há algum tempo fui a Israel com um grupo escolhido pelo governo
para conhecer o país. Para jornalistas e escritores, esse tipo de
convite é mais comum do que se pensa. Caminhávamos à beira da
praia, em Tel Aviv, quando apareceu um cachorro robusto, de corpo
quadrado e pêlo curto. Fiz sinal com os dedos.
-Vem, vem.


Aproximou-se. Essa é a vantagem dos cães. Eu não precisava falar
hebraico para nos entendermos. Acariciei sua cabeça, seu corpo,
rindo e brincando, com o rosto a um centímetro de seu focinho.
Ouvi uns gritos, mas não dei importância. Dois homens nervosos
pegaram o cachorro. Pareciam bravos. Não entendi muito bem a
reação. A guia explicou, apavorada.
-É um tipo de pitbull violento. Fugiu da coleira. Estavam gritando
de medo de que ele o atacasse. Poderia até matá-lo.
Tenho certeza de que a vontade de atacar nem passou pela cabeça
do cão. De longe, ele reconheceu um amigo.
Cães são capazes de sentimentos surpreendentes até mesmo para os
cientistas. Já li sobre experiências a respeito de seu comportamento.
Alguns costumam correr para a porta quando o dono está
chegando, mesmo antes de qualquer sinal ou ruído. Muitos
começam a esperar no instante em que o dono sai do escritório. O
curioso é que, em algumas experiências, mudou-se o horário de
saída do dono. Mesmo assim o cão foi para a porta exatamente no



instante em que o dono deixava o trabalho, como se a informação
fosse fornecida telepáticamente.
Um amigo meu era o rei da balada. Em certa época foi moda ir
dançar às 6 horas da manhã, em lugares que ficavam abertos até o
meio-dia, nos finais de semana, para quem não queria acabar a
noite. Ele chegava ao extremo de ir dormir às 2 horas da manhã e
acordar às 4 horas para retornar ao barulho. Um dia, adotou um
cãozinho vira-lata. Apaixonou-se. E adotou novos cães, todos
encontrados na rua. Outro dia me ligou. Queria saber se eu conhecia
alguém disposto a adotar um cachorro.
-Ele foi atropelado, mas eu o levei ao veterinário. Não anda direito,
mas está bem. Precisa encontrar um dono.
-Já encontrou -respondi. -Você.
-Eu não! Já tenho seis, não consigo cuidar de sete.
-Botar na rua de volta você não vai.
Dito e feito. Está com o cachorrinho até hoje. Faz alguns trabalhos
extras para pagar por ração e veterinário. Confessou:
-Não saio mais à noite. Na balada, tudo é sempre igual. A mesma
música, as mesmas pessoas... E eu preciso cuidar dos cachorros!
Minha amiga Vera, casada com Fúlvio, é uma ativista. Salva todos
os cães que encontra na rua. Leva a um veterinário, vacina, castra,
cuida. E depois trata de encontrar um dono. Dia desses catou dois
vira-latinhas de pêlo curto. Nada mais plebeu. Uma amiga
milionária ligou.
-Soube que você lida com cachorros. Estou querendo um.
-Só arrumo vira-latas. Tenho dois filhotes.
-Ah, mas eu queria com pedigree, pensei que...
-Você precisa conhecer os bonitinhos!
Duas carinhas de malandro. Irresistíveis. Foram adotados
imediatamente. Hoje vão semanalmente tomar banho numa clínica
de estética para cães a bordo de um carro com motorista particular,
sentados no banco de trás. Elegantíssimos.



Certa noite, Vera conseguiu parar uma viatura e convenceu os
policiais a resgatarem uma cadela que sofria maus-tratos em uma
favela. Encontrou-a amarrada por uma corda, magra e machucada.
Brigou com o dono da casa. Salvou a cadela e já lhe arrumou um
novo dono.
-Sou minha própria ONG! Não quero burocracia, verbas, coisa
nenhuma. Só ajudar os cachorros!
Há alguns meses encontrei seu marido em uma viagem de avião.
Fúlvio contou a aventura mais recente.
-Tínhamos três cães em casa, agora são quatro.
O último fora adotado quando uma vizinha se mudara para o
exterior.
-O cachorro foi entregue para a irmã da moça, mas ela não cuidava
bem. Quando Vera soube, ficou uma fera. Fomos até a casa dela e
exigimos levar o cachorro.
Um ano depois, a verdadeira dona voltou e quis resgatá-lo.
-Agora já é nosso, somos doidos por ele! -respondeu Fúlvio Vamos
fazer o seguinte: eu compro o cachorro!
Pagou o preço de dois.
-Sabe, às vezes eu acho que vou para o céu! -suspirou.
Quem ama os cães sabe do que estou falando. É um sentimento
profundo. Adoro agarrar suas patinhas. Abraçá-los. Encostar a
orelha em seu focinho. Eu poderia contar mil histórias, mas todas
terminariam falando do amor que se tem por um cão.
O desaparecimento de Uno me angustiava. Eu me sentia culpado.
Ele estava acostumado com minha rotina de chegada, e à noite
aconchegante ao lado da televisão. A quebra de rotina o abalara.
Talvez tivesse tentado ir atrás de mim. Quem sabe?


Naquela noite, cochilava e acordava sem parar. Despertei várias
vezes, sobressaltado, pensando ter ouvido uivos. De manhã bem
cedo, esquadrinhei o quintal com a esperança de vê-lo. Já haviam
me dito: huskies não sabem voltar para casa. "Nunca mais vou vêlo",
pensei.



Mas Uno era uma exceção. Ouvi um uivo no portão de trás. Corri.
Ele me esperava com o pêlo arrepiado e úmido, e uma estranha
expressão de culpa. Entrou mancando e arranhado em vários locais
do corpo.
-Você brigou, Uno?
Ergui os olhos. No alto do alambrado, preso no arame farpado,
havia um tufo de pêlos. Não vi de noite. Com a agilidade de um
gato, Uno tinha escalado a cerca. Talvez para me seguir. Emocionei-
me:
-Uno, que coragem! Você quis me acompanhar! Quanta ilusão!
Notei algumas penas brancas grudadas
em seus pêlos.
-Que estranho! Onde você arrumou essas penas? A expressão de
culpa aumentou. Suspirei.
-Que esquisito.
Mal me agüentava em pé, mas precisava trabalhar. Ainda levei meu
cachorro até a varanda, e tirei a sujeira grudada em seus pêlos.
Notei mais penas brancas, próximas ao pescoço, presas no pêlo
úmido, e espinhos. A cada espinho arrancado, ele tentava fugir. Um
husky é forte. Precisei de toda minha força para segurá-lo.
-Quieto, Uno, quieto!
Com uma tesourinha, cortei os pêlos mais embolados. Servi ração e
água.
-Eu tenho que ir, mas prometa não fugir de novo.


Observei-o novamente. Sua expressão era muito suspeita. De quem
tinha feito alguma coisa errada. E como!
Quando eu já me aproximava do portão, o síndico do condomínio
desembarcou de um carro.
-Preciso falar com você.
-Aconteceu alguma coisa?
-Seu cachorro comeu um dos patos do lago.
Caiu a ficha. Compreendi o mistério das penas brancas. O
condomínio tinha um lago com gansos e patos, com árvores floridas



e um lindo gramado em torno. Perto de casa e também próximo à
cerca que separa o condomínio da reserva florestal. Uno havia
escalado meu alambrado, ido ao lago e, segundo testemunhas,
abocanhado um pato. Atravessou a cerca de arame farpado e
escondeu-se na floresta para desfrutar da refeição.
-Uno, seu safado! Você comeu o pato?
Ele sentou-se em um canto da varanda, onde assumiu ar filosófico,
como se nada fosse com ele.
-Foi ele, sim, todo mundo conhece seu cachorro.
-Olhe, eu peço desculpas. Prometo que não vai acontecer
novamente.
-Tomara que não. Sabe que é proibido deixar cachorro solto no
condomínio?
-Ele fugiu. Vou botar mais arame farpado, duvido que atravesse
essa cerca outra vez.
-Ótimo.
-Bem, eu preciso ir trabalhar. Mas fique seguro de que...
-Tudo bem. Tome.


O homem me estendeu um papel.
-Que é isso?
-A multa.
-Que multa?
-Pelo pato! É regra. O dono do guloso paga o pato! Olhei o preço.
-Por esse valor podia ter levado meu cachorro a um rodízio de
churrasco.
-Tem que pagar, está na convenção do condomínio. Pode pagar
com o boleto do mês.
O síndico se despediu. Olhei para Uno, e desta vez a fera era eu.
-Veja só o prejuízo que você me deu. Não é um cão de guarda. Não
paga pela ração que come e ainda faz um banquete com o pato? É
assim que você trata seu dono?
Meu cachorro continuou admirando a paisagem, com o ar mais
inocente do mundo. Realmente, o assunto não era com ele.



6

Aconvivência tornou-se difícil, principalmente pelo hábito que Uno
desenvolveu, a partir de então, de se banquetear com os patos do
condomínio. Duas ou três vezes por semana eu ouvia uma gritaria.
Já sabia do que se tratava. Saía e recebia os seguranças indignados:
-Seu cachorro fugiu com outro pato na boca.
-Impossível. O Uno está aqui, tenho certeza. Deve ter sido outro
cachorro. Quer ver?... Uno! Uno! Uno? Ih... ih, acho que ele fugiu,
sim!
Sempre o mesmo roteiro. Caçava o pato, escondia-se na mata,
enchia a pança e voltava pelo portão dos fundos com ar de
inocência. Argumentei. Pedi que tivesse juízo. Clamei por uma
mudança de atitude.
-Uno, os patos são muito caros. Além disso, ossos de aves podem se
quebrar, furar seu estômago. Pense na sua saúde.
Nem se deu ao trabalho de uivar em resposta. Insisti:


-Leve minha questão financeira em consideração! Patos custam
caro. Principalmente estes daqui, porque o condomínio enfia a faca!
Se eu pedir um pato laqueado no restaurante chinês, será mais
barato. As multas vão me levar à falência, Uno!
Ele ia se deitar um pouco mais adiante. Cruzava as patas. Uma
sobre a outra, como um lorde. Eu ficava com as contas.
Huskies são caçadores. Vi muitas vezes Uno no gramado à espreita
de um pássaro. Deitava-se de barriga no chão enquanto a pobre
vítima ciscava. Arrastava-se até ela. Quando próximo, assustava o



pássaro com o movimento. O incauto voava. Esse era o truque. Uno
saltava sobre a ave em pleno ar, como se tivesse calculado o vôo.
Também tentei ter um gato. A faxineira trouxe um filhotinho
branco. Uma gracinha.
-Vamos fazer um se acostumar com o outro -propôs ela.
Concordei. Colocamos Uno e o gatinho frente a frente, na esperança
de que surgisse um rápido e amigável relacionamento. Zapt! Ele
saltou e abocanhou o filhotinho pela barriga. Bem esperto, o husky.
O gatinho tentava atingi-lo com as unhas, mas era impossível. Uno
correu. Eu voei atrás de um lado, a empregada de outro com a
vassoura e dois pedreiros que estavam consertando o telhado
também. Tentou fugir de todas as maneiras, mas conseguimos
cercá-lo. Ficou parado, com ar selvagem e o gatinho preso na boca.
-Cuidado, cuidado que ele pode morder!


Tomei coragem. Aproximei-me. Resgatei o gatinho de sua boca.
Sem dúvida, ele me amava: abri seus dentes e não me atacou!
Felizmente o gatinho estava vivo e a faxineira o levou de volta.
Traumatizado, mas sem ferimentos.
Agora, o problema dos patos era mais grave. O lago com os patos
era o maior orgulho do condomínio.
-Prenda Uno com uma corrente -aconselhou Tati.
-Se eu a prendesse com uma corrente, você gostaria? Ela murchou.
Nas últimas semanas, havíamos nos
aproximado bastante. Imaginei sua figura gordinha presa em uma
corrente.
-Se você não der um jeito, ele vai devorar todos os patos. Vai haver
uma revolta no condomínio!
Voltei a uma velha idéia:
-E se eu contratar uma empregada que passe o dia de olho nele?
-Tenho alguém para indicar.
Minha situação financeira andava melhor. Entrevistei a moça:
-Você gosta de cachorro?
-Lavo, passo e cozinho bem. Trivial simples.



-Ótimo. Mas preciso de uma babá de cachorro.
-Vivo com cães desde menina.
Foi contratada, com a condição de passar o dia de olho no
devorador de patos.
-Quando ele for escalar a cerca, ligue a mangueira e lhe dê um
banho. Assuste. Mas não o deixe fugir.
Logo se tornou comum ver a moça correndo pelo quintal de
esguicho na mão.
-Não, Uno, não! Volte!


Era uma heroína. Nas semanas seguintes meu cachorro só pegou
dois patos. E apenas nos horários em que eu tinha a
responsabilidade de vigiar. Em compensação, pegou horror da
empregada. Bastava olhá-la para se lembrar de jatos de água fria.
Pude respirar aliviado: as brigas com o condomínio acabaram.
O episódio dos patos estava praticamente superado quando Uno
criou uma situação ainda pior, por envolver a moral e os bons
costumes.
A vizinha da frente tinha uma cachorrinha de porte médio, pêlos
dourados, muito simpática. Com os filhos já crescidos, a dona
transferira todo seu amor materno para a vira-lata, que ela jurava
ter pedigree.
-Não é que ela tenha raça, raça... mas também vira-lata não é! argumentava.
Botava lacinho na cabeça da cachorrinha. Sininho no pescoço.
Escovava os pêlos. Seu maior orgulho era poder afirmar:
-Ela é virgem!
Boa parte dos donos não se preocupa com a vida sexual canina. A
não ser para cruzamentos, obtenção de filhotinhos etc. Nesse caso,
acontecia o contrário. A vizinha afirmava, orgulhosa:
-Ela é uma dama! Não facilita para esses cachorros brutos.
-Sei -eu respondia.
Que se pode dizer diante da loucura alheia? Ela só faltava botar a
cadelinha num convento.



Assim que o episódio dos patos se encerrou, percebi que a rotina de
Uno mudara novamente. Agora passava o dia olhando a rua,
aspirando o ar. Se eu abria o portão, se esgueirava para sair. Que
corpo flexível! Para impedi-lo, às vezes eu atirava a valise no chão e

o agarrava pelas patas traseiras. Ele se revoltava. Virava e prendia
minha mão com os dentes. Não me mordeu, nunca. Mas demonstrava
sua fúria. Inocentemente, eu pensei que queria ir atrás dos
gansos.
Dias depois, descobri a verdade ao ouvir uns berros na casa da
frente. Minha empregada chamou desesperada.
-Corre, o Uno tá lá na casa da frente! Saí às pressas.
O marido tentava expulsá-lo com o rodinho. A mulher segurava a
cachorrinha no colo, protegendo-a. Uno fugia do homem, mas
voltava em seguida, disposto a namorar a virgem.
-Seu cachorro entrou na nossa cozinha!
-Por pouco não pegou a Sonata!
Sonata era o nome da cadelinha. A vizinha quisera ser pianista
quando jovem.
-Uno, que história é essa?
Ele me encarou, como se perguntasse: "Acha que tem direito a uma
vida sexual só porque é humano e eu não, porque sou cachorro?".
Agarrei-o.
-Você vem pra casa! Agora!
Ele soltou todo peso do corpo no solo.
-Já disse, Uno, vamos para casa.
Tentei arrastá-lo pela grama. Ele se agarrava no solo com as patas.
Que paixão!
-É melhor levar a cachorra pra dentro -aconselhei.

-Eu levo, mas não adianta. Cães sentem o cheiro do cio de longe.

Antes de entrar, a vizinha avisou:
-Dê um jeito de manter esse selvagem no seu quintal. Se ele entrar
em casa outra vez, não respondo por mim.
Uno resistia. Argumentei.


-Ouviu o que ela disse? Venha comigo, é para o seu próprio bem.
Quem disse que ele me obedecia? Finalmente, eu o ergui à força.
-Agora você vem! -rugi.
Dei dois passos e ele começou a se contorcer. É incrível como um
cachorro pode ser forte. Usei todas as minhas forças para prendê-lo.
Berrava.
-Fique quieto! Quieto!
Mal consegui atravessar a rua. Atirei-o no quintal.
-Agora você vai ficar aqui! Aqui!
Uno correu para o portão. Tranquei com o cadeado. Tati veio jantar
comigo. Chegou com um pedaço de carne assada.
-É só esquentar. E faço uma salada.
-Ótimo -respondi.
Foi para a cozinha. Continuei na varanda.
-Você não vem?
-Não posso sair, estou tomando conta do Uno.
-Como assim?


-Se eu virar as costas, ele escala o alambrado, pula o muro da
vizinha e dá um trato na cachorrinha dela.
-Ah, mas se ela está no cio isso é normal. Cachorro é assim mesmo,
fica louco quando sente o cheiro.


-Ele parece mais interessado que todos os outros cachorros do
bairro. Já invadiu a cozinha da vizinha. E o pior: a cachorrinha é
virgem.
-O quê?
-A dona faz questão que continue intocada. Tati surpreendeu-se:
-A vizinha resolveu proteger a virgindade de uma cachorra?
-Isso mesmo. O nome da cadelinha é Sonata, imagine.
-Sonata?
-Tem medo de que o meu cachorro pegue a cadelinha e transforme
a Sonata numa sinfonia completa.
-Ih! E você vai ficar na varanda até acabar o cio?
-Tem alguma idéia melhor?



-E aquele quartinho de tranqueira nos fundos? Arrastamos Uno até

o quartinho. Revoltado, fugiu
umas duas ou três vezes. Tivemos que persegui-lo pelo quintal.
Arrastei-me na grama. Tati tentou seduzi-lo com um pedaço de
carne. O safado aproximou-se. Abocanhou o petisco e fugiu de
novo! Finalmente, exaustos, conseguimos trancá-lo.
-Melhor que fique preso até o fim do cio. Dura só de dez a quinze
dias.
-É... acho que vai dar certo. Vou tomar um banho e já volto.
Tomei uma ducha bem quente. Fiz a barba. Passei perfume. Os
sinais estavam lá, todos bem claros: visitinha noturna, comidinha...
Seres humanos não entram no cio. Contudo em alguns dias o
entusiasmo é maior. Essa era a noite!
Ela acendeu duas velas, das duzentas ou mais que me fizera
comprar nos últimos tempos.
-Achei essas velas.
Apesar da lembrança do desfalque, sorri.
-Ficam lindas. Na mesa, um vaso com uma flor recém-colhida do
jardim.
-O cheiro da comida está ótimo -eu disse.
-Ah, pensei em você aqui sozinho e achei que seria gostoso... Posso
servir seu prato?
Botou carne e salada. Nossas mãos se tocaram algumas vezes.
-Posso colocar uma música? O que você prefere?
-Escolha você.
Decidi por uma romântica. Comemos. Sorrimos.
-Vou pegar a sobremesa.
-Sobremesa?
Voltou com uma musse de maracujá. É uma receita deliciosa, mas
simples.
-Hoje você caprichou.
-Que é isso? Deixe eu pegar os pratos.
-Fique sentada. Eu pego.



Levantamos juntos. Estendi o braço e a trouxe até mim. Ela sorriu
com boca de quem quer mais. Beijei. Foi longo. Depois nos beijamos
novamente. Nossos rostos se afastaram alguns centímetros.
-Vou lavar os pratos -ela disse.
-Deixe, eu levo pra cozinha e amanhã a empregada lava.
-Mas vai ficar essa sujeira...


-Fique tranqüila. Só me ajude a guardar a travessa.
Rapidamente botou a travessa na geladeira. Eu a beijei
de novo.
-Preciso ir.
-Agora?
-Já tá tarde.
-É algum problema com seu filho?
-Não; imagine que justamente hoje ele foi dormir na casa de
uma amiga. Até já deixei ração para meus cachorrinhos, mas é que...
Adoro uma desculpa esfarrapada. Enquanto fingia não poder ficar,
dava todos os motivos para permanecer. Peguei a deixa.
-Você vai ficar aqui.
-E amanhã cedo?
-Está sem emprego. Pode ficar à vontade.
-É que....
Ela sorriu. Nos beijamos. Eu a puxei para o quarto. Outro beijo.
Caímos na cama, as carícias mais rápidas.
-Eu gosto de você -disse.
-Também gosto de você.
Nesse instante ouvi um uivo. De fato já ouvira uns gemidos antes,
mas disfarçara, pensando: "Já, já ele pára". Mas agora era um uivo
alto, prolongado. Parei o beijo.
-Que foi?
-O Uno.
-Está uivando assim porque ventou mais forte e ele sentiu o cheiro
da cachorrinha. -explicou Tati.
-E o que eu faço?



-Reze pra parar de ventar.
Beijamo-nos outra vez, mas já sem tanta tranqüilidade. Os uivos se
tornaram mais fortes.
-Ele vai acordar o condomínio todo.
-Quem sabe ele se cansa -insisti, esperançosamente. Ela se afastou
um pouco. Ouvi um uivo ainda mais
agudo, desesperado.
O vento aumentava. Dava para ouvir seu som nos galhos das
árvores.
-Quanto mais o vento soprar nessa direção, mais alucinado ele vai
ficar.
-Tinha que ventar logo hoje? -reclamei.
Mais uivos. Para variar, o vizinho acendeu as luzes.
-Daqui a pouco vão chamar a segurança -ela insistiu, já sentada na
cama.
-Fique aí. Vou dar um jeito. Já volto.
Botei uma camiseta, chinelo e saí. O vento congelava minhas
orelhas. Entrei no quartinho. Uno foi para um canto e me encarou
com expressão culpada.
-Vamos conversar, eu e você -expliquei. -Somos bons amigos, não
somos?
Silêncio. Bom sinal.
-O caso, Uno, é que é uma ocasião especial. Você sabe, eu e a Tati
estamos nos conhecendo. Ela trouxe um jantar -minha ração, você
entende -e vai dormir aqui. Você sabe como são essas coisas. Nós,
cães e humanos, temos alguma coisa em comum. Como a atração
entre os sexos.


Mais uma lufada de vento. Uno aspirou o ar. Ergueu o focinho e
uivou mais uma vez.
-Pare! Vamos conversar de homem para homem. Ou de cachorro


para cachorro, como preferir. Uno, o caso é que estou
acompanhado.



Seus olhos me fitaram atentamente.
-Vamos encarar os fatos. Há a questão do consentimento. No seu
caso não houve esse tipo de coisa. Você invadiu a casa. E a
cachorrinha tem uma dona que quer preservar sua pureza. Bem,
pureza é um conceito humano, mas acho que você me entendeu.
Então, vamos fazer assim, Uno. Você é um cachorro com pedigree.
Seu avô foi capa de revista. Muitas huskies charmosas de olhos azuis
se sentiriam felizes em ter filhotinhos com você. Se for paciente, eu
tratarei disso qualquer hora dessas. Agora trate de ficar calmo.
Deitadinho.
Humildemente, Uno acomodou-se melhor.
-Obrigado, meu cachorro!
Fiz um carinho no alto de sua cabeça e saí. Assim que fechei a porta,
ouvi um uivo ainda mais longo. O vento ficou mais intenso. Abri a
porta. Uno voltou correndo para o canto. Disparei:
-Tudo que conversamos não valeu? Ele ganiu.
-Seja um bom cachorro e fique quietinho.
Dei dois passos para a porta. Uivou. Virei. Silenciou. Tentei sair.
Mais dois uivos.
-Uno, você não me dá paz! Três longos
uivos seguidos.
Instantes depois, voltei ao quarto com Uno no colo. Tati me
esperava já embaixo das cobertas.
-Mas o que esse cachorro veio fazer aqui?


Botei Uno na cama.
-O único jeito é trazê-lo pra dentro. Comigo, ele fica quieto.
-E eu?
-Não se preocupe. Ele não morde. Só solta muito pêlo, mas amanhã
cedo você toma um banho.
-Acha que vou ficar beijando você na frente do cachorro?
-É... Eu também vou ficar constrangido.



Uno acomodou-se, com o corpo enrolado e a cabeça entre as patas.
Aparentemente, o meu quarto ficava fora da direção do vento. Ou a
nossa presença inibia os uivos.
Sorri, tentando ser caloroso.
-É uma situação especial, Tati, você entende?
-Não, não sei se entendo. Era nossa noite especial, eu vim aqui,
pintou um clima... Faz tempo que a gente anda se conhecendo e de
repente começou a rolar... E agora você bota esse cachorro na cama?
-Você também dorme com seus cãezinhos. E são cinco!
-Mas não dormiria se você estivesse lá. Mesmo porque eles têm
ciúme de mim. Iam morder o seu... Ah, deixa pra lá!
-Ai, meu Deus! Seria um risco. Bem, o importante é que você
entende.
-Vou pra casa.
-Não, fique aqui!
-Amanhã a gente conversa. Vestiu-se rapidamente.
Levantei-me.
-Vou acompanhá-la.


-Não precisa.
Seguiram-se três batidas furiosas: a porta da sala, o portão, a porta
do carro.
-Você não tem vergonha, Uno, de me botar nessa situação?
Inútil! Formando uma curva com seu corpo, já ressonava. Bem no
meio da cama, ainda me dificultou a entrada embaixo dos
cobertores.
Pior: acordei cedinho com os ruídos que fazia raspando a porta, já
toda riscada por suas unhas. A brisa, na direção do meu quarto,
trouxera novamente o cheiro do cio. Só havia uma solução: levei-o
para um hotelzinho.
-Preciso deixá-lo aqui até passar o cio da vizinha, digo, da cachorra
da vizinha, quer dizer, a vizinha não é uma cachorra, ela tem uma
e...



-Já entendi -comentou o veterinário. -Casos como o seu são
comuns. Quando o cio começou?
-Ontem, acho.
-Melhor esperar nove dias. O preço da diária é... Meu orçamento
dava para sete, no máximo. Abracei-o
e me despedi.
-É só por um tempo, querido, porque a situação está dramática.
Ele me respondeu com uma expressão magoada. De qualquer
maneira, Uno não estaria em casa por alguns dias.
-Agora é minha vez! -resolvi.
Na saída do trabalho comprei um buquê de flores e uma torta. Bati
na casa de Tati. Em meio à barulheira dos cãezinhos, Guel abriu a
porta. Fitou as flores, irritado.


-Não sabia que tinha combinado um encontro com minha mãe.
-Não marquei. Preciso falar com ela. Sentei no sofá. Depois de uns
quinze minutos, usados
certamente para se arrumar, Tati entrou. O filho trancou-se no
quarto.
-Flores?
Notei o meio sorriso. Botou o ramalhete em um vaso, sentou-se.
Ofereci a torta.
-Ih, hoje não fiz jantar. Estou de regime e...
-Fica tranqüila, se quiser a gente come um pedaço de torta e
conversa.
Meio sem jeito, serviu dois pratos.
-Adoro chocolate -ela disse.
Era a deixa para começar a conversa.
-Sinto muito por ontem. Mas é que... Acho que você entende.
-Claro que sim. Seu cachorro.
-Pois é. Meu cachorro. Sorri esperançosamente.
-Mas você também tem cães. É apaixonada por eles.
-Os meus cachorrinhos eu controlo. Boto no canil. Eles latem,
irritam, mas não acordam todo o condomínio.



-Huskies uivam.
-Os meus não escalam alambrados. Ou atravessam arame farpado.
-Sim, realmente o Uno é diferente. Especial.
-Você já contou quantos encontros deixamos de ter porque você
tinha que ficar com ele?


-Foram só duas vezes. Ele ficou doente e eu... Bem, quando eu era
criança tive um cachorrinho que morreu envenenado, depois tive
uma capa preta... Enfim, não quis deixar o Uno sozinho. Fiquei
preocupado.
-Tudo bem. Eu também não deixaria os meus. Mas o seu cachorro
é uma força da natureza. É pior que um furacão.
-Também não exagere.
-Ontem eu fiz jantar, me arrumei, achei que a gente estava se
entendendo e de repente estava com um husky siberiano no meio da
cama!
-Ele já está hospedado em um hotel.
-O fato é que eu nunca vivi um triângulo amoroso com um
cachorro.
-Você está exagerando.
-Estou?
-Vai ter ciúme de um husky?
-Não é bem ciúme. Ontem fui trocada por um cachorro.
-Foi uma crise.
-Será sempre assim. Você é doido por esse cachorro. Olhe aqui, eu
sei muito bem que você perdeu a pessoa que amava, que mudou
para cá num momento difícil e que o cachorro é seu melhor amigo.
Entendo. Mas e eu? Onde fico?
-Você está sendo irracional, Tati. Irracional.
-Você é que é irracional.
-Parece que o único racional é o cachorro.
-Agora você está perdendo a razão.


Os dois pratinhos com torta já abandonados. Ela decidiu falar:



-Sou franca. Você é um cara legal. Temos uma idade parecida,
gostamos de morar aqui, longe da cidade, a nossa conversa rola,
quando a gente começa não pára mais, enfim... Nem temos idade
pra disfarçar que estamos começando alguma coisa. Mas você vai
ter que decidir.
-O quê?
-Se prefere a mim ou o cachorro. Sem hesitar,
respondi:
-Fico com o cachorro.
Fugi antes que ela me atirasse a torta na cara.



7

O que tem que ser, será, diz a sabedoria popular, que mais uma
vez se mostrou correta. Na data marcada, retirei Uno do hotelzinho.
Veio no carro calmamente, até nos aproximarmos de casa. Nesse
momento, se agitou. Pulou na janela. Ganiu. Mexia o pescoço como
se quisesse me mostrar alguma coisa.
-Saudade de casa, Uno? -perguntei ingenuamente. Dirigi bem
devagar, enquanto tentava segurá-lo com
uma das mãos.
-Quieto, Uno, quieto!


Só então refleti que talvez não fosse exatamente saudade!
Alguém segura um husky enlouquecido de paixão pelo cheiro do
cio?
Sim, eu havia sido otimista demais com as datas. O tempo no
hotelzinho não fora suficiente! Arrastei Uno para o quintal. Já era
noite. Resolvi, apesar do rombo que provocaria no meu orçamento:


-Amanhã ele vai voltar pro hotelzinho.
Fora um longo dia de trabalho. Estava cansado.
-Esta noite fico de olho!
Botei a ração. Esquentei o jantar, que a empregada deixava em
panelas sobre o fogão. Ao me sentar para comer, ouvi um grito
injuriado na vizinha, seguido por latidos e uivos.
-Saia daqui, peste, saia!
-Ih! Sujou! -exclamei.
Corri para fora e constatei o drama. A vizinha uivava sentada no
jardim da frente, com a cachorrinha Sonata no colo. O marido
atirava jatos de água da mangueira sobre Uno, que resistia no
jardim.
-Que aconteceu?
-Ainda pergunta? -gemeu a vizinha -Esse seu cachorro
monstruoso atacou a minha queridinha. Foi só um minuto, um
único minuto, quando deixei a Sonata na cozinha e fui tomar um
banho. Ouvi um barulho esquisito, mas não me preocupei. Pensei
que esse safado ainda estivesse no hotelzinho.
-Tirei hoje, pensei que o cio tinha acabado. Nem sei como ele pulou


o alambrado, só ficou sozinho enquanto eu esquentava o jantar.
-Esse seu cachorro parece um gato! -disse o marido. -Eu vi
quando ele fugiu da outra vez. Sobe pelo arame como se estivesse
andando no chão! É o que deve ter feito. Escapou e entrou na nossa
cozinha, onde estava a pobre Sonata e...
-Quando eu entrei na cozinha, ela, ele, eles... Ah!
-Ih... Será que...



-Foi. -concordou o marido -Eles estavam fazendo o dó-ré-mi!
-Eu devia chamar a polícia -choramingou a mulher.
-Não é caso de polícia! Não se prende um cachorro por sedução argumentei.
-Mesmo porque, ao que tudo indica, houve
consentimento da outra parte. Agora a sua Sonata deve estar
grávida.
-Será?
-Dizem que basta uma vez. O jeito é a gente se conformar. De certa
maneira, viramos parentes.
Saí, arrastando meu cachorro, que, é claro, não pretendia deixar o
quintal por nada deste mundo.
-Você tem que tomar juízo, Uno!
Dali a pouco tempo a cadela já ostentava a barriguinha.
-Vou ser vovó -anunciou a dona.
Meses depois, nasceram três filhotes, bem peludinhos.
-Você é papai, Uno! Papai!
Ele uivou, feliz, como se tivesse acompanhado a companheira na
maternidade.
Quase fiquei com um. Machos, porém, costumam brigar entre si. É
uma questão territorial. Além disso, a vizinha tinha outros planos:
-Estou louca por eles. Até já têm nomes: Beethoven, Mozart e
Vivaldi.
-Quem sabe na próxima ninhada venha alguma fêmea e você possa
homenagear as personagens de ópera: Carmem, Tosca... -comentei.


-Não haverá próxima ninhada -garantiu a mulher. -Minha Sonata
não vai cair nas patas de nenhum outro cão.
Observei a cadela dando de mamar aos três filhotinhos de uma só
vez, encantada com a maternidade. "Tem dona que é cega!", pensei.
A vida estava melhor. Fui promovido a diretor de redação de uma
das revistas da editora. Salário bom. Nunca mais encontrei Tati.
Evitei visitar sua irmã. Saía com meus amigos jornalistas. Oferecia
churrascos nos fins de semana. Iniciei uma terapia.



-O tempo passa e eu ainda sinto falta da pessoa que perdi,
continuo preso nas mesmas emoções, a tudo que aconteceu!
-Cada pessoa tem seu tempo -explicou Vicente, o terapeuta. Algumas
são rápidas, outras demoram muito para se desligar de
uma experiência. Não há certo ou errado.
-Minha única relação afetiva estável é com meu cachorro!
-Dizem que quem não consegue gostar de um animal será incapaz
de amar outra pessoa. Não seja severo com você mesmo, viva seu
próprio ritmo.
Meditava sobre meus sentimentos. Como se esquecer fosse trair.
Apesar da dor, da saudade, eu tentava manter a lembrança a mais
viva possível. E a cicatriz continuava aberta. Desde criança, ouvia
dizer que o amor é único. Que deve ser doado a uma só pessoa.
Perder alguém era o mesmo que encerrar a vida afetiva. Com o
tempo, porém, comecei a pensar que talvez fosse diferente. A gente
ama a família, os amigos... e pode amar outra pessoa, mais uma vez,
e outra e outra! O coração não é um loteamento dividido em
terrenos onde cada um toma posse do seu pedaço. E que depois fica
lotado, com terrenos grandes e pequenos, dependendo do amor que
se dedica a cada um. Não. O coração é um mundo. É enorme, e
capaz de abrigar muitos amores. Cada pessoa que chega tem o seu
lugar, porque a capacidade de amar é infinita. Só que, naquele
momento, as portas do meu coração estavam fechadas, e eu não
tinha a chave para abri-las.
Precisava de tempo. Do meu tempo. Teria que ter paciência. Esperar
que as portas se abrissem e eu pudesse receber um novo
sentimento.
Enquanto isso, tinha meu trabalho, meus amigos e meu cachorro.
Assim, não procurei Ta ti por um bom tempo. Acabamos nos
encontrando num supermercado meses depois. Ela me viu de longe
e acenou:
-Oi!
-E aí, tudo bem?


Ao seu lado, um senhor alto, de cabelos grisalhos e jeito sério.
-Este é o Jean -apresentou. Estendi a mão. Ele sorriu secamente.
-A gente vai dar um churrasco sábado -ela disse. -Se quiser
aparecer...
As pupilas do homem faiscaram.
-Já tenho um compromisso -disfarcei, -Bem, eu vou indo.
-A gente também já vai. Até!


-Claro. Até!
Em casa, olhei-me no espelho. Comparei. Seria parecido com aquele
senhor de cabelos brancos? Não, tinha poucos fios grisalhos. E o ar
definitivamente mais bem-humorado. Não me senti exatamente
trocado. Mas era estranho encontrar Tati com aquele homem,
namorando. "A vida segue", refleti.
Talvez nunca mais a tivesse visto se não fosse por Uno. Sempre tive


o hábito de escrever até de madrugada, principalmente nos fins de
semana. Escolhi a carreira de jornalista por necessidade de
sobrevivência, mas ainda sonhava com meu livro. Recentemente
havia sido convidado a escrever crônicas para uma revista de
grande circulação nacional. Foi uma oportunidade maravilhosa
porque, semana sim, semana não, tinha que pensar em novos temas,
trabalhar o texto. E me tornei mais disciplinado. De noite, botava o
pijama e sentava para escrever de frente para a varanda. Certo
sábado, estava no meio de um texto quando ouvi um uivo
desesperado e, em seguida, uma série de ganidos cheios de
sofrimento.
-Uno? -levantei-me.
Ele aproximou-se da porta-balcão mancando, parou na minha frente
e ergueu o focinho ganindo por ajuda. Na sombra da varanda
estava quase irreconhecível; seus contornos indefinidos pareciam os
de um monstro. Olhei melhor. Que horror! Focinho, cabeça, pêlos,
tudo estava coberto por um emaranhado de espinhos. Tantos que,
no escuro, o faziam parecer um personagem de filme de terror.
Durante um instante não entendi o que acontecera.

Em seguida pude perceber do que se tratava. Já ouvira falar de
outros casos na vizinhança.
-Você atacou um ouriço!
Aproximei-me delicadamente. Coloquei a mão em um espinho para
tirar. Ele deu um grito quase humano e afastou o focinho. Percebi
que estava bem preso. Peguei um solto em seu pêlo para verificar.
Era impressionante.
O espinho de um ouriço é uma espécie de agulha de osso grossa e
rígida, muito mais forte do que jamais imaginei. O pior: possui
pequenas ranhuras que facilitam sua entrada, mas que rasgam a
pele quando o espinho é puxado, provocando mais feridas. A força
do ouriço para expeli-los também me impressionou: alguns
atravessavam o focinho, até o interior da boca. A cada instante
penetravam ainda mais. Espalhavam-se por todo o corpo. O rosto
concentrava o maior número, quase impossível contar quantos ao
todo. Era óbvio o que sucedera. Um ouriço entrara no quintal vindo
da reserva ao lado do condomínio. Atacado pelo husky, defendera-
se soltando todos os espinhos de uma só vez, numa verdadeira
explosão.
Meu husky sofria desesperadamente.
Eu conhecia um veterinário em um bairro próximo. O consultório
era em sua casa. Rezei para encontrá-lo, apesar de serem 11 horas
da noite.
-Posso atender, mas tem que trazê-lo até aqui, onde tenho tudo que
é necessário.
Peguei a coleira. Aproximei-me. Uno esquivou-se, gemendo.
Estendi a mão. Uivou alto. Seria difícil colocar a coleira em um cão
cheio de espinhos. Impossível dirigir o carro até o veterinário com
um cachorro agitado, se contorcendo e gemendo. E se pulasse sobre
a direção? Só havia uma opção: liguei para Tati.
-Preciso de ajuda.
Por mais irritada que ainda estivesse comigo e Uno, ela amava os
cães. Não hesitou.


-Vou agora mesmo. Conseguimos colocá-lo no banco de trás de
meu carro.
Sentei-me a seu lado. Ela dirigiu enquanto eu tentava acalmá-lo
docemente. Mantinha a voz em tom sereno para que não ficasse
mais assustado.
-Fique tranqüilo, amigão, já vai passar.
Tentei imaginar o que passava por sua cabeça. Certamente ele não
entendia aquela saraivada de espinhos. Vivia uma experiência
traumática, terrível. Ao mesmo tempo era incrível como confiava
em mim. Ao sentir dor, viera me procurar, implorando por ajuda.
Mesmo agora no carro, ganindo baixinho, seus olhos gritavam que
eu era sua única esperança.
-Ah, meu cachorro, fique tranqüilo, já estamos chegando.
Paramos em frente à clínica. O veterinário me ajudou a carregá-lo
até o consultório.
-Segurem enquanto amarro as patas.
Coloquei a mão sobre o alto da sua cabeça -o único local livre de
espinhos.
-Calma, Uno, calma.
Arrasado, ele gania baixinho. O veterinário aplicou a anestesia.


-Se não dormir, a dor da retirada dos espinhos será insuportável.
Aos poucos sua respiração se tornou mais leve. O veterinário pegou
um alicate.
-Vai demorar um pouco. Se quiser esperar lá fora, ler uma revista...
Era impossível. Queria permanecer por perto. Coloquei a mão sobre
a coxa de Uno. Parecia tão frágil sedado! Ao meu lado, Tati
observava. De alicate na mão, o veterinário puxou o primeiro
espinho. Depois o segundo, o terceiro... Alguns haviam penetrado
bem fundo. Muitos tinham atravessado o pêlo espesso do dorso e se
cravado na pele. A boca era o local mais atingido (provavelmente
Uno tentou morder o ouriço). Foi exaustivo. Durante duas horas e
meia o veterinário arrancou os espinhos e estancou o sangue. Tati
permaneceu ao meu lado.



-É melhor ele passar um dia internado em observação.
Concordei. Deixei meu cachorro adormecido, com o coração
apertado.
Levei Tati para casa. Era madrugada.
-Um café? -convidou.
-Ah, eu... não quero incomodar.
-Não tenho hora para acordar. Esqueceu que estou desempregada?
Entrei.
-Só não podemos falar alto porque meu filho está dormindo. Tem
aula amanhã.
Se era para evitar barulho, foi inútil. Os cãezinhos, presos, fizeram
um escarcéu quando entramos. Depois de alguns gritos de silêncio,
nos refugiamos na cozinha. Ela ligou a cafeteira elétrica, serviu duas
xícaras.
-Obrigado. Nem sei o que faria sem você, Tati.
-Não foi por você, foi por seu cachorro.
-Eu sei. Você andou bem irritada comigo.
-Fiquei brava com você, sim, que botou o husky no meio da cama,
justo quando... Deixe pra lá. Eu adoro cachorro. Acha que teria
cinco se não gostasse?
Sorriu, prosseguindo:
-Você é um bom sujeito. Quem gosta de cachorro tem uma coisa
especial. Mas você é um pouco doido, nunca vi ninguém tão
apegado a um amigo peludo. Depois de conhecer você, entendi
aquelas histórias de velhos norte-americanos que deixam a herança
pra um bicho de estimação.
-Perdi muita coisa na vida, Tati. Sempre fui um sujeito meio
sozinho, mas de uns tempos pra cá estou mais.
Resumi minha história em rápidas palavras. Tive uma mãe ausente.
Hoje entendo melhor sua distância: trabalhava fora em uma época
em que as mães eram donas de casa. Do ponto de vista de um
menino, não era fácil passar o dia sozinho enquanto os outros
tinham as mães à disposição para fazer bolos, brigadeiros, refrescos.



Quando eu já era quase adolescente, nasceu meu irmão. Perdi o
posto de caçula. O afeto de minha mãe concentrou-se no bebê, que
passou a merecer toda sua atenção. Quando terminou a licença-
maternidade, deixava meu irmãozinho na creche de manhã para
pegá-lo no fim da tarde e passar a noite enchendo-o de carinhos.
Tudo na casa girava em torno do bebê. Até meu avô me dizia, em
tom de brincadeira:

-Perdeu o trono!
Saí da casa dos meus pais logo no início da vida adulta. Queria
morar sozinho, mas no fundo sentia uma falta imensa da vida
familiar. Nunca fomos muito bons com datas lá em casa. Lembro-
me que quando eu vivia nos Estados Unidos, onde fui tentar a vida,
mamãe enviou uma carta dizendo ter sentido saudade no meu
aniversário, e que até pensou em fazer um bolo. Mas no primeiro
aniversário depois de minha volta ela se esqueceu do dia! Não fez
bolo nenhum para minha triste surpresa. Esse é só um exemplo das
inúmeras pequenas decepções de minha vida familiar.
Minha grande experiência amorosa terminara de forma trágica. Eu
não sabia como reestruturar minha vida afetiva. Começar de novo,
enfim. Ao mesmo tempo, a solidão era dolorosa.
-Tenho mãe, irmãos, mas só nos vemos raramente, em datas
marcadas. Não é como a maioria das famílias, que se freqüenta o
tempo todo. E foi assim que fiquei só eu com meu cachorro concluí.
Amanhecia. Tati estendeu a mão sobre a minha. Eu a olhei. Foi a
primeira vez que nos beijamos de verdade.
Mais tarde eu soube que seu namoro com o homem grisalho durou
só algumas semanas. Ela queria investir em nossa relação.
Já que não podia lutar com meu husky, Tati uniu-se a ele. Passava
boa parte do tempo comigo, pois sua casa era território
compartilhado com o filho Guel. Às vezes trazia os cãezinhos.
Refeito do trauma do ouriço, Uno rosnava para os machos. Tati


impedia confrontos. Seus schnauzers também brigavam entre si, a
ponto de irem fazer curativos no veterinário com freqüência.
Sobre o namorado grisalho, só falamos uma vez.
-Você estava em desespero de causa -comentei.
-Ele não é tão ruim assim. Mas tentou me dar o golpe nas jóias.
-Ahn?
Simplificando: Tati ainda tinha algumas jóias que havia ganho do
segundo marido, o rico. Já tentara vendê-las, no entanto pagavam
pouquíssimo. Jóias são assim: caras para comprar, mas não valem
quase nada na hora de se desfazer delas. Desistiu.
-Ele estava desempregado e me pediu as jóias para pagar uma
dívida. Brigou porque eu recusei.
-O quê? Você está na pior e ainda arruma um endividado?
-É... Quanto mais eu rezo, mais assombração aparece!
Sua situação era difícil: não encontrava emprego de jeito nenhum.
Eu me acostumara com os relatórios cotidianos.
-Fui entrevistada por uma coreana. Fiquei 45 minutos falando
sobre minha experiência profissional e só depois ela disse: não
entendo bem português!
-Era uma fábrica de móveis de alto padrão, mas soube que o dono
é trambiqueiro.
-Tenho exatamente o perfil que eles querem, mas é pra morar em
Manaus. Não posso por causa do meu filho.
Pegou roupas para vender:
-Assim eu tiro algum.


Visitava as amigas, com a mala na mão. Perguntei do projeto da
fábrica de velas.
-Deu errado. No início todo mundo comprou. Mas só vendi mesmo
para os amigos. Depois que estavam abastecidos, fiquei sem
freguesia.
Sua ansiedade era visível. Minha vida melhorava. Contudo não o
suficiente para resolver a dos dois.
-Penso em vender a casa, comprar uma mais barata.



-E depois, vai fazer o quê, Tati?
-Quem sabe com a diferença monto um negócio? Suspirou:
-Sabe, o mundo avança, mas continua sendo difícil ser mulher.
Profissionalmente, eu digo. Com a minha experiência, um homem já
teria encontrado emprego.
-Talvez não. Outro dia peguei um táxi e o motorista era um exexecutivo.
-É... Pode ser.
-O problema é que profissional tornou-se produto descartável no
país. Depois de certa idade fica difícil arrumar emprego.
Pensava em mim. Boa parte dos jornalistas de minha geração já
estavam fora do mercado. Arrumavam empregos mixurucas para
poderem sobreviver.
-Também sinto medo -comentei -Se eu perder esse emprego, não
sei o que vai rolar.
-Você escreve crônicas, fez peças de teatro...
Abracei-a. Sabia que dificilmente Tati encontraria emprego, no
entanto não queria magoá-la ainda mais dando uma opinião
negativa. É horrível tirar a esperança de uma pessoa.


-Vai dar tudo certo, Tati. Durante alguns meses batalhou com as
roupas. Ia a
confecções. Levava malas às amigas. Lembrava, melancólica:
-Quando eu era diretora de empresa entrava numa loja e escolhia
um vestido de cada cor!
Quando fez aniversário, ofereceu-me a primeira fatia do bolo. As
amigas aplaudiram.
-Vai sair casamento! -comentou Cristiana. Sorrimos. Seu filho me
encarou:
-Se ele entrar por uma porta, eu saio pela outra. Levei um susto.
Houve um silêncio constrangedor. Mais
tarde conversamos:
-O Guel não gosta de mim?
-Tem ciúme. Ainda é muito ligado ao pai.



Eu não me sentia pronto para assumir um compromisso. Tati estava
em uma situação de urgência. Sua vida precisava de definições.
Alguns dias depois entrou na conversa:
-Eu acho que duas pessoas maduras podem viver juntas por
carinho, amizade. Não precisa ser uma grande paixão.
-Concordo -respondi -, mas é preciso bater a hora certa.
-Meu despertador já tocou há muito tempo.
Mudei de assunto. Tati continuava decidida a definir a vida. Fosse
com emprego ou casamento. Voltou ao tema inúmeras vezes. Eu
enrolava. Exatamente: enrolava. Tinha começado um namoro. Só.
Tudo andava depressa demais. Nossas conversas se tornaram mais
ríspidas.


-Não posso ser tratada como uma adolescente.
-Você está ansiosa; vamos ver o que acontece.
-Eu já sei o que acontece: você fica no seu mundinho, e não tem
espaço pra mim.
-A gente se vê quase todo dia, passa o fim de semana junto.
-Eu quero dividir a vida.
Quando sozinho, eu me questionava, em longas conversas com meu
melhor amigo:
-Eu não quero dividir a vida, Uno. Ela é legal, é ótima, mas ainda
falta alguma coisa. Só que ela me pressiona. Está ficando difícil.
Ele me encarava seriamente, ouvindo cada palavra.
-Vida de cachorro é a minha! -lamentei-me. Dias depois, Tati me
telefonou animada.
-Arrumei emprego.
Respirei aliviado. Talvez assim não ficasse tão ansiosa. Puro
engano.
Cheguei a sua casa com um ramo de flores.
-Vamos jantar fora para comemorar -propôs. Notei seu sorriso
esquisito, como se tivesse alguma
coisa para dizer. Sou jornalista, percebo quando alguém está
escondendo uma informação. Como diria Uno, são ossos do ofício.



-É bom o cargo? -eu perguntei.
-No restaurante conto tudo!
Pegou o casaco. Seu filho sorria feliz. Era estranho. Alguma coisa
estava para ser dita. Mas o quê? Sentamos. Veio o couvert. O
cardápio.
-Você não vai me falar sobre o emprego?


-Ah, sim, vou ser diretora administrativa de uma empresa. Não é
bem minha área, mas tudo bem. O salário é bom.
-Puxa, pegou a vaga apesar de não ter currículo?
-É no interior do estado. Primeiro golpe. Encarei.
-Mas você não queria mudar daqui por causa do garoto.
-São só algumas horas de viagem. Dá pra gente se ver sempre.
Todos os fins de semana ele vai ou eu venho. Já falei com minha
irmã, ele fica na casa dela.
Imaginei: "Vai ser chato a gente ficar longe", pensei. Mas sorri,
otimista:
-Assim que você montar sua casa, também posso ir até lá. Se estiver
escrevendo um livro, levo meu laptop...
Notei sua expressão. Um sapo prestes a saltar de sua boca.
-Pois é. Eu ainda não disse, mas a fábrica é do meu ex-marido. Do
segundo, o rico.
-Ahn?
-Eu estava num mato sem cachorro, já não sabia mais o que fazer.
Estou vivendo no limite do cheque especial todo mês. Pendurada no
cartão de crédito. Peço ajuda a minha irmã, mas me sinto mal por
isso.
-E as roupas, não estão dando?
-Tenho que vender em duas, três, quatro vezes, senão ninguém
compra. Às vezes o cheque volta. No último mês pendurei até o
veterinário. Os cachorrinhos gastam uma grana em ração, banho e
tosa. Veja a decadência, economizar até no banho dos peludinhos!


-Por que você não...



Calei-me. Ela não havia me contado porque eu não me tornara um
companheiro de verdade. Era apenas um namorado.
-Você é ótimo, a gente ficou um bom tempo junto, mas eu tenho
que tocar minha vida. Vou mudar.
-Vai voltar com seu ex?
-A gente nunca falou sobre isso. É só um emprego. Mas eu acho
que ele... Ah, sei lá... Só que fica meio chato você aparecer.
-Então você vai, e eu fico. É isso. A comida secou
na minha boca.
-Acho que sim.
O garçom se aproximou:
-Aceitam sobremesa?
-O café e a conta, por favor.
Ajudei-a a embalar os móveis. A organizar a mudança. A botar os
cinco cachorrinhos revoltadíssimos em caixas de papelão, nos
bancos do carro. Minhas mãos, repletas de arranhões e
mordidinhas. Na despedida, Tati me deu um beijinho rápido na
boca. Coisa de amiga.
-A gente se vê.
-Claro, a gente se vê.
Voltei para casa com um sentimento de vazio. Uno veio correndo ao
portão, de rabo erguido para dar as boas-vindas. Sentei-me na
escada que levava à varanda. Ele se aproximou. Puxei-o para meu
colo. Fiz carinho algum tempo.
-Somos só nós dois outra vez, Uno. Ficamos algum
tempo sozinhos.


Dois passarinhos voaram na direção da varanda e pousaram em um
vaso de samambaia. Estranhei. Fui olhar.
Haviam construído um ninho dentro do vaso! Dois filhotinhos de
boca aberta esperavam a comida dos pais. Foi uma das cenas mais
incríveis que já vi. Corri para fotografar.



-Viu só, Uno? Que lindos! Notei um olhar apetitoso. Pensei que um
dia os passarinhos iam aprender a voar. Algum poderia cair no
chão.
-Eu não estou gostando do seu jeito, safado!
Meu cachorro comia tudo. Absolutamente tudo o que visse pela
frente. Ração. Patos. Não tentara devorar um ouriço? Passei as
semanas seguintes fiscalizando o crescimento dos passarinhos. Eu
me sentiria muito mal se algum deles fosse devorado por um husky.
Algumas semanas depois, vi os filhotinhos voando para fora do
ninho. E me senti mais feliz. Sorri para ele.
-A vida é assim, Uno. Tudo vai e vem. Eu vou sentir falta dela. Mas
espero que tudo dê certo em sua nova vida.
Sentei, pensando:
-Também estou tendo uma vida. Não é como eu planejei, mas há
muita coisa legal. É uma vida. Minha vida. E eu ainda não estou
pronto. Queria ser diferente, mas em mim os sentimentos são
profundos, e as feridas não cicatrizam tão depressa. Eu ainda não
sou capaz de amar novamente.
Contemplando a mim mesmo, senti uma imensa paz.


8

Acordei de madrugada sentindo uma dor pavorosa que irradiava
violentamente a partir do estômago. Levantei-me com dificuldade.
Deitado ao lado da cama, Uno ergueu a cabeça um pouco sonolento.
-Está doendo, Uno. Muito.
Molhei uma toalha com água quente, coloquei na região. Inútil. Tive
certeza.
-Só pode ser sério.
Apalpei meu estômago. Pressionei com os dedos. Durinho. Mais um
motivo para preocupação. Não sou médico, porém, ao longo da
vida, um jornalista reúne todo tipo de informação. Em inflamações
agudas, o abdome endurece. Respirando fundo, vesti-me
lentamente. Peguei os documentos e a carteirinha do plano de
assistência médica. Lembrei que tinha direito a um hospital no
bairro do Mo-rumbi. Mas eu morava em um condomínio rural, nas
fronteiras da cidade. Seria preciso pegar a estrada. Arrastei-me até a
cozinha. Ao enfiar a chave na fechadura, tive noção da minha
loucura.
-Como vou dirigir pela estrada com tanta dor, a perna repuxando?
Uno e eu nos entreolhamos.
-Preciso de ajuda humana.
Liguei para a portaria do condomínio. Expliquei a situação.
-Tenho que ir a um pronto-socorro.
O guarda da noite me pediu que esperasse um minuto. O síndico
ligou em seguida.



-Vou para aí. Em que hospital é o seu convênio? Respondi. Fez
mais um pedido, que se mostrou providencial.
-Deixe o portão e a porta abertos.
Não entendi o motivo, mas obedeci. Botei Uno na sala e abri a porta
da cozinha, perto da garagem. Ele uivava. Com o controle remoto,
ergui o portão (era um dos pequenos confortos instalados após o
episódio do leão). Sentei-me. A dor quase me enlouquecia. De
repente tudo escureceu.
Acordei em uma maca de hospital, sendo levado por um corredor.
O síndico acompanhava um médico, ambos ao meu lado.
-Que aconteceu, doutor?
-Você tem algum parente que possamos acionar? Dei o telefone de
minha prima, que morava na cidade.
-O que é?
-Apendicite.
Fui levado às pressas para o centro cirúrgico. O anestesista me
aplicou uma injeção:


-Fique tranqüilo. Vai adormecer, mas está tudo bem. Antes de
perder a consciência novamente, lembrei-me
de que às vezes tinha pontadas do lado direito da barriga. "Não
deve ser sério", pensava. Agora se transformara em caso de
urgência. Apêndice supurado pode provocar infecção generalizada.
Morte. Respirei fundo. E mergulhei profundamente.
Acordei em um centro pós-operatório com duas enfermeiras
tentando me animar, alegremente.
-Tudo bem? Como está se sentindo?
Tinha vontade de dormir, mas não deixavam. Puxavam conversa,
exigiam respostas.
-Agora você precisa ficar acordado. Depois poderá dormir.
Instalaram-me em um apartamento. Meu convênio, fornecido pela
empresa, dava direito a acompanhante. Sentia dor, desconforto.
Minha prima já estava a postos.
-Você trouxe alguma coisa?



Eu vestia apenas um avental hospitalar.
-Tudo aconteceu de repente -respondi, já fechando os olhos.
Na manhã seguinte, ela havia trazido pijamas, escova de dentes,
perfume.
-Fui até sua casa. Está tudo bem.
-E o Uno?
-A empregada vai cuidar. Não se preocupe. Agora tem que se
recuperar. Você teve sorte.
Segundo me contou, o apêndice estava prestes a estourar. Se não
fosse a ajuda do síndico, nem sei. Fora esperto ao me pedir para
deixar a casa aberta. Ao me visitar, explicou:
-Sei que você mora sozinho. Se desmaiasse, com a casa trancada,
como acudir?
A frase ficou martelando na minha cabeça. Eu vivia em um
condomínio de terrenos grandes. Quase rural. Qualquer problema
pequeno podia se tornar gigantesco. Que fazer?
Fiquei internado alguns dias. Minha prima foi me buscar. Desci do
carro cautelosamente. Ainda tinha curativos, sentia dificuldade de
andar. Sentei-me no sofá. Uno me observou ressabiado, com os
pêlos eriçados. Olhar estranho. Aproximou-se. Pulou no sofá. Subiu
nas minhas pernas e enrolou-se inteiro no meu colo, querendo ficar
bem pertinho. Solidário. Afetuoso. Como se soubesse tudo que
passei.
-Uno, Uno, está tudo bem, amigão!
Minha recuperação foi rápida. Dez dias depois, voltei a trabalhar. Já
não me sentia seguro em morar tão sozinho com meu cachorro e
não mais que uma empregada durante o dia. Minha prima me
aconselhou:
-Agora você tem que cair em si. Imagine todas as coisas que podem
acontecer!
Um colega de trabalho insistiu:
-E se você cair e quebrar uma perna? Se não conseguir chegar até o
telefone? Quem vai ajudar?



Tinham razão. Mas gostava da casa, da vida no campo. Nela superei
a pior fase da minha vida. Já estava lá havia anos, agora, e não
sentia vontade de sair. Adiei qualquer decisão.

Dizem que Deus escreve direito por linhas tortas. Muitas vezes,
acho que Ele me protege especialmente. Tenho motivos para
acreditar. Não sou muito de ir à igreja, contudo tenho uma
profunda fé na divindade, e vários fatos da minha vida reforçam
esse sentimento. Certo domingo quebrei minha rotina. Nos fins de
semana, normalmente eu ficava em casa. No sábado, às vezes
recebia amigos e colegas de trabalho ou ia a churrascos por perto.
No domingo descansava, já me preparando para o batente da
semana. Daquela vez, abri uma exceção. Resolvi assistir a um grupo
de teatro tcheco: o Teatro Negro de Praga. Comprei dois ingressos
com antecedência, imaginando quem levar. Como sempre acontece
nessas ocasiões, todas as perspectivas sexuais deram errado, mesmo
porque, nesse sentido, minha agenda andava péssima. Acabei
chamando um jornalista que trabalhava comigo, recém-separado. O
espetáculo começava no fim da tarde. Fomos almoçar e ficamos
conversando sobre as dificuldades de um processo de divórcio até
pouco antes do horário. Mal entrei no teatro, o pessoal da segurança
do condomínio me ligou:
-Sua casa foi assaltada.
Adeus, teatro! Disparei até lá. O pessoal da portaria estava surpreso.
Ninguém sabia como o assalto podia ter acontecido. Examinamos a
casa: a porta dos fundos arrombada.
-Vi que tinha alguma coisa errada porque o portão estava aberto explicou
o segurança.
Provavelmente para sair os ladrões haviam usado o controle que
ficava na cozinha. O síndico fez uma suposição:

-Talvez tenha sido um drogado, filho de algum morador.
Reparei que no chão estava jogado um galho de árvore


grande. E Uno? Identifiquei-o atrás de uma moita, visivelmente
assustado. Peguei o galho.
-Devem ter usado isso aqui para afastar meu cachorro. Embora ele
não seja bravo.
-Pode ser -concordou o síndico. -É um cachorro grande, tem
porte. Mete medo.
Doeu imaginar alguém espancando meu husky.
Haviam levado pouca coisa: roupas, o computador e, incrivelmente,
algumas taças. Haviam aberto o armário à procura de dinheiro e
atirado minha papelada no chão. Tudo revirado. A casa estava um
caos. Na verdade eu não tinha nada de valor e, portanto, pouco
havia desaparecido.
-Também pode ter sido algum ladrão comum, que já estava de olho
e entrou pelos fundos.
Como saber?
-Se ao menos você falasse, Uno!
Depois de examinar tudo comigo, o síndico concluiu:
-É alguém que conhece a casa, sem dúvida. Veja como não quebrou
quase nada. Foi diretamente aonde achou que havia dinheiro.
Assustado, tomei consciência de um problema maior. Era óbvio: o
assalto fora planejado por alguém que conhecia minha rotina dos
domingos. Pretendiam me encontrar em casa. "Ainda bem que
resolvi ir ao teatro, senão me pegavam aqui."
Sei que é errado, mas nem fiz boletim de ocorrência. Deveria ter
feito, sim. Porém nem sempre a prática corresponde à teoria. Uma
vez fiquei duas horas na delegacia para concluir o B.O. de um carro
batido. Dessa vez, contudo, não tinha esperança de que
descobrissem os culpados. Ou devolvessem meu computador. Em
meio a tantos crimes violentos, um caso tão pequeno só seria
resolvido por sorte. "Minha queixa vai ficar no fundo de uma gaveta",
imaginei.
Mais tarde, sozinho, refleti. E se eu estivesse em casa?


Assaltantes cometem enganos. Fazem suposições. Muitas vezes
pensam que alguém tem mais dinheiro do que realmente possui.
Era o meu caso. Tinha um bom emprego em uma editora. A casa.
Graças a meu trabalho, conquistara alguma visibilidade. Algumas
das minhas peças foram encenadas. Publiquei um livro. Todas essas
atividades são glamorosas. Mas um executivo do mercado
financeiro ganha infinitamente mais do que um jornalista. Não há
comparação. No entanto, para quem está de fora parece o contrário.
O jornalista sai muito, vai a festas badaladas, assina seu nome nas
revistas. O escritor tem seu nome nos cartazes, nos programas de
teatro, nas capas dos livros. O especialista em finanças é um
desconhecido. A conta bancária de cada um é completamente
diferente, mas como os ladrões saberiam disso? Senti medo pela
primeira vez desde que havia mudado para a casa.
Durante semanas, só deitava depois de trancar tudo. Comprei
cadeado para as janelas. Reclamava:
-Uno, você poderia ao menos guardar a casa para pagar a ração que
come.


Inútil. Meu cachorro abanava o rabo para qualquer um que
oferecesse um pãozinho (era louco por pãezinhos)! Que desastre
como cão de guarda!
Passei a ter medo de voltar para casa. Acordava com qualquer
ruído, assustado.
Assim, foram dois medos que me fizeram tomar a decisão:
-Está na hora de mudar.
Gastava pouco, guardava boa parte do meu salário. Afinal, mal saía.
Meus programas de lazer eram simples: cinema, teatro, pizza,
churrasco na casa de conhecidos. Meu único dependente, Uno,
contentava-se com dois potes diários de ração e idas esporádicas ao
veterinário. Vestia-me com simplicidade, sempre com camisa e
jeans. Tênis, a maior parte do tempo. Possuía agora uma boa
poupança, suficiente para dar entrada em um novo imóvel. Seria
ideal vender a casa, mas gostava tanto dela!



-Quem sabe, quando eu ficar velho, volto. Até lá, alugo.
Fui ao banco e me candidatei a um financiamento. Durante alguns
fins de semana, saí com corretores em busca de um novo endereço.
-Vá para um apartamento, que é mais tranqüilo! -aconselhou minha
mãe ao telefone.
-Preciso de um lugar para o cachorro! -insisti.
Procuramos no bairro mais próximo da editora. Encontrei um
sobrado geminado de um só lado, em uma vila com um portão
colocado pelos próprios moradores e uma guarita com um guarda.
Já daria alguma segurança. Como eram poucos moradores, os
guardas conheciam cada um de perto, o que facilitava ainda mais a
fiscalização. Três quartos, sala, e um pequeno quintal.
-Vai ter que se acostumar com um lugar menor, Uno.
Quando o caminhão de mudança partiu, lamentei deixar minha
casa, mas não mudei de idéia. Hospedei meu cachorro em um hotel
canino até ajeitar as coisas. Dois dias depois, embora a nova casa
continuasse na mais perfeita bagunça, fui buscá-lo.
Soltei-o na sala.
-Este é o nosso novo lar, Uno. Sei que é bem menor que o outro.
Prometo passear com você sempre que der.
Ele farejou os móveis, percorreu rapidamente a sala. Em seguida
ergueu a perna e mijou no sofá, na poltrona e no pé da mesinha de
jantar.
-Uno, Uno, o que você está fazendo? -gritou minha mãe, que
estava comigo por alguns dias para me ajudar.
-Marcando território -respondi. -É para dizer que isso aqui é dele.
-Mas não é dele, é seu! É você que está pagando o financiamento argumentou
mamãe.
-Tente explicar.
-Oh, esses cachorros modernos! Você tem que ter mais autoridade!
-Dá um tempo, vou botar a ração. O Uno fica nervoso se demoro
com a comida.



Uma nova fase da vida começou. Todos os dias eu passeava com ele
assim que chegava. Punha a coleira, que Uno odiava e tentava
retirar com mordidas, depois saía pelas ruas do bairro. É fascinante
andar com um cão. Ele parava o tempo todo, atraído pelos cheiros,
barulhos. Puxava a coleira e eu o levava até uma pracinha, onde
farejava o mato, e me levava por caminhos seus, fazendo curvas,
com idas e vindas, talvez refazendo os passos de algum outro
animal. Urinava em vários locais para marcar território. Erguia as
orelhas à aproximação de outros cães ou diante de ruídos
diferentes.
O encontro com seus iguais era sempre problemático. Por sorte, as
pessoas tinham o hábito de passear com os cães na coleira. Ao
avistar outro macho, Uno erguia as orelhas, eriçava os pêlos.
Rosnava. O outro fazia o mesmo. Nós, os humanos, puxávamos as
guias.
-Pare, venha cá!
-Quieto, quieto!
Só conseguíamos afastá-los a custo.
Minha vida pessoal melhorou. Eu estava mais perto de tudo. Podia
sair do trabalho, passar em casa, tomar um banho e sair para o
cinema, teatro, fosse o que fosse. Fiz novas amizades. Assim que
mamãe voltou para sua casa, um tanto à revelia, também passei a
ter garrafas de vinho abertas nos sábados à noite, em encontros bem
agradáveis.
-Um brinde.
-A quê? A nós?
-Ao futuro, que a Deus pertence. Tintim!
Ouvia um uivo.
-Que foi?
-Meu cachorro. Está lá fora. É acostumado a dormir dentro de casa.
Mas hoje é exceção... Você vai ficar, não é?


Sorriso. Uivo! Dava uma desculpa e ia falar com o es-traga-prazeres.



-Queira ou não, Uno, eu tenho certos direitos! Silêncio. Olhar de
crítica.
-Pode ser que você não concorde, mas tenho. Nós, humanos, somos
diferentes de vocês, cães. Com vocês é vapt-vupt. Como você e
aquela sua namorada de pêlos dourados. Bastou um encontro e já se
acertaram. Nós, humanos, não. Temos que tomar um vinho, botar a
sala na penumbra. Eu sei que parece besteira. Cada espécie tem seu
ritual. Para você, basta botar o focinho no traseiro. Mas se eu botar
meu focinho no traseiro de alguém, levo uns tapas. No mínimo.
Também não será muito agradável; nós, humanos, não temos o
hábito de cheirar traseiros. Veja também a questão das lambidas.
Para você é simples, Uno, basta esticar a língua e lamber. Eu não
posso, mesmo que deseje ardentemente, lamber alguém atrás da
orelha. Tenho que bater papo, criar intimidade. Falar de novelas,
cinema, livros, culinária. Perguntar o signo, embora não conheça
quase nada de astrologia. Elogiar. Marcar um encontro. Sair para
jantar ou no mínimo tomar um drinque. Convencer a vir para casa
com alguma desculpa esfarrapada na qual ela não acredita -e que
eu sei que ela não acredita. Todo um ritual, Uno. Um ritual. E às
vezes só consigo dar uma lambidinha atrás da orelha e olha lá!
Portanto, pare de uivar e compreenda minha situação. Vida de
cachorro é fácil. A dos humanos é uma complicação!
Entrava. Às vezes ele silenciava. Outras, uivava ainda mais.


Com o tempo, aprendi a disfarçar.
-Que cachorro é esse que está uivando?
-É do vizinho. Um husky.
-Tem gente que não sabe cuidar de animal.
-Nem fale, é um desastre! A vida melhorou. Às vezes eu me
pegava sorrindo sem
motivo. "Fiz bem em mudar", concluí.
Para compensar, sempre que podia passava no açougue e trazia um
osso.



-Agora não tem pato pra você caçar. Mas olhe só! Ele saltava para
pegar. Depois, refugiava-se em um
canto roendo. Enquanto o osso durasse, não me dava atenção.
Muitas noites, porém, continuávamos na velha rotina. Eu via
televisão, ele se deitava no sofá. Adormecia. É muito interessante
ver um cachorro dormir. Uno se mexia, dava pequenos ganidos.
Tenho certeza de que sonhava. Talvez se lembrasse da caçada aos
patos. Ou tivesse um pesadelo com o ouriço. Quem sabe? Como
será o sonho de um cachorro? Mas, tenho certeza, eu estava presente
em todos eles, porque ficava aconchegado perto de mim. E se
eu me levantava, bastava dar um único passo para meu husky
despertar, me seguir com os olhos, às vezes sem sair do quentinho,
pois adorava o conforto, mas atento aos meus gestos. Quando eu
sentava de novo e punha a mão em seus pêlos, fechava os olhos,
adormecia e voltava a sonhar.
Nessa época, aconteceu o inesperado. Meu cachorro arrumou um
emprego! E passou a pagar pela ração que comia.


9

Aminha carreira como escritor se consolidava. Publiquei livros
infanto-juvenis e tive mais peças de teatro encenadas. Ensaiei meus


primeiros passos na televisão. Tomei uma grande decisão: larguei o
emprego, apesar de meu cargo de direção. Queria mais tempo para
escrever. Pode parecer surpreendente, mas um artista precisa de
preguiça. Dificilmente consigo criar após um dia repleto de
atividades. Preciso parar, dar um tempo lendo, pensando na vida. É
como se eu "limpasse" a cabeça para surgirem novas idéias.
Trabalhei anos como jornalista e escrevia nas horas vagas. No
entanto à medida que meus livros foram publicados, e que novas
oportunidades surgiram, percebi que precisa investir em meu
tempo. Um dia, de madrugada, terminando a revista semanal que
eu dirigia, parei um instante e disse para mim mesmo:
-O que estou fazendo aqui? Se eu dedicar todo esse esforço para
mim mesmo, vou chegar onde realmente desejo!

Pedi demissão no dia seguinte. Cumpri o aviso prévio e um mês
depois estava livre. Tinha uma pequena poupança, suficiente para
viver algum tempo. Minhas despesas básicas eram pequenas. Em
jornalismo, ao contrário de outras profissões, é possível sobreviver
de trabalhos eventuais -o freelance. Uma reportagem aqui, outra ali.
Meus direitos autorais já rendiam alguma coisa. As crônicas que eu
assinava para a grande revista me ajudavam bastante. Um amigo
telefonou:
-Estou lançando uma revista dedicada a cães. Topa escrever uma
crônica mensal?
-E se meu cachorro escrever? -propus.
O editor adorou a idéia. Combinamos o valor do pagamento. Corri
para fora.
-Uno, você virou escritor!
Na semana seguinte um fotógrafo, Laílson, apareceu na minha casa
para fazer a foto -colunas costumam ter a imagem de quem assina.
Foi uma loucura. Meu cachorro sempre mostrou uma extraordinária
percepção para fugir de situações complicadas. Assim, quando
chamei -"Venha, Uno, venha!" -ele disparou na outra direção.


Foi uma correria para capturá-lo. Todos o perseguimos: eu, o
fotógrafo, o rapaz da guarita e a faxineira que havia contratado
depois da mudança, pois o novo endereço era distante para a
empregada anterior. Corríamos para um lado, ele para o outro.
Todos se assustavam quando rosnava, menos eu. Eu sabia que só
queria dizer:
-Vejam como sou feroz, eu sou bravo, bravo! Morder, não mordia.
Agarrei-o e o ergui no colo. Ele se
contorceu, eu o segurei.


-Pare, Uno, pare!
E o levei até meu computador. Queria uma foto de Uno digitando.
A informática não estava em seus planos. Rebelou-se. Quis fugir. Eu
segurava suas pernas. O segurança tentava brincar. O fotógrafo
cucava sem parar enquanto ele saltava sobre o teclado. Quis que
pusesse óculos, mas eles voaram para longe várias vezes. Eu
gritava. Uno rosnava, resmungava, uivava.
No final, conseguimos várias fotos, uma melhor que a outra!
Faltava o texto. De noite, encarei Uno e perguntei.
-Como você pensa? Quantas histórias tem aí nos miolos?
De repente, eu me senti dentro de sua cabeça, vendo o mundo com
seu olhar. Para começo de conversa, quem era dono de quem?
-Eu é que sou seu dono, é claro! Você é meu humano! -disse Uno,
seguro de si.
Juro, eu sabia tudo que ele pensava. É incrível como os cães têm a
capacidade de adivinhar o que estamos pensando. Na hora,
descobri que também sou capaz de compartilhar os pensamentos de
um cachorro.
Uno escreveu algumas crônicas para a revista canina.
Se no decorrer de algumas delas as informações forem repetitivas
em relação ao que já escrevi, me perdoem. Este é o texto original de
Uno, meu cão escritor!


Pãozinho e caviar1


Permita que eu me apresente: meu nome é Uno. De único. Nasci no Canil
Karras, fui o único de minha ninhada. O casal de humanos havia gasto um
dinheirão para comprar meus pais, huskies siberianos de gloriosa
linhagem. Esperavam lucrar com o nascimento de uns cinco ou seis
cãezinhos. É o normal -só os humanos costumam ter somente um filhote
por ninhada. Coitados! Nenhuma fêmea humana pode imaginar a alegria
de amamentar meia dúzia ao mesmo tempo! Quando viram que eu era um
só, quase morderam minha mãe. Tentaram me vender durante meses.
Encalhei. Acabei sendo entregue a um barrigudo metido a escritor.
Dura é a vida de um cachorro. Humanos são bichos muito complicados.
Acreditam que são nossos donos! Donos somos nós, cachorros! Eu me dou
bem com o homem que me pertence. É preciso saber despertar a
generosidade de um humano. Meu truque é fazer um profundo olhar de
sofrimento. Funciona até para ganhar pãezinhos, que adoro. Aprendi com
minha mãe, ainda filhote.
-Quando um humano rosnar furioso, não responda -aconselhou. Umedeça
o focinho e olhe para ele como se você fosse o cachorro mais infeliz
deste mundo.
Sempre tinha dado certo. Até a história do caviar. Um dia, meu humano
entrou na cozinha com a língua de fora, como se fosse um cachorro das
ruas! Pegou um potinho preto da geladeira. Abriu. Senti um delicioso
cheiro de peixe!


-Caviar -ele murmurou.
Dei apenas um ganido e me mantive de rabo em pé, à espera. O egoísta nem
me olhou. Cobriu duas fatias de pão preto com todo o conteúdo do potinho.
Nesse instante, tocou o telefone. Foi para a sala atender. Que
oportunidade!
Um cachorro sabe ser cauteloso em momentos decisivos. Aproximei-me,
pata por pata. Fiquei em pé e cravei os dentes nas duas fatias. Ergui o
focinho e sai da cozinha, deixando o prato intacto. Corri para fora. Dali a


1.publicado na extinta revista focinhos, em outubro de 1999.


pouco, ouvi quando ele procurava.
-Onde foi que eu pus?
Abaixei as orelhas, aliviado. O prato estava tão limpo que talvez ele...
-Uno!
Voou para o quintal. Devorei a primeira fatia. Fugi com a outra, enquanto
ele me perseguia com a vassoura. Para quê? Pensava que eu ia devolver?
Aproximou-se enquanto eu engolia a segunda. Ergui a cabeça e lancei meu
olhar de sofrimento husky siberiano na L
-Não finja! Ninguém é infeliz por comer caviar, safado! -rosnou meu
humano.
Saltei. A vassoura ainda atingiu uns pelinhos do meu rabo. Fugi para um
canto. De longe, gani. Quis ser generoso. Ofereci meu saco de ração.
-Pegue quanto quiser! -uivei.
Ele nem quis saber da ração. Bateu a porta. Fiquei pensando no tal caviar.
Para um cachorro da neve como eu, o sabor vai muito bem. Talvez
pudessem criar uma ração à base dessas ovi-nhas pretas. Pãozinho e caviar
seriam, de fato, a dieta ideal para um cachorro de classe como eu. Uma
coisa aprendi com essa história: quando o assunto é comida, nem o olhar de
sofrimento funciona. Os humanos são, de fato, muito gulosos.

O primeiro texto fez muito sucesso. A revista recebeu cartas
entusiasmadas. Fiquei tão contente que deixei pra lá a história do
caviar, rigorosamente verdadeira. Eu comprara o potinho em um
momento de extrema extravagância. Era uma recompensa por
minhas escolhas, por meu esforço em me profissionalizar como
escritor. E o safado comera todo o caviar disposto generosamente
nas duas fatias. Todo! Mas, agora que Uno estava iniciando uma
vida profissional, ele merecia um voto de confiança. Quando recebi

o primeiro pagamento, comprei tudo em ração, biscoitos sabor
carne e uns ossinhos de couro para mascar. Uma espécie de chiclete
para cães. Nas mandíbulas de meu husky cada um durava no
máximo meia hora.
-Finalmente, Uno, você está pagando a ração que come!

Ele saltou e pegou um ossinho. Refugiou-se em um canto enquanto
eu ainda o elogiava.
-Tem talento! Pode ter uma carreira, Uno! Terminou o ossinho e
pediu um biscoito, declarando:
-Se estou pagando, tenho direito de ser guloso! O segundo texto fez
mais sucesso ainda:


Cão de guarda2

Os humanos sempre querem receber alguma coisa em troca do que
oferecem. Não são como eu, um cachorro que ama sem interesse. 0
barrigudinho resolveu que eu devia guardar a casa. As visitas chegavam,
ele avisava:
-Não se aproxime muito. Ele pode morder.
Fiz o que sei fazer. Ou seja, nada. Ele resolveu me treinar. Agarrava uma
varinha, agitava, ficava pulando na minha frente e gritava:
-Pega, Uno! Pega!
Certamente, ele não precisava de um cão para espantar invasores. Bastava
ficar pulando com a varinha. Ninguém teria coragem de entrar na casa de
um doido. Às vezes eu uivava para contentá-lo. Ele reclamava:
-Você não sabe latir?
Que ignorância! Um husky siberiano não late. Apenas emite uivos, em
vários tons. Uivos de lua cheia, uivos de carinho e uivos de fome, o que é
mais comum. Foi o que meu humano, o barrigudinho, acabou descobrindo:
-Você é uma decepção. Pensei que seria de alguma utilidade.
Interesseiro! Começou a contar para todo mundo que queria um cão de
guarda. É uma estratégia dos humanos. Ficam falando que querem alguma
coisa até que alguém se decide e dá de presente. Os humanos inventaram o
dinheiro, mas passam o tempo todo tentando não gastar um centavo. Se
não era para usar, para que inventar? O barrigudinho acabou ganhando
uma [cadela] policial capa preta, de ar feroz. Chama-se Violante e tem sido
uma agradável companheira. Pobre Violante! Apesar dos dentões, é gentil

2. publicado na extinta revista Focinhos , em novembro de 1999.

como se fosse um husky/ Adora lamber as patas de todos os humanos que
vêm em casa! O barrigudinho ficou furioso. Certo dia, avisou:
-Você tem que latir e defender a casa. Pague a ração que come!
Minha amiga foi enviada para uma escola de cães. Passou meses
aprendendo a rolar, a fingir de morta -não sei por que os humanos adoram
ver cachorros se fingindo de mortos! E, claro, a latir diante de estranhos.
Voltou feliz. Apesar de suas loucuras, nós dois queremos agradar o
barrigudinho. Um cachorro deve tratar bem o humano que lhe pertence!
Passou a latir o dia todo, ao menor sinal de um humano. O barrigudinho
saía no quintal, satisfeito. Elogiava. A tonta abanava o rabo. Eu refletia:
-Vai dar rolo!
Inevitável. A vizinha é uma velha brava. Ontem bateu na porta do meu
humano, aos gritos:
-Essa cachorra está me enlouquecendo! Cada vez que saio no quintal, ela
late! Vou ficar louca, louca!
O barrigudinho e a velha uivaram mais que dois huskies, latiram mais que
dois rottweillers. Ele pôs Violante de castigo. Sim, ela! Foi mandada à
escola para aprender a latir. Agora, está proibida. Ela late, ele grita:
-Fica quieta!
A tonta não entende bem a linguagem dos humanos. E late mais forte. 0
barrigudinho bota a coitada de castigo no fundo do quintal. Agora há
pouco, Violante ganiu, angustiada. Expliquei:


-Latir ou não latir, eis a questão!
Ela está tentando entender o que houve. Ainda acredita que os humanos
são animais inteligentes, que se comportam com lógica. Quanta
ingenuidade!


O que Uno contou é verdade, mas além da experiência pessoal,
usou também a imaginação. Violante foi minha fêmea de pastor
alemão capa preta. Durante algum tempo tive esperanças de vê-la
guardando a casa. Apesar de pertencer à linhagem de bravos cães,
tinha o olhar cheio de mel. Assustava-se com qualquer grito. Botava


o rabo entre as pernas com a maior facilidade. Passou três meses
numa escolinha de um policial militar para aprender as diversas
habilidades de um cachorro segurança. Quando chegou, só sabia...
-Morta, Violante, morta!
Ela deitava com as patinhas para o ar, fingindo. Uma graça.
Uma amiga comentou:
-Quando o ladrão chegar, ela vai se fingir de morta!
-Oh, céus!
Mas Violante já partira havia muito tempo. Uno conhecia suas
histórias muito bem, mas não foi gentil em usar a mim e a Violante
como personagens. Era realmente um escritor: misturava fatos,
realidade e ficção, mudava datas, personagens. Mantive o texto
como saiu. Um autor tem direito à liberdade de expressão, mesmo
que seja um cachorro fofoqueiro.
De patas para o ar3

0 barrigudinho anda muito triste. Brigou com uma fêmea humana que
andava vindo aqui em casa. Uma fêmea muito brava, pois às vezes latia e
uivava contra o barrigudinho. Acho que deve ter sido treinada para
guardar alguma casa. Certa noite, rosnou mais do que das outras vezes e
partiu. 0 barrigudinho se lamenta desde então. Às vezes senta aqui fora e
passa a mão no meu pêlo. Deito de barriga para cima. É delicioso sentir as
patas de um humano acariciando minha barriga. Ou coçando meu pêlo.
Meu humano me acaricia e diz:
-Só você gosta de mim, Uno.
Coitado! Hoje peguei a coleira, uivei e abanei o rabo, convidando o
barrigudinho para passear. Ele entendeu. Deixei que pegasse a ponta da
corrente, porque estava muito deprimido. Saímos. O barrigudinho pensa
que está escolhendo um caminho. Mas eu o puxo para onde quero e ele me
segue. Fui para uma praça onde, várias vezes, tinha visto uma humana
solitária, comendo um sanduíche na hora do almoço. Ela estava lá.

3. Publicado na extinta revista Focinhos, em dezembro de 1999.

Bem ajeitada, essa humana. Magra, alta. Pêlos pretos na cabeça. A boca
muito vermelha. Os dentes não eram tão fortes como os de uma boa
cachorra, mas os humanos não fazem questão de bons caninos. Deitei aos
pés dela. Ela sorriu.
-Que bonito! Não morde?
Pergunta tonta. Se eu mordesse, já teria arrancado seus dedos.
-Não. É muito manso.
Estiquei as patas. Ela acariciou meu pêlo. Sou lindo mesmo. Reconheço.
Huskies são maravilhosos, os outros cães que me perdoem. Dali a pouco
ela e o barrigudinho estavam conversando. Falavam de livros, de filmes e de
mim. Eu fiquei lá, estirado. Quem sabe aquela fêmea poderia morar lá em
casa e dar alegria ao barrigudinho? O tempo passou. Eu percebi que o
barrigudinho queria entrar no assunto, mas não sabia como. Uivei
gentilmente. Ele respirou fundo e tomou coragem. Aproximou-se e tentou
encostar o focinho nela. Também aproximou a boca. Os humanos têm a
mania de encostarem a boca, embora não costumem se lamber em público.
Quando sentiu a boca do barrigudinho perto da dela, a fêmea soltou um
uivo. Levantou-se imediatamente. Uma dobermann seria mais gentil.
Rosnou e saiu correndo. O barrigudinho ficou arrasado. Estaria com o rabo
entre as pernas, se tivesse um. Mas não tem, coitado. Voltamos para casa
em silêncio. O pior é que eu sei que ela bem que gostaria de deitar de patas
pro ar e receber carinhos. Sempre tão solitária, aquela fêmea! Eu não
entendo. Humanos vivem falando de amor. Mas, quando têm a chance, só
sabem rosnar entre si.
A vida dos humanos poderia ser bem melhor. Bastava serem como nós,
cachorros. Saber deitar de barriga para cima e patas erguidas quando
quisessem um pouco de carinho. Seria mais simples, e haveria mais amor.

Realmente, meu cachorro não tinha o direito de expor minha vida
íntima como fez. É obvio que um cão e um humano compartilham
as mais variadas experiências. Eu mesmo observava Uno cheirar os
traseiros de cadelas na rua, em óbvias tentativas de sedução, mas
nunca comentei, por ser discreto. Já que ele tocou no assunto, conto


o resto. Muita coisa estava acontecendo comigo. Depois de viver
sozinho tanto tempo -já haviam se passado alguns anos desde
minha perda -um sujeito fica chato. Andava cheio de manias,
hábitos de solitário. Fazia questão de ler na cama antes de dormir.
De ficar sozinho, sem ver ninguém, e agora que não tinha trabalho
fixo, mais ainda. Fugia de compromissos. E me sentia incapaz de
uma relação estável. Um namoro terminou em uivos, segundo a
descrição malvada de Uno. Nem sabia mais como conquistar
alguém. Em algumas situações, fui tão devagar que perdi a chance.
Em outras, tão rápido que botei tudo a perder. A sedução pede um
ritual, pequenos gestos, olhares, e um ritmo que depende dos dois.
Eu estava destreinado! E, no fundo, não tinha sentimento para
oferecer.
Como conversei com Uno certa vez: seria mesmo tão bom se
pudesse deitar de barriga para cima, erguer as patas e dizer:
-Deleite-se!
Não sei se haveria mais amor, mas a vida seria muito mais
divertida.
Uma coisa é certa: cães são mais francos. Se querem amor, pedem.
Não têm vergonha de ganir por um carinho. De se oferecer.
Por que não consigo me abrir, me oferecer? Ou aceitar gestos de
amor que para outras pessoas são tão simples? Observava meu
cachorro e dizia:
-Tenho muito que aprender com você! Quem sabe um dia descubro
o jeito de esticar minhas patas e pedir carinho!
Os humanos são traidores4
Acabo de ter uma decepção tão grande com os humanos que minha vontade
canina é sair pelas ruas e correr, até que esteja longe desses seres ingratos.
Descobri tudo que eles pensam sobre nós, cachorros. É chocante. Certa
noite o barrigudinho trouxe um casal para passar algum tempo comendo
na sala. Os humanos têm esse estranho hábito de dividir a ração. Embora


não comam ração, mas comida de sabores diferentes. Parece que nunca se
satisfazem com um sabor, pois vivem procurando novos. Coitados! São
eternamente insatisfeitos. O barrigudinho e seus amigos comiam carne com
molho usando garfos. Não sei como não espetam aqueles dentes metálicos
na boca! Eu teria lambido os pratos, e seria bem mais gostoso! De repente o
casal começou a rosnar entre si. Em breve, latiam. A certa altura, ele latiu
mais alto.
-Sua cachorra!
Estranhei. Por que latir tão alto, para fazer um elogio? Humanos e cães não
são bons amigos? Certas cachorras não dão a vida para proteger a
propriedade dos humanos? A fêmea humana, furiosa, atirou o prato nele.
-Cachorra, não! Cachorro é você!
O barrigudinho gritava, tentando apartar.
-Não xinguem! Acalmem-se!
Fiquei com o rabo entre as pernas. Então cachorro não era elogio. Gani,
magoado. O barrigudinho me olhou, bravo.
-Fica quieto, Uno. Estamos conversando!
Conversa? Nem uma matilha latiria daquele jeito! Desde
aquela noite, passei a observar. Quando os humanos querem arrasar
com alguém, chamam de cachorro. Cadela, então, nem se fala. Soube
de um humano que tentou matar outro que chamou sua mulher de cadela.
Não existem cadelas lindas? Quantas humanas não andam para cima e
para baixo com suas poodles peludinhas? Um rapaz que trabalha com o
barrigudinho falou:
-Minha sogra é o cão.
Ouvindo a conversa entendi que nada poderia ser pior do que aquela sogra.
Que ingratidão, falar dessa maneira! Quantos humanos não vivem com
dois ou três bons cachorros por perto para cuidarem dele e oferecer o amor
que não conseguem de outros humanos? Outro dia ouvi a vizinha
xingando o namorado da filha:
-Ele não passa de um vira-lata!

4. Publicado na extinta revista Focinhos, em janeiro de 2000.

0 que os vira-latas têm de mau? Podem não possuir um belo pedigree
como o meu, com ancestrais campeões. E daí? Qual é o humano que tem

pedigree?

Mas o golpe final aconteceu faz pouco tempo. 0 barrigudinho estava
falando de uma jovem fêmea com um amigo. A certa altura, comentou:
-É uma gata.
Que horror! Descobri que gata é elogio. Gato também. Se um macho
humano é chamado de gato, ergue o focinho para o ar, feliz da vida. Ah, que
vontade de partir e nunca mais ver um humano pela frente! Eles dependem
de nós. Vivem à espera de nossos olhares ternos! Contam com nossos
dentes afiados para sua proteção. Por que não chamam os gatos para
guardar suas casas? Ingratos! Não há dúvida. 0 coração de um humano é
tão duro quanto um osso roído!

Cartas e e-mails entusiasmados desembarcavam na redação da
revista. A carreira de Uno andava mais depressa que a minha. Até
que, certo dia, o editor da revista, Felix, me ligou animado.
-Sabe quem vai trabalhar com a gente? A Lu!
-Ahn?
-Será a redatora-chefe.
Eu tivera uma grande decepção com essa moça. Quando dirigi a
outra revista, eu a chamei para trabalhar comigo, e ela começou com
todo o gás. Era eficiente. Nosso relacionamento ia bem. Não entendi
por que, poucos meses depois, ela pediu demissão. Lamentei sua
saída. Segundo explicou, uma oportunidade melhor lhe fora
oferecida, mais perto de sua casa, e com mais tempo para se dedicar
à família.
Algum tempo depois, ouvi fofocas: ela pedira demissão porque não
me suportava. Surpreendi-me. De despedida, dera-me um livro
muito especial de presente, de um autor uruguaio que não se
encontra normalmente nas livrarias, retirado de sua própria estante.
Depois de tanta gentileza, falava mal de mim?
Um mês depois de minha saída, ela voltou à revista. Esse gesto
consolidou a fofoca de que só saíra por não me suportar. Magoei



me. Mas como não tínhamos uma relação de amizade próxima,
resolvi esquecer. Tive uma sensação desagradável quando ela
entrou na revista canina.
Sou um tanto desorganizado, e o dia de entrega do texto de Uno
variava de acordo com o fechamento da revista. Após duas semanas
da chegada de Lu, recebi um recado da secretária dizendo que eu
devia entregar o texto no dia seguinte. Até então eu era avisado com
uma semana de antecedência. Um dia era pouco para conversar
com meu cachorro, entender tudo que ele queria dizer, esperar que
criasse uma nova coluna.
Ericei meus pêlos, digo, os cabelos. As boas maneiras exigem que
alguém, quando assume um posto em uma revista, telefone para
seus colaboradores para dizer que está chegando. Se Lu tivesse
agido dessa maneira, eu teria me comportado de maneira gentil,
desejado boa sorte no novo emprego e tudo mais. Eu já passava dos
40 anos. A maturidade traz sabedoria. Ou pelo menos eu fugia de
situações desagradáveis. Mas também não me senti bem. Minha
intuição dizia: "Ela está agindo assim de propósito, para demonstrar
que não gosta de mim e que quer o mínimo contato possível".
Agi como se não tivesse recebido o recado. Não enviei o texto. No
dia seguinte, nova mensagem, também da secretária, em tom mais
duro, ríspido.
-O seu prazo acabou. Vai entregar o texto ou não vai? O valor de
cada texto não era nenhuma fortuna. Só o
suficiente para comprar a ração. Um trabalho semelhante seria mais
bem pago em qualquer outro veículo de comunicação. Os donos da
revista eram meus amigos, e eu fizera um preço camarada porque
ainda estavam investindo. Penso, porém, que a camaradagem deve
ser uma via de mão dupla. Telefonei para o diretor que me
convidara e expliquei:
-A Lu não gosta de mim. Não vamos conseguir trabalhar juntos. Eu
não costumo ser cobrado desse jeito e o Uno só não enviou o texto
porque ficou de mau humor.


-Há algum engano, vou falar com ela!
Saí. Quando voltei para casa havia uma ligação da própria Lu. Um
horrendo pedido de desculpas.
-Estou telefonando para resolver a situação sem mordidas. Só com
lambidas.
"Não podia ser pior", pensei.
Eu não queria as tais lambidas. Nossa relação deixara de ser
profissional, já estava impregnada de mal-entendidos, o que gerava
um certo mal-estar. Não valia a pena ir adiante. O teatro me
ensinara que é preciso prestar atenção aos detalhes. Se logo no
começo dos ensaios uma atriz atrasa, vem com desculpa, reclama
que o cafezinho está frio e de outras coisas, melhor trocá-la, e bem
depressa. Cafezinho frio? Parece um motivo absurdo. Quem faz teatro
sabe: mais tarde, quando a peça estiver em cartaz, as
reclamações vão crescer, atingir um nível extraordinário. Algumas
peças de sucesso podem até emperrar carreiras, pois o elenco entra
em pé de guerra nos bastidores. Assim, dou atenção aos detalhes. Se
vou trabalhar com alguém e a relação se inicia com problemas, é
melhor parar antes de chegar à loucura. Até porque reconheço meus
defeitos. Tenho um temperamento explosivo -ainda bem que só de
vez em quando. Fujo de situações nas quais a tensão possa fazer o
pior de mim vir à tona. Avisei que não haveria mais texto. Naquela
noite, dei a notícia:
-Uno, você está desempregado.
Ele deitou ao meu lado e prendeu minha mão com as duas patas.
Quando cães "pegam" alguém com as patas estão querendo dizer:


-Você é meu! Meu! Eu gosto de você! Assim, respondi:
-Você também me pertence, Uno! Não se preocupe, onde há ração
para um, há para dois!



10

Pouco tempo depois, iniciei realmente minha carreira na televisão.
Foi um período muito criativo, em que me dediquei a fazer aquilo
de que mais gostava: escrever. O trabalho de roteirista é exaustivo,
exige muito. São horas e horas no computador, mais telefonemas,
reuniões. Minha vida pessoal, que já não andava na melhor das
fases, foi por água abaixo. Deixei de ver amigos. A vida é estranha.
Às vezes gosto de uma pessoa, passo o tempo todo perto dela,
tenho muitas afinidades. Subitamente os horários não combinam
mais, a gente se vê menos, se afasta, cada um vai para uma direção.
Descobri também que, para um escritor, é mais difícil conhecer
pessoas.
Quando tinha um emprego ao qual comparecia todos os dias, as
relações ocorriam automaticamente. Havia uma vida social que
girava em torno do trabalho, feita de almoços, encontros no final do
expediente, festas nas casas dos companheiros de redação. Uma
grande rede de amigos que se forma em torno de um emprego,
embora freqüentemente essas pessoas se afastem quando alguém
muda de trabalho. Ao me retirar para viver como escritor, perdi o
cotidiano dos relacionamentos. Claro, tinha conhecidos e amigos,
alguns de muito tempo, mas havia anos andava afastado. Era
preciso ligar, marcar, estabelecer compromissos. Na televisão,
conhece-se muita gente. Quem convive entre si são os atores e os
diretores, que vão todos os dias ao estúdio, gravam juntos e, no
final da tarde ou à noite, saem para beber alguma coisa. O autor,


não. Fica sozinho em casa. Se eu tinha um trabalho urgente, fugia de
compromissos com os amigos. Pior: desmarcava encontros, jantares
e passeios na última hora. Quando tinha tempo livre, todos já
estavam de agenda cheia. A maior parte dos autores vive com alguém,
e as relações costumam ser duradouras. Talvez porque
depois que um sujeito se torna roteirista de televisão, não tem mais
tempo para namorar, quanto mais casar!
Não digo que minha vida fosse inteiramente solitária. Encontros
legais aconteceram. No entanto eu investia toda minha energia na
carreira, talvez porque meu coração ainda continuasse fechado para
relacionamentos mais profundos.
Trabalhar em casa possibilita uma vida relaxada. Eu passava o dia
com calças leves de ginástica, camiseta, andava descalço e coberto
de pêlos. Sim, esta é uma característica dos huskies siberianos.
Perdem pêlos duas vezes por ano: de janeiro a julho e de julho a
janeiro!
Eu me admirava com a saúde de Uno. Segundo meus cálculos, já
era um cachorro próximo da velhice, pois para os cães o tempo
passa mais depressa que para os humanos. Bem tratado, vivo,
animado, parecia muito longe de qualquer enfermidade. Nossa
relação era muito próxima, um sabia o que o outro estava pensando.
Se eu estava triste, ele ficava quieto, afetivo, deitava-se ao meu lado.
Conversávamos.
-Ah, Uno, as coisas não são fáceis! Ele me observava compreensivo.
-Sei que você não está legal, mas fique bem; estou aqui! comentava
com o olhar.
Se eu estava legal, ele também se alegrava, erguia o rabo, corria e
me chamava para brincar. No jardim, disparava para um lado e
para o outro. Eu o perseguia. No final, o agarrava, acariciava seus
pêlos, fazia cafuné no alto da cabeça. Ele lambia minhas orelhas,
mordia as pontas, como nos primeiros tempos.
Contudo, certo dia, notei que seu corpo estava arqueado, numa
postura exagerada, que não era comum. Tentava evacuar. Estranhei.


Mas não levei em conta. Nos dias seguintes, percebi que a
dificuldade continuava. Durante algum tempo ainda o levava ao
veterinário próximo à minha antiga casa, o mesmo que retirou os
espinhos do ouriço. Desta vez procurei um mais próximo. Ele o
amarrou. Fiquei ao lado, observando seus olhos tristes, a expressão
subjugada.
-Pobre Uno! -exclamei.
O veterinário o examinou cuidadosamente. Diagnosticou:
-Ele está com uma verruga próxima ao ânus. Vamos ter que tirar.
-É sério?
-Não, é só tirar, não se preocupe.


Passou um dia em recuperação. Voltou para casa animado.
Comentei com minha amiga Vera:
-Ele ficou ótimo!
-Tomara que a verruga não volte -disse ela.
-Como assim?
-Às vezes surge outra.
-É perigoso?
-Depende.
Eis uma palavra de que não gosto: depende. Obviamente havia um
risco. Nos dias seguintes, conversando com alguns amigos
cachorreiros, descobri que em alguns casos as verrugas voltam a
nascer internamente, alojadas no intestino. Problemas no intestino
são complicados: é um local onde as inflamações são freqüentes por
causa da dificuldade de assepsia. Mas nas semanas seguintes Uno
parecia tão animado quanto antes, correndo com a mesma alegria, e
meu otimismo voltou.
-Você saiu dessa, amigão!
Porém o sintoma voltou: ele se arqueava novamente. Retornamos ao
veterinário.
-Como se pode resolver?
-Eu vou cauterizar as verrugas.
-A anestesia não é perigosa?



-Sempre há um risco, mas...
Olhei para meu cachorro deitado na maca. Meu coração murchou,
apreensivo. Fiz um carinho e o deixei para nova intervenção.
Voltei alguns dias depois e, desta vez, garantiu o veterinário, o
problema já estava acabado. Entretanto, por causa da idade, Uno
tinha que tomar um remédio para o coração.
-Mas o que ele tem?
-Não se preocupe, é só para regular.
Passei a administrar as pílulas duas vezes por dia. Ele fugia quando
me via chegar. Eu o chamava furioso. Abria sua boca e enfiava o
remédio lá dentro. E segurava seu focinho para obrigá-lo a engolir.
"Se pelo menos ele ficar bem, não importa o trabalhão que me dá!"
Mas as verrugas voltaram. Novamente, o veterinário as cauterizou.
-É normal com a idade -explicou Vera. -Também não é tão sério
assim. Seu cachorro está muito bonito, vai viver muito tempo.
Olhei para Uno, que estava deitado no jardim, calmamente. Senti
uma dor no peito. Minha relação mais estável nos últimos anos era
com meu cachorro.
Não tenho vergonha nenhuma de confessar uma coisa dessas. Cães
e seres humanos parecem se comunicar telepáticamente. A
fidelidade de um cão costuma ser maior que a de uma pessoa,
mesmo quando o animal é submetido a situações extremas. Soube
do caso de um mendigo cujo cachorro, sarnento, maltratado, ficava
a seu lado, protegendo-o enquanto dormia na rua. Li uma
reportagem na internet sobre uma pesquisa da fundação Pine Street,
da Califórnia, nos Estados Unidos, segundo a qual cães conseguem
detectar câncer em organismos humanos mesmo quando não há
vestígios da doença. A fundação realizou um teste com 55 pessoas
com câncer no pulmão e 31 com câncer de mama. Os acertos
caninos foram entre 88% e 97%. Sobreviventes de um terremoto na
China declararam que muitas mortes poderiam ter sido evitadas se
as pessoas tivessem prestado atenção aos cachorros. Os cães
ladraram selvagemente durante horas antes do abalo sísmico. Eu


mesmo já tive essa experiência. Há muitos anos, quando vivi nos
Estados Unidos, passei uma temporada no México. Houve um
grande terremoto seguido pela explosão de um vulcão. Lembro-me
da noite seguinte à tragédia em que boa parte da cidade foi
derrubada. Não se ouvia um latido sequer nas ruas, como se os cães
estivessem de luto, fazendo silêncio por nós. Cães são especiais.
Minha ligação com Uno estava além de qualquer explicação, como
costuma ser a de alguém com seu cachorro. Durante milênios os
cães vivem ao lado dos humanos. Tornaram-se parentes próximos,
com relacionamentos carregados de afeto e comunicação.
Mas eu também era capaz de olhar para ele e saber e estava tudo
bem. E desta vez minha intuição dizia: não estava. Quando Uno
piorou novamente, senti um nó no estômago. Fiquei com ele muito
tempo, conversando em voz baixa, falando de nossa vida.
Lembrando os momentos engraçados, como os de revolta, quando
eu ainda lhe dava banho em casa. Dos patos. Das coisas boas que
tínhamos enfrentado.
-Meu Uno! Meu Uno! Voltei ao veterinário.
-Não adianta cauterizar as feridas porque elas vão voltar. E o pior é
que o reto formou uma bolsa, logo no final, que dificulta a
evacuação -concluiu o veterinário. -O melhor é operar.


Seria simples, segundo explicou. Cortaria o final do reto, justamente
a região afetada. Coisa pouca.
-Assim ele fica livre do problema. Ficou mais tempo internado.
-Aqui nós podemos controlar a alimentação e a higiene do local.
Era verdade. Foram alguns dias de angústia. Fui visitá-lo várias
vezes. Dentro de um cercadinho, parecia bem. Quando me via,
corria agitado, pedindo:
-Quero voltar pra casa!
Só me despedia com dificuldade. Mas a recuperação foi boa. Dali a
pouco tempo ele voltou.
-Seja bem-vindo de volta, Uno!



Não demorou muito, surgiu uma incontinência. Uno, um cão
sempre tão educado, um gentleman, agora sujava todos os cantos. O
veterinário explicou:
-Devido à idade, com essa operação alguns cães perdem a
flexibilidade do ânus.
Tive que contratar a faxineira mais um dia por semana para limpar

o jardim, onde agora o deixava boa parte do tempo. Percebi, porém,
que Uno sofria visivelmente. Procurei um novo veterinário.
-O meu colega agiu corretamente -explicou ele. -Mas, agora, Uno
precisa fazer limpezas internas com alguma regularidade.
Um novo item foi acrescentado a nossa agenda. Semanalmente eu o
levava para a limpeza intestinal, que parecia muito desconfortável.
Voltava um dia depois.
-Tudo bem?
Ele mal me cumprimentava.
-É assim que você trata um senhor de idade? De modo tão indigno?
-declarava Uno, revoltado, erguendo o focinho.
Com o tempo, a necessidade de limpeza ficou mais freqüente. Por
sorte, eu já ganhava bem. Tinha um contrato fixo como roteirista de
uma grande rede de televisão. Não precisava pechinchar com o
veterinário. Mas seria bom insistir no tratamento?
-Tome cuidado com tantas limpezas -aconselhou Vera, que sempre
entendeu muito de cachorro. -No seu lugar, parava com elas.
É o tipo de decisão difícil, porque nunca se sabe. Resolvi buscar
uma segunda opinião. Mais uma vez, troquei de clínica.
-Surgiu uma nova bolsa -explicou o veterinário. -Também creio
que as verrugas voltaram.
-O que me aconselha?
Uma receita de laxantes foi o primeiro passo. Seria preciso observálo
nos dias seguintes. Perguntei, atormentado:
-Doutor, ele sente dor?
-Alguma. Mas não insuportável. É mais um desconforto.



O comportamento de Uno mudara bastante. Andava arredio,
melancólico. Quando se aproximava, punha a cabeça embaixo da
minha mão e pedia carinho atrás das orelhas, dizendo:
-Ajude-me!
Uma coisa eu sabia: não queria que ele sofresse. Querer que um ser
amado permaneça perto da gente é um ato de egoísmo. Nós
humanos temos leis e travamos discussões infinitas no campo da
ética e da religião. Contudo, penso que o amor deve falar mais alto
nessas situações. Quando se trata de seres humanos com interesses,
dinheiro, heranças envolvidas, nem sempre é o coração que
responde. Já com os animais, há a isenção, a certeza de que a escolha
é feita tendo por base o afeto. Disse interiormente: "Não vou deixar
você sofrer terrivelmente, Uno. Confie em mim!".
Nesse tipo de situação, existe uma linha tênue, e é perigoso se
precipitar. Meu irmão vivera uma experiência diferente com a
própria mãe de Uno, Luna. A cachorra ficara bastante mal, doente,
durante semanas. Já pensavam quanto tempo mais lhe restava. Por
coincidência, naquela semana minha cunhada ganhou uma
filhotinha de outra raça. Ao ver a cadelinha, a doente animou-se.
Assumiu todos os cuidados maternais. Curou-se. Reviveu. Ganhou
novo ânimo e agilidade, e nos dois anos seguintes se comportou
como uma jovem mamãe animada e feliz, cheia de afeto para a
filhinha adotiva. Só depois, já com mais de 15 anos, voltou a
adoecer, desta vez definitivamente.
Não poderia acontecer o mesmo com Uno? Uma recuperação
mágica? A doença talvez não fosse tão grave. Eu botava a mão no
seu focinho e me sentia aliviado: nunca estava quente, febril. Mudei

o tipo de ração, segundo pediu o veterinário, para uma dieta mais
pastosa. Dava os remédios nas horas certas. Se precisava viajar a
trabalho, a faxineira vinha mais vezes por semana para tratar dele.
Semanalmente ia tomar banho no veterinário, que sempre o
examinava, otimista.
-Parece estar muito bem.

Em um intervalo mais curto que das outras vezes, Uno voltou a
piorar. Sua condição tornou-se mais acentuada. Antes tão animado,
passava os dias deitado, em geral na sala, perto da televisão, que eu
deixava ligada. Não sei se entendia nossas tramas humanas, filmes,
novelas, beijos e traições. Mas certamente gostava do som, da
música, do barulho que lhe fazia companhia quando eu estava fora.
Deitava perto de mim sempre que podia. Naqueles dias calmos,
cultivei a esperança de que Uno tivesse uma velhice calma,
tranqüila, perto de mim.
Certa noite, fui jantar com um amigo recém-operado do coração. Na
conversa, ele me contou tudo que o médico lhe dissera, suas
esperanças. Através de suas palavras, entendi a verdade. O médico,
da forma mais atenuada, dera más notícias. Sua saúde não estava
bem. Era tomar decisões, preparar-se. Ele não entendera assim. Mas
eu pude discernir a verdade atrás do véu das palavras. No carro,
voltando para casa, outra verdade foi se evidenciando. Tudo que o
veterinário dissera era semelhante ao discurso do médico. Falara em
cautela, em problemas, em observar. Eu é que me enganava.
Comecei a chorar no carro. Ao chegar em casa, corri até Uno. Estava
deitado no acolchoado, perto da televisão. Quando me viu, quis se
levantar. Só então percebi como suas pernas estavam fracas. A
dificuldade para se movimentar. Uno envelhecera muito nos
últimos meses, no entanto eu não quisera enxergar. Agachei-me.
Abracei-o. Chorei.
Ainda tinha que escrever uma crônica para a revista. Fui até o
computador e deixei meu coração falar.


11

Sou o tipo de sujeito que sempre escreve com a corda no pescoço.
Quer me ver trabalhar? Pois me dê um prazo. Enrolo até o último
momento. Depois corro para o computador e boto tudo na telinha.
Nunca atrasei uma crônica, um roteiro, nunca! Mas estou sempre
apavorado com a entrega. Uma das minhas vantagens é que escrevo
depressa. Às vezes, porém, dá branco. Não vem idéia nenhuma. Foi

o que ocorreu naquela noite. Eu tinha uma crônica para enviar. Era
o último dia. A revista devia ser mandada para a gráfica. A minha
cabeça parecia um pastel. Mergulhado em angústia, só pensava no
meu cachorro doente. Sentei no computador e olhei a tela vazia.
Nada na minha cabeça. Queria escrever uma crônica divertida,
bem-humorada. Impossível. Respirei fundo e comecei a digitar,
movido apenas pela intuição. Vou reproduzir a crônica. Peço
desculpas por repetir algumas informações, mas este texto foi o
embrião deste livro.
Meu cachorro5

Meu cachorro está doente. É um husky e tem 14 anos. Dizem os
conhecedores da raça que 12 é o tempo normal de vida. Mas sempre tive
esperanças de que fosse muito além. Sua mãe viveu até os 17. Seu nome é
Uno. Não é muito comum, mas tem um motivo. Meu irmão e minha
cunhada, há muitos anos, resolveram montar um canil em Campinas. Só de

5. Originalmente publicado na revista Veja São Paulo. Edição 1982, de 15/11/2006.

huskies. Compraram macho e fêmea de uma linhagem gloriosa. 0 avô,
importado do Canadá, foi até capa de revista especializada. Registraram o
canil. Alimentaram o casal, deram vacinas e prepararam-se para fazer
fortuna. Logo uma ninhada estava a caminho. Meu irmão fez as contas. Na
época o husky era muito valorizado. Com um certo número de cãezinhos,
teria um bom lucro!
-Serão dez, onze? -sonhava minha cunhada Bia.
Nasceu um. Sim, um somente! Ganhou o nome de Uno, e me foi dado de
presente. A grana ficou na imaginação.
cheio! Um terror, o meu cachorro! Bravamente, capturou um ouriço.
Dezenas de espinhos penetraram seu pêlo. Entraram em sua boca. Eu
nunca vira um espinho de ouriço. É duro, pontudo! Impressionante. Fiquei
a seu lado enquanto o veterinário arrancava um por um.


Mudei para a cidade. Meu cachorro envelheceu, e passa longas horas
deitado a meu lado vendo televisão. Deve achar um absurdo tantos tiros,
beijos, lágrimas e juras de amor. Gosta de, simplesmente, ficar do meu lado.
Ao olhá-lo eu tenho uma sensação de conforto. Às vezes se levanta, bota a
cabeça nas minhas pernas e coço suas orelhas. Sua boca se estica. Tenho a
impressão que é um sorriso.


Há algum tempo começou a ficar doente. Ainda parece saudável. Seu pêlo
castanho brilha. Mas surge uma coisa aqui, outra ali. Toma remédio para o
coração. Laxantes. Às vezes uiva baixinho -huskies não latem.
É a terceira vez que o envio ao veterinário em duas semanas. Agora, nem
conseguia ficar em pé, de tão frágil. Sinto angústia só de pensar em sua
imensa solidão, longe do tapete onde costuma dormir, sendo picado, mal
comendo e, principalmente, sem alguém que lhe acaricie o pêlo. A doença
deve ser um mistério para ele mesmo.
O amor de um cão é incondicional. Vejo mendigos na rua acompanhados de
cachorros esquálidos que não os abandonam e até os protegem nas noites
escuras. Vejo crianças a quem o cão ajuda a conhecer o afeto. Eu sei que
meu cão está partindo. Se não for agora, será daqui a semanas ou meses,



pois uma coisa vira outra, e outra. Ou ele não conseguirá resistir, ou
chegará a um ponto em que terei que dar um nó no coração e abreviar seu
sofrimento. Eu tenho que resistir e fazer o melhor. Coçar sua barriga e falar
palavras docemente. E, se puder, quando chegar a hora, colocá-lo em meu
colo e dizer o quanto o amo.
Quando sentei diante do computador, queria escrever linhas engraçadas,
repletas de bom humor. Foi impossível. Meu sentimento falou mais alto.
Quem já amou um cão entende minha dor.


Até fiquei envergonhado, quando enviei a crônica, por ser muito
pessoal. Como já disse, costumo escrever humor. Tenho dificuldade
para expressar minhas emoções. Um homem é educado para não
chorar. É coisa do passado, mas certos ensinamentos ficaram
entranhados dentro de mim. Meus pais nunca foram de abraçar, de
beijar. Aprendi a ser contido. De repente, revelei minha dor em
público. Fiquei constrangido, por pouco não pedi que me deixassem
trocar a crônica.
Tive uma grande surpresa. Centenas de cartas, e-mails, telefonemas
despencaram na redação da revista. Eram pessoas se solidarizando
comigo, falando de seus próprios bichos de estimação, cachorros e
até gatos muito amados. Mesmo algumas que não possuíam
animais escreveram para dizer que entendiam meu sentimento.
Foram ondas emocionantes de afeto. Até hoje, ao reler cartas e emails,
as lágrimas escorrem dos meus olhos.
Gostaria de publicar todos, mas precisei selecionar. Mantive frases,
pensamentos, porém evitei nomes, para não expor os remetentes.
São lindos depoimentos, vindos de pessoas que sabem expressar a
emoção.

"... sou um homem de 66 anos de uma vida dura, de muitas lutas, muitas
vitórias e também derrotas. Uma coisa que sempre foi difícil na minha vida
quase impossível foi chorar, seja por alegria, seja por tristeza. Mas hoje, ao
ler a sua crônica a respeito do seu Uno, eu chorei lágrimas de verdade, pois


eu lembrei do meu Barry, um cocker maravilhoso, meu maior amigo, que
morreu com 14 anos após longa enfermidade. Tudo que você falou do Uno,
eu repito do Barry. Obrigado por me fazer chorar. "6

"Entendo sua dor. Faz pouco tempo que perdemos nosso cachorrinho, o
Tico. Foi um dia terrível. Achei que todos nós enlouqueceríamos aqui em
casa. É difícil de descrever, mas foi uma dor muito grande. Nós o
amávamos muito. Tanto que quebramos o chão para que ele fosse enterrado
aqui mesmo, perto de nós e em sua casa."

"... Sou vegetariana e apaixonada por animais. Já passei pelo momento pelo
qual você está passando por mais de uma vez. Não deu para segurar as
lágrimas, senti seu coração gritar de sentimentos nas linhas de seu texto,
coisa rara hoje em dia, em que a compaixão parece ter desaparecido."

"... Traga-o para o seu lado e fique com ele o tempo que puder, pois tenho
certeza de que, por mais que precise de tratamentos médicos, o que puder
fazer em sua casa será o melhor. O animal precisa de seu dono, acho que é
só isso que o faz estar seguro e feliz, por mais doente que esteja."

"... Eu não sabia que eu a queria tão bem. Hoje a casa está vazia. Por ela ser
tão amorosa, seu afeto preenchia a casa. Estou moída. Quebrada por dentro.
Em cacos. Quando chegamos na veterinária para a mandarmos para o sono
eterno, creio que ela sabia o que iria acontecer. A impressão que tive é que
ela não queria 'partir'. Quando a médica foi aplicar o anestésico, ela gritou
na aplicação. Eu não estava na sala. Fui covarde. Minha irmã esteve ao
lado dela o tempo inteiro. Eu me escondi no banheiro logo ao lado, mas eu
ouvi o grito. Nesse momento eu fui para a sala onde [ela] estava, e quando
foi se desligando, olhei para ela e tinha uma lágrima escorrida de seu olho

6. Este e os outros e-mails e cartas foram enviados aos meus cuidados à redação da revista
Veja São Paulo.

esquerdo. Esta cena está marcada em minha memória. Triste cena."
"Sabe, tenho uma labradora de 9 anos, resgatada da rua há dois. E me
apeguei de tal forma a ela que não me vejo sem a sua presença perto de
mim, pedindo carinho, encostando a cabeça na minha perna e chegando a
ressonar quando dorme... E depois que li... fiquei pensando... e corri para
dar um abraço nela, e lhe beijar o focinho. Todas as noites quando esfria eu
a cubro com o cobertor... Eu a amo muito!"

"... cheguei a chorar lembrando da minha Rebeca tão velhinha, mas que
esteve firme e forte nos nossos momentos de dor e tristeza quando perdemos
meu pai... Diga ao seu Uno que o ama, esteja ao seu lado e seja grato por
ter sido abençoado com a presença de um anjo em forma de cachorro em sua
casa! "

"Há quatro e dois anos tive que dar o tal nó no coração, e trocar o
sofrimento deles pelo meu. Há très meses, meu último bichinho, uma
tartaruga que estava na família havia 73 anos, e comigo há 45, também se
foi. Ela não agüentou a saudade dos cachorros, foi brincar no céu com eles e
meu pai. Minha casa ficou tão grande! Não tenho conforto pra te oferecer.
Mas tenho dois ombros."

"Temos uma dachshund de 14 anos. O nome dela é Polly. Ela é linda.
Preta com a fuça e as patinhas marrons. E tem uma manchinha branca no
pescoço. Quando era filhote eu e meu irmão brincávamos muito com ela.
Ela corria por toda a casa com uma energia inesgotável. Adorava brincar
com uma bolinha de tênis. A fazíamos de joão-bobo. O meu irmão até a
colocava dentro do capacete dele. Ela ficava muito brava. A ganhei de meus
pais quando tinha 10 anos. Hoje tenho 25. Posso dizer que crescemos
juntas. Agora ela está doente. Até a cor do pêlo não é a mesma. Tem um
problema grave no coração que afeta seu pulmão. Ela sofre muito. Não a
castramos quando teve filhotes, ficamos com dó. Hoje, ela já tirou três
tumores nas mamas. E não podemos castrá-la mais, pois seu coração não


suportaria uma cirurgia tão invasiva. O que posso dizer é que aproveito
todos os dias com ela como se fosse o último. Apesar de passar o dia inteiro
fora trabalhando, quando volto, sempre a pego no colo e fico coçando a sua
cabecinha. O veterinário diz que é um milagre que esteja viva até hoje com
os problemas que tem, mas acho que o amor que ela tem por nós,
principalmente pela minha mãe, a mantém viva."

"Ela foi abandonada filhotinha na rodoviária de minha cidade, onde
trabalho. Estava magrela e vermelhinha de sarna que cobria quase 100% de
sua pelagem. Fui cuidando dela com outras pessoas até que assumi
totalmente a cachorra. Levo-a à veterinária sempre que precisa. Ela fica na
minha sala -na rodoviária

-durante a semana, tem cama, cobertor, travesseiro, roupinhas, vasilha
para água e ração, tudo muito limpinho. Nos finais de semana fica na
minha casa. Meu marido gosta de atletismo e ela corre com ele, já
participou de umas quinze maratonas de 10 km, virou até atleta, a
cachorra!"

"É quase meia-noite e acabei de aplicar uma injeção de antibiótico na
minha cadela (uma akita,), que está com uma infecção urinária crônica há
quase um ano! Além de um problema de coluna que a deixa quase sem
movimentos nas patas posteriores. Fiz até uma sacolinha para ajudá-la a se
levantar e andar. Esqueci-me de falar que ela está com 13 anos e 3 meses, e
se você não conhece a raça, é bom saber que ela é próxima do husky,
também vem de lugar frio, com muita neve. Durante uma fase fiquei muito
encucada comigo mesma, pensando se eu não a forçava a permanecer
comigo mais tempo. Choro muito também porque agora ela vive de fraldas e
fica olhando para mim confiante. Enfim, estou na mesma situação,
esperando, curtindo cada dia que ela fica comigo, um passo que ela
consegue dar, uma comidinha a mais que ela resolve aceitar!"

"Há duas semanas o cachorro da família morreu, sem dor e
silenciosamente, um husky como o seu. Chamava-se Iago. Tenho sua foto


no álbum de família. Era mimado como uma criança, dormia em um sofá
exclusivamente seu, todas as tardes comia seu pãozinho, devidamente
reservado na padaria próxima de casa, desfilava pela casa ostentando sua
beleza e nos olhando com ternos olhos azuis. Era conhecido da vizinhança.
Todos que passavam pelo portão brincavam com ele, embora de longe, pois
era de poucos amigos e havia mordido alguns cachorros distraídos, perseguido
uma ou outra pomba e até mesmo um ou outro vizinho. É certo que
todos os cães têm personalidade, e ele com certeza tinha a sua. Ele se foi,
depois de onze anos deixou saudade e uma casa vazia..."

"Seis meses atrás, falava palavras carinhosas misturadas com um choro
silencioso ao ouvido do meu labrador Rex, de 10 anos, enquanto a
veterinária aplicava-lhe uma injeção letal (indolor). Dias antes, alguém me
disse que ele estaria sempre vivo no meu coração. Ajudou muito."

"... não só me solidarizo com sua dor como também entendo muito bem o
que está passando. Já passei por isso. A diferença é que foi com um gato.
Tudo bem, sei que geralmente quem gosta de cães não gosta de gatos e viceversa.
Mas não é meu caso, gosto -e muito! -dos dois. Também tenho um
cão. Mas, independentemente de qualquer preferência, a dor da perda é a
mesma. E é difícil de explicar para quem não tem ou teve um querido
animal de estimação. Certa vez um conhecido me desafiou, criticando meu
amor aos (meus) animais dizendo: "Oras, é apenas um gato! O que você
ganha com isso?". Irritada, respondi de pronto: "Se você não entende nada
sobre amor incondicional, não sou eu que vou perder meu tempo
explicando ". Ele baixou os olhos e nunca mais fez nenhuma provocação a
respeito. Tratava-se de um sujeito engravatado, ainda jovem, mas aspirante
a grande executivo, para quem só a lógica dos números e do dinheiro fazia
algum sentido na vida. Deve ter calado fundo nele. Ainda bem! Mas
voltando ao gato, ele realmente era muito especial. Também foi o primeiro
filhote da minha gata, que ainda está conosco, e o único da gestação. Por
isso, seu nome era Júnior. Nasceu, literalmente, na minha mão. E era eu


quem o amamentava e limpava, pois como era a primeira cria, ela não se
sentiu muito maternal. Em outra leva, provou ser uma mãezona. Mas,
daquela vez, a mãe fui eu. Ele faleceu ainda jovem, com uns 9 anos, vítima
de complicações renais. Fizemos tudo ao nosso alcance para salvá-lo: até
uma cirurgia com sonda na bexiga eu e a veterinária dele inventamos! Mas
acho que em um determinado momento ele simplesmente desistiu de lutar e
se foi. O que doeu mais é que, como moro em um apartamento pequeno em
São Paulo, optamos por evitar separá-los (ao todo eram quatro gatos) e os
deixamos todos juntos com minha mãe, que mora em uma casa no interior
de Minas. Eu tive a chance de vê-lo, já recuperado da cirurgia. Estava
abatido e enfraquecido, mas bem. Dormiu comigo todos os dias em que
estive lá, fiz questão! Dormia com sua cabeça repousando na palma da
minha mão... Mas poucos dias depois de eu ter voltado para São Paulo, por
compromissos profissionais, ele faleceu. Dormindo, segundo meu pai.
Quero acreditar que ele resistiu para que eu tivesse a chance de me
despedir. A dor foi enorme! Como se tivesse perdido um membro da
família. E como explicar tanta dor por um animal quando há tanta gente
sofrendo por outros seres humanos? A gente se sente meio tolo, mas isso
não diminui a dor da perda, não é?"

"Tenho uma cadelinha (La Luna é seu nome) e sou apaixonada por ela. Nós
que temos essas "pessoinhas" em casa sabemos como são companheiros,
fiéis, amigos, verdadeiros... "

"Embora goste de bichos e os admire, nunca tive um animal de estimação
realmente meu! Na verdade, via de regra, com os bichos de algumas casas
em que eu morei, nunca me dei muito bem...

sempre tive uma relação distanciada. No entanto, não pude deixar de me
emocionar. Pode ter certeza de que aquele rictus no focinho do Uno é um
sorriso sim, e que ele o ama tanto como você a ele!"


"Sei que nessas horas não adianta falarmos nada, só quem tem um cão
entende. "

"Parabéns porque você tem um animal de estimação. Entendo que o
contato diário entre um bicho e o ser humano torna o homem mais emotivo,
mais ligado ao meio ambiente, mais ligado a Deus. Que Deus o abençoe
neste momento. A natureza é assim: nasce, cresce e vai".

"O nosso Erick, um poodle de 17 anos, estava fraquinho, esquálido, mas
não perdia o apetite, comia mais que os outros. Andava meio cambaleante,
brigava pelo seu espaço com o pequenino Jimmy e com o grandão Ozzy (já
deu para perceber que meu filho e minha mulher são fãs de rock). Subia na
mesa para roubar restos de comida, comia a sua ração e, se não vigiássemos,
a de seus 'irmãos'. Começamos a ir aos veterinários e alguns exames
apontavam um pequeno problema cardíaco, mas nada de outro mal maior.
Fomos levando até que um pouco antes do Natal, lá pelas 3 horas da
madrugada, começou a respirar mal, um pouco de vômito, gemeu, e eu e
meu filho o levamos para um veterinário de plantão. Não havia mais nada
que fazer, ele 'foi embora ' no colo do meu filho, não parece que morreu,
parece que 'fugiu '. "

"Tenho 9 anos e também tenho uma cachorrinha e o nome dela é Mel. Se o
seu cachorro morrer ele vai morrer com Jesus e será bem cuidado, porque
ele estará no céu."

"Se existe algo que observo nas ruas são os cães dos mendigos. Céus! Como
aqueles bichos são fiéis e orgulhosos de seus donos! Você acredita que todas
as tardes, aqui no meu bairro, chega uma gente estranha numas carroças
catando lixo das lixeiras das ruas? Outro dia vi um homem com uma
carroça enorme com pneus de carros e toda cercada com varais suspensos.
O que me surpreendeu foram os três cachorros esquálidos, mas imponentes,
orgulhosos, com aquele jeito de cachorros de madame quando vão desfilar.
Nem se mexiam diante das buzinas dos carros e apesar de estarem sobre


pilhas de papelão e garrafas que não davam sustentação para se
equilibrarem. O amor de um cão é algo indescritível. Burra, não acredito
em reencarnação. Será possível nós humanos voltarmos um dia a esta vida
no pêlo de um cachorro, porque de fato eles têm sentimentos melhores que
os humanos? Sabe, eu levo uma vida de cachorro, e sei bem o que o Uno
deve estar passando. Mande notícias, tá?"

"... Tenho 24 anos e perdi meu melhor amigo, meu gato Viterbo. O nome é
engraçado e estranho. Às vezes o chamava de Vituxo, Vitinho ou de Vítor.
A história dele é muito engraçada, pois a mãe estava mudando os gatinhos
de lugar e os punha na boca para transportá-los. O Viterbo ela deixou cair,
e [ele] ficou para trás. Minha irmã ficou com dó e pegou o gatinho. Não
tinha nem um mês e estava com os olhos fechados. Cuidamos, compramos
mamadeira! Foi uma festa! Vivemos muitas coisas juntos: ele sempre
estava ali comigo quando passei no vestibular, quando fiquei
desempregada, quando brigava com meu namorado. Sempre ele estava ali
para me consolar! Eu o perdi há quatro dias. Ontem completei 24 anos e
até parece que ele estava lá quando soprei as velinhas! É doloroso pensar
que na segunda-feira ele não vai estar na hora que eu chegar do trabalho à
noite, me esperando na porta e se esfregando nas minhas pernas!"

"Há dois anos meu cachorro (sem raça definida... rs) foi atropelado em
frente a minha casa e fraturou a coluna. Sua veterinária, desacreditada, nos
disse que seria necessário sacrificá-lo, pois ele jamais voltaria a andar e
seria melhor para todos não prolongar o sofrimento do pobrezinho. Mas
Deus é tão grande que no dia seguinte ela nos disse que talvez com uma
cirurgia ele tivesse uma chance. Fomos a um consultório gratuito da
universidade, que se recusou a operar. Mas uma veterinária de lá
improvisou uma tala com chapas antigas e esparadrapo pra colocar em sua
coluninha. Foi um mês sem dormir para poder cuidar do cãozinho Nero,
que contava com apenas 1 aninho. Qual não foi nossa surpresa quando,
ainda com a tala, ele se arrastou de madrugada até a cozinha e, poucas


semanas depois, assim que ela foi retirada, ele voltou a andar
normalmente... Claro que ele tem a coluninha torta, mas é normal como
qualquer cachorrinho. Outro dia o levamos à praia e ele correu loucamente,
na mais pura felicidade. Na época, nós chorávamos e pensávamos se o que
estávamos fazendo era certo com ele, se sacrificá-lo não seria melhor para
ele, o pobrezinho estava sofrendo demais... Mas nós resolvemos dar a ele
uma chance e deixar que a natureza fizesse seu trabalho. Ele se recuperou
totalmente!"

"O meu Tiko está bastante velhinho (16 anos), e nesta última semana tem
estado bem 'caidinho'. Também morro de medo de olhar para o colchão dele
e ver um lugar vazio."

"Convivo desde criança com um querido irmão peludo, que acabou de
completar 13 anos. Ele tem um olhar que me decifra, sabe quando estou
bem, preocupada, triste; é um amigo incondicional. Desde que saí da casa
dos pais para estudar está comigo. Aquela presença, mesmo silenciosa,
aquece e conforta, e seu olhar eloqüente é um bom conselheiro. Ele me fez
perceber que muitas vezes é isso que basta, é isso que nós procuramos, esse
'estar com' simples, sincero, sem barulho, sem exageros. Em regra, as
pessoas falam demais, têm receita para tudo, respostas prontas e previsíveis.
Minha mãe faleceu há dois meses e meio, e o senhor pode imaginar:
quer seja no trabalho, ou no prédio onde moro, em nome das convenções
sociais, venho escutando as mesmas soluções e receitas, que não estou
sequer pedindo ou procurando. Outro dia, após uma noite em claro,
sentindo a dor da saudade, cheguei ao trabalho com olheiras e uma colega
perguntou: O que aconteceu? Expliquei que não consegui dormir etc. Ela
olhou-me com o cenho franzido e respondeu: 'Mas você ainda não
superou?' Estava tão cansada que nem respondi. Apenas um colega de
trabalho falou uma coisa que fez algum sentido: 'É um mistério, o mais
previsível e o mais complicado de entender e de conviver. Realmente não sei

o que dizer; se precisar estou por aqui'. "

"O meu cachorro chama-se Tutty, e está conosco há aproximadamente
dezesseis anos. Chegou para minha filha Mariana em seu décimo
aniversário, na hora do bolo, bem no assoprar das velinhas. Foi trazido pelo
tio e padrinho, meu cunhado, que observava atentamente a reação do irmão
e a minha, pois éramos totalmente contra um cachorro morando em
apartamento. Mariana tinha perdido o avô querido um pouco antes e meu
marido e eu acabamos 'engolindo' o poodle preto que aos poucos foi nos
conquistando. Três crianças, um marido, um cachorro, uma escola para
cuidar... era tudo o que eu não queria. Mas hoje eu me sinto feliz, sou a
mãe da casa e o cachorro é uma grande companhia!"

"Era um corre-corre danado. Sair cedo, comprar o pão e passear com o
cachorro antes de acordar e arrumar as crianças para um dia de escola...
trabalho... e assim foi. Um dia, bem cedinho, na pressa, no hall de elevador
de serviço, virei-me para colocar a chave na porta e ele entrou novamente
no elevador. Como eu carregava um pacote de pães, a coleira flexível de
'elástico' estava presa em meu pulso. Quando finalmente abri a porta de
casa, senti meu pulso sendo puxado. Alguém apertara o botão do elevador e
com ele ia o meu cachorro dentro. Imagine a aflição, o elástico esticando,
esticando e o fio ia estendido... parte no meu hall, preso agora no vão do
elevador, e a outra parte na coleira no pescoço do cachorro. Achei que o
tinha enforcado. Entrei em casa aos prantos, acordei aos gritos o meu
marido, que com razão disse que um dia eu o mataria do coração e fomos
até o elevador. Abri a porta e nada de cachorro. Já imaginei o cãozinho
prensado, enforcado. Minutos depois o elevador retornou como uma
senhora que dizia que havia um cão em seu hall e não havia meios de
entrar no elevador. Fomos então carinhosamente convencer o nosso
mascote a voltar. No pescoço dele havia uma marca, mas ainda bem que o
elástico havia estourado. Depois desse episódio meu cãozinho acabou indo
para a casa de campo em Atibaia, onde o visitávamos às vezes, e eu voltava
com os olhos marejados pela separação. Depois de cinco anos a casa de
Atibaia foi alugada e o inquilino tinha um enorme pastor alemão. Uma
tarde vejo meu marido trazendo de volta um 'pano de chão' cor de terra em


vez de preto. Era o meu cachorro de volta para o apartamento. Foi uma
nova adaptação, mas ele estava mais calmo. Durante muitos anos acordava
às 5h30 da manhã para dar o primeiro passeio com ele e íamos nós
alegremente pela rua, antes de começar o dia. Aos finais de semana íamos
todos para Guaecá, uma praia gostosa onde no gramado ele sempre adorava
dar galopes. Sempre me esperava com aquela alegria. Agora está bem
velhinho. Sempre o levo ao veterinário, que me dá remédios e mais
remédios. Tem aquela tosse de 'cachorro' e hoje dorme no corredor, na
porta do meu quarto. Cada vez que me vê se agita, me faz a festa que
consegue e logo em seguida sofre uma nova crise de tosse. Não caminha
com tanta energia, mas adora passear, agora mais vagarosamente. Hoje seu
passeio mudou para as 6 da manhã... (Seu passo é mais vagaroso, lento.)
Sempre o agasalho, porque faz frio nesse horário, tão cedo. Acho que é uma
relação de cumplicidade e muito amor essa que desenvolvemos com os cães.
É difícil se 'preparar' para uma separação que a qualquer hora vai
acontecer. É um exercício para outras separações que temos de enfrentar em
outras situações de vida, com os nossos idosos queridos."

"Adotei um cão há sete meses. Ele era menino de rua, ou melhor, cachorro
de rua. Às vezes eu penso que ele é gente! Chama-se Bóris, mas deveria se
chamar Dino. Quando a gente chega em casa ele simplesmente derruba
tudo! Pula, morde e fica FELIZ! Realmente o amor de um cachorro pelo seu
dono é incondicional!"

"O Júnior tinha um tumor no rim, que em três dias triplicou, chegando a
ficar do tamanho de uma manga. Não havia cura e a dor era terrível.
Minha irmã, que é veterinária, disse que a melhor coisa a se fazer era a
eutanásia. Só que ela queria esperar meu cunhado, também veterinário,
chegar, pois não tinha coragem de aplicar a injeção. Não sei de onde tirei
essa força, mas pedi que acabasse logo com o sofrimento do Júnior. Pois ele
não conseguia se sentar de tanta dor e estava de pé desde o dia anterior. Foi
horrível, mas fizemos o que com certeza foi a melhor solução. O que quero


dizer com isso é que se a eutanásia for necessária um dia, agüente firme ao
lado do seu amigo, por mais dolorido que seja para você. Agüente, pois até
hoje me lembro da cara do meu cachorro extremamente confiante de que
tomei a decisão com todo o meu amor. Para sempre ele será amado e jamais

o esquecerei. Júnior era meu filho. Não podia deixá-lo só na hora mais
difícil de sua vida. Tomamos a melhor decisão e temos certeza de que vamos
nos encontrar um dia."
"Faço terapia com duas psicólogas, e uma delas é especializada no assunto
'luto'. ... viver uma perda é uma coisa muito difícil, e hoje eu enfrento a
minha terceira. Minha família é muito pequena, sou filha única, não sou
casada, não tenho filhos, e nesses meus 48 anos eu sempre vivi com os meus
pais. A minha linda, amada mãe faleceu faz seis anos, e o meu pai querido
faleceu faz um ano e meio, e tem sido muito difícil, doloroso suportar. Há
cinco meses eu perdi o Marvin Astor, meu amado cachorro. Ele era uma
mistura de vira-lata com fox terrier, já nasceu com cara de velho, desde
filhote sempre teve uma barba branca. Foi muito especial na minha vida, foi
especial para minha mãe, para o meu pai; enfim, ele esteve presente em
todos os meus momentos felizes e nos momentos mais tristes. Quando a
minha mãe e o meu pai faleceram, ele ficou comigo o tempo todo, me
fazendo companhia e me dando carinho. Sobramos só eu e o Marvin, e em
maio ele também morreu. Tinha um monte de problemas, osteoartrite, que é
degenerativa, problema de ouvido, rins, labirintite e o mais complicado: um
grave problema no coração. Sei que foram muitas idas ao veterinário,
muitos remédios, muitos exames, algumas internações... enfim, tentei tudo
para tornar menos doloroso para ele, mas o bichinho tinha tanta sede de
viver que lutava bravamente todos os dias. Ele não queria ir, acredito que
não queria me deixar aqui sozinha. Bom, vou resumir, porque do contrário
eu teria muitas, muitas histórias dele para contar. No último dia de vida,
um sábado, fiquei ao lado dele, acariciando sua cabeça, agradecendo pelo
seu amor, pelos momentos felizes que ele me deu, ficamos assim das 18h30
às 3 horas da manhã, que foi o seu horário de óbito. Sinto muita saudade,
mas sei que ele está num cantinho especial, que Deus reserva para todos os


bichinhos. Eu o sepultei aqui no quintal, pois tenho um jardim lindo e
grande, e ele está no meio das flores."

"Minha sobrinha tem um cãozinho de estimação. Outro dia sofreu um
acidente de carro de pequenas proporções físicas, mas com grande perda
material, já que seu carro deu perda total. Na hora do acidente ela estava
com seu cãozinho de estimação no colo e com o impacto da batida ele voou
pela janela e ficou preso pela guia pendurado na porta. Ela ficou tão
desorientada na hora que desceu do carro gritando para o motorista
causador do acidente: Cadê meu filho? O que você fez com ele? Onde ele
está? Você é um louco! Se meu filho morrer eu te mato! O motorista e as
pessoas que ali estavam começaram a procurar o filho acidentado, mas para
a surpresa de todos era um cão que se encontrava pendurado na porta,
quase morto. Minha sobrinha pegou o coitadinho no colo, beijava-o,
abraçava-o. Olhava para o motorista e xingava, xingava muito. Nem deu
importância ao estrago do carro, só se preocupava em beijar o cão e
perguntar se ele estava sentindo alguma coisa. O cãozinho foi medicado e
está bem. Mas quando a gente ama um cachorro é assim mesmo: é um
amigo, um filho peludo!"

"Já criei um malamute e dois huskies. Eu vivi exatamente as mesmas
enrascadas que você descreve de maneira tão brilhante. Corri quilômetros
atrás deles, chorei, implorei para que alguém lá na frente parasse o bicho
que corria feito um louco, desvairado. Fiquei sem dormir porque um deles
fugiu e não voltou. Já paguei, na conta de um hotel, um pato. Sim, um pato
do laguinho do hotel. [Já] acordei à noite com o barulho surdo de um pobre
gatinho acuado embaixo do carro. Tive de pagar também um galinha morta
do vizinho de uma casa onde passávamos férias em Uba-tuba. O mais
trágico é que eles escolhem para matar justo as galinhas e os patos mais
queridos da família! [Certa vez] salvei uma galinha exótica da boca do meu
husky. Ele soltou a bichinha e ela ficou cambaleando. Mas hoje o meu
último husky, o Kauê, é igualzinho ao seu Uno. Um velhinho. Ele nasceu


em maio de 1992 e está com 14 anos e 7 meses. Surdo, cego de uma vista,
cheio de manias, coisa de velho mesmo, faz xixi pela casa toda. É o membro
mais querido de nossa família. Ele está bem. Come bem, corre, brinca um
pouco. Mas, como o Uno, passa muito tempo dormindo. Ele é o primeiro a
acordar, cedinho. E vem me chamar para passear. O dia que ele não faz
isso, você não imagina como meu coração fica apertado até chegar à
caminha dele e ver o porquê de ele não ter acordado. Só quem é louco por
cachorro entende e partilha nossos sentimentos."

"Por mais que vivamos, por mais que soframos, jamais vamos nos esquecer,
muito pelo contrário: estaremos sempre lembrando com ternura do
acontecimento que vou narrar. No Carnaval ficamos incumbidos de cuidar
da cachorrinha Lassie, cuja dona iria viajar para uma cidade no interior do
estado. Pegamos o animal no bairro do Brás, em São Paulo, e o
conduzimos, a noite, de carro, à casa onde ele iria ficar hospedado, no bairro
de Vila Rica, para onde [ele] nunca tinha ido até então. Na tarde de terça-
feira, um temporal muito forte inundou nossa casa e, preocupados em
estancar tanta água, nos descuidamos de Lassie, que fugiu. Desespero
total! Como falar para a dona que sua querida cadelinha havia
desaparecido? Então, começamos a procurar. Vasculhamos, em vão, todas
as imediações. Quando a dona, na sexta-feira, regressou, chorou
desconsolada, mas acreditava que poderia encontrá-la. E continuamos as
buscas. Eu, particularmente, a procurava apenas para mostrar
solidariedade, pois, no fundo, não acreditava que ela estivesse mais viva.
Nove dias se passaram e, na manhã do dia primeiro de março, veio a
incrível notícia: Lassie estava na porta do salão de beleza de propriedade de
sua dona, na rua do Hipódromo, no Brás, de onde ela saiu, repito, de carro,
na noite de sábado de Carnaval. A emoção foi tanta que a dona da
cachorrinha a apertava e a beijava ao mesmo tempo em que chorava
copiosamente. Lassie nunca havia saído do Brás. Considerando que da casa
de onde ela fugiu até a rua do Hipódromo são exatos 13 quilômetros, por
um itinerário racional, lá vai a pergunta que não quer calar: como ela
conseguiu? E outra: como ela sobreviveu nove noites e oito dias, sob sol,
chuva e sabe-se lá o que mais? Mais uma: Lassie teve que atravessar várias


avenidas, das quais três são super movimentadas e perigosíssimas. Quem a
ajudou a atravessar? Com certeza não foi alguém humano, porquanto
Lassie é vira-lata, feia e velha (mais de 15 anos, com certeza). Ninguém
olha para um cãozinho com tantos defeitos. Mas, apesar desses defeitos, ela
deu a todos nós, que vivenciamos o fato, uma importante e inesquecível
lição de coragem, determinação, perseverança e amor. Ela ainda está
assustada, magrinha, as unhas desgastadas por mais de 13 quilômetros de
asfalto. Só tem uma coisa: Lassie agora é mais especial para todos nós, pois
lá no fundo do nosso coração nós sabemos quem foi que a ajudou em sua
trajetória: foi Deus! Somente Deus com sua irrefutável bondade pôde
conduzir as patinhas de uma cachorrinha vira-lata, feia e velha, de volta
para os braços de sua dona, que a ama tanto!"

"Amo os cachorros deforma incondicional. São meus melhores amigos. Sou
protetora e cuido de alguns deles nas ruas e também tenho oito em casa.
Agora mesmo acabei de vir da rua com um saco de ração e o galão de água
que já anda comigo no carro. São seres maravilhosos e puros que não nos
deixam em nenhum momento. Às vezes, quando fico triste e choro, vou
para o quintal e eles lambem minhas lágrimas, deitam e rolam no chão e
minha tristeza se vai... Não conseguirei jamais viver sem um cão por perto.
Acho que em vidas passadas já fui de quatro patas!"

"Diz a lenda que, quando os animais de estimação morrem, atravessam a
Rainbow's Bridge (Ponte do Arco-íris) e chegam a um lugar maravilhoso
onde brincam eternamente. Lá os animais correm livres e felizes e até os
cães idosos e doentes, como seu querido Uno e a minha Zizi, recuperam a
saúde e a energia. No meio da brincadeira, um dos animais pára, cheira o ar
e corre, para cruzar de volta a Rainbow's Bridge. Mas o que foi fazer este
animal? Este animal, sempre tão fiel, foi receber seu dono, que também
cruzou a ponte. Finalmente o dono e seu fiel companheiro voltam a ficar
juntos, desta vez para sempre."


"O cão é um verdadeiro anjo que tem um curto tempo de convivência
conosco, talvez apenas o suficiente para nos ensinar algumas coisas, se
quisermos mesmo aprender."


12

Maranhão, o diretor da revista, telefonou: -Os leitores querem
conhecer o Uno. Veio o fotógrafo. Botei um lençol no sofá, chamei
meu husky. Abracei-o. Que diferença de anos atrás, quando era
deliciosamente indisciplinado! Ficou calmo, ao meu lado, durante
os cliques. É a nossa última imagem. Foi publicada na semana
seguinte, e também apareceu no site da editora. Havia uma grande
torcida pelo meu cachorro, como mostraram as cartas e os e-mails.
-Ficou famoso, Uno, famoso! -eu brincava.
Segundo o veterinário, o intestino tinha tumores internos. Uno
sofria dores terríveis para evacuar. Apesar do problema do coração,

o melhor seria operá-lo. Eu hesitei.
-Mas e a idade?
-A condição física dele é muito boa, de um cachorro muito mais
jovem.
Eu sabia dos riscos. Também tinha consciência de que ele não
poderia continuar vivendo assim. Perguntei detalhes.

-Retiramos um pedaço do intestino e costuramos as duas partes. O
ideal é uma internação prolongada, para ele só voltar para casa
totalmente recuperado.
Aceitei. Pedi alguns dias. Na noite anterior, trabalhei até tarde,
como costumo fazer. Era mais de meia-noite quando desci. Uno
dormia em um tapete próximo à escada. Seu corpo estava
quentinho. Sentei-me no chão, ao seu lado, coloquei sua cabeça em
meu colo. Ele me ouviu atentamente, com expressão séria, enquanto
falei com lágrimas nos olhos:
-Uno, querido, amanhã você vai fazer uma operação, e as
perspectivas são boas. Mas não sabemos o que pode acontecer. Se
você partir, quero que saiba que eu nunca vou esquecer você. Você
foi um bom cachorro. Um amigo. Muitas vezes, Uno, você me
entendeu, compartilhou sentimentos e torceu por mim. Nas horas
de tristeza, você estava perto, e eu me sinto feliz por ter você por
aqui. Agora a situação é complicada e pode ser que você vá embora.
Eu espero que não seja uma despedida, que você volte bem, um
cachorro forte, feliz, de rabo erguido, cheio de amor pra me dar.
Mas se não for assim, Uno, se partir, vou sentir muita falta de você.
Muita mesmo. Eu não sei como certos mistérios funcionam. Há
quem diga que a alma começa na pedra, vira planta, vira bicho, vira
gente e um dia um ser divino. Outros acreditam que alma humana
já surgiu humana. Mas às vezes eu olho pra você e acho que está
pronto para nascer como gente, que já tem uma personalidade, e
que vai ser um cara legal. Quem sabe isso aconteça e a gente se
conheça lá no futuro, em outra vida, se eu também tiver essa
oportunidade. Ou quem sabe


exista um lugar para onde eu vá também um dia, onde nós dois
vamos correr, brincar, e onde haja um lago cheio de patos deliciosos
pra você caçar! Eu não sei, Uno, eu não sei. Mas quero que saiba que
tivemos uma boa vida. Ah, uma vida boa, e eu fico tão emocionado
em pensar que você vai embora que dói, dói tanto, que eu só sei
ficar abraçado e dizer: Meu cachorro, ah, meu cachorro! Meu
querido cão!
No dia seguinte, foi levado pelo veterinário. Passou a noite em
jejum. Foi operado de manhã. Recebi o telefonema:
-Tudo correu muito bem. Ele ainda está anestesiado, mas resistiu.
-Quando posso ir aí?
Ouvi um silêncio. Cheio de dedos, o veterinário explicou:
-Eu acho melhor esperar um pouco. Ele precisa de repouso. Se você
aparecer, vai pular, fazer agrado, e é perigoso arrebentar os pontos.
Eu me conformei. Tudo para o bem de Uno! Recebia informações
todos os dias. Uno acordou. Estava andando. Reagia muito bem.
-Parece um menino! Logo terá alta.
Mesmo assim, eu me sentia apreensivo. Só ficaria feliz quando ele
voltasse e eu pudesse ficar ao seu lado vendo televisão. Nada seria
como antes, é claro. Já estava velho. Mas quem sabe eu o teria por
mais uns dois, três anos?
-Não pode acontecer agora!
Um domingo acordei mais tarde. Havia um recado urgente no meu
telefone.


-Ligue depressa para a clínica.
A veterinária de plantão informou:
-O Uno não está passando bem.
-Mas o que houve? Até ontem estava ótimo!
-Os pontos da operação arrebentaram. Ele começou a uivar de dor,
de madrugada. Está sendo medicado, mas está com infecção
generalizada.



Minha garganta se apertou. Mesmo em hospitais de primeira linha é
dificílimo resolver uma septicemia em seres humanos. Que dirá em
um cachorro, em um veterinário com muito menos recursos!
Perguntei:
-Ele está sofrendo?
-A dor é muito grande.
Havia chegado o momento. Teria de tomar a decisão. Porém não se
resolve uma coisa dessas pelo telefone.
-Vou pra aí agora mesmo.
Ainda estava de pijama. Botei uma roupa, tênis, saí com o carro.
Acabei me perdendo um pouco no caminho, de puro nervosismo.
Uma senhora me indicou a rua certa. Estacionei. Toquei a
campainha. O segurança abriu.
-A doutora já vem.
Uma garota loira, bonita, de roupa branca, veio de dentro.
-Entre, por favor. Sinto muito, as notícias não são boas.
-Eu sei, eu sei... Onde ele está?
Ela me indicou o centro cirúrgico. Apressei-me, a jovem logo atrás.
Entrei.
Uno estava morto, deitado na maca.
Seus olhos abertos, mas apagados, sem brilho!


Costumam dizer que a vida é uma chama, e eu concordo. O brilho
da vida cintila através das pupilas. A vida é uma sensação, uma luz,
um gás que nos anima. Ar imantado. Mas a falta de vida produz
uma outra sensação, arrepiante. A morte traz um vazio. É o que eu
sentia agora naquele lugar. Havia apenas um vazio. Uno me
deixara.
-Meu cachorro! Meu cachorro!
Eu me atirei em lágrimas sobre seu corpo ainda quente. Faleceu
minutos antes de eu chegar, salvando-me de tomar a decisão
dolorosa de sedá-lo. Beijei várias vezes sua cabeça, suas orelhas,
sem vergonha de chorar, de transbordar, meus óculos molhados,
baços, minha dor sozinha.



-Ah, eu te amo, eu te amo.
Quando me ergui não conseguia enxergar direito. A veterinária
trouxe um copo de água.
-Eu pensei que ele ainda estava vivo!
-Mas eu disse que sentia muito...
-Achei que era por causa da condição física... mas que ele estaria
aqui, que poderia vê-lo mais uma vez.
Sentei-me, e fiquei olhando o corpo longamente. Murmurei:
-Adeus, querido. Adeus!
Muitas pessoas que me escreveram jogaram as cinzas de seu
animalzinho por perto ou enterraram o corpo no jardim. Mas eu
acredito que existe uma alma, e que quando ela parte resta só o
invólucro. Um corpo é apenas o traje de uma essência de luz. Pedi
que o incinerassem. A moça concordou.
-A gente toma conta de tudo.


Mais uma vez eu o abracei. Fitei seus olhos sem vida. Mais uma vez
me despedi. No entanto a alma não estava mais lá. Alma de
cachorro? Para mim todo ser vivo possui uma centelha divina. O
meu cachorro partira, mas eu não queria aceitar, como se ficar ali,
ao lado dele, fosse suficiente para trazê-lo de volta.
Então percebi que era preciso virar as costas e caminhar até a saída,
que não poderia prolongar aquele momento eternamente. Fui até a
porta e ergui os ombros, empinei o queixo, sorri para a moça e
agradeci.
-Obrigado. Fico grato por tudo que fez por meu cachorro.
-Infelizmente não consegui...
-Só quero saber se ele sofreu muito.
-Não, sofrer não sofreu, eu dei remédio para controlar a dor. Ele
viveu até pouco antes de você chegar, mas não resistiu.
-Sabe o motivo?
-Provavelmente a idade. Os pontos arrebentaram porque já era
velhinho, já não tinha a mesma resistência. Se quiser uma autopsia
para ter certeza...



-Não, não é preciso. Eu acredito que vocês fizeram o máximo. Diga
ao diretor que depois eu acerto tudo.
Olhei para o corpo de novo. Sorri de leve entre as lágrimas. Era
impossível partir ainda. Voltei. Pus a mão sobre seu focinho,
lembrando de todos os nossos momentos bons, e disse, agora
realmente pela última vez.
-Obrigado por ter estado comigo e me feito companhia. Por ter sido
meu amigão. Você foi um bom, um excelente cachorro. Não houve
melhor neste mundo. Adeus, Uno; adeus, meu cachorro!
Sem hesitar, porque de outra maneira não poderia mais ir embora,
dei um leve sinal de adeus para a veterinária e parti.
Nem sei como consegui dirigir para casa. Entrei, e tudo estava
tremendamente solitário. Atirei-me sobre minha cama e chorei,
chorei sem parar como estou chorando agora ao escrever estas
linhas, porque a dor nunca acaba, só fica amortecida e toda vez que
penso no meu cachorro sinto uma imensa saudade.



13

Decidi nunca mais ter cachorro. "Não quero mais amar e perder",
comentava comigo mesmo. Várias pessoas, incluindo leitores da


revista, ofereceram filhotinhos. Não pretendia pensar nessa
possibilidade. Dediquei-me à vida profissional. Novos desafios
surgiam. Minha carreira como roteirista só melhorava. Gosto muito
de ler. Lembrava-me de personagens de romances que vivem
sozinhos, em locais ermos, contentes com sua vida interior. Eu não
queria mais ter sentimentos.
-A solidão é uma forma de felicidade! -murmurava diante do
espelho para me convencer.
Joguei fora o acolchoado onde ele dormia. Não tive coragem de me
desfazer do pote de ração. Às vezes ainda o via no quintal. Depois a
faxineira o guardou em algum lugar. Quando ligava a televisão e
via um filme com lobos, meu coração saltava, pois os huskies são
incrivelmente semelhantes a eles. Se cruzava com algum deles na
rua, também sentia uma incrível emoção.

Os meses se passaram.
No final do ano, fui para uma praia no Rio de Janeiro com dois
amigos, Saulo e Robson. Ficamos em uma casa em um condomínio
sem muros, com árvores frondosas. À meia-noite fizemos tudo de
acordo com o ritual. Vestidos de branco, fomos para a praia,
abrimos champanhe e pulamos sete ondinhas. Na volta, comemos
uma ceia com lentilhas, pernil, uvas e romã. Depois, os três ficamos
na varanda, eles em redes e eu deitado em um sofá. Falávamos
sobre a vida em geral. Os dois fazem teatro, eu escrevo peças, livros,
novelas de televisão. Havia muito que conversar. De repente
ouvimos um ruído. Seria alguém?
Um enorme cachorro preto entrou na varanda. Vinha da rua. Sujo
de areia, aspecto feroz. Aproximou-se de Robson, que se dá muito
bem com cães.
-Oi, cachorro! -ele disse.
O cão nos observou, sério. Se nos atacasse, seria bem perigoso. Mas
eu não sentia medo. Ao contrário. Tive uma intuição. Chamei:
-Vem cá, Exu.


O cachorro veio até mim, curvou a cabeça e recebeu meus carinhos.
Afaguei suas orelhas. Seu pescoço estava sujo, mas que importava?
Eu o abracei.
Robson foi para dentro, voltou com um pedaço de pernil.
-Toma!
O cachorro pegou o pernil na boca e depositou na minha frente.
Saulo levou um susto:
-Parece que esse cachorro é seu!
Eu chamava Exu, e ele vinha. Deitava do meu lado.


Permaneci na varanda o máximo que pude, porque não queria me
separar. Não havia nem corda para prendê-lo, nem portão para
fechar. Finalmente, fui dormir. Acordei decidido:
-Eu quero o Exu! Vou levar para mim!
Fui até a portaria do condomínio. Falei com o caseiro.
-Eu vi um cachorro como o senhor está falando -respondeu ele. Dormiu
aqui, na frente do condomínio, e só foi embora hoje de
manhã.
Então tinha me esperado!
Devia ser um cachorro de praia, abandonado. Saí à sua procura.
-Você está completamente maluco -disse Robson. -O cachorro é
muito grande para sua casa.
-Mas eu quero!
-Ele está acostumado a viver livre, aqui na praia, você vai levar?
Vai prender?
-Mas aqui ele vai morrer cedo, ninguém vai cuidar quando ficar
doente.
-Vai morrer feliz. Quem você acha que é, que onipotência é essa
para achar que pode decidir o que é a felicidade de alguém, mesmo
de um cachorro?
Fui até o caseiro e propus:
-Dou uma bela recompensa se você achar o cão.
-Pode deixar comigo.
Convenci Robson e Saulo a saírem procurando.



-Eu o vi de longe, com uma matilha -explicou Robson mais tarde -,
e fiquei sabendo, é de um pescador.
-Vou dar dinheiro para o pescador e levar.
-Não vai, não.


-Vou.
Saí de dia, de noite, bati a praia toda várias vezes. Perguntava.
Ninguém sabia identificar o cão.
-Lá perto da igreja tem um bando de cachorros de rua. Vivem
num terreno.
Fui até o local, não encontrei nenhum. Continuei à procura pelos
dias seguintes. Não o vi mais.
Há quem diga que o nome Exu é mau sinal. Uma amiga a quem
contei o fato comentou:
-Ainda bem que ele não ficou por lá! Imagine, ter um Exu dentro de
casa.
Não conheço profundamente as religiões afro-brasileiras, mas pelo
que sei o Exu não pode ser identificado com o diabo. Pelo contrário.
O Exu atua como um mensageiro. É quem leva os pedidos, energias,
vibrações. Como um carteiro, não analisa se o conteúdo de uma
mensagem é bom ou ruim. Uma carta pode trazer notícias
excelentes ou más. Exu está muito mais próximo do deus Mercúrio
dos gregos -aquele com asinhas nos pés -, um mensageiro divino.
Mercúrio é o patrono de jornalistas, escritores, de todos que
trabalham com comunicação. Quando não o encontrei mais, senti
uma dorzinha, porque tinha sido meu, nem que fosse por algumas
horas. Mas entendi.
-Foi um sinal, em uma noite de réveillon, para dizer que o ano será
bom, que devo ter esperanças!
Quando me despedi, ainda deixei mais um recado com o caseiro:
-Se encontrar aquele cachorro, avise. Eu pago bem.


Ainda liguei várias vezes. Sempre a mesma resposta.
-Nunca mais apareceu.



Concluí: "É para eu nunca mais ter cachorro". De novo, resolvi ficar
mergulhado na solidão. Um dia estava no Rio de Janeiro a trabalho
quando meu celular tocou. Atendi. Era Robson.
-Olhe, estou aqui na praia. Você ainda quer aquele cachorro, o Exu?
-Quero! Você achou?
-Ainda não sei. Depois explico. Telefonou um
dia depois.
-Você volta quando?
-Amanhã! Por quê? Achou o Exu?
-Não, não, mas estou vendo.
Eu tinha quase certeza de que já encontrara o cão. Disse o horário
do avião. Quando cheguei, a faxineira avisou:
-Seu amigo veio aqui, quer falar com o senhor.
-Cadê o cachorro?
-É melhor falar com o Robson.
Corri para o quintal, onde colocara algumas cadeiras e uma
mesinha. Robson sorriu.
-Achou o Exu? -perguntei.
Ele foi até o banheirinho de fora e voltou com uma cachorrinha
preta, pêlo curto, filhote ainda, de pernas longas, corpo magricela e
olhos extremamente doces. Uma vira-lata simpática que me
derreteu.
-É uma prima do Exu.


Eu e a filhotinha ficamos nos olhando um longo tempo. Ela botou a
linguinha pra fora e lambeu o beiço, tentando sorrir. Estendi meus
braços e a pus no colo.
Então fui tomado por uma onda de sentimentos. Abracei a
cadelinha. Chorei, chorei sem parar durante um longo tempo,
deixando sair toda minha emoção represada.
-É Ísis. Seu nome vai ser Ísis.
-Vai botar nome de gente? E se encontrar alguma Ísis surpreendeu-
se ele.



-Será uma honra para ela ter um nome de cachorra. Robson me
contou a história. Estava hospedado na
mesma casa do réveillon. Fora para a praia com sua mãe. De
tardezinha, a cachorra os seguira até o condomínio. Não tiveram
dúvidas. Colocaram a filhotinha na varanda, presa por uma
cordinha. No dia seguinte, havia sumido.
-Eu acho que foi o caseiro que soltou, porque eu disse que seria
para você. E ele ainda pensa que pode ganhar a recompensa pelo
outro.
Mas, de tarde, quando foram ao mercado, a cachorrinha aparecera
novamente. Robson a levara para a casa, dera banho. E tirara a
coleirinha de barbante que ela possuía.
-Então tinha dono?
-Parece que vivia numa casa com vários cachorros. Mas estava
cheia de carrapatos, doente. Eu a levei à veterinária da região, que
ficou emocionada. Ela disse: "Mais um cachorro salvo!".
Segundo Robson, a cadelinha teria pouco tempo de vida, pois era
muito magra e maltratada. Um dia se esconderia em um canto, bem
triste, e não acordaria mais.


-Mas eu soube que é prima do Exu. Ou parece! Concluiu:
-Ficou na casa de minha tia esses dias. Se você não quiser, minha
tia quer. Está doida por ela. Mas eu lembrei de você, do seu
cachorro, e resolvi trazê-la.
-É claro que eu quero. É minha agora e nem que você queira tira
daqui!
Eu e ísis trocamos um longo e enternecido olhar. Ela pulou para o
meu colo. Acariciei seu pescoço. Ela esticou os lábios, sorrindo do
jeito que sabem fazer os cachorros.
Passamos o resto da noite trocando carinhos e lambidas.
Ela deitou na minha cama. De manhã, me acordou com o focinho
gelado na orelha para sair. Mais tarde comprei coleira, ração, um
novo potinho para as refeições.
E descobri que meu coração não estava mais devastado.



Jamais esquecerei meu cachorro, meu husky, meu Uno. Mas aqui
dentro tem lugar para minha ísis, e os sentimentos não se
confundem, perdas e amores fazem parte de uma mesma vida.
Alguma coisa mudara dentro de mim. Comecei a olhar as pessoas
de maneira completamente nova. Recuperei a vontade de conhecêlas,
de me ligar, de criar laços. A imagem do homem solitário, do
eremita, desapareceu, e no seu lugar surgiu um sol radiante. Eu
queria aquecer e ser aquecido.
Meu longo luto terminara. Fora um aprendizado longo e difícil, mas
meu sentimento deixara de ser um campo estéril onde vida
nenhuma brotaria. Pelo contrário. Meu cachorro cultivara meu
coração ao longo daqueles anos, e agora eu era capaz de gostar
daquela cachorrinha simplesmente porque estava pronto. Queria
correr riscos. Só chora quem realmente amou, e sem amor a vida é
apenas uma passagem desolada.
Meu cachorro, meu Uno, me acompanhou durante o tempo mais
difícil da minha vida. Sua presença impediu que o deserto tomasse
conta de mim, que me tornasse um ser estéril. Seus uivos, suas
lambidas, suas corridas, caçadas, ternuras, tudo que desfrutamos
juntos me manteve vivo.
E agora, nesta casa outra vez animada por latidos, eu sinto a vida
respirar. Um vento suave se aproxima, com risadas, música,
palavras de afeto de quem não conheço ainda. Mas já estou de
braços abertos. Eu sei que uma coisa boa vai acontecer,
simplesmente porque estou pronto.
A vida se renova, os sentimentos desabrocham.
Meu cachorro me ensinou a amar.
Estou pronto para me apaixonar novamente.


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Anjo de Quatro Patas - Walcyr Carrasco
 
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   Digitalização:  M. Loureiro


Sinopse:

Neste livro o escritor Walcyr Carrasco registra os momentos mais engraçados e comoventes vividos ao lado de Uno, um cão que, além de um simples companheiro, tornou-se um verdadeiro amigo, ensinou-lhe a enxergar as pessoas de outra maneira e, sobretudo, devolver-lhe a alegria de viver. Entre mordidas e lambidas, você irá rir e se emocionar com as aventuras desse anjo de quatro patas que renovou a rotina e os sentimentos de seu dono.

Uma linda história de amor e amizade entre um homem e seu cachorro.


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Boa leitura
Abraços.

M. Loureiro

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"Tudo aquilo que não podemos incluir dentro da moldura estreita de nossa compreensão, nós rejeitamos."

Henry Miller





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