Bruce e Andrea Leininger com Ken Gross
A VOLTA
A INCRÍVEL E REAL HISTÓRIA DA
REENCARNAÇÃO DE JAMES HUSTON JR.
Prefácio de Carol Bowman
Tradução:
Claudia Gerpe Duarte
Bestseller
Dedicado ao porta-aviões de escolta Natoma Bay CVE-62, à
tripulação do navio, aos esquadrões VC-63, VC-81, VC-9 e
aos homens que deram a vida pela nossa liberdade:
Ruben Iven Goranson, 7 de fevereiro de 1944, Piloto de TBM,
Guarda-marinha, VC-63
Eldon R. Bailey, 7 de fevereiro de 1944, Oficial de Mat. Bélico
de TBM, 3a classe, VC-63
Edward B. Barron, 7 de fevereiro de 1944, Operador de
Rádio, 2a classe, VC-63
Edmund Randolph Lange, 14 de abril de 1944, Piloto de FM2,
Segundo-tenente, VC-63
Adrian Chavannes Hunter, 19 de outubro de 1944, Piloto de
FM-2, Tenente, VC-81
Leon Stevens Conner, 25 de outubro de 1944, Piloto de TBM,
Segundo-tenente, VC-81
Donald "E" Bullis, 25 de outubro de 1944, Operador de Rádio
de TBM, 3a classe, VC-81
Louis King Hill, 25 de outubro de 1944, Marinheiro de
Máquinas de TBM, 2a classe, VC-81
Edward J. Schrambeck, 26 de outubro de 1944, Operador de
Rádio, 3a classe, VC-81
Walter John Devlin, 26 de outubro de 1944, Piloto de FM-2,
Guarda-marinha, VC-81
Billie Rufus Peeler, 17 de novembro de 1944, Piloto de FM-2,
Guarda-marinha, VC-81
Lloyd Sumner Holton, 17 de novembro de 1944, Oficial de
Engenharia, Guarda-marinha, VC-81
George Hunter Neese, 6 de janeiro de 1945, Marinheiro de
máquinas, 3a classe, VC-81
John Frances Sargent Jr., 6 de janeiro de 1945, Piloto de FM2,
Segundo-tenente, VC-81
James McCready Huston Jr., 3 de margo de 1945, Piloto de
FM-2, Segundo-tenente, VC-81
Peter Hamilton Hazard, 27 de março de 1945, Piloto de TBM,
Segundo-tenente, VC-9
William Patrick Bird, 27 de março de 1945, Operador de
Radio, 1a classe, VC-9
Clarence Edward Davis, 27 de março de 1945, Oficial de Mat.
Bélico, 1a classe, VC-9
Richard Emery Quack, 9 de abril de 1945, Piloto de FM-2,
Guarda-marinha, VC-9
Robert William Washburg, 9 de abril de 1945, Piloto de FM2,
Guarda-marinha, VC-9
Loraine Alexander Sandberg, 7 de junho de 1945, tripulante
do navio, Segundo-tenente
AGRADECIMENTOS
Como nunca havíamos tentado escrever um livro, nada
poderia ter nos preparado para o volume de trabalho
envolvido nessa aventura. A volta é o clímax de quatro anos
de pesquisa, de muitos milhares de quilômetros de viagem e
mais de um ano de redação, e nada disso poderia ter sido
realizado sem a ajuda de algumas pessoas muito especiais.
Gostaríamos de externar nosso reconhecimento e estender
nossa sincera gratidão àqueles que tornaram possível a
conclusão de A volta.
Al Zuckerman e Writers House: sua experiência, orientação e
apoio durante todo esse complicado processo foram
inestimáveis. Obrigado por nos conduzir ao longo dele e por
proteger nossos interesses em todos os momentos.
Ken Gross: sua capacidade de combinar nossa versão dos
eventos e desfiá-los em uma cativante e convincente
narrativa é a verdadeira evidência de seu incrível dom e
inegável talento. Vivemos durante esse ano uma espantosa
montanha-russa de emoções, mudanças de ânimo e
gargalhadas incontroláveis. Recordaremos com carinho essa
experiência todos os dias de nossa vida.
Carol Bowman: seu incrível livro Crianças e suas vidas
passadas fez com que iniciássemos nossa jornada para
desvendar os pesadelos de James e deu origem a uma longa e
maravilhosa amizade. Somos gratos por você ter permanecido
disponível para nos ajudar e aconselhar, pelo seu prefácio
lindamente redigido e por nos colocar nas mãos
extremamente capazes de Al Zuckerman.
Natalie Kaire e Grand Central Publishing: por se arriscar com
dois autores desconhecidos e nos explicar tudo que nunca
soubemos a respeito do mundo editorial.
Anne Huston Barron: por não ter desligado o telefone na
noite em que lhe falamos a respeito das lembranças de James
e por ter acolhido a todos nós em sua vida de maneira
positiva. Somos imensamente abençoados pela oportunidade
de compartilhar essa experiência com você.
Bobbi Scoggin, Jennifer Cowin e Becky Kyle — "o conselho":
pelos milhares de telefonemas, intermináveis investigações,
pesquisas, soluções de problemas, avaliações e busca de
informações. Este livro não teria sido possível sem a
abordagem "é preciso saber tudo" das meninas Scoggin aos
mistérios da vida.
John Dewitt: por nos fornecer todas as fitas de vídeo,
documentos, fotos, microfilmes, diários de voo e tantas outras
informações a respeito do Natoma Bay, que estabeleceram a
base da pesquisa que confirmou as memórias de James.
Al Alcorn, Leo Pyatt e os membros da Natoma Bay
Association: por seu contínuo apoio e incansável esforço ao
encorajar nossa pesquisa e abraçar tanto nossa família quanto
a história de James. O Natoma Bay e os homens que serviram
a bordo dele não serão esquecidos. Cultivamos nossas
lembranças de cada um de vocês e o lugar especial que
ocupam em nosso coração.
Gostaríamos de agradecer especialmente às famílias dos 21
homens que morreram em serviço a bordo do Natoma Bay.
Pelo fato de vocês terem compartilhado suas histórias, fotos,
doeumentos, cartas e objetos pessoais guardados com carinho,
esses homens voltaram à vida para nós e para os leitores de A
volta. Somos eternamente gratos pelo sacrifício que fizeram
para preservar nossa liberdade. Cada um deles era um homem
especial, que viemos a conhecer e admirar por meio de seu
atencioso empenho. Ainda não acabamos de contar a história
deles.
Por último, nosso filho, James Leininger: obrigado por nos
escolher e nos guiar nessa jornada incrível e inesperada.
Esperamos que você sempre tenha a coragem e a convicção de
falar abertamente sobre o que está vivenciando, e de acreditar
no que sabe ser verdade em seu coração — mesmo quando
outros ao seu redor possam ter dúvidas. Nós amamos você e
continuamos assombrados com seu espírito incrível e seu
coração meigo.
Se você desejar mais informações sobre a história da família
Leininger, acesse o site (em inglês) www.soulsurvivorbook.
com
PREFÁCIO
A História de James Leininger é o melhor caso americano da
lembrança de uma vida passada em uma criança entre os
milhares que encontrei. Ela é extraordinária porque o
pequeno James se lembra desde nomes e lugares de sua vida
passada até pessoas e eventos verdadeiros — fatos que podem
ser facilmente confirmados. Ele, inclusive, esteve com pessoas
que o conheceram em sua vida pregressa, quando foi piloto na
Segunda Guerra Mundial.
Creio que esta é a história que finalmente abrirá a mente dos
ocidentais céticos para a realidade das lembranças de vidas
passadas das crianças. Este livro demonstra como essas
lembranças podem trazer profundos benefícios emocionais e
espirituais, tanto para a criança quanto para sua família.
De algumas maneiras, a história de James não é incomum.
Muitas crianças no mundo inteiro têm lembranças de vidas
passadas. É um fenômeno natural. Sei disso porque comecei a
coletar e pesquisar esses casos há mais de vinte anos, depois
que meus dois filhos tiveram suas próprias vívidas lembranças
de vidas passadas. Meu filho lembrou-se de ter morrido em
um campo de batalha durante a Guerra Civil; minha filha
lembrou-se de ter morrido quando criança em um incêndio
residencial.
Fiquei impressionada quando observei que, apenas por
conversar a respeito de suas recordações, ambos ficaram
curados de fobias provenientes de suas mortes na vida
passada.
Cheguei à conclusão de que o mesmo certamente deveria ter
acontecido com outras famílias. Entretanto, quando pesquisei
livros para compreender o que estava acontecendo com meus
filhos, não consegui encontrar nenhum que abordasse os
efeitos curativos das lembranças de vidas passadas das
crianças, somente livros a respeito de adultos que eram
ajudados por meio da terapia de regressão a vidas passadas.
Decidi, então, preencher a lacuna e escrevi Crianças e suas
vidas passadas, como um guia de leitura para os pais que
encontram essas lembranças em seus filhos.
Depois da publicação do livro em 1997 e do lançamento de
meu site, www.reincarnationforum.com recebi milhares de emails
de pais cujos filhos haviam tido ou estavam tendo lembranças
espontâneas de vidas passadas. Devido à quantidade
de casos, comecei a perceber padrões repetitivos no
fenômeno. Algumas crianças começam a falar sobre essas
lembranças assim que são capazes disso — algumas quando
ainda usam fraldas! Elas surpreendem os pais com
comentários do tipo "quando eu era grande antes" ou "quando
eu morri antes". Ou, então, exibem comportamentos fora do
comum: fobias, pesadelos, talentos que não foram aprendidos
e habilidades desconcertantes, ou um estranho discernimento
com relação a assuntos dos adultos que elas não poderiam, de
modo algum, conhecer em seus dois ou três anos de vida.
Algumas lembranças manifestam-se como fortes emoções,
como uma profunda tristeza quando elas relatam mortes
solitárias em campos de batalha, memórias afetuosas de um
cavalo particular ou saudades da outra família, da esposa, do
marido, de seus próprios filhos.
Os casos que me chegaram às mãos eram repletos de eventos
dramáticos, de assombro e emoções incontroláveis.
No entanto, uma coisa estava faltando: fatos que pudessem ser
confirmados, que oferecessem uma prova objetiva de que as
recordações eram genuínas. Nem meus filhos nem qualquer
das outras crianças cujas lembranças eu investiguei
conseguiram se lembrar de seus antigos nomes, de onde
tinham vivido ou de quaisquer outros fatos reais que
pudessem ser confirmados. É por esse motivo que esta
convincente história de James Leininger é tão incomum.
Entretanto, ela não é única. Existe um grande acervo de casos
desse tipo confirmados em crianças em culturas não
ocidentais. O Dr. Ian Stevenson, ex-diretor do Departamento
de Psiquiatria da Escola de Medicina da University of
Virginia, pesquisou durante quarenta anos lembranças
espontâneas de vidas passadas de crianças, começando no
início da década de 1960. Em 2007, quando morreu, ele havia
rigorosamente investigado e meticulosamente documentado
quase 3 mil casos, a maioria na Ásia. Cerca de 700 dessas
crianças, geralmente com menos de 5 anos, tinham
recordações tão claras de vidas anteriores que se lembravam
de seu antigo nome, do lugar onde tinham vivido, do nome de
parentes e de detalhes muito específicos, porém triviais, de
vidas anteriores, detalhes esses que o Dr. Stevenson
demonstra que elas não poderiam conhecer. Para cada
criança, o Dr. Stevenson correlacionou declarações,
comportamentos, peculiaridades da personalidade e até
mesmo atributos físicos (ele redigiu um trabalho sobre marcas
e defeitos de nascença relacionados com vidas passadas) com
os fatos da pessoa que a criança se lembrava de ter sido. As
semelhanças vão bem além do mero acaso ou coincidência.
No entanto, a maioria dos casos por ele descritos provém de
culturas nas quais a reencarnação é uma crença dominante:
índia, Birmânia, Tailândia, Sri Lanka, Turquia, Líbano e
África Ocidental, o que torna mais fácil para os céticos
rejeitar as constatações do Dr. Stevenson, porque essas
culturas já acreditam em reencarnação. Eu sabia que seria
necessário um caso extremamente detalhado e verificável de
uma família judaico-cristã para abrir a mente dos ocidentais
para essa realidade. Entretanto, nem o Dr. Stevenson, nem
seus colegas estrangeiros, nem eu tínhamos encontrado casos
americanos ou europeus com a mesma riqueza de detalhes dos
casos asiáticos. Isso era enigmático e bastante frustrante.
Foi então que, em 2001, recebi um e-mail de Andrea
Leininger. À primeira vista, ele era semelhante a muitos
outros. Seu filho, James, estava tendo graves e repetitivos
pesadelos a respeito da queda de seu avião. O menino, que
tinha apenas 2 anos, também era obcecado por aviões e
parecia ter um misterioso conhecimento a respeito de aviões
da Segunda Guerra Mundial. Ao ler o e-mail de Andrea, notei
fatos que se encaixavam em um padrão que eu vira com
frequência: pesadelos de eventos que uma criança não poderia
ter vivido em seus dois ou três breves anos de vida, bem como
um interesse ou obsessão, relacionado ao conteúdo do
pesadelo.
Trocamos e-mails, e fiquei impressionada com as observações
de Andrea. Tive a impressão de que ela e o marido, Bruce,
eram pessoas realistas e instruídas que estavam se esforçando
para entender o que estava acontecendo com seu precioso
filhinho. Eles estavam buscando desesperadamente uma
maneira de minimizar os terríveis pesadelos que tanto
estavam perturbando a vida da família. Fiquei
particularmente fascinada pelo vasto conhecimento que
James tinha de aviões, de fatos que nem mesmo seus pais
conheciam.
Eu disse ao casal Leininger que James estava recordando sua
morte em uma vida passada e reiterei as técnicas apresentadas
em meus livros: reconhecer o que James estava passando
como uma experiência e garantir ao menino que ele agora
estava seguro e que a experiência assustadora havia
terminado. Outros pais haviam constatado que essas técnicas
funcionavam para acalmar o medo de seus filhos e para que
eles se desfizessem das lembranças de uma morte traumática
em uma vida passada. Andrea compreendeu. Intuitivamente,
ela sabia o que estava acontecendo com James, ou seja, que ele
estava sofrendo por causa de recordações genuínas da queda
de seu avião. Tranqüilizei-a, garantindo-lhe que ela seria
capaz de ajudar o filho.
Depois disso, não tive mais notícias de Andrea, e pressupus
que isso significava que meu conselho fora útil e que James
estava melhor. Mais tarde, cerca de um ano depois, um
produtor da ABC entrou em contato comigo para verificar a
possibilidade de gravarmos um segmento sobre vidas passadas
de crianças. Examinei com atenção todos os meus e-mails e
escolhi alguns casos promissores, entre eles os da família
Leininger. Tive vontade de saber o que tinha acontecido com
James.
Telefonei para Andrea em busca das novidades. Ela ficou feliz
em me informar que havia seguido meu método e que os
pesadelos de James praticamente tinham desaparecido.
Excelente notícia!
Mas havia mais novidades. Embora os pesadelos tivessem
diminuído, e o medo de James a respeito de seu acidente de
avião houvesse desaparecido, ele continuava a aturdi-los com
novos detalhes sobre sua vida como piloto de caça. Ele se
lembrava do tipo de avião em que voava, o nome de seu
porta-aviões e o nome de um de seus amigos que era piloto.
Fiquei animada porque o caso ainda estava progredindo e tive
uma grande expectativa de que o casal Leininger narrasse sua
história na televisão. Andrea mostrou-se aberta à ideia, mas
precisava consultar o marido. Quando conversamos, a
primeira coisa que Bruce me disse foi o seguinte: "Você
precisa entender que sou cristão." Senti que eu havia
esbarrado em um obstáculo, de modo que achei que teria de
procurar outro caso para a televisão. Mas em seguida ele me
surpreendeu, quando acrescentou: "Mas não consigo explicar
o que está acontecendo com o meu filho." Conversamos um
pouco mais e senti uma abertura. Bruce estava claramente
lutando para manter intacta sua crença cristã, ao mesmo
tempo em que tentava entender o que estava acontecendo
com James, de modo que precisava desesperadamente explicar
a situação por meio de outro argumento, que não a
reencarnação. Percebi o quanto isso era traumático para ele,
de modo que o tranquilizei afirmando que tudo isso era
normal.
O programa de televisão foi um grande sucesso; a história foi
apresentada de maneira clara e imparcial. Todos ficamos
satisfeitos. Nos anos seguintes, trocamos dezenas de e-mails.
Andrea enviou-me fotos de James e de seus inúmeros
desenhos de aviões sendo derrubados. Passamos horas ao
telefone conversando animadamente sobre as últimas
revelações de James e incríveis coincidências, uma após a
outra. Todas elas os levavam, cada vez mais fundo, na toca do
coelho.
Tanto para Andrea quanto para mim, cada nova revelação era
uma confirmação do que já sabíamos, ou seja, que James
estava relembrando uma vida passada de fato. Mas Bruce
continuava a resistir. Cada revelação contribuía para seu
conflito. Assim, este livro é tanto a respeito de Bruce quanto
de James. Ele estava dividido entre sua profunda crença cristã
de que "vivemos uma única vez, morremos e depois vamos
para o céu" e o que ele estava presenciando no próprio filho.
Por mais arduamente que tentasse, ele não conseguia explicar
o que via.
O impulso de Bruce de provar a falsidade das lembranças de
James da vida passada adiciona um grande significado a esta
fascinante história. Vemos o quanto ele se esforça para
encontrar uma explicação "racional". Observamos, enquanto
ele vai no encalço de pistas com a tenaz perseverança de um
detetive, que não se satisfaz com nada menos do que fatos
concretos. E o conjunto de provas que ele e Andrea reúnem,
por meio de sua laboriosa pesquisa, é a principal razão pela
qual a história dessa família é tão extraordinária.
A volta também é especial de outras maneiras. Somos testemunhas
de algo milagroso na maneira pela qual o jovem
James tocou o coração de tantas pessoas. Sua família atual, a
família de sua vida anterior e os veteranos sobreviventes que
lutaram ao seu lado em sua vida pregressa foram
profundamente afetados por James. O que surgiu com tanta
naturalidade para esse menino abalou as convicções
arraigadas daqueles que o cercam. Sua história revela uma
nova perspectiva de vida e morte para qualquer pessoa que
perceba que isso não foi apenas fruto da imaginação de uma
criança, e sim algo dolorosamente real.
Carol Bowman
Autora de
Crianças e suas vidas passadas e Return from Heaven
PRIMEIRA PARTE
O Sonho
CAPÍTULO UM
É apenas um sonho ruim e, quando você acordar de manhã,
tudo terá passado.
MEIA-NOITE, SEGUNDA-FEIRA, 1º. DE MAIO DE 2000
Os gritos surgiram repentinamente. James Leininger, então
com 2 anos recém-completados, era um menino feliz e
brincalhão, a maior alegria de uma família amorosa, moradora
da suave planície costeira do sul da Louisiana. Certa noite, o
menino, dormindo, começou a se debater na cama como um
cabo elétrico partido, aos berros, numa angústia devastadora.
Andrea, mãe de James, saiu de seu quarto e disparou pelo
longo corredor. Parou na entrada do quarto do único filho e,
ofegante, ficou observando o filho gritar e se debater. O que
fazer? Ela havia lido, em um dos textos de sua grande coleção
de livros sobre puericultura, que poderia ser perigoso acordar
abruptamente uma criança durante um pesadelo.
Assim, lutando para se conter, Andrea ficou na porta do
quarto, paralisada. Chegou a reconsiderar o que lera, pois ela
era, sem sombra de dúvida, uma mãe completamente racional
e muito bem informada, estudiosa de todas as mais recentes
teorias e técnicas sobre educação infantil. Era óbvio que
James não estava preso debaixo de uma viga de madeira. Não
estava sangrando. Andrea não via qualquer motivo físico
óbvio para a terrível comoção. James estava simplesmente
tendo um pesadelo. Era, sem dúvida, um pesadelo horrível,
mas, ainda assim, algo que se incluía perfeitamente na rotina
de episódios ruins da infância.
E claro que Andrea queria desesperadamente entrar correndo
no quarto, agarrar seu filhinho, sacudi-lo para que acordasse
do pesadelo, abraçá-lo e fazê-lo dormir novamente. Mas não
fez nada disso, porque não era uma mãe comum. Andrea
Leininger, uma loura arruivada de 38 anos, ainda tinha a
mesma bela forma de quando se apresentava nos palcos, além
de algo menos óbvio: uma disciplina de ferro. Esta última
provinha de seu longo treinamento como bailarina
profissional, paixão da qual desistira quando a dor de encenar
sobrepujara o prazer. Agora, seu novo amor estava chutando
freneticamente as cobertas e berrando a plenos pulmões.
Enquanto tentava avaliar objetivamente a situação, Andrea
achou que conhecia a causa do pesadelo: a casa desconhecida.
Fazia apenas dois meses que haviam se mudado de Dallas, no
Texas, para a casa septuagenária em Lafayette, na Louisiana.
Se a casa parecia estranha para ela, Andrea imaginou que
deveria parecer no mínimo caótica para James. Até mesmo os
ruídos externos eram esquisitos: o vento assobiando através da
barba-de-velho, os pássaros do pântano piando nos galhos dos
velhos carvalhos, os insetos indo de encontro às telas. Nada se
parecia com o longo e imóvel silêncio que caía como um
manto sobre os arredores suburbanos de Dallas.
E o próprio quarto de James, com seu papel de parede
desbotado com flores cor-de-rosa e venezianas maciças fixas que
em nada lembravam o quarto de um garotinho -, conferia
a Andrea a sensação arrepiante de estar presa dentro de um
túmulo. Esses, certamente, tinham de ser os ingredientes da
perfeita tempestade de um pesadelo. Acalmando-se, ela se
dirigiu, pé ante pé, para a cama do filho, pegou-o no colo e
abraçou-o, murmurando suavemente: "Durma, durma, meu
benzinho! Não é nada, nada mesmo. É apenas um sonho ruim
e, quando você acordar de manhã, tudo terá passado!"
E, quando ela o abraçou, James parou, pouco a pouco, de se
debater, os gritos diminuíram gradualmente e se
transformaram em lamúrias -pequenas lamúrias de pesar -, e
em seguida ele voltou a dormir.
Naquela primeira noite, relembrou Andrea, ela não prestara
atenção ao que ele estava berrando, não ouvira qualquer
palavra específica que fizesse algum sentido. Os sons eram
indistintos e bruscos, dentro do grito poderoso de uma
criança muito pequena que dava a impressão de estar se
debatendo desesperadamente para salvar a própria vida. Não,
pensou Andrea, não se trata de um evento potencialmente
fatal. É apenas uma criança sendo atacada em um pesadelo.
Mesmo assim, ela ficou profundamente abalada, porém
determinada a lidar com a situação, pois era esse seu papel.
Esse foi o acordo que ela fizera quando concordara em se
casar com Bruce Leininger, 12 anos mais velho, pai de quatro
filhos de um casamento anterior. Andrea também fora casada,
mas não tinha filhos. Se eles iam se casar, dissera ela a Bruce
com firmeza, ela queria um filho. Esse era o trato; esse era seu
pacto antenupcial.
Bruce, fazendo valer sua parte no acordo, ouvira os gritos
vindos do quarto de James, rolou na cama e sussurrou: "Você
cuida disso?" Essa tarefa era de Andrea.
Na grande trama da vida deles, o trato era justo. Ele ficou com
a deslumbrante bailarina, e ela, com o executivo másculo e
bonito — mais uma criança. É claro que nem tudo funcionou
como eles haviam planejado. Bruce tinha trabalhado até quase
sofrer um colapso para honrar sua parte do acordo, que era
proporcionar segurança básica à sua nova família.
Naquele momento, em Lafayette, era Bruce que parecia estar
passando pela maior crise, esforçando-se para manter o
controle da situação e seu novo emprego. Ele fora dispensado
da empresa em que ocupava um cargo altamente remunerado
em Dallas, devido a uma divergência de opinião no
gerenciamento. A indenização não foi ruim, mas aquela
realidade inesperada — a perspectiva de desemprego para um
homem que sempre fora bem-sucedido, com alto poder
aquisitivo, um modelo de equilíbrio e autocontrole — deixou
um medo não explícito pairando como uma nuvem sobre o lar
dos Leininger.
O novo emprego, a adaptação, nada foi fácil. Bruce era
executivo de recursos humanos, o que se assemelhava a algo
como ser um bombeiro corporativo. Sempre que surgiam
problemas com o pessoal, ele tinha de correr e apagar o fogo,
o que significava mudar o local de residência, viajar muito e
se estabelecer de novo. Isso era aceitável quando os dois,
Bruce e Andrea, viviam sozinhos, mas agora eles tinham
James. Em quatro anos, Bruce fora obrigado a desalojar a
família três vezes. A primeira foi quando conseguiu um novo
emprego em São Francisco. Bruce encontrou uma casa com
vista para o mar em Pacífica, cidade vizinha. Andrea ficou
encantada. "Não há nada entre nós e o Japão", dizia, extasiada.
Foi um interludio feliz e romântico. E foi em São Francisco
que James nasceu. Passados dois anos, Bruce recebeu a oferta
de um emprego melhor em Dallas, que ainda permitia que
Andrea morasse perto de sua família. Ela era de Dallas e
profundamente ligada às irmãs e à mãe. Mas a nova colocação
acarretou outra mudança. E depois esse emprego degringolou
quando Bruce contestou as decisões de um superior e precisou
arranjar outro trabalho, impressionar outro chefe, encontrar
uma nova casa e administrar a mudança. Não que estivesse se
queixando; estava apenas exausto. Andrea não aguentava mais
se mudar. Quando Bruce escolheu a casa em Lafayette, ela
decidiu que seria para sempre.
E agora surgia esse pesadelo perturbador! Não era uma época
apropriada, pensou Bruce. Ainda assim, era apenas um sonho
ruim e barulhento, nada demais. No casamento anterior,
Bruce conseguia acalmar seus quatro filhos quando tinham
pesadelos. Mas ele estava simplesmente cansado demais para
administrar de novo esse tipo de coisa.
É claro que, quando rolou na cama e voltou a dormir, ele não
tinha como saber que sua família estava à beira de algo
totalmente insondável, algo inimaginavelmente fantástico.
Exausto, Bruce voltou a pegar no sono.
Assim como Bruce, Andrea também estava sob forte pressão.
O parto de James fora muito difícil. Ela tinha 36 anos quando
ele nasceu, o que significava que estava rapidamente se
aproximando da meia-noite de seu relógio biológico. E a
gravidez foi complicada. Andrea sofreu de pré-eclâmpsia, um
distúrbio perigoso que causava o aumento da pressão arterial,
retenção de líquido e convulsões. Depois, quando a gravidez
já estava avançada, o feto inexplicavelmente parou de crescer.
Quando os médicos avaliaram o tamanho do bebê no
resultado da ultrassonografia, James pesava pouco mais de 1,3
quilo e não estava crescendo. A equipe médica ficou perplexa
e insegura e cogitou à possibilidade de Andrea perder a
criança. E, mesmo que a gravidez chegasse a termo, os
médicos advertiram para o fato de que havia forte
possibilidade de que a criança nascesse com síndrome de
Down ou autismo, ou alguma outra deficiência física ou
intelectual.
Bruce recusou-se a aceitar a opinião dos médicos. Sempre
inabalavelmente otimista, ele afirmou: "Papo furado! Tudo
dará certo com James."
Essa não foi uma explosão inconsequente de esperança inútil.
Ter um filho era um compromisso que haviam assumido um
com o outro, que afetou até mesmo o nome que deram ao
menino: James Madison Leininger. Não foi uma escolha
acidental. O nome surgiu da longa pesquisa genealógica que
Andrea começara a fazer no início do casamento. Ela
descobrira que seu tataravô, James Madison Scoggin, havia
servido no Exército Confederado durante a Guerra Civil.
Assim, seu pequeno feto ameaçado já tinha um nome e uma
história imponente e pais batalhadores que jamais pensariam
na hipótese de desistir dele.
Finalmente, no dia 10 de abril de 1998 — Sexta-feira Santa
(um prenúncio) —, seis semanas antes da data prevista para o
parto, quando os médicos detectaram fraqueza nos sinais
vitais de James, ele nasceu por meio de uma cesariana. Bruce
estava na sala de parto nesse momento e, quando o bebê veio
ao mundo, Bruce segurou a mão dele — e, como eles gostam
de dizer na família, Bruce e James nunca se separaram.
Depois do parto de James, os médicos descobriram o motivo
de sua falta de desenvolvimento no útero. Tratava-se de uma
peculiaridade anatômica. A placenta de Andrea não era maior
do que uma tangerina, quando deveria ter sido do tamanho de
uma pequena melancia. Foi um milagre James ter sobrevivido
com essa absorção reduzida de nutrientes. Por outro lado,
talvez o trauma no útero viesse a se revelar um fator no que
ainda estava por acontecer. Talvez James fosse reter alguma
lembrança pós-parto do aperto pelo qual passou antes de
nascer.
No final, depois de ficar algum tempo na incubadora, James
revelou-se perfeitamente normal, isento de qualquer deficiência
física ou intelectual.
E ele era um bebê encantador. Não chorava muito; não fazia
muito estardalhaço. Aceitava todas as mudanças e
modificações praticamente sem se manifestar. James parecia,
de um modo geral, feliz e contente. Na realidade, seus pais
achavam que havia algo misterioso e incrivelmente maduro a
respeito de sua tranquilidade cotidiana — o que, em parte,
explica por que aquele primeiro terrível pesadelo foi tão
chocante para eles.
Por conta de seu novo status, Bruce precisava trabalhar
arduamente para manter o padrão da família. Devido às
longas horas de trabalho do marido, Andrea deixava James
acordado além do horário normal de uma criança de 2 anos ir
para a cama. A justificativa por trás disso era uma concessão
mútua: James poderia sacrificar um pouco de sono para passar
algum tempo com o pai. Por conseguinte, sua hora de dormir
passou a ser 22h. Depois que o colocavam na cama, Bruce e
Andrea tinham algum tempo para tomar uma taça de vinho e
pôr a conversa em dia, antes de também se recolherem. Dois
dias depois do primeiro pesadelo, pouco depois da meia-noite,
os gritos apavorantes recomeçaram. Isso aconteceu em um
momento em que Bruce e Andrea estavam entrando no sono
REM profundo, e mais uma vez os pegou despreparados.
Andrea, é claro, saltou da cama e correu pelo longo corredor
para abraçar o filho e tentar consolá-lo.
Pela manhã, ela tentou descrever para Bruce, de modo mais
ou menos detalhado, a assustadora característica dos pesadelos
para que ele pudesse compreender a gravidade do que ela
havia experimentado, mas ele deu de ombros e insistiu que
não deveriam ficar exageradamente preocupados, que os
pesadelos eram normais. Mas Andrea reforçou seus
argumentos, enfatizando como ele chutava e se debatia
violentamente. Ainda assim, Bruce demonstrou pouco
interesse pelo ocorrido. Ele estava no meio de seu pesadelo
particular, tentando ajudar sua empresa a abrir o capital.
Bruce trabalhava para a Oil Field Services Corporation of
America (OSCA), uma empresa de petróleo especializada em
manutenção e administração de poços petrolíferos em águas
profundas, em um local distante no golfo do México. A OSCA
estava tentando lançar uma oferta pública de ações. Na
condição de especialista e consultor de recursos humanos,
Bruce precisava elaborar minuciosos planos de saúde e
pacotes de benefícios que atendessem às diretrizes federais
para que a OSCA pudesse ser registrada em uma Bolsa de
Valores de grande porte -o que não era uma façanha
pequena, já que o próprio Bruce estava recebendo
treinamento na ocasião. Ele estava passando por um momento
frenético, que lhe demandava lidar com os confusos detalhes
das grandes transações corporativas e as necessidades de
várias centenas de operários que trabalhavam nas plataformas
de petróleo.
Em meio a tudo isso, os pesadelos pareciam menos urgentes.
— Escute — disse ele a Andrea, subestimando a importância
dos acessos —, a casa é velha, e casas velhas costumam vir
com rangidos e chiados. Isso tudo tem a ver com o fato de
termos vindo morar aqui. Vai parar, você vai ver.
Mas os pesadelos não pararam. Um terceiro teve lugar na
noite seguinte. James pulava uma noite, às vezes duas, mas os
pesadelos continuaram com uma regularidade aterrorizante e
um frenesi cada vez maior. Houve épocas em que ocorreram
cinco vezes por semana. E cada um deles era simplesmente
horripilante.
E assim, na primeira primavera do milênio, em uma pequena
casa perto da costa da Louisiana, quatro ou cinco vezes por
semana seus moradores tinham a impressão de que as vigas
balançavam com os violentos gritos de um menininho. No
início, Andrea fez todo o possível, mas nada acalmava James
nesses momentos de fúria. Por causa do parto prematuro do
filho e dos consequentes problemas de peso, Andrea era
muito zelosa com relação aos check-ups médicos. Logo que se
mudaram para Lafayette, ela conheceu um jovem pediatra, o
Dr. Doug Gonzales, que não conseguiu encontrar qualquer
anormalidade ao examinar James. Quando os pesadelos
começaram, Andrea telefonou para o médico. Este lhe disse
que eram pesadelos normais e que logo sua frequência
diminuiria. Não estava preocupado. Nesse meio tempo,
confirmando o que ela lera nos livros de puericultura, o
pediatra aconselhou-a a não acordar o menino de repente
nem assustá-lo quando estivesse no meio de um pesadelo.
A essa altura, Andrea começara a dormir perto do quarto de
James para poder ouvir mais rapidamente os gritos. Ela passou
a ter um sono leve, pois dormia pensando em ouvir o
primeiro grito. Além disso, disse ela a Bruce, James dormia
tão profundamente durante os pesadelos que ela precisava
abraçá-lo com muita força para conseguir interrompê-los.
Bruce conversou com o filho: "Ouça", disse ele, "você precisa
parar com isso. É bom você tratar de superar o que quer que
esteja causando essas coisas." Entretanto, como constataram
mais tarde, não estavam lidando com uma situação que um
menino de 2 anos pudesse controlar, por mais que o pai
ficasse zangado.
Quase dois meses depois do início dos pesadelos, James ainda
estava se debatendo e berrando, mas agora Andrea decidiu
tentar descobrir o que ele estava dizendo. Ela se deu conta de
que os gritos não eram apenas sons incompreensíveis; eram
também palavras. Quando conseguiu decifrar algumas delas,
Andrea voltou rapidamente pelo corredor e sacudiu o marido,
para acordá-lo.
-Bruce, você precisa ouvir o que ele está dizendo.
Bruce estava grogue.
-O que você quer dizer com isso?
-Bruce, você precisa ouvir o que James está dizendo.
Bruce ficou irritado, mas saiu da cama, resmungando:
-Que diabos está acontecendo aqui?!
Em seguida, parado na porta do quarto do filho, ele também
começou a reconhecer as palavras, e sua indignação dissipou-
se.
Ele estava deitado de costas, chutando e arranhando as
cobertas... como se estivesse tentando escapar de um caixão.
O que vi se parecia com uma cena de O exorcista — eu, de
certa forma, esperava que a cabeça dele girasse como a da
menina no filme. Cheguei até a pensar que talvez precisasse
sair para buscar um padre. Mas em seguida ouvi o que James
estava dizendo...
"O avião caiu! O avião está pegando fogo! O rapaz não
consegue sair!"
Essas eram exatamente as palavras, o texto por trás dos gritos
de James. A criança jogava a cabeça para frente e para trás e
gritava repetidamente a mesma coisa: "O avião caiu! O avião
está pegando fogo! O rapaz não consegue sair!"
Isso aconteceu pouco depois de James completar 2 anos; ele
estava começando a aprender a se expressar por meio de
frases complexas, tentando encontrar uma linguagem
condizente com seus pensamentos. No entanto, o que ele
estava gritando enquanto se debatia na cama naquela
primavera eram palavras tão ricas em detalhes, tão
plausivelmente oferecidas, tão pouco infantis em seu
desespero, que Bruce Leininger emudeceu. A vida inteira ele
fora aquele que resolvia os problemas, o cara dinâmico,
pronto para o que desse e viesse, o homem capaz de corrigir
quase todas as coisas, porque compreendia a natureza de
praticamente qualquer problema, captava sua configuração e
conseguia encontrar uma solução. Entretanto, de pé na porta
do quarto do filho, ele estava paralisado — e um pouco
assustado. Essas frases de pânico não poderiam ter surgido do
nada, disso ele tinha certeza.
CAPÍTULO DOIS
Havia um grande número de indícios a respeito do que
estava acontecendo com o jovem James Leininger. Se Bruce e
Andrea não estivessem tão ocupados com os próprios dramas
— uma carga de trabalho exaustiva e mais uma reorganização
familiar —, talvez tivessem adivinhado mais cedo que tudo
aquilo tinha algo a ver com aviões.
Mas um número excessivo de distrações impediu-os de seguir
o rastro, uma omissão que eles compensariam nos meses
seguintes. O mais importante agora era se estabelecerem em
seu novo lar, a cidade de Lafayette, na Louisiana.
O início do novo milênio fora duro. Primeiro, foi o medo do
bug do milênio, o qual, felizmente, não aconteceu, embora
tenha deixado todo mundo com os nervos à flor da pele. Em
seguida, houve a mudança de Dallas para Lafayette, um
reposicionamento histérico e complicado do círculo familiar e
do lar.
A logística por si só foi acidentada, e Andrea ficou ainda mais
triste pelo fato de se separar novamente das irmãs e da mãe,
agora por uma distância de mais de 600 quilômetros. Mesmo
assim, ela era uma boa companheira, compreendia que a vida
profissional do marido estava passando por um momento
crítico e que seu papel era apoiá-lo. Assim, na quinta-feira,
dia 1º. de março de 2000, Bruce e Andrea fecharam a compra
da casa acadiana septuagenária no sofisticado e arborizado
bairro de White Oak.
Mas, enquanto ela tentava assumir o estado de espírito
adequado (era início da primavera, e as azaléias estavam em
flor — a cidade era uma emocionante aquarela de rosa,
branco e vermelho), foi pega de surpresa por um jato frio de
realidade. Antes que pudessem se mudar para a encantadora
casa na West St. Mary Boulevard, a família Leininger teria de
passar um longo fim de semana em um pequeno quarto
decadente a 6 quilômetros de distância, na Edie Ann Drive,
na bacia industrial de Lafayette.
Era apenas uma parada temporária até a chegada do caminhão
de mudança no sábado, quando Andrea teria tempo suficiente
para ir até a casa nova e torná-la habitável -o que, no caso
dela, significava impecável. Porque dessa vez, disse a Bruce
com firme determinação, ela tinha a intenção de se
estabelecer naquele lugar. "Não vou me mudar de novo",
foram suas palavras.
Apesar da firmeza da declaração, ela ainda precisava passar
aquele longo fim de semana no imundo Oakwood Bend
Apartments, que era o local onde a OSCA abrigava
temporariamente os operários sujos e cansados que voltavam
dos turnos de um mês nas plataformas em águas profundas,
situadas em um ponto bem distante do golfo do México.
Andrea mal pôde acreditar que Bruce estivera morando
naquele lugar sórdido desde novembro.
Quando acendeu a luz, ela teve a impressão de que a
imundície estava subindo lentamente pelas suas pernas. As
camadas de sujeira e de poeira, incrustadas ao longo dos anos
por camadas de petróleo bruto, haviam se tornado uma nova e
assustadora variedade de lama.
Até mesmo os tetos estavam espessos com o resultado de todo
esse ir e vir de pessoas sem asseio. O lado de dentro da cortina
do chuveiro estava enegrecido pelo mofo e pelo bolor.
Quando Andrea ligou o ventilador, a poeira voou em grandes
pedaços compactos. A primeira ideia que lhe passou pela
cabeça foi que um gato havia saltado das pás.
— Não deixe James tocar em nada — disse ela a Bruce. —
Vou sair para comprar um estoque de produtos de limpeza.
Primeiro, ela limpou a casa temporária o suficiente para que
pudessem respirar e, quem sabe, tornar o lugar um pouco
confortável. Depois, no meio disso tudo, o pessoal da
mudança telefonou dizendo que o caminhão tinha enguiçado
na estrada interestadual e eles só conseguiriam chegar a
Lafayette na segunda-feira.
Bem, não havia nada que pudessem fazer a não ser procurar
tirar o melhor partido possível da situação — um dar de
ombros da família que se tornou semelhante a um tique
nervoso, um gesto que a família Leininger usava para superar
os aborrecimentos da vida.
Finalmente, eles pegaram o carro e se dirigiram para a casa
nova. Enquanto tentavam percorrer o trajeto que os levaria
até lá, o trânsito ficou extremamente lento. As duas ruas
principais, Johnston e West Congress Street, tinham se
reduzido a uma única pista. Elas estavam tomadas por
obstáculos e pela construção de espalhafatosas barracas de
comida. Era o Mardi Gras.
Bruce e Andrea sabiam que Lafayette estava situada na "Cajun
Heartland" — território originalmente povoado pelos
franceses acadianos que foram expulsos da Nova Escócia em
1755, quando se recusaram a jurar lealdade aos britânicos.
Mas Bruce e Andrea não tinham a menor ideia de que a
cultura cajun, intensamente francesa e católica, ainda estava
tão profundamente entranhada na região. Os descendentes
dos cajuns levavam muito a sério as festas ruidosas que
antecediam a Quaresma. Nova Orleans era mundialmente
famosa por seu festival da Terça-feira Gorda, mas Lafayette
tinha a própria ostentação turbulenta. Lá, ninguém entrega a
correspondência na Terça-feira Gorda. As escolas ficam
fechadas durante uma semana, e durante cinco dias as ruas
principais são fechadas ao trânsito duas ou três vezes por dia
para dar passagem aos sofisticados desfiles.
Depois da faxina pesada, do trânsito engarrafado e das
complicações de horário, o casal estava exausto quando o
caminhão de mudança chegou cedo na segunda-feira, dia 5 de
março. Ainda assim, Andrea despachou Bruce para o
trabalho; ela lidaria sozinha com o descarregamento e a
colocação da mobília. Não precisava ter nem Bruce nem
James por perto, atrapalhando. Planejara exatamente onde
cada coisa deveria ser colocada.
Mas mesmo sua energia com carga reforçada teria de se
esgotar. Andrea não podia simplesmente estar em todos os
lugares ao mesmo tempo. Perdia o filho de vista o tempo
todo. Dissera a James que ficasse dentro de casa enquanto ela
orientava os homens da mudança, mas o menino de 1 ano e
11 meses de idade, que ainda usava fralda, escapuliu para o
lado de fora enquanto os homens carregavam as caixas e a
mobília; alguém deixara a porta aberta.
Andrea era como um jogador atuando em duas posições no
campo; ao mesmo tempo em que orientava os homens da
mudança, ela arrastava James para fora dos arbustos, da grama
e, por fim, do caminhão de mudança. Quando começou a
imaginar seu filhinho esmagado e sangrando debaixo das
botas de um homem ou de um sofá que alguém deixara cair,
Andrea finalmente se conscientizou de que aquilo estava além
de sua capacidade. Foi quando telefonou para o celular de
Bruce e pediu que ele viesse imediatamente para casa.
O chefe de Bruce, que também estava sob pressão por causa
da imensa quantidade de trabalho vinculada à abertura de
capital da empresa, concordou, relutante, que o lugar de seu
funcionário era ao lado da esposa.
De certa forma, a situação acomodou-se nos dias seguintes.
Vizinhos apareceram com vasilhas de comida de boas-vindas,
cestas de flores, listas com os melhores endereços de compras
e das farmácias que ficavam abertas à noite e nos fins de
semana. Foi um momento alegre depois de uma entrada
turbulenta na casa nova.
E a vida continuou. Andrea mantinha-se intensamente
ocupada, dando os últimos toques na casa. Bruce trabalhava
15, 16, 17 horas por dia.
Foi somente na quarta-feira, dia 14 de março, nove dias
depois da mudança, e alguns dias depois de a febre do Mardi
Gras ter passado, que Andrea arranjou tempo para sair para
comprar os conjuntos de toalhas que precisava para os
banheiros. Ela se dirigiu à loja que escolhera, achando que
James ficaria bem no carrinho e que eles poderiam começar a
conhecer a vida normal do centro da cidade de Lafayette, sem
os desfiles, os vendedores de comida e a loucura dos turistas.
O dia estava bonito, Andrea estava de bom humor e a
sensação de ser uma estranha em uma nova cidade começava
a se amenizar. Enquanto caminhavam para a loja de artigos
para banheiro, passaram por uma loja que colocara do lado de
fora caixas cheias de brinquedos e barcos de plástico.
— Veja só — disse Andrea, tirando da caixa um pequeno
modelo de um avião com hélice e entregando-o a James, que
o examinou. — E ele rem até uma bomba embaixo! —
exclamou, esperando que o brinquedo distraísse James o
suficiente para permitir que ela ficasse à vontade para
procurar as toalhas.
Mas o que James, o menininho de fraldas, disse deixou
Andrea paralisada. James olhou para o aviãozinho, virou-o de
cabeça para baixo e declarou: "Isso não é uma bomba, mamãe.
É um tanque 'decatável'."
Andrea não tinha a menor ideia do que era um tanque
descartável. Foi somente quando chegou em casa à noite e
conversou com Bruce sobre o assunto que soube que se
tratava de um tanque extra de gasolina, que os aviões usavam
para estender a autonomia de voo.
— Como ele poderia saber isso? -perguntou a Bruce. Ele
balançou a cabeça. Talvez James tivesse reparado que o
tanque não tinha estabilizadores; uma bomba teria
estabilizadores.
Mas, mesmo assim, como ele poderia saber disso?
— Ele não consegue nem mesmo pronunciar direito
"tanque descartável", ele diz "tanque 'decatável'". Como ele
poderia conhecer um tanque descartável? Eu nunca ouvi falar
nisso.
Era perturbador, mas nada com que precisassem se preocupar.
Ainda não; não antes de os pesadelos começarem.
CAPÍTULO TRÊS
No período que se seguiu à tumultuada mudança, enquanto
os pesadelos sacudiam as noites na West St. Mary Boulevard
naquela primavera, ninguém no lar da família Leininger
estava conseguindo pensar com muita clareza. O excesso de
trabalho e de preocupações, aliado a noites mal-dormidas,
estavam deixando Bruce e Andrea completamente
atordoados.
No final de maio decidiram que precisavam de um descanso
— longe da "casa mal-assombrada" no bairro de White Oaks.
Planejaram percorrer de carro os quase 650 quilômetros até
Dallas, onde o restante da família estava se reunindo para
comemorar o Memorial Day e um aniversário. Hunter, o
primeiro filho de Becky Kyle, a irmã mais nova de Andrea,
completaria 4 anos na segunda-feira, dia 28 de maio. Andrea e
Bruce também estavam ansiosos para ver a filha mais nova de
Becky, Kathryn, conhecida como K. K., que era três semanas
mais velha do que James. As duas crianças, que ainda usavam
fraldas e tomavam mamadeira, estranhavam um pouco toda
aquela gente.
A casa de Becky ficava em Carrollton, uma área residencial
elegante na extremidade nordeste de Dallas, mas era pequena
demais para acomodar todos os visitantes das famílias
Leininger e Kyle, de modo que Bruce e Andrea decidiram se
hospedar em um hotel nas proximidades. (Sem dúvida, outro
fator pesou nessa decisão — uma ideia vaga que não foi
abertamente expressa: a possibilidade de que James pudesse
ter outro acesso à meia-noite, o que tornaria aquele feriado
desagradavelmente inesquecível.) Hospedaram-se em uma
suíte no Amerisuites, onde teriam uma quitinete e uma
piscina particulares e não seriam um estorvo na casa
movimentada da família Kyle.
Ainda assim, precisavam cuidar primeiro das coisas mais
importantes: tinham de sair de Lafayette e ir para Dallas. A
logística de um deslocamento Leininger é estritamente
militar. O estágio de planejamento inclui tabela rígida de
horários, forte disciplina e diagramas de fase inabaláveis —
isso se tudo fosse deixado a cargo de Bruce.
No dia anterior, todas as malas teriam de estar arrumadas e
inspecionadas. Os pneus do Volvo 850 Turbo 1994 com a
pressão exata. O tanque de gasolina cheio até a borda, como
se a família estivesse indo para uma área descampada e
inexplorada. Os relógios sincronizados para a partida, que
seria bem cedo. Reuniões para trocas de informações
realizadas para que cada membro do grupo falasse a mesma
língua.
Entretanto, como sempre acontece nessas operações
complexas, a vida atrapalha. O plano cuidadoso de Bruce
começou a degringolar nas primeiras horas da manhã de
sábado, dia 26 de maio. Entre outras coisas, o banho matinal
de Andrea demorou mais do que o permitido no plano
operacional. E, depois, ela precisou tomar café. Em seguida,
teve de trocar a fralda de James e lhe dar uma mamadeira.
Tudo isso ao som da voz de Bruce, que informava a hora em
alto e bom som a cada cinco minutos, e batia com o pé de leve
no chão. Finalmente conseguiram pegar a estrada às 9h, e não
às 8h, como estava previsto.
Isso não é motivo de estresse, disse Andrea.
A viagem em si, que havia sido avaliada e cronometrada para
durar, no máximo, sete horas, tinha paradas de descanso. Em
Shreveport, a família Leininger parou em um Burger King,
famoso pela demora do serviço. A demora fez com que Bruce
começasse a resmungar sem parar até chegarem ao Texas.
A passagem pelo Texas exerceu um efeito estranhamente
reconfortante na família, e um dos motivos foi a enorme placa
de boas-vindas: uma estrela vazada de 6 metros que parecia
um grande cortador de massa de biscoito. Logo que a viram,
começaram a cantar: "Welcome to the lonely star state!"
Chamar a estrela de "the lonely star" já se tornara um ritual. É
claro que eles deveriam cantar "Welcome to the Lone Star
State", o apelido do Texas, mas, por algum motivo, James se
confundiu na primeira vez em que viu a estrela, e Andrea
achou o erro tão engraçadinho que eles mantiveram a versão.
A grande placa sempre faria a família Leininger exclamar:
"Welcome to the lonely star!"
Quando a família finalmente chegou a Dallas, Bruce sugeriu
que Andrea fosse visitar a irmã (para colocar em dia o papo da
família Scoggin; não que elas não se falassem todos os dias por
telefone), enquanto ele levaria James ao Cavanaugh Flight
Museum. Afinal de contas, era o fim de semana do Memorial
Day, uma ocasião apropriada para dar uma olhada em antigos
aviões de caça. Ele levara James lá uma vez, e o menino
adorara a visita.
Na realidade, quando Bruce se virou e olhou para o banco de
trás do carro, confirmou que tivera uma boa ideia. Lá estava
James, em sua cadeirinha, com um de seus brinquedos
favoritos na mão: um avião.
Alguns meses antes, James era maluco por grandes caminhões
e brincava com eles o tempo todo. No entanto, desde o
primeiro momento em que olhou pela janela do carro e
avistou um avião voando, seu coração elevou-se ao céu. Os
aviões tornaram-se sua nova obsessão. Por causa disso, Bruce
chegou à conclusão de que uma visita ao Cavanaugh Flight
Museum seria o passeio perfeito para pai e filho. Comprou
para o menino um vídeo promocional dos Blue Angels, a
equipe de voo acrobático da Marinha americana, ao qual
James assistiu até quase estragar a fita. Ele nunca se cansava
de assistir ao vídeo ou de brincar com seus aviões. Depois
daquela primeira visita, James não quis mais saber de
caminhões; somente de aviões.
A primeira viagem ao museu em fevereiro fora maravilhosa.
Na ocasião, a família ainda estava (mal e mal) morando no
Texas; Bruce viajava muito de avião entre seu emprego em
Lafayette e sua casa em Dallas. Em fins de semana alternados,
ele fazia a viagem de ida e volta de quase 1.300 quilômetros.
Andrea, que na ocasião estava morando sozinha com James,
precisava desesperadamente de uma folga. Estava esgotada,
pois ainda não se recuperara de um acidente doméstico
recente. Acontecera em meados de janeiro. James havia
subido para o banheiro do andar de cima, onde ligou a água
quente da banheira. Andrea ouviu o barulho, correu pelas
escadas e se atirou sobre a privada para agarrar o filho antes
que ele se queimasse, torcendo, nesse movimento, um dos
músculos das costas, o que agravou uma antiga lesão.
A coisa foi feia. Para início de conversa, a ex-bailarina já
tinha um problema na coluna, mas agora nem mesmo
conseguia manter-se ereta ou andar. E não poderia nem
pensar em descer a escada carregando James. Bruce estava em
Lafayette, e Andrea telefonou para a mãe, Bobbi, que morava
a uns dez minutos de sua casa. Ela chegou com uma bolsa de
água quente e alguns comprimidos de Vicodin (sobras dos que
ela tomara quando fez um implante de dente), disse à filha
que ficasse calma e foi embora em seguida.
Mas Andrea precisava ficar de olho em James e alimentá-lo.
Subiu a escada engatinhando, com um sanduíche de manteiga
de amendoim e geleia entre os dentes. Como praticamente
não conseguia ficar de pé ou andar, essa foi a única maneira
que encontrou de ir até o quarto de brinquedos no andar de
cima. Foram necessárias muitas sessões com um quiroprático
para consertar suas costas. Mas Andrea era bailarina e estava
acostumada a sentir dor, além de ser muito corajosa.
Ela continuou a se virar sozinha, com Bruce indo para casa
em fins de semanas alternados para ajudar. No entanto,
sonhava com uma longa e prazerosa tarde em um salão de
beleza, onde seria paparicada e enfeitada, teria as unhas
cortadas e pintadas, os cabelos lavados e penteados — sem ter
de ficar o tempo todo de olho no filho para protegê-lo.
E assim, um mês depois, quando Bruce veio passar o último
fim de semana em casa antes que todos se mudassem para
Lafayette, ele se ofereceu para passar o dia inteiro cuidando
sozinho de James. Andrea, animada, aceitou a oferta.
Bruce queria que o dia fosse especial. Achou que o pequeno
James deveria ter uma recordação mais intensa de Dallas, algo
que o fizesse relembrar a beleza e o fascínio da cidade.
Passariam uma hora no museu dos aviões, em seguida iriam
almoçar e mais tarde talvez dessem uma volta pela cidade
para guardar uma última impressão de Dallas. Depois,
voltariam finalmente para casa. Esse era o plano de Bruce.
Bruce fora muitas vezes ao museu de Cavanaugh. Sempre que
recebiam convidados em Dallas, ele os levava para ver os
antigos aviões da Segunda Guerra Mundial, da Guerra da
Coréia e da Guerra do Vietnã. Todos os aviões brilhavam
como se fossem novos — reluzindo no chão do hangar,
estavam em perfeitas condições de voo, esperando por um
piloto.
James estava ansioso para chegar ao museu. Bruce tagarelou o
trajeto inteiro, falando sobre as coisas incríveis que ele iria
ver, mas James não precisava ser convencido de nada, porque
estava silenciosamente ansioso. E então, em meio a um
aglomerado industrial, surgiu o museu. A primeira coisa que
James avistou foi um velho Thunderchief F-104, atrás de uma
barreira de cordas. Ele era fascinante, parado ali na pista de
decolagem, como se alguém tivesse acabado de estacionar um
caça a jato e ido comprar cigarros.
James soltou um grito agudo quando viu o avião.
A bilheteria ficava ao lado da loja de presentes do museu, e
James passou bastante tempo examinando os aviões de
brinquedo. Bruce precisou comprar o vídeo dos Blue Angels
"It s a Kind of Magic" e um avião de brinquedo para conduzilo
aos hangares onde ficavam os aviões de verdade.
Os aviões estavam suspensos, majestosos atrás das cordas, e os
olhos de James faiscaram de prazer. A segurança nunca foi um
problema no museu, que raramente estava cheio, portanto
não havia guardas. E Bruce teve dificuldade para não deixar
James se aproximar. O menino se esforçou para chegar mais
perto dos velhos Mustangs, Spitfires e Wildcats da Segunda
Guerra Mundial.
— É proibido entrar aí — avisou Bruce.
No entanto, James estava visivelmente impressionado com
algo que vira no chão do hangar, e ficou parado, boquiaberto
e admirado. Bruce começou a caminhar em direção ao hangar
seguinte, onde estavam expostos os jatos mais modernos, mas
quando olhou para baixo percebeu que James não estava com
ele. O menino voltara e estava olhando para os aviões da
Segunda Guerra Mundial, como se estivesse hipnotizado.
— Vamos lá, James — disse Bruce, pegando a mão do filho.
Nesse momento, James gritou. Foi o grito pungente de uma
criança enraivecida. Não, na verdade algo ainda mais potente.
De uma criança contrariada. De uma criança que estava
sentindo alguma forma de angústia desconhecida. Não era o
grito de uma criança mimada que não estava conseguindo o
que queria, e sim de um menino que desejava
desesperadamente se expressar com clareza, mas não estava
conseguindo fazê-lo.
Bruce, que, em geral, não dava atenção a essas esquisitices,
ficou perplexo. Finalmente, tentou arrastar James para outro
setor da exposição, mas a criança continuou a resistir. A
situação encerrava algo sinistro, algo que Bruce não conseguia
compreender.
Para encurtar a história, eles visitaram duas ou três vezes os
aviões da Segunda Guerra, e a ida ao museu, que deveria
durar uma hora, se transformou em um passeio de três horas.
— Não quero ir embora — resmungou James.
— Eu sei, mas não podemos ficar aqui para sempre —
retrucou Bruce. — Você não quer almoçar?
James sacudiu a cabeça.
— Quer um sorvete?
A única maneira pela qual Bruce conseguiu fazer com que o
filho saísse do hangar foi prometendo que o levaria a um
campo de aviação em atividade, no qual poderiam observar os
aviões decolando.
— Vamos ao Aeroporto Addison — disse Bruce.
O aeroporto estava situado no terreno do museu, e James
poderia ver os Cessnas e os aviões corporativos que pousavam
e decolavam o tempo todo. Nenhuma comida ou guloseima
fora capaz de convencer o menino a arredar pé do hangar.
Somente a promessa de decolagens ao vivo.
Quando voltaram para casa, Bruce conversou com Andrea
sobre o ocorrido, tentou explicar por que a situação fora
perturbadora, mas só conseguiu dar a impressão de que estava
se queixando da dificuldade de tomar conta de James. É claro
que essa não era a questão, mas Bruce não sabia exatamente
qual era.
Agora, três meses depois, no Memorial Day, eles voltavam ao
museu dos aviões. Uma vez mais, James estava transbordando
de entusiasmo. Puxava o pai como um cachorrinho. Do lado
de fora, toparam com um senhor que disse: "Esse menino está
realmente animado. Bem, eu também fico animado todas as
vezes que venho aqui. Na Segunda Guerra, pilotei um avião
igualzinho a um dos que eles têm lá dentro."
Bruce descobriu que o senhor era Charles R. Bond Jr., que
pilotara um P-40 com os Flying Tigers. Ele deu um presente a
James, um broche dos Angels, e partiu para outro
compromisso. Foi um encontro bizarro; Charles claramente
reconheceu em James um espírito afim.
Dessa vez, Bruce tinha levado uma câmera, como se pudesse
captar no filme um fragmento do que quer que James
estivesse sentindo, e tirou fotos do filho de pé apontando para
a aeronave da Segunda Guerra Mundial. Entretanto, a
intensidade da experiência para aquela criança não era algo
que pudesse ser captado em um filme, uma empolgação tão
ardorosa que a pessoa teria de estar presente para senti-la.
Voltaram depois para a casa de Becky, onde todo mundo
estava ocupado arrumando as coisas para a festa. O tema era
"Thomas the Tank Engine". As crianças estavam brincando
em uma piscina inflável, e havia uma piñata na frente da casa.
Andrea estava atenta para garantir que ninguém quebrasse a
cabeça dos outros. A estranha experiência no museu
incorporou-se silenciosamente às felizes lembranças da
viagem.
E a viagem foi esplêndida; teve o poder de revigorar Bruce e
Andrea. Na última manhã, antes de iniciar a jornada de volta
para Lafayette, Bruce, James e Andrea ficaram deitados ao sol
na piscina do Amerisuite, e naquele momento, com a família
reunida e sossegada, a sensação foi de que haviam tirado umas
férias de curta duração.
Na viagem de volta para Louisiana, pararam novamente para
almoçar em Shreveport, mas dessa vez foram ao McDonald's.
Havia um espaço com brinquedos do lado de dentro, e
deixaram que James brincasse lá durante cinco minutos.
Bruce precisou passar por cima do cercado para tirá-lo de lá
dez minutos depois.
Quando pegaram novamente a estrada, Bruce refletiu sobre a
diferença daquela experiência e a do museu. O trepa-trepa era
um brinquedo, e James comportou-se como uma criança com
um brinquedo. O museu de Cavanaugh fora diferente; a
atmosfera, certamente, não era de brincadeira.
Até aquele instante, nem Bruce nem Andrea haviam
estabelecido uma ligação entre o fascínio obsessivo de James
por aviões e seus pesadelos. Um grande contraste claramente
se impunha. James gostava imensamente de aviões, sentia por
eles um entusiasmo inesgotável, de modo que não parecia
possível que os terríveis pesadelos tivessem algo a ver com seu
amor pelos aviões. Seus pesadelos eram profundamente
perturbadores, até mesmo aterrorizantes. Seu amor pelos
aviões era um prazer saudável. Não parecia possível que algo
tão agradável pudesse ter alguma relação com algo tão
assustador.
É claro que, posteriormente, eles perceberiam que os pontos
estavam presentes o tempo todo para estabelecer a ligação (a
emoção profunda no museu, a obsessão por aviões), mas nesse
momento, a caminho de Lafayette, depois da festa na casa de
Becky, embalados pelos calorosos sentimentos dos dias de
descanso, ninguém na família Leininger poderia associar as
duas coisas.
CAPÍTULO QUATRO
O dia 1º. de junho foi luminoso e ensolarado, mas não para
Andrea Leininger. Fazia dois dias que tinham voltado de
Dallas. James não tivera pesadelos no Amerisuite, mas lá
James dormira entre eles em uma cama king-size. Tanto
Bruce quanto Andrea estavam envoltos em uma atmosfera de
felicidade e otimismo graças aos momentos serenos e
tranquilos do fim de semana. No entanto, esse período acabou
se revelando uma longa pausa entre soluços.
Agora, de volta à sua cama, James estava novamente gritando
durante o sono. Os pesadelos haviam recomeçado.
Mas esse não era o único motivo pelo qual Andrea estava tão
aborrecida nessa quinta-feira, uma manhã agradável, de
temperatura amena, com o sopro do verão no ar. O que a
estava perturbando era algo muito mais prosaico, que toda
mãe enfrenta mais cedo ou mais tarde: ela teria de abrir mão
de seu precioso James, afastar-se e deixá-lo entregue a pessoas
totalmente desconhecidas. Tudo parecera tão inocente, tão
rotineiro quando ela concordou com a ideia. Andrea havia
matriculado James no Dia de Lazer da Mãe, um programa
pré-escolar para crianças de 1 a 3 anos promovido pela
Asbury United Methodist Church, da qual a família Leininger
acabara de se tornar membro. O que poderia ser mais
tranquilo? Era um programa pré-escolar administrado pela
igreja e acompanhado por uma equipe cuidadosamente
selecionada.
O programa possibilitava que mães muito estressadas tivessem
três horas livres para fazer compras ou relaxar em um almoço
tranquilo e demorado, deixando os filhos em mãos confiáveis.
A finalidade do programa não era levar as mães a ter um
ataque histérico de três horas de duração, que foi a maneira
como Andrea passou sua primeira folga da maternidade.
Ela havia preparado o almoço de James e sua bolsa de fraldas,
deixando-o na turma de "Anjos" com outras dez crianças mais
ou menos da idade dele. James parecia feliz e animado
enquanto caminhavam pelo corredor, ficando ainda mais
alegre quando avistou a pequena academia infantil e o
pequeno escorrega na sala de aula. Ele correu em direção ao
local de recreação, e Andrea entregou a bolsa do almoço e as
fraldas para a tia Lisa, fazendo questão de mencionar o estado
de saúde completo de James: as últimas vacinas que ele tinha
tomado, as coisas a que era alérgico, o nome do pediatra, seu
telefone celular e as ocasiões e a maneira como as fraldas
tinham de ser trocadas.
Em seguida, corajosamente exclamou:
-—Tchau, filho, divirta-se. Seja um bom menino. Na hora do
almoço eu volto para buscar você!
James nem mesmo ouviu o que ela disse, pois estava extremamente
ocupado com os novos colegas e com os brinquedos.
Ótimo, pensou Andrea, nada de lágrimas e de despedidas
dolorosas. Ele não a ficou puxando, tampouco ela precisou
arrancar à força os dedinhos do filho de sua perna. Tudo foi
simples e harmonioso. Agora, tudo o que ela tinha de fazer
era matar o tempo, três horas inteiras sem o filho. Três horas
felizes e despreocupadas. Ela ia fazer compras e...
Mas, quando saiu do estacionamento e entrou na Johns-ton
Street, ela caiu em si. Estava deixando o seu bebê... com...
Quem?! Andrea não conhecia aquelas pessoas. Não de
verdade. Poderiam ser molestadoras de crianças em liberdade
condicional! Assassinas que matam as pessoas com machados!
O que exatamente ela sabia a respeito dessas supostas
professoras que se diziam chamar tia Lisa e tia Cheryl? E
mesmo que elas fossem boazinhas, será que saberiam o que
fazer em uma crise? E se James engasgasse? E se as outras
crianças fizessem alguma maldade com ele? E se ele sentisse
falta dela?
Eram receios altamente operísticos cujas escalas Andrea
alcançava como uma soprano lírica.
E o que James pensaria a respeito de ter sido deixado lá? Ele
poderia achar que a mãe o tinha abandonado. Não seria essa a
suposição de uma criança de 2 anos? Olhar em volta e se dar
conta de que sua mãe não está ali, que foi embora... para
sempre.
É claro que Andrea tentara prepará-lo. Ela havia conversado
com ele a respeito da escola, disse que seria apenas por pouco
tempo e que logo depois ela estaria de volta. Mas será que ele
realmente tinha entendido? Ele era tão pequenininho...
Ela não entendia!
Nesse sombrio momento de aflição, Andrea recorreu à mãe.
Telefonou para o celular de Bobbi, tentando disfarçar as
lágrimas. Diante de qualquer demonstração de emoção, Bobbi
entrava em seu modo durão de amar, de modo que Andrea
tentou parecer corajosa, mas a mãe conseguiu discernir a
quase histeria da filha por trás da falsa coragem e alimentou-a
com o conforto gelado que Andrea deveria ter esperado:
James vai sobreviver. Ele ficará bem. Pelo amor de Deus, ele
vai ficar apenas algumas horas na creche. Seja mais corajosa!
Era exatamente o tipo de conselho sensato que ela deveria ter
esperado de um ser humano racional, só que nesse momento
ela não queria falar com um ser humano racional. Precisava
de uma alma irmã.
E foi exatamente para quem ela telefonou em seguida: suas
irmãs, Becky e Jenny, que compreenderam perfeitamente o
pânico irracional de Andrea. Elas tinham crescido sob aquele
mesmo teto emocionalmente carregado, onde também
aprenderam a subestimar suas explosões teatrais devido às
impiedosas críticas de Bobbi. E, como boas irmãs, Becky e
Jenny emitiram aqueles suaves murmúrios que demonstravam
que elas compreendiam e eram solidárias com a mulher
insana que estava se desesperando por causa do filho que fora
arrancado de seus braços amorosos para passar uma manhã
brincando com os amiguinhos.
Como sempre, conversar com as irmãs foi reconfortante, mas
Andrea estava um lixo enquanto empurrava o carrinho de
compras no supermercado, pegando rolos de papel-toalha,
biscoitos, bifes e produtos de limpeza — soluçando e se
debulhando em lágrimas no celular.
De algum modo, as três horas se passaram, e Andrea voltou
para a igreja cedo, para pegar James. Um pouco cedo demais.
Ela tentou não dar a impressão de estar espreitando o filho,
espiando através dos arbustos enquanto aguardava.
Finalmente, era meio-dia, e Andrea caminhou até a sala de
aula, tendo o cuidado de não desmoronar na frente das outras
mães, que não pareciam ter se debrulhado nem se lamentado
por toda a cidade de Lafayette.
Andrea achou que ela era a imagem do controle e da
respeitabilidade quando sorriu alegremente para tia Lisa e tia
Cheryl, como se esse período de três horas tivesse corrido
suavemente.
E — graças a Deus! — James começou a chorar quando
avistou a mãe.
James vivia dentro de um mundo amoroso, cuidadosamente
acolchoado; o que dificilmente era uma surpresa, se levarmos
em conta o fato de que ele era quase um temporão, nascera
em circunstâncias difíceis e era filho de pais exageradamente
super-protetores. Bruce era apenas um pouco menos
obsessivo. Acordava cedo para poder dar a James a primeira
mamadeira do dia e mantinha o filho acordado até tarde para
poder dar a ele a última mamadeira da noite.
Quando chegou a hora de James largar a mamadeira, foi
Bruce quem teve um problema emocional. Com frequência,
Andrea saía do quarto de manhã e encontrava Bruce
embalando o filho nos braços e alimentando-o com a
mamadeira proibida.
O menino estava indo bem com sua nova caneca e Andrea
tinha certeza de que ele não estava tendo dificuldade alguma
para largar a mamadeira. Mas Bruce era outra questão. Ele
dava muito valor ao momento de privacidade em que podia
abraçar o filho e sussurrar uma espécie de canção de amor; era
uma intimidade à qual ele se agarrava pelo maior tempo
possível.
No Natal, quando faltavam menos de quatro meses para James
completar 3 anos, Andrea adotou uma solução drástica.
Recolheu todas as mamadeiras da casa e colocou-as dentro de
um saco lacrado. Explicou a James que ia deixar todas as
mamadeiras para o Papai Noel distribuir para as crianças que
não tinham mamadeiras. Bruce nada poderia argumentar, a
não ser que quisesse enfrentar Papai Noel.
Certo dia, no início de junho, logo que as escolas fecharam
para as férias de verão, um longo comboio de carretas parou
no estacionamento do Lafayette Convention Center — a
Cajun Dome — e delas desembarcou um grupo animado de
biscateiros musculosos, ardilosos vendedores ambulantes,
camelôs loquazes e um grupo decaído de ciganos
carnavalescos em todo o seu extravagante esplendor tatuado.
A Feira Estadual Cajun Heartland chegara à cidade. Era como
se uma frota de navios piratas tivesse aportado. Começaram a
armar as barracas sujas e descarregar as atrações grandes e
deselegantes; montaram as tendas exóticas para abrigar os
eternos jogos de azar fraudulentos que bloqueariam o meio do
caminho com seus prêmios empoeirados de brinquedos
baratos e artefatos inúteis. Em seguida veio o helicóptero
rodopiante, o atordoante bate-bate, a sacolejante roda-
gigante, o desbotado carrossel, todos parecendo fracos e
remendados, como se só estivessem inteiros por estar seguros
com silver tape e arame. Era nesses frágeis brinquedos que se
divertiam as crianças de Lafayette.
A Cajun Dome está situada a menos de 2 quilômetros da West
St. Mary Boulevard, de modo que era impossível para Bruce e
Andrea evitá-la, porque eram obrigados a trafegar pela West
Congress Street. Os olhos de James arregalavam-se, e ele
implorava para que o levassem à feira.
Armados de lenços de papel antibacterianos, com o coração
na mão, Andrea e Bruce levaram James à feira. Simplesmente
não havia como serem mais cuidadosos. Bruce e James foram
se divertir no Super-tobogã, que funcionava apenas com a
força da gravidade, sem peças em movimento. Bruce manteve
James entre as pernas enquanto Andrea observava e tirava
fotos, a distância. O suave carrossel não fez o sangue de James
correr mais rápido nas veias. Ele queria ir nos brinquedos
arriscados. Eles o deixaram andar no Urso Rodopiante e na
elevada montanha-russa, mas seu brinquedo preferido era o
pequeno helicóptero que subia e descia. James insistiu em
andar nele seis ou sete vezes. Nada parecia seguro.
James tomou sorvete e comeu seu primeiro algodão-doce.
Estava feliz e dançava no ritmo do jingle "Bem-vindos à Feira
Estadual de Cajun Heartland. Venham todos! Divirtam-se!"
Era uma unanimidade entre o público presente que o parque
precisava de um novo jingle.
Pouco depois, em meados de junho, algo novo aconteceu
durante o pesadelo. Foi mais ou menos uma semana após a
feira. Quando James começou a gritar, Andrea fez o que
geralmente fazia: foi correndo ao quarto dele, esfregou-lhe as
costas e andou lentamente ao redor do berço. Em seguida,
pegou o filho no colo e carregou-o até a cadeira de balanço. A
essa altura, James já havia acordado, e Andrea murmurou sons
reconfortantes. Depois, quase de um modo casual, ela
perguntou se ele se lembrava do sonho.
James respondeu:
— O avião caiu! O avião está pegando fogo! O rapaz não
consegue sair.
Ela não acordou Bruce, porque ele ficaria irritado e não se
interessaria pelo ocorrido. Ela conversaria com o marido pela
manhã.
Andrea estava confusa com relação à importância do que
James havia deixado escapar; na realidade, ele não deixara
escapar nada; ele pronunciara a frase de maneira calma e
enfática.
Ela hesitou em recorrer às sábias da família — sua mãe e suas
irmãs, coletivamente conhecidas como "o conselho" —
porque achava que já tinha esgotado sua cota com elas.
Essa história de estourar cota era longa. Vinha dos problemas
que Andrea teve durante a gravidez, com todos os tipos de
especialistas e clínicos gerais, além de uma porção de
preocupações que não terminaram com o nascimento de
James. Quando o bebê estava com 3 meses e não flexionava os
braços se Andrea o colocava de bruços, ela ficou convencida
de que havia algo terrivelmente errado com ele. Quando ele
estava com 6 meses, suas irmãs e sua mãe não aguentavam
mais seus constantes alarmes; Andrea estava sempre
preocupada.
Durante aqueles primeiros meses, Andrea perdeu peso; estava
uma pilha de nervos e não conseguia parar de tagarelar a
respeito deste ou daquele indício, de observar James sob um
microscópio em busca de algum sinal de que havia um
problema. Falava incessantemente a respeito de tudo com o
conselho, até que seus membros finalmente lhe deram um
conselho útil.
— Pelo amor de Deus, vá ao médico e peça para lhe receitar
um remédio! Você está nos levando à loucura. James está
bem; você é que está com algum problema.
Foi o poder da exasperação coletiva da família que acabou por
convencê-la.
O médico de Andrea prescreveu Paxil, o que foi uma dádiva
para ela e para James.
Como resultado, Andrea fez uma coisa que nunca tinha feito
antes: tornou-se mais reservada com a família. Absteve-se de
descrever o horror dos pesadelos de James e procurou limitar
as conversas às dificuldades rotineiras de uma criança
pequena. No entanto, depois dessa noite, Andrea mencionou
para a mãe, quase en passant, que James não andava dormindo
bem.
Bobbi assumiu uma posição conservadora e racional sobre os
pesadelos. Afirmou que, certamente, a causa era a nova casa e
o novo ambiente. Andrea conversou em seguida com uma das
irmãs, Becky, que perguntou se o sobrinho andava
excessivamente cansado à noite. Explicou que, se ele não
estivesse cochilando devidamente à tarde, estaria sujeito a ter
pesadelos à noite. Disse a Andrea que seguisse os horários à
risca e fizesse o menino descansar durante o dia. Mas nem
isso funcionara.
Andrea estivera correndo de um lado para o outro durante o
dia, consertando e arrumando a casa, e James não tirara seus
cochilos habituais. Ele pegava no sono no carro, mas não era a
mesma coisa. Andrea organizou então as coisas de maneira
que, na hora da sesta, ele estivesse em casa, no berço, para
cochilar adequadamente. Isso funcionou durante alguns dias,
mas depois os pesadelos voltaram. Mesmo com os cochilos.
Andrea ainda não se sentia à vontade para convocar o
conselho. Entre outras razões, naquele momento, um dos
membros estava precisando mais da solidariedade de todos.
Jenny e o marido, Greg, não podiam ter filhos, e estavam
tentando adotar uma criança. Além disso, tinham sido
obrigados a se mudar de Dallas para Trumbull, em
Connecticut, depois que Greg mudara de emprego. E, como se
isso não bastasse, Jenny ainda tinha um problema de saúde,
uma condição pré-cancerosa que exigia cuidados.
Andrea achou que trazer novamente à tona o assunto dos
pesadelos seria uma atitude egoísta, até cruel. Afinal, ela já
tinha seu bebê, embora com alguns problemas de sono; Jenny
necessitava bem mais de atenção.
No meio de tudo isso, ainda precisavam vender a casa de
Dallas. Ela era nova, mas Andrea redecorou-a para torná-la
mais atraente ao mercado. Estava ansiosa esperando que
aparecessem compradores. A casa finalmente foi vendida, no
final de maio, e a família Leininger teve um lucro modesto,
mas o processo deixara os nervos deles em frangalhos.
Ao mesmo tempo, Bruce estava sendo pressionado para
atualizar todos os programas de recursos humanos da OSCA e
adequá-la às diretrizes da legislação trabalhista federal para
que a empresa pudesse abrir o capital, aumentar a
disponibilidade financeira e, depois, ser vendida. Não era
muito diferente do que ele fizera com a casa de Dallas:
redecorá-la para que pudesse ser vendida.
Essa era uma prática comercial comum. Uma grande
corporação, a Great Lakes Chemical, estava cortando um
pequeno pedaço de si mesma para fazer dinheiro.
Não que Bruce soubesse muita coisa a respeito da indústria de
petróleo e gás; ele era especialista em recursos humanos. Isso
significava que ele estava voando o tempo todo entre
Lafayette, Louisiana e a sede da alta administração da Great
Lakes Chemical, em Indiana, para fornecer informações sobre
o andamento das coisas.
Em junho, a empresa estava a poucos dias de fazer a oferta
pública de ações, e todo mundo estava com os nervos à flor da
pele. O mais agitado de todos era Bruce, já que estava
configurando pacotes de benefícios em uma indústria com a
qual não estava nem um pouco familiarizado. Ele estava
determinado a encontrar uma remuneração justa para os
homens que estavam nas plataformas em águas profundas,
trabalhando 21 dias ininterruptos com apenas sete de folga.
Algumas semanas mais tarde a família estava a caminho do
Lafayette Regional Airport. Bruce estava indo para Indiana
em uma viagem de negócios. James estava no banco de trás do
carro, brincando com um dos aviões de brinquedo que
escolhera no Texas, e Bruce pensava com seus botões se teria
colocado na mala um número suficiente de agasalhos. De
repente, quando entraram na estrada do aeroporto e os
grandes jatos ficaram à vista, uma vozinha exclamou no banco
de trás:
— O avião do papai caiu. Grande incêndio!
Por um momento os pais de James ficaram aturdidos dentro
do carro e, em seguida, trocaram olhares alarmados.
O quê?
— O avião do papai caiu. Grande incêndio!
Bruce explodiu, aos gritos:
— Não! James, não diga isso. Aviões não caem! Nunca mais
diga isso! Está entendendo?
O aviãzinho que James tinha nas mãos não tinha mais hélice.
Ele jogara repetidamente o avião de brinquedo contra uma
mesa de centro na sala de estar, quebrando as hélices. Na
realidade, ele fizera a mesma coisa com todos os aviões que
Bruce comprara para ele em Dallas, ou seja, atirara todos eles
contra a mesa, repetidamente, quebrando os acessórios.
— O avião do papai caiu. Grande incêndio!
Bruce não levou o comentário na brincadeira. Afinal, era ele
que estava prestes a embarcar em um avião, algo que nunca
fazia sem ansiedade ou sem rezar, e ali estava seu filho
fazendo esse sinistro prognóstico. Ele achou que James havia
deliberadamente escolhido esse momento e calculado seu
impacto para dizer uma coisa terrível. Não era nada disso.
James tinha 2 anos. E o que saiu de sua boca não era maldade
ou perversidade; era o relato espontâneo de outra pessoa.
Na ocasião, não foi essa a interpretação de Bruce. Ele achou
que James estava sendo malicioso. Achou que o menino,
consciente do estado tenso do pai, estava tentando deixá-lo
ainda mais nervoso. Como se uma criança de 2 anos pudesse
formular um plano tão complexo para irritar o pai.
CAPÍTULO CINCO
À medida que suas vidas avançavam, cada um dos
membros da família envolvia-se ainda mais com as próprias
dificuldades: James estava tendo de quatro a cinco pesadelos
por semana e, durante o dia, provocava acidentes com seus
aviões de brinquedo, quebrando as hélices e transformando a
mesinha de centro em uma antiga peça de mobiliário;
Andrea, arrumando a casa enquanto assistia a James avançar
de pesadelo em pesadelo. Contava tudo para sua família, que
se tornara insensível à história toda, tendo em vista sua
tendência para o melodrama. Enquanto isso, Bruce trabalhava
até tarde da noite para ajudar a OSCA a abrir o capital.
O prazo final para a primeira oferta pública de ações era 14 de
junho, e a apresentação dos documentos à Securiries and
Exchange Commission tinha de estar completa e perfeita.
Eu estava trabalhando duro — muito duro —, e havia aquela
mistura agradável e palpitante de exaustão e euforia que
sentimos quando sabemos ter feito um bom trabalho.
Orgulho. Acertando em cheio. Vou te contar, eu levava horas
e horas para acertar em cheio. O plano de saúde e
aposentadoria, o seguro e os complicados pacotes de
beneficios; tudo isso tomou um tempo enorme e exigiu muito
de mim. Eu voltava para casa exatamente como disse —
eufórico e exausto, com aquela incrível sensação de...
realização... e estava apenas procurando um lugar sossegado,
um momento tranquilo, para absorver tudo, para saborear o
que eu tinha feito. E depois cair naquele sono profundo,
profundo e virtuoso... interrompido por gritos estridentes no
meio da noite.
Na noite de 14 de junho, depois de concluir todo o seu
trabalho para a empresa, Bruce foi para casa, para outro
pesadelo, só que esse nada tinha a ver com James.
Bruce esperava um descanso feliz, a recompensa e o alívio
depois que a companhia finalmente abrira o capital. Essa era a
compensação por todo o árduo trabalho. Agora, enfim, a
pressão acabara. Ele e seus colegas poderiam relaxar e
saborear o prêmio. Bruce saiu do escritório às 18h30 e
comprou uma garrafa de Cabernet Sauvignon antes de seguir
para casa. Estava planejando um agradável jantar à luz de
velas.
Mas, quando Bruce entrou em casa, o telefone estava tocando.
Ele pressupôs que fosse alguém ligando para parabenizá-lo
pelo trabalho bem feito, para cumprimentá-lo. Entretanto,
Robert Hollier, seu chefe, estava telefonando de um
aeroporto para convocá-lo de volta à ação. "Houve um
acidente em uma das plataformas. Volte imediatamente para
o escritório (...). Estou pegando um avião agora e me encontro
com você lá."
Andrea ficou desconcertada. O que estava acontecendo? Ela
estava fazendo sinais com as mãos pedindo uma explicação
enquanto Bruce fazia sinais para ela ficar quieta. Ele desligou
o telefone, e seu rosto tinha assumido aquela tonalidade
austera e cinzenta que indicava problemas.
— O que foi? — perguntou ela.
As velas e o jantar teriam de esperar, retrucou Bruce. Andrea
estava andando de um lado para o outro, tentando obter
alguma informação, e tudo o que Bruce podia dizer era que
houvera "um acidente... ligo para você assim que souber de
mais detalhes".
E, então, ele saiu.
Um dos homens que trabalhavam em uma plataforma do
golfo tinha caído na água. Era um jovem, com mais ou menos
35 anos, que tinha sido derrubado da plataforma por uma
mangueira de alta pressão durante uma fraturação hidráulica,
uma técnica delicada e perigosa destinada a aliviar a pressão.
A rocha debaixo da plataforma precisa ser "fraturada" para
que o gás ou o petróleo possa escapar para o poço, subir e sair
através do solo. Se um operário se aproximar demais e a
mangueira se soltar, ele pode ser cortado ao meio. No caso em
questão, o operário, um operador de equipamento sênior, foi
jogado no golfo quando a mangueira se desprendeu.
A Guarda Costeira havia sido chamada; um helicóptero dava
voltas no local; navios de várias companhias estavam a postos,
realizando uma busca noturna ao redor da plataforma. Mas
não havia muita esperança. Quando alguém caía na água,
naquele local, no escuro, no meio das correntes e ondas
encrespadas do mar, a não ser que fosse retirado de lá
rapidamente, as chances de sobreviver eram mínimas.
E fazia cinco horas que Mike havia caído no mar.
O operário tinha esposa e dois filhos, que moravam a 50
quilômetros dali, em um estacionamento de trailers em
Rayne, e ninguém queria que a esposa e os filhos dele
soubessem do ocorrido pela televisão. Coube a Bruce dar a
notícia. Ele chegou em Rayne por volta das 23h. Quando a
esposa de Mike chegou à porta e viu o grupo lúgubre de
homens, soube de imediato que algo terrível tinha
acontecido. Ela não quis se sentar e ficou andando
freneticamente de um lado para o outro, e em seguida
começou a tremer. Perguntou se o marido estava morto, e
Bruce respondeu que só sabiam que houvera um acidente e
que estavam fazendo todo o possível para encontrá-lo.
Bruce lembra que ela tentou ser corajosa. Ele pôde ver e
sentir o esforço que ela estava fazendo. Estendeu a mão para
tocar na dela, mas ela recuou, ficou andando em círculos e
começou a chorar. Havia uma expressão assombrada e vazia
no rosto dela, e Bruce sabia que o olhar dela permaneceria
para sempre com ele.
Quando voltaram ao escritório, receberam a informação de
que uma lancha da Guarda Costeira chegara à plataforma à
meia-noite, mas recusara fazer um mergulhador entrar na
água. Não no escuro, não na água traiçoeira ao redor de uma
plataforma de petróleo, onde o mergulhador poderia ficar
preso e morrer.
Bruce ficou furioso. Pegou o telefone e começou a gritar com
um funcionário da Guarda Costeira. "Se fosse um Kennedy
que tivesse caído dentro d'água, vocês teriam mandado uma
esquadra para lá!", esbravejou, desligando em seguida.
A empresa organizou a própria equipe de mergulho e colocou-
a na água à tarde, mas era tarde demais. Os
mergulhadores levaram menos de 20 minutos para encontrar
o operário perdido; ele estava pendurado na superestrutura
submersa. Quando foi derrubado, a corrente levou-o de volta
para debaixo da plataforma, onde ele se afogou.
Havia sido a única fatalidade que a OSCA tivera em toda sua
existência, mas seus efeitos perduraram. Não apenas porque o
acidente tinha ocorrido em uma ocasião auspiciosa e trouxera
tristeza ao que deveria ter sido um momento radiante, mas
também porque era um lembrete marcante de que a atividade
deles era perigosa e traiçoeira. A partir de então, a empresa
sempre manteve psicólogos de sobreaviso para lidar com a dor
da perda.
Depois disso, Bruce tornou-se distante, prestando pouca
atenção aos pesadelos e à obsessão do filho por aviões, ou
mesmo à voz suave e incômoda da esposa, que o alertava para
o fato de que os pesadelos não estavam melhorando e de que
um novo componente havia sido introduzido — a conversa a
respeito do avião que caíra, o fogo e o rapaz preso dentro dele.
Além disso, os sonhos tinham começado a interferir na vida
de James quando estava acordado.
Mas para Bruce essas notícias eram vagas e irreais, e se ele as
levasse a sério, seriam inquietantes. Assim, ele se recolheu, o
que era compreensível. Estava lidando com complicações relacionadas
ao operário que se afogara, à viúva e aos filhos. Ele
tinha questões de seguro para resolver e uma família que
sofrera um grande trauma para ser tranquilizada e orientada.
Andrea sabia que precisava lidar com as questões domésticas.
Bruce tinha seu próprio pesadelo. Cabia a ela chegar ao fundo
do sono perturbado de James.
CAPÍTULO SEIS
A prioridade para decifrar o mistério dos pesadelos de
James precisou ser repensada diante das dificuldades que
choviam torrencialmente naquele momento sobre a West St.
Mary Boulevard. Bem no início da lista de afazeres de Andrea
estava adaptar a casa nova às suas necessidades.
Tecnicamente, era uma casa antiga, septuagenária, no estilo
acadiano, com banheiras, pias, vasos sanitários e armários
velhos. Aquela era uma experiência nova para a família
Leininger. Pela primeira vez em oito anos de casamento,
Andrea e Bruce tinham se mudado para um lugar que não
cheirava a tinta fresca e madeira nova. Era a primeira vez em
que não eram os primeiros donos do lugar.
A casa estava vazia havia quatro meses quando eles se mudaram,
e tinha acumulado uma camada de sujeira, além de ter
um estilo antiquado, pomposo, que não combinava com o
gosto alegre de Andrea. Seriam necessários meses para que a
casa estivesse à altura de seus padrões de Mary Poppins, mas
Andrea vicejava na presença do trabalho árduo. Na realidade,
seria uma ótima distração diante do horror que se haviam
tornado suas noites.
Andrea arregaçou as mangas e pôs mãos à obra. Forrou
novamente os armários e as gavetas, limpou as marcas de pés
das velhas banheiras, esfregou as manchas de água das antigas
pias e substituiu o assento dos vasos sanitários — mas deixou
as grandes caixas-d'água dos vasos porque fazia questão que a
descarga fosse forte.
A casa era resistente e firme, mas Andrea também era.
Paredes sólidas e cores incompatíveis tiveram de se submeter
à sua vontade.
A primeira coisa que a impressionou foi a repugnante
tonalidade de rosa pálido nos corredores — uma ofensa aos
olhos.
Ela não podia contar com a ajuda de Bruce. Pelo menos não
nisso. Ele passara por uma verdadeira crise no trabalho, e, se
precisasse escolher entre isso e os pesadelos, simplesmente
não estaria disponível no que disssesse respeito à decoração da
casa nova.
Todos os dias, enquanto James tirava o cochilo da manhã,
Andrea entrava em ação. Surgiam a escada de 3 metros, a
tinta e o balde de mistura, os pincéis, os rolos e a fita azul dos
pintores. Rapidamente, ela misturava a tinta e, depois, subia
na escada. Colocava a fita sobre as cornijas e depois descia da
escada, para colocar a fita nos rodapés. Ela trabalhava como
um demônio para passar pelo menos uma camada de tinta
antes que James acordasse e começasse a atrapalhá-la.
O papel de parede da cozinha era outro grande desafio. O
guingão azul e branco formava um contraste gritante com o
magnífico azulejo português pintado à mão que cobria a área
em cima da pia e do fogão. Para essa tarefa, ela precisou da
ajuda de James. E o menino executou com competência o
trabalho que lhe fora designado: arrancar o papel de parede
velho. Seu talento de destruição estava à altura dos seus 2
anos de idade.
No entanto, Andrea não conseguiu explicar claramente para o
filho a visão geral do trabalho. Sem dúvida, eles se divertiram
puxando e arrancando a camada superior do papel de parede
velho. No entanto, o problema surgiu depois que ela colou o
novo papel de parede azul com acabamento de linho, deu um
passo atrás para admirá-lo e, em seguida, parou para uma ida
não programada ao banheiro, sem modificar as ordens de
marcha de James. Ela só ficou ausente por um momento, mas,
quando voltou, encontrou seu filhinho cheio de iniciativa
arrancando o novo papel de parede. Bastou uma única
explosão estridente da mamãe para convencer James de que
ela queria manter no lugar o novo revestimento da parede.
Ele também aprendia rápido.
O quarto de James também implorava por uma remodelação.
As venezianas verde-escuras de madeira maciça e o papel de
parede florido conferiam ao quarto uma atmosfera sombria e
sufocante. Entretanto, o papel parecia incorporado às paredes.
Andrea levou várias semanas para removê-lo, com um
instrumento cortante e solvente. Ela substituiu o antigo
revestimento por um padrão texturizado cinza-amarronzado,
tom sobre tom, com uma borda de aviões antigos
sobrevoando um campo aberto. Em seguida, encheu o quarto
de luz, removendo as venezianas fixas e substituindo-as por
persianas móveis.
O quarto ficou mais luminoso e mais claro, com duas janelas
dando para o sul e duas para o leste, e toda a mobília com a
qual James estava acostumado no devido lugar.
Andrea tornaria a casa um lugar aberto, cordial e acolhedor,
que refletiria as grandes esperanças da família. Estava
determinada a alcançar seu objetivo. Quando declarara que a
mudança para a casa de Lafayette seria a última, Andrea
estava realmente falando sério, por isso arregaçou as mangas
para consertá-la e arrumá-la com tanta energia.
"Você gosta deste, James?", perguntava Andrea, mostrando as
cores e os tecidos que pretendia usar. O menino sorria e fazia
que sim com a cabeça, e juntos, cantarolando, eles
arregaçavam as mangas e se punham a trabalhar, desnudando
as paredes, arrancando as venezianas e deixando a luz entrar
— não que isso ajudasse a aliviar os pesadelos.
A essa altura, os pesadelos de James haviam se tornado
pesadelos de Andrea; ela não dormia, não com os dois olhos
fechados. Uma parte dela estava sempre alerta, sempre atenta
ao primeiro grito. Durante meses ela foi incapaz de entrar em
um estado profundo e revigorante de repouso total.
No entanto, mesmo na presença de toda essa tensão e pressão,
Andrea conseguiu criar um local de perfeita paz. Todas as
noites, enquanto Bruce e James liam juntos ou ficavam
conversando sossegadamente, ela corria para a banheira e
tomava um banho bem demorado. Acendia velas, colocava
um CD para tocar, bebericava uma taça de vinho e ficava de
molho durante duas horas. Ela ficava na banheira até se
transformar em uma uva-passa, até sentir a tensão se dissolver
na água cheia de espuma. Até sua cabeça parar de martelar e
ela ficar pronta para enfrentar os terríveis pesadelos. Esse era
seu jardim secreto.
No fim de junho, Bruce precisou viajar durante uma semana
para New Jersey a fim de comparecer a eventos de sua família.
No dia 19, Gregory, seu filho de 15 anos, do primeiro
casamento, ia se formar no nono ano. No dia seguinte, teria
lugar a cerimônia de formatura de suas filhas gêmeas, Andrea
e Valerie, que haviam concluído o ensino médio na
Bridgewater Raritan High School, a mesma escola em que
Bruce se formara 33 anos antes. Ele não poderia faltar às
cerimônias de jeito nenhum.
Bruce recordou a sensação de vazio que tivera durante suas
formaturas. Seu pai, um operário que tinha imenso orgulho
de sua profissão, nunca foi além da primeira série do ensino
médio, tampouco superou sua antipatia pela escola e pela
educação. Depois de servir no Corpo de Fuzileiros Navais,
Ted Leininger se esforçara para sair das minas de carvão e se
tornar um operário qualificado. Ele considerava todos aqueles
títulos sofisticados completamente desnecessários, por isso
nunca esteve presente nos momentos importantes da vida de
Bruce.
Isso deixou Bruce marcado e, quando ele cresceu, jurou que
jamais perderia uma única entrega de diploma de seus filhos.
Nada iria impedi-lo de voar para New Jersey para comparecer
à formatura de três de seus quatro filhos daquele primeiro e
fracassado casamento. Andrea planejara acompanhá-lo ao
aeroporto naquela manhã de segunda-feira de junho e depois
levar o carro para casa.
Quando a família Leininger se dirigiu ao estacionamento do
Lafayette Regional Airport, Andrea estava no assento do
passageiro, e James, no banco de trás, preso na cadeirinha,
segurando seu avião de brinquedo. Bruce estava ao volante,
irritado com algumas coisas, meio preocupado, como de
costume, porque ia viajar de avião. Estava prestando atenção
apenas às suas apreensões, até que ouviu uma vozinha vinda
do banco de trás:
— O avião do papai caiu. Fogo!
Bruce já ouvira aquela frase, mas, mesmo assim, ela era
chocante. Precisou lembrar a si mesmo que James só tinha 2
anos e 2 meses, que era incapaz de avaliar a força do que
estava dizendo. O menino ainda usava fralda, e ainda resistia
ao treinamento para aprender a usar o troninho. Ele podia
parecer mais crescido, ter momentos de maior maturidade,
mas era apenas um menininho.
Além disso, o relacionamento dos dois não era um
relacionamento comum entre pai e filho. Bruce e James já
haviam formado vínculos de titânio. Quando Bruce chegava
do trabalho, à noite, James corria até o carro para recebê-lo,
sem nem mesmo deixar que ele soltasse o cinto de segurança.
James pulava no colo do pai e brincava de dirigir, mexendo
em cada botão do painel de instrumentos. Ele era um
encanto, e, como toda criança, adorava fast-food, doces e
travessuras inofensivas.
Bruce tinha uma grande paciência com o filho. Em um sábado
à tarde, por exemplo, Andrea saiu para fazer compras e Bruce
cochilou na cadeira. Quando ela voltou para casa, Bruce
correu para ajudá-la com as sacolas.
— Onde está James? — perguntou Andrea.
Bruce não sabia. Foi o maior alvoroço enquanto ele e Andrea
percorriam a casa, cômodo por cômodo. Finalmente, Bruce
virou à esquerda no quarto principal e, quando se
encaminhou para o banheiro, ouviu barulho de água. Lá
estava James, triunfante, de pé sobre a bancada, rindo
enquanto a água transbordava sobre a pia e descia em cascata
pelas encantadoras plataformas que ele criara com as gavetas
da bancada.
Bruce teria toda razão de ficar furioso. James fizera uma
bagunça terrível. Mas, quando notou o quanto James tinha
sido inventivo — usando as gavetas como degraus para chegar
à pia, em seguida fazendo a pia transbordar para que a água
derramasse em cada gaveta, as quais, por sua vez, também
transbordaram, com tudo se transformando em uma perfeita
cascata —, ele ficou mais impressionado do que zangado.
E por causa da culpa que já carregava, Bruce jurara que James
nunca deixaria de ter o que seus outros quatro filhos haviam
perdido: a presença constante de um pai amoroso. Todas as
manhãs de sábado ele colocava James no baby bag e, juntos,
faziam panquecas. Depois, assistiam a Looney Tunes ou ao
Bob Esponja, até que Andrea acordasse e definisse as
atividades do dia.
Mesmo quando esse seu mal-estar primitivo a respeito de voar
era despertado, mesmo debaixo de uma grande provocação,
Bruce não conseguia ser bruto com o filho.
— O avião do papai caiu! Fogo!
As mãos de Bruce se contraíram no volante, e ele disse
entredentes:
— Você não deve dizer isso, James! Aviões não caem! O avião
do papai não vai cair!
Ele achara que tinha deixado claro para James que ele não
podia falar a respeito de aviões caindo. Pensara que James
havia entendido que isso aborrecia o papai. Por que o menino
estava dizendo aquilo de novo? Talvez ele simplesmente não
entendesse que aquilo era extremamente perturbador.
Mas as palavras de James não saíram de sua boca com má
intenção. Foi uma coisa espontânea; ele poderia muito bem
ter dito que vira uma nuvem bonita no céu.
No vôo para New Jersey, Bruce pensou mais a respeito do
assunto e acabou produzindo uma espécie de explicação. As
crianças tinham medo do escuro, mas cresciam, e o medo ia
embora. Um dia, seu filho pararia de dizer aquilo.
Isso logo passaria. Era a esperança de Bruce. Era uma coisa
frágil na qual se agarrar — esperança —, mas ele não tinha
qualquer outro plano. A esperança era sua única estratégia.
Andrea também tentou elaborar uma estratégia. Os pesadelos
de James não estavam diminuindo, e estavam se infiltrando
cada vez mais na luz do dia. Ela viu o rosto de Bruce se
contrair quando James previu um acidente. Ela sentiu a
própria fadiga. Tinha chegado ao limite. Alguma coisa
precisava ser feita.
Talvez estivesse na hora de convocar o conselho.
CAPÍTULO SETE
As mulheres Scoggin formavam um grupo unido e alegre.
Sua união era peculiar, estranha e intensa. Falavam umas com
as outras todos os dias por telefone e, quando o faziam,
falavam a respeito de tudo, avaliando cada medida, cada
encontro, cada aquisição, cada decisão. É a casa certa? É o
emprego adequado? A criança está apenas se comportando
mal ou é um problema de alimentação? Elas viravam pelo
avesso e estudavam os mais ínfimos detalhes da vida de cada
uma como se estivessem analisando textos sagrados.
Entretanto, quando se tratava de realmente resolver
problemas, elas não eram muito práticas. Mesmo assim, era
inegavelmente um grande conforto para todas ter umas as
outras disponíveis a qualquer hora por telefone.
Eram três no total: Becky, de 34 anos, a mais jovem, a
mediadora descontraída; Jenny, de 36, a do meio, a ousada e
petulante, sempre pronta para uma discussão; e Andrea, de
38, a irmã mais velha, que tentava ser a melhor amiga de todo
mundo enquanto explicava cada opção.
A mãe, Bobbi, de 65 anos, com frequência gostava de se
considerar apenas mais uma das meninas. E havia motivo para
isso. Ela era mignon, atraente, muito jovial e levemente
excêntrica, e seu modo de agir era compatível com uma
geração abaixo de sua idade cronológica. Bruce
frequentemente dizia que, se não tivesse visto Andrea
primeiro, teria namorado Bobbi.
Ela, decididamente, não era uma mãe comum. Na realidade,
as diretrizes de criação que ela adotava com os filhos jamais
seriam encontradas em um livro do Dr. Spock.
Pense na famosa festa do pijama. Corria o dia 17 de abril de
1975, Andrea estava completando 13 anos e obtivera
permissão para convidar cinco meninas de sua turma do
sétimo ano para uma festa em que todas dormiriam em sua
casa. Elas comeram biscoitos de chocolate recheados, batata
frita, beberam refrigerante, ficaram acordadas até tarde e
tentaram pensar em uma travessura de adolescentes — o que,
afinal de contas, era o principal objetivo de uma festa do
pijama. Durante essa breve noite, elas eram adolescentes fora
da lei. Pregaram trotes por telefone ("É o sr. Lobo? Estão
esperando o senhor no zoológico!"). Realizaram uma sessão
espírita e tentaram fazer uma das meninas levitar por meio de
fórmulas mágicas: "Leve como uma pena, rígida como uma
tábua!" O tempo passou rápido, e já passava da meia-noite, e
como a levitação não tinha se concretizado, estava na hora de
fazer algo realmente provocador.
A supervisão dos pais havia sido suspensa, ou seja, tanto Bobbi
quanto Jerry, o pai de Andrea, estavam dormindo no quarto
deles, mais adiante no corredor. Uma das meninas tomou a
decisão de comando de "embrulhar" a casa de um dos
vizinhos em papel higiênico. Todas concordaram que a ideia
era perfeita. Foram então à loja de conveniência mais próxima
e compraram um estoque de papel higiênico suficiente para
pessoas que estivessem pretendendo não sair de casa o
inverno inteiro.
Quando voltaram para casa para pôr o plano em prática, as
meninas foram flagradas. Esperando por elas, de pijama,
estava a mãe de Andrea, acordada e plenamente consciente
do que um bando de meninas dando risadinhas pretendia
fazer com o papel higiênico.
— Vocês não vão vandalizar a propriedade de ninguém —
declarou Bobbi com firmeza; era a ordem de um adulto.
Entretanto, ela estava disposta a permitir que as superagitadas
adolescentes enrolassem o papel higiênico nas árvores de
alguém, porque isso seria suficientemente irritante para
satisfazer o fator travessura, mas não seria um vandalismo em
si.
As meninas concordaram com a ideia, mas quiseram fazer
mais uma sugestão. Para garantir que tinham feito a coisa
direito — para assegurar que nenhuma propriedade particular
seria destruída —, as meninas pediram a Bobbi que as
acompanhasse. "Claro!", respondeu a adulta da sala.
Escolheram a casa que seria o alvo, as árvores, o local de
encontro de emergência e desembrulharam o papel. O ataque
estava indo às mil maravilhas até que Bobbi avistou o trailer
no caminho de acesso de veículos. O alvo era tentador demais
para que deixassem passar a oportunidade, e como qualquer
comandante competente, Bobbi se ofereceu para liderar o
ataque.
No entanto, sua primeira tentativa de levantar um rolo de
papel higiênico sobre o trailer não foi bem-sucedida. O rolo
ficou preso no teto, então Bobbi subiu para recuperá-lo. Mas
naquele exato momento, quando ela estava no teto do trailer,
com o papel incriminador na mão, a luz da varanda se
acendeu e o dono da casa saiu cambaleando para o lado de
fora, aos gritos: "Que diabos está acontecendo aqui?!"
Executar o plano B de emergência! As meninas se espalharam
aos quatro ventos. Quando chegaram, esbaforidas e agitadas,
ao lugar predeterminado do encontro, fizeram a chamada, por
assim dizer. Todas haviam chegado em segurança, exceto
Bobbi. Aguardaram, nervosas, durante dez minutos,
especulando que o dono a teria pego em flagrante e chamado
a polícia. Chegaram a visualizar a mãe de 37 anos sendo
algemada, interrogada e autuada por ter cometido um ato
criminoso, quando avistaram Bobbi caminhando pela rua com
um sorriso encabulado.
Ela explicou que o dono da casa saiu furioso, praguejando e
examinando os danos, mas estava tão ocupado balançando a
cabeça diante do triste espetáculo que era sua árvore que não
deu a menor atenção ao trailer. Simplesmente não viu Bobbi.
Ela se deitara colada no teto do trailer e ficou esperando que
ele fosse embora. Em seguida, cautelosamente, desceu da
capota e se dirigiu em silêncio ao ponto de encontro. Mas,
mesmo assim, ela escapou por pouco.
As meninas passaram o restante da noite na cozinha, rindo e
acabando com os biscoitos, enquanto Bobbi voltou para a
cama, exausta.
Esses, portanto, eram os membros do famoso conselho que
Andrea consultaria a respeito de sua preocupação que
aumentava continuamente em relação aos pesadelos de James:
. Jenny (tia G. J.), que traria as tochas e as lanças se a coisa
chegasse a esse ponto;
. Becky, que ofereceria sugestões sensatas e diplomáticas e,
com bastante frequência, ideias brilhantes;
. Andrea, que exigiria união e um plano, e tentaria reparar as
emoções feridas quando os membros entrassem em conflito;
. Bobbi, que era dogmática, enlouquecedoramente cautelosa
e, em última análise, completamente imprevisível.
Com esse poderoso exército pronto para entrar em ação,
Andrea chegou à conclusão de que sua única escolha legítima
seria enviar o bat-sinal. Até então, ninguém mais tivera
realmente boas ideias a respeito de James. Médicos,
educadores, amigos — todos afirmavam que os pesadelos
eram um estágio normal da infância. E o fato era que tanto
Andrea quanto Bruce aceitaram o diagnóstico, mesmo depois
da primeira angustiante previsão no aeroporto. Entretanto,
houve um evento depois do qual essa previsão não pôde mais
ser levianamente descartada. Certa noite, no final de junho,
James estava chutando e se debatendo, e Andrea finalmente
conseguiu ouvir e entender precisamente o que seu filhinho
estava dizendo.
— O avião caiu! O avião está pegando fogo! O rapaz não
consegue sair!
Mas ela reparou em algo realmente desconcertante: ele estava
chutando e se debatendo exatamente como uma pessoa que
estivesse de fato presa dentro de um avião em chamas!
Foi então que Andrea acordou Bruce. "Você precisa ouvir
isso. Você tem de ouvir o que ele está dizendo!"
Essa foi a noite em que Bruce ficou na entrada do quarto de
James, aturdido com o que viu e ouviu.
Não se tratava, como os leitores casuais dos livros de
puericultura sugeriram, de uma coisa "relacionada ao
desenvolvimento". Não tinha nada a ver com a mudança
geográfica de Dallas para Lafayette. Não era um capricho
passageiro de uma criança reprimida.
Eles não conseguiam imaginar o que poderia ser.
Bruce balançou a cabeça, perplexo, mas Andrea — a eterna
defensora da ação — convocou o conselho.
O conselho funcionava de vários modos. Havia o modo diário,
no qual as fofocas do dia a dia eram substituídas por um
assunto definido, que necessitava de um intenso debate: uma
ou mais gestações, táticas para o uso do troninho, a escolha
entre a escola pública e a particular, como e por que os
maridos as estavam levando à loucura. Depois, elas tinham o
modo de alerta simples, no qual uma ansiedade específica era
aliviada -— estamos tendo um jantar de Ação de Graças; por
favor, traga bastante recheio para evitar uma repetição do ano
em que De-rald, o marido de Becky, explodiu quando o
recheio acabou.
O modo de emergência, ou alerta vermelho, era usado
somente nos casos de verdadeiro perigo, como quando alguém
perdia o emprego, um dos maridos talvez estivesse sendo
infiel ou tinham de lidar com uma doença grave.
Até então, Andrea ainda estava operando no modo de alerta.
A rotina para convocar o conselho era estabelecida com
bastante firmeza. Todos os dias, Andrea preparava um café da
manhã reforçado para James — ovos mexidos, torrada com
açúcar e canela, panquecas ou French toast — e depois o
colocava no troninho (ao qual ele resistia com a determinação
de uma rocha) enquanto ela lavava a louça e dava os
telefonemas do dia. O telefone ficava encaixado entre o
ombro e o ouvido, e ela destruiu mais de um telefone sem fio
quando o fone caiu dentro da lava-louça.
Andrea telefonou para Bobbi, contou a história a ela e pediu
sua opinião. Em seguida, ligou para Becky e repetiu a história,
acrescentando a opinião da mãe. Finalmente, telefonou para
Jen e repetiu uma vez mais a história, acrescida da reação de
Bobbi e de Becky. Ela ainda não sabia como fazer uma
teleconferência. No terceiro telefonema, ela estava ficando
um pouco tonta por ter de repetir a história e lidar com a
resposta de cada uma das pessoas. No entanto, Andrea estava
determinada a contar com todas as meninas no caso.
No início, todas se mostraram bastante indiferentes. Já tinham
ouvido a história antes. Sentiam que havia assuntos mais
importantes na ordem do dia: a tentativa de Jen de adotar
uma criança, a casa que Becky estava procurando e as queixas
de Bobbi a respeito de seu chefe (ela era assistente jurídica de
um escritório de advocacia).
Mas Andrea puxou-as de volta. — Temos de conversar a
respeito disso — insistiu. — Acontece quatro ou cinco vezes
por semana e é muito, muito alto.
A providência seguinte foi enviar para as três o texto a
respeito de pesadelos extraído de um livro sobre puericultura.
— Primeiro leiam isto — disse ela. — É o dever de casa.
Depois conversaremos.
O consenso foi que não se tratava de uma verdadeira crise.
Era algo relacionado com o desenvolvimento, normal, que se
extinguiria sozinho com o tempo. Tudo o que ela tinha de
fazer era ser paciente e lidar com a situação, ir até o berço e
acalmá-lo. Seria difícil, mas não era mais difícil do que
levantar três vezes por noite por causa de um bebê. De modo
geral, o conselho não estava muito interessado.
O grupo teve uma resposta imediata: James estava envolvido
demais com aviões. Andrea deveria distraí-lo com outros
brinquedos. Bobbi enviou caixas com vagões de Thomas the
Tank Engine com todos os acessórios possíveis e imaginários,
inclusive estações e trilhos.
Becky achou que James, provavelmente, ouvira alguma coisa
no noticiário a respeito de um desastre de avião. Ele estava
exibindo apenas uma ansiedade normal. Afinal, o pai dele
voava com frequência.
Jenny foi a única que levou o problema para um nível mais
elevado. "Ai, meu Deus!", disse ela. "O que você pensou? O
que você fez? Você está descontrolada?" Mas, por outro lado,
Jenny era a irmã que tinha uma atração sensacionalista por
situações altamente dramáticas.
Assim, Andrea levou a sério o conselho coletivo das três.
Escondeu o vídeo dos Blue Angels — dizendo a James que ele
tinha quebrado — e tentou desviar sua atenção dos aviões.
Tomou medidas para garantir que ele não perderia qualquer
um de seus cochilos, eliminou todos os noticiários violentos e
se esforçou ao máximo para não demonstrar ansiedade.
E assim o verão avançou, aos trancos e barrancos, com James
chorando à noite e Andrea ficando sem dormir, com alguns
agradáveis intervalos ocasionais que vieram, por sorte,
interromper a angustiante rotina. Depois que concluiu o
ensino fundamental, em junho, o filho mais novo de Bruce,
Gregory, de 15 anos, foi visitar o pai e passar uns tempos com
ele. Ele fora o mais distante dos quatro filhos de Bruce,
tomando o partido de sua mãe biológica, incapaz de
demonstrar qualquer afeição pela madrasta por não querer
parecer desleal.
No entanto, o encanto e o calor humano de Andrea
quebraram o gelo, e eles descobriram que gostavam um do
outro.
No mesmo período, Andrea decidiu ser dura com James a
respeito do troninho. Colocou-o no meio da sala de estar e
despiu as calças do menino. Ele teria de passar pela
humilhação de correr de um lado para o outro o dia inteiro,
sem calça na frente do meio-irmão, se não aprendesse a usar o
troninho.
Funcionou. Houve alguns acidentes, mas depois ele aprendeu
a usar o troninho. Todos tiveram uma sensação de triunfo.
Houve noites em que James teve os pesadelos, mas Gregory
tinha sido avisado. As crises eram barulhentas, e o rapaz
acordava bruscamente, mas seu quarto ficava bem longe para
que ele pudesse cobrir a cabeça com a coberta e voltar a
dormir.
Era uma tática não muito diferente da recusa obstinada do pai
dele em enfrentar a seriedade da questão. Mas, desde que
chegara à Louisiana, Greg formara um forte vínculo com o
meio-irmão.
No final de junho, a família foi para Nova Orleans e fez uma
excursão pela cidade. Foram dar um passeio no Natchez pelo
Mississipi e visitaram grandes plantações. Bruce ficou grato
por Gregory ter carregado James no baby-bag, o que lhe
proporcionou um bem-vindo descanso.
A visita de Greg se revelou encantadora e revigorante; um
intervalo agradável dos pesadelos.
Pouco tempo depois de Greg ter ido embora, Jenny, que
estava morando em uma casa nova em Trumbull,
Connecticut, anunciou que estava precisando de umas férias e
que iria para Lafayette. Estava cansada do árduo e dispendioso
processo de adoção, de modo que desejava uma folga.
Você não vai conseguir descansar muito — advertiu Andrea.
— Este é o auge da temporada dos pesadelos.
Eles não podem ser tão terríveis assim — replicou Jenny, que
era madrinha de James. — Quero dizer, o menino ainda usa
fralda e toma mamadeira.
Até então, Jenny apenas ouvira boatos sobre os pesadelos. Ela
ainda não havia presenciado um deles de fato.
CAPÍTULO OITO
Algumas lembranças permanecem para sempre; coisas
pequenas como um suspiro ou grandes como Pearl Harbor. E,
para a família Leininger, os eventos da noite de 11 de agosto
se encaixam nessa categoria — cada momento, cada som, cada
visão, cada solavanco —, como se estivessem solidificados em
âmbar.
Andrea acordou para tomar o café que Bruce sempre levava
para ela antes de sair para o trabalho. Ele se inclinava sobre a
cama em que dormiam, entregava a xícara para ela e lhe dava
um beijo de despedida. Andrea resmungava um
agradecimento. Não gostava de acordar cedo e precisava do
incentivo da cafeína para fazer seu motor funcionar.
Como sempre, James esperava que ela tomasse o café para
entrar em atividade. Em seguida, como um reloginho, ele
acordava. Ouvia Andrea andando de um lado para o outro e
começava a balbuciar, chamando pela mãe. Como de hábito,
ele acordava alegre, sem que qualquer vestígio dos pesadelos
anuviasse sua manhã.
Em seguida, ela entrou no quarto de James, trocou sua fralda,
levou-o para a cozinha e preparou seu café da manhã. Ela
cantarolou, e ele disse coisas sem sentido, o que era o jeito
deles de dizerem que estavam se sentindo bem.
James assistiu a Vila Sésamo enquanto Andrea preparava ovos
mexidos. Em seguida, ela se sentou com o filho e tomou outra
xícara de café, enquanto ele comia. Ela não comia nada de
manhã, porque isso sempre despertava seu apetite e a deixava
faminta demais para esperar pelo almoço. Mas gostava da
companhia de James, e eles conversavam sobre o que iriam
fazer durante o dia. Hoje era sexta-feira, dia de supermercado.
Depois, enquanto Andrea lavava a louça, James ficou
brincando com seus caminhões, aviões e blocos na sala da
televisão. E Andrea ligou para Bobbi, Jen, Becky e Bruce (que
estava sempre muito ocupado e tinha de desligar o telefone).
Quando a louça estava lavada e os telefonemas, concluídos,
entraram no carro e foram para o supermercado, tagarelando
pelo caminho: "Você viu aquele caminhão enorme? Quantas
rodas ele tinha?" E os outros motoristas davam uma olhada e
ficavam estupefatos com a conversa ininterrupta entre aquela
adulta e o menino no banco de trás.
A visão que Andrea tinha da maternidade encerrava uma
dedicada eficiência, resultante de uma espécie de vigilância
funcional vitalícia. Desde que Andrea era bem jovem e
emancipada — uma bailarina que tinha três empregos para
conseguir sobreviver em cidades grandes e dispendiosas —,
nunca houvera dinheiro ou tempo suficientes, de modo que
aprendera a ser econômica com seus recursos e a extrair o
máximo de cada centavo e de cada minuto. Com James, isso
significava que ela interligava as lições e o significado em
todas as atividades. Nada era desperdiçado.
— Quando vamos ao supermercado, o que compramos
primeiro? Compramos os congelados por último porque não
queremos que eles descongelem. Muito bem, eis o cereal; não
vamos comprar este, porque tem açúcar demais. Precisamos
de seis latas de atum. Vamos contar as latas.
Lá iam eles pelos corredores, James sentado no
compartimento para crianças pequenas do carrinho e Andrea
ministrando um seminário de doutorado sobre compras no
supermercado — "Que legume é este? Meio quilo de tomates
equivale, em média, a quantas unidades?" —, deixando para
trás um rastro de clientes admirados: "Não consigo acreditar
que você fale dessa maneira com seu filho."
Até mesmo do lado de fora, onde o bom comportamento de
James lhe rendeu um agrado, este veio acompanhado de uma
aula. Andrea deu a James uma moeda de 25 centavos para ir
brincar no pequeno carrossel. Quando entregou a moeda ao
filho, perguntou: "Quem é o presidente na moeda?"
Até chegarem em casa, separarem os alimentos e verificarem
se tinham comprado todos os artigos da lista, já era hora de
fazer o jantar.
Jen estava sendo esperada no dia seguinte, sábado, e Andrea
queria que aquela noite corresse tranquilamente. O fim de
semana seria agitado. Jen sempre causava rebuliço, e haveria
muita coisa para fazer.
Ninguém pensou nos pesadelos, porque eles já haviam se
tornado parte da rotina da família. Era considerada apenas
mais uma noite. O quarto de James fora redecorado, seu berço
transformado em um sofá-cama, e não foi com apreensão, e
sim com uma espécie de aceitação filosófica, que Andrea
conduziu o filho pelo corredor naquela noite de sexta-feira
para colocá-lo na cama.
— Só três livros — disse James, como fazia todas as noites,
levantando três dedinhos rechonchudos.
Três livros na hora de cochilar e três na hora de dormir, esse
era o trato. Andrea lia livros do Dr. Seuss, Os ursos
Berenstain, Os três carneirinhos, e, é claro, clássicos como
Rumpelstilskin e João e o pé de feijão.
Ela se deitava com James no sofá-cama e lia para ele três
livros edificantes, um para cada dedinho, e em seguida ele pegava
no sono.
Nessa noite, contudo, o sofá-cama estava um pouco desconfortável,
e havia também o problema das costas de
Andrea, de modo que foram para o quarto do casal — a cama
do papai —, para que ela pudesse estender as pernas e ler com
conforto.
Andrea começou a ler um livro do Dr. Seuss, Ten Apples Up
On Top! (Dez maçãs em cima!), e James ficou sentado,
ouvindo.
Uma maçã
Em cima!
Duas maçãs
Em cima!
Obviamente, aquele era um livro que ensinava a contar.
Ajudaria James a aprender a lidar com os números. Os
animais empilham maçãs na cabeça em uma progressão, até
que finalmente totalizam dez.
Veja!
Dez maçãs
Em cima de todos nós!
Que divertido
Não deixaremos
Que elas caiam.
Havia ursos, tigres e cachorros no livro, mas nada alarmante
ou que sugerisse violência, apenas um inofensivo livro
infantil ritmado. E no meio da história James se deitou de
costas ao lado de Andrea e disse: "Mamãe, o rapaz faz assim",
chutando em seguida os pés na direção do teto, como se
estivesse de cabeça para baixo em uma caixa, tentando sair
por meio dos chutes. "O rapaz faz assim." E chutou de novo.
Era o mesmo tipo de chute dos pesadelos, mas agora James
estava completamente acordado.
E, enquanto chutava, ele dizia: "Ohhh! Ohhh! Ohhh! Não
consigo sair!"
Ele reencenou o filme quase sem emoção.
Andrea ficou trêmula. Teve a impressão de que seus cabelos
estavam em pé. Decidiu ser muito cautelosa. Pôs o livro em
cima da cama, e algo a fez insistir:
— Eu sei que você falou sobre isso antes, meu querido,
quando teve aqueles pesadelos. Quem é o rapaz?
E enquanto estava deitado com os pés para cima, ele respondeu
em uma voz estranhamente comedida e serena:
— Eu.
Sem fazer muito alvoroço, Andrea entregou o livro a James e
disse:
— Sabe o que mais? Acho que vou chamar o papai para você
poder contar isso a ele também.
Bruce estava na sala de estar, mais adiante no corredor em
forma de L, assistindo à tevê. Andrea caminhou lentamente
pelo corredor até chegar à curva no L; em seguida, quando
saiu da linha de visão de James, ela percorreu correndo o
último trecho até a sala de estar. Ela estava diante de Bruce,
tentando sussurrar, mas agitada demais para fazer qualquer
coisa além de cuspir uma névoa fina e incompreensível.
Bruce enxugou o rosto com a mão, incapaz de distinguir entre
a tentativa da mulher de agir com tato e serenidade e o ataque
psicótico que ela aparentemente estava tendo.
— Bruce, você precisa ouvir isso!
-O quê?
-James está falando sobre o rapaz.
-O quê?!
Bruce saltou da poltrona, e agora ambos estavam correndo
pelo corredor em forma de L.
James estava folheando o livro do Dr. Seuss.
Bruce e Andrea se aproximaram do filho como se estivessem
pisando em ovos.
Eles se sentaram na cama, e Andrea falou em um sussurro
rouco.
— Meu bem, conte para o papai o que você me disse antes.
Obedientemente, James se deitou de costas, exatamente como
fizera pouco antes, e disse:
— O rapaz está fazendo isto — dando chutes para cima, da
mesma maneira como fizera anteriormente, e repetiu,
enquanto chutava: Ohhh! Ohhh! Ohhh! Não consigo sair!
Andrea perguntou suavemente:
— James, você fala sobre o rapaz quando tem os sonhos.
Quem é o rapaz?
Sem rodeios, ele repetiu:
— Eu.
O rosto de Bruce ficou pálido. Mais tarde ele diria que teve a
impressão de que seu cérebro tinha ficado do tamanho de
uma ervilha.
Durante meses Andrea estivera tentando chamar a atenção de
Bruce. Ele sempre escutara, mas não encontrava significado
algum nos sonhos. "As crianças têm pesadelos", dizia. "Vai
passar. Não vamos entrar em pânico." Mas agora, na sua
própria cama conjugal, seu filho estava completamente
acordado e calmamente reencenando algo tão estranho, tão
além da capacidade de criação da imaginação de uma criança
daquela idade, que Bruce momentaneamente emudeceu.
Ele olhou para Andrea, como se ela talvez pudesse ter algum
tipo de explicação, e em seguida se curvou sobre o filho, que
se sentou na cama.
-Filho, o que aconteceu com seu avião?
-Ele caiu, pegando fogo.
-Por que seu avião caiu?
-Ele levou um tiro.
-Quem atirou no seu avião?
James fez uma careta de enfado. A resposta era tão óbvia! Ele
reagira às outras perguntas com certa inocência tolerante, mas
essa pareceu impressioná-lo como sendo de tal maneira
absurda que ele revirou os olhos.
— Os japoneses! — respondeu o menino, com o tom
desdenhoso de um adolescente impaciente.
Bruce e Andrea tiveram a impressão de que o ar tinha sido
sugado do quarto. Nenhum dos dois se lembrava de ter
respirado depois de ter entrado ali. Ambos estavam em um
estado de choque brando. Mais tarde diriam que as respostas
que saíram da boca de seu filho de 2 anos foram como
novocaína. Eles ficaram entorpecidos.
Talvez tenha sido apenas por um momento, mas pareceu uma
hora. Em seguida, o treinamento de Andrea entrou em ação.
— Ok, meu querido, vamos escovar os dentes e vamos para a
sua cama.
CAPÍTULO NOVE
James se sentiu traído com relação a Ten Apples Up On
Top!, já que só ouvira a metade dela, e fez Andrea prometer
que terminaria a história no dia seguinte. Ela concordou, mas
disse que estava na hora de ele ir para a cama.
Andrea estava apressada, pois precisava conversar com Bruce
a respeito do que acabara de acontecer. Deu no filho os "cem
beijos" que ele estava esperando (a longa rotina de boa-noite
incluía acender a luzinha fraca que ficava acesa a noite toda,
ler "só os três livros", uma música — invariavelmente
"Walking After Midnight", de Patsy Cline — e uma rápida
sucessão de beijos no rosto e no pescoço de James).
Em seguida, teve lugar a segunda parte da cerimônia, que
tinha um roteiro:
Andrea disse: "Boa-noite, durma bem."
James disse: "Não deixe os percevejos picarem você."
Ela disse: "Vejo você à luz da manhã."
Ele disse: "Sonhe com os Blue Angels."
Andrea fechou então a porta do quarto e caminhou apressada
pelo corredor em direção à sala de estar. Havia muito tempo
ela e Bruce tinham concordado em nunca discutir os
pesadelos na frente de James, e agora os dois estavam quase
explodindo. Falaram em sussurros altos e intensos.
— Eu ouvi mesmo o que acabo de ouvir? — perguntou Bruce.
-Também não consigo acreditar.
-Bem, não vamos ficar nervosos demais.
-Você ficou maluco? Estou uma pilha de nervos. De onde
surgiram aquelas coisas?
-De uma coisa, estou certo: de onde quer que tenha vindo,
tenho certeza de que foi do seu lado da família.
-E se ele...
-E se ele o quê?
-Como ele ouviu falar nos japoneses?
-Não tenho a menor idéia. E como diabos ele conhecia um
tanque descartável?
-Estou assustada.
-Relaxe, meu bem. Tem de haver uma explicação razoável.
-Qual? Eu realmente gostaria de ouvir uma explicação
razoável.
-Não sei. Isso é uma loucura. Vamos falar com Bobbi.
-É muito tarde para ligar agora.
-Converse com Jen amanhã. A que horas é o vôo dela?
-À tarde.
Enquanto sussurravam, preocupados, estavam parcialmente
atentos a um possível novo pesadelo. Passava da meia-noite
— a hora do pesadelo — e eles rodearam o assunto das novas
afirmações explícitas do filho, conseguindo evitar as
assustadoras implicações. A improbabilidade ou ameaça em
seus pensamentos foi censurada por ser perigosa demais para
ser levada em conta. Poderia ser alguma coisa que James viu,
algo que ouviu por acaso, alguém que se aproximou dele e
colocou uma ideia em sua cabeça? Ridículo demais.
E depois ficaram cansados e nervosos demais para permanecer
vigilantes, para examinar de novo os mesmos elementos.
Andrea ficou acordada a noite inteira, revendo as conversas.
Bruce também ficou acordado, mas James dormiu como...
bem, como um bebê.
O dia seguinte passou devagar. O avião da tia G. J. deveria
chegar às 15h, e Andrea e James foram cedo para o aeroporto.
Tia G. J. saiu pelo portão IA, e as duas irmãs correram para se
abraçar, pularam e gritaram — o jeito suave que tinham de se
encontrar — e em oito minutos estavam na West St. Mary
Boulevard. Dez minutos depois, cada uma delas estava
tomando um hurricane, o tradicional drinque de Nova
Orleans à base de rum, que conquistara um lugar no lar da
família Leininger.
James estava na sala de estar, assistindo a um vídeo, e Andrea
e Jen se acomodaram no solário, onde Andrea descreveu para
a irmã o novo capítulo da véspera da história dos pesadelos. A
reação da tia G. J. nunca era neutra ou contida. "Puta merda!",
exclamou. A história pelo menos afastara da sua cabeça as
preocupações com a adoção.
Jenny bebericou lentamente seu hurricane e se serviu de
outro.
— O que você fez? O que você disse? O que você pensou? O
que Bruce disse? Você está assustada? Meu Deus, que loucura!
De onde ele pode ter tirado isso?
Essa era a maneira como tia G. J. se conduzia em situações
complicadas: bebendo e fazendo um monte de perguntas, uma
atrás da outra.
Jen se levantou, levou o segundo drinque para a sala de estar e
se sentou ao lado de James. Eles sempre tinham sido grandes
amigos.
— James, sua mãe me contou o que você disse ontem à noite.
Isso é muito interessante. Eu só queria perguntar uma coisa:
como você soube que foram os japoneses que derrubaram seu
avião?
James parou de assistir ao vídeo, olhou para a tia e declarou
simplesmente:
— Por causa do sol vermelho.
Jenny girou nos calcanhares, agarrou o braço da irmã e
marchou de volta para o solário, onde cada uma se serviu de
outro hurricane. Elas não precisavam discutir nada. Ambas
sabiam que James estava descrevendo o símbolo japonês do
sol vermelho pintado nos aviões de caça — símbolo que era
grosseiramente traduzido por meatballs. Era assim que os
pilotos americanos chamavam os aviões japoneses na Segunda
Guerra Mundial: meatballs.
E, então, elas fizeram o que sempre faziam durante uma crise
em família: telefonaram para Bobbi. Para as meninas Scoggin,
isso equivalia a ligar para o 190. Mas Bobbi não soube bem o
que fazer e disse que iria pensar no assunto.
Jenny estava cansada e foi se deitar cedo, esperando ter uma
boa noite de descanso, já que tivera de assimilar muitas coisas.
Ela dormiu no quarto de hóspedes e, embora tivesse sido
avisada dos pesadelos, não imaginou que fossem incomodá-la.
Afinal de contas, ela tinha o sono pesado e a quantidade de
rum que bebera era suficiente para derrubá-la. Se James
tivesse um pesadelo, ela nem mesmo acordaria.
Entretanto, pouco depois da meia-noite, Jenny acordou
sobressaltada. Os gritos horripilantes que vinham do quarto
de James praticamente a jogaram no chão. Ela ficou parada
por alguns instantes, com a camiseta e o short grande demais
dançando no corpo, e em seguida saiu cambaleando pelo
corredor e entrou no quarto de James. O menino estava se
debatendo e gritando, e mesmo tendo sido avisada, nada
poderia tê-la preparado para a visão de seu afilhado lutando
pela vida. Sem se dar conta do que estava dizendo, ela
exclamou:
— Que diabos está acontecendo!?
Andrea simplesmente se virou e olhou para a irmã. Jenny
sequer havia reparado que Andrea chegara antes dela ao
quarto e estava debruçada sobre a cama. Carinhosamente,
Andrea pegou o filho nos braços e murmurou palavras
tranquilizadoras em seu ouvido, tentando não acordá-lo.
James estava berrando e se debatendo, fazendo força para se
soltar dos braços da mãe, debatendo-se para escapar de onde
estava preso. Jenny ficou simplesmente embasbacada.
Mesmo depois de James ter se acalmado e parado de gritar e
se debater, Jenny ainda estava abalada, porém disposta. Ela
fez o que sempre fazia: tentou tornar o momento mais leve.
Olhou diretamente para Andrea e disse:
— Eu vejo gente morta.
Isso quebrou o clima, e as duas caíram na gargalhada.
Elas se abraçaram e foram embora pelo corredor, tentando
não acordar o resto da casa. Andrea abriu uma garrafa de
vinho, e as irmãs se sentaram à mesa da cozinha, conversando
horas a fio durante a madrugada.
Finalmente, voltaram para suas camas, para dormir — ou para
uma espécie de descanso vigilante.
Pela manhã, Andrea telefonou para a mãe para relatar os
novos acontecimentos, revelando inclusive que Jenny
testemunhara um pesadelo. De repente, Jenny agarrou o
telefone. "Quero falar com ela. Mamãe? Mamãe? Ouça, você
não vai acreditar no que aconteceu ontem à noite. James
estava gritando e berrando desesperado. Berrando
desesperado!"
Em seguida, Andrea pegou o telefone de volta e friamente
contou para Bobbi que Jenny realmente presenciara um
pesadelo e não estava exagerando, que não se tratava de uma
encenação. Logo depois Jenny agarrou novamente o telefone
e disse que James estava se debatendo e chutando, que as
histórias que Andrea contara eram todas verdadeiras e que, se
sua irmã era culpada de alguma coisa, era de ter subestimado
a importância do que estava acontecendo. Andrea então
pegou de novo o telefone. "Está vendo? Eu disse a você. Está
vendo?" E, em seguida, Jenny agarrou novamente o telefone.
"Quero falar com ela..."
Foi uma típica conversa histérica no telefone entre as
mulheres Scoggin.
Andrea estava com James nos braços e, mesmo com toda essa
falação acontecendo, ela estava trocando a fralda do filho e
tentando fazer com que ele tomasse o café da manhã.
Bruce já saíra há muito tempo para o trabalho — fugira, na
verdade —, feliz por se afastar do drama. Ele era capaz de
lidar muito bem com o trabalho, até mesmo nos fins de
semana, mas aquilo era demais. Estava além de sua
compreensão.
Depois de o drama no telefone ter se atenuado, e de os
detalhes terem sido compartilhados, avaliados e até
interpretados filosoficamente, Andrea, Jenny e Bobbi se
acalmaram. Foi então que Bobbi apresentou uma nova idéia.
Ela estivera pensando muito sobre o assunto. Afinal, o surreal
era sua praia. Ela lera e fizera muitas pesquisas a respeito de
fenômenos sobrenaturais, paranormais e superestranhos.
Talvez estivesse na hora de as meninas pensarem de maneira
não convencional.
Bobbi tivera uma educação católica e continuava a
desempenhar um papel muito ativo na igreja. Suas raízes
religiosas eram tão profundas e sinceras quanto as de Bruce.
No entanto, ela sempre tivera interesse por outras culturas,
outras religiões. Bobbi não era fechada aos conceitos new age.
Além disso, tinha uma curiosidade natural e insaciável.
Quando ouvia falar em alguma novidade, fazia uma intensa
pesquisa a respeito do assunto. Os sonhos do neto tinham
feito com que Bobbi fosse imediatamente a uma livraria, e ela
passara semanas lendo a respeito da interpretação dos sonhos
e dos pesadelos. Andara lendo também a respeito de algo que
não previra: a possibilidade de uma vida passada.
Havia pistas irresistíveis: o grande sol vermelho, o
envolvimento dos japoneses, o fato de James achar que ele
próprio era o homem preso no avião em chamas.
Tudo isso estava fora da esfera do que estavam acostumados a
esperar — era uma ideia extremamente não convencional.
CAPÍTULO DEZ
-Absurdo!
Bruce Leininger não era um homem com papas na língua. Na
realidade, ele era invariavelmente direto e franco em seus
pontos de vista. As opiniões que expressava em público eram
expostas de maneira rude, sem disfarces ou prudência. Por
isso, quando ouviu o conselho discutir a possibilidade de uma
"vida passada", sua reação foi rápida e direta:
— Absurdo!
Esse foi o reflexo de suas sinceras convicções cristãs. De
acordo com Bruce, um verdadeiro cristão não poderia
acreditar na reencarnação. A promessa de sua religião era a
vida eterna, não um reaparecimento periódico da alma
imortal em uma encarnação futura aleatória. A alma não fazia
"participações especiais".
Ele não tinha certeza do que estava acontecendo com seu
filho James, mas se esforçara bastante — empenho que o conduziu
ao livro Mere Christianity, de C. S. Lewis, no qual ele
seguiu o doloroso trajeto do autor de questionar e duvidar
para finalmente chegar a uma base de fé sólida e inabalável. A
Bíblia também era repleta de mistérios, mas seria impensável
agora desperdiçar toda essa convicção arduamente
conquistada em um salto excêntrico de especulação.
Enquanto a crença cristã de Bruce era sólida como uma rocha,
a fé de Andrea era de um tipo mais flexível. Ela fora a vida
inteira uma cristã e sentia grande conforto por frequentar
regularmente a igreja. No entanto, o fato de ter sido criada no
frenético lar da família Scoggin (além de ter experimentado a
vida liberal de uma bailarina profissional, o que incluíra
dividir um apartamento com três dançarinos gays) a
impregnara de um flexível respeito condescendente pelas
possibilidades do livre-pensamento. Uma solução prática,
mesmo que estivesse em desacordo com a versão da verdade
litúrgica — era preferível a ficar no escuro com relação à
situação de seu filho.
Assim, o conselho sussurrou, trocou ideias e apresentou
possibilidades e palpites de vanguarda enquanto Bruce
permanecia trancado atrás da porta de sua implacável
hostilidade diante de qualquer coisa que cheirasse a heresia.
— Nunca, jamais, em tempo algum — repetia. — Não na
minha casa. Aqui não haverá nada parecido com uma vida
passada. Nunca!
Mas, mesmo assim, as noites na West St. Mary Boulevard
eram interrompidas pelos gritos frenéticos e movimentos
desesperados que podiam ser ouvidos ao longo de todo o
corredor da casa. Na semana em que passou lá, Jen pôde ouvir
a comoção noturna, embora tivesse parado de pular da cama e
correr para oferecer qualquer ajuda que pudesse — ou seja,
nenhuma. Ela simplesmente se mantinha a distância, uma
mera espectadora, engolindo qualquer comentário
inadequado que lhe viesse à cabeça.
Jenny relatou os fatos de seu jeito aos outros membros do
conselho — "Cruzes!" —, mas não conseguiu aprender a lidar
com os pesadelos sem ficar angustiada. Não, ela se manteve a
certa distância, mas a verdade é que a magnitude dos
pesadelos a deixara praticamente paralisada. Ela simplesmente
não entendia o que estava saindo da boca de seu pequeno
afilhado. O assunto era sério, sem dúvida, e sempre que se via
diante de assuntos sérios Jen só se sentia à vontade se pudesse
tratá-los como se não fossem muito importantes.
Foi um período horrível. Toda a região estava debaixo de um
rígido racionamento de água durante aquele verão
excessivamente quente e seco. A temperatura permaneceu
durante dias em quase 40 graus, mas a família Leininger era
engenhosa no que dizia respeito a salvar suas plantas. Quando
James acabava de tomar banho, usavam a água para regar as
plantas dos vasos — um jeito lento porém inocente de
contornar as restrições. Deixavam um balde no chuveiro para
aparar os respingos e a água excedente, e a usavam no
gramado e na descarga. Tinham aprendido esses truques
quando moraram em São Francisco, onde frequentemente
havia algum tipo de racionamento de água.
Foi também um período tenso, pouco antes do Dia do
Trabalho, quando a histórica campanha presidencial de 2000
estava prestes a começar para valer. Não que houvesse alguma
dúvida quanto à opinião política de Lafayette Parish — aliás,
do próprio estado de Louisiana. Bastava dar uma olhada nos
adesivos dos carros. Se você encontrasse algum que apoiasse
Al Gore, ou era uma pegadinha ou o carro era de outro
estado. Os gramados podiam estar crestados por causa da seca,
mas floresciam com pôsteres de George W. Bush. Aquele
lugar abrigava o coração palpitante de um estado republicano.
Desse modo, durante aquele primeiro agosto efervescente do
novo milênio, enquanto a raiva se acumulava em Bruce, um
consenso deliberado estava se formando entre os membros do
conselho. James estava vivenciando algo além de sua idade, e
talvez além de seu tempo de vida. O que era exatamente
ainda não estava determinado.
No fim de sua permanência de uma semana, Jenny estava
pronta para voltar para Connecticut, para seu marido, Greg, e
sua frustrante tentativa de adoção. Ela tivera sua cota de
gritos misteriosos. Jen não encontrara o alívio e o descanso
que fora buscar em Louisiana. Ela e Andrea tinham passado
noites em claro sentadas na sala de estar embebedando-se de
vinho, sem chegar a qualquer conclusão a respeito dos
pesadelos. Como disse sarcasticamente Andrea, ambas
estavam estabelecendo "um excelente exemplo de como criar
os filhos".
Mas as duas concordavam quando o quesito era James:
estavam perplexas. E assim, na manhã de sábado, 19 de
agosto, Jen se preparou para voltar para casa. A família pegou
o carro e se dirigiu ao aeroporto regional. Quando estavam se
aproximando e puderam avistar os aviões na pista de
decolagem, James declarou, naquela voz calma e monótona:
"O avião da tia G. J. caiu. Fogo!"
Jen ficou paralisada no banco de trás do carro. "Espero que
não seja uma premonição."
Andrea e Bruce tentaram tranquilizá-la. James já tinha dito
aquilo antes quando Bruce estava prestes a embarcar em um
avião, e ele ainda estava ali, não estava?
Bruce então virou-se parcialmente para trás e disse
novamente ao filho:
— Aviões NÃO caem e pegam fogo! Eles chegam sãos e salvos
ao seu destino. As pessoas ficam assustadas quando você diz
essas coisas. Você precisa tomar cuidado e não falar coisas que
deixam as pessoas com medo.
No banco de trás, Jen comentou, em uma voz tímida:
Talvez eu deva trocar a passagem para amanhã.
Não, de jeito nenhum. Não é uma premonição. É apenas uma
coisa que ele diz. São esses malditos aviões com que ele
brinca!
Bruce parecia zangado, como se James tivesse feito uma
grosseria na frente de convidados. "Droga", pensou ele, "isso
precisa ter um fim!"
Jen ainda estava transtornada, e Bruce e Andrea tentaram
minimizar a importância do ocorrido, fazendo pouco-caso do
que James dissera e aliviando as preocupações de Jenny.
O avião decolou e aterrissou sem qualquer incidente, mas
aquele instante assustador e paralisante permaneceu, quando
ninguém pôde jurar com segurança de onde estava vindo
aquela vozinha preocupada.
Pouco mais de uma semana depois de Jen ter voltado para a
Nova Inglaterra, o dia prometia ser apenas outro domingo
normal, um último sopro preguiçoso de um fim de semana de
verão. Bobbi e Becky, no Texas, ficaram entregues à
elaboração de suas teorias favoritas sobre James e os
pesadelos. Ninguém poderia adivinhar que o mundo da
família Leininger estava prestes a sair completamente dos
eixos. Sua vida diária era muito comum.
Naquele domingo, 27 de agosto, a família Leininger não foi à
igreja, porque havia muitas coisas a fazer. Precisavam cuidar
do jardim, antes que ficasse quente demais. Todos acordaram
por volta das 8h, e Bruce se demorou tomando café e lendo o
jornal antes de atacar o gramado, enquanto Andrea lavava a
louça, fazia as camas, dedicava-se aos afazeres domésticos e
cuidava de James, preparando suas refeições e organizando
seus cochilos e brincadeiras.
O número da casa era ímpar, de modo que naquele dia
tinham permissão para regar a grama. Por volta das 18h,
ligaram o regador automático no jardim da frente, e James
correu de um lado para o outro no meio dos borrifos vestindo
a fralda azul de nadar. Ele brincou na grama molhada
enquanto Bruce e Andrea observavam, sentados nas cadeiras
de balanço da varanda, tomando chá gelado com hortelã e
admirando os arco-íris formados pela névoa e o sol poente da
Louisiana. De vez em quando, um dos dois pegava a jarra e
enchia novamente os copos. Andrea fizera o original chá
sulista enchendo a jarra com água e saquinhos de chá e
deixando o líquido em infusão no sol durante quatro horas,
retirando depois os saquinhos e colocando a jarra na
geladeira.
No jantar comeram salada fria de macarrão — outra coisa que
não precisou de forno. Acabaram de comer por volta das 19h,
e a família assistiu à televisão durante algum tempo. Em
seguida, Andrea começou a preparar James para dormir. Um
dia rotineiro.
Andrea não deu banho em James, pois ele tinha brincado na
água do regador. Às 21h, o menino estava na cama do papai,
pronto para ouvir as histórias. Andrea mal começara a contar
Oh, the Places Youll Gol! do Dr. Seuss, quando James
começou a falar a respeito de certos detalhes do pesadelo.
— Mamãe, o avião do rapaz caiu pegando fogo...
O tom era coloquial, mas Andrea estivera esperando por essa
abertura. Ela e Bruce tinham um monte de perguntas para
fazer a James, mas sempre que tentavam trazer o assunto à
tona o menino mostrava-se evasivo. Ele só falava em suas
condições quando estava disposto e preparado, ou seja,
quando ele puxava o assunto.
Assim, Bruce e Andrea haviam se preparado para esse
momento.
-Vou chamar o papai, ok?
Andrea disparou pelo corredor em L.
-James está falando sobre o rapaz.
Bruce saltou da cadeira e segundos depois ambos estavam
sentados na cama, tentando não deixar transparecer na voz a
tensão que estavam sentindo.
-James, fale com o papai sobre o rapaz.
-O avião do rapaz caiu pegando fogo.
Andrea perguntou:
-Quem é o rapaz?
-Eu.
Não houve qualquer hesitação, pausa ou floreio dramático.
Ele estava falando a respeito de uma coisa que não exigia
emoção.
Andrea perguntou:
-Você se lembra do nome do rapaz?
E ele respondeu:
-James.
Ele não entendeu, pensou ela. Ele estava repetindo o próprio
nome, como faria um menino de 2 anos se perguntassem seu
nome. Andrea estava ficando frustrada porque não sabia
como pressioná-lo sem causar algum dano. Ela estava
desesperada para conseguir algumas respostas, mas não queria
que isso o perturbasse.
Bruce assumiu o interrogatório.
-Você se lembra do tipo de avião que o rapaz pilotava?
-Um Corsair — respondeu James, sem hesitar.
Bruce se encolheu como se tivesse levado um soco. Ele
conhecia o avião. Era um avião de caça da Segunda Guerra
Mundial. Como poderia James saber o nome de uma aeronave
da Segunda Guerra e, muito menos, afirmar com segurança
que era ela a aeronave do sonho?
-Você se lembra de onde seu avião decolava?
James disse:
-De um navio.
Outra resposta que deixou Bruce atônito. Ele tinha um vago
conhecimento sobre os Corsairs e como eles eram lançados de
porta-aviões na Segunda Guerra, mas como James sabia disso?
Como era possível que ele tivesse elaborado um pesadelo tão
complicado e verossímil? Nada que Bruce jamais vira, lera ou
ouvira poderia ter influenciado James a ter essa lembrança
com todos os fatos complexos que ele repetia sem parar.
Bruce estava agora convencido de que, de alguma maneira,
precisava preparar uma armadilha para o filho e descobrir as
falhas e os defeitos da história.
-Você se lembra do nome do seu navio?
-Natoma.
Bruce pediu a Andrea que pegasse papel e uma caneta. Ele
queria uma coisa sólida, no papel, uma prova de que o que
estava acontecendo era algum tipo de fantasia.
Nesse ponto, Bruce se sentiu um pouco justificado. Nada de
vidas passadas. Nenhuma história avançando ao longo de
diferentes séculos. Apenas uma criança confusa que, de algum
modo, tinha uma história estranha na cabeça.
-Natoma, hein?
-Natoma.
-Esse parece um nome bastante japonês.
James ficou aborrecido.
— Não, é americano — retrucou, lançando na direção do pai
um daqueles olhares irritadiços de uma pessoa que está
chegando ao limite de sua paciência.
Andrea tentou suavizar o clima.
-Qual era mesmo o nome do rapaz?
-James.
Agora o menino parecia inquieto, entediado e cansado de
todo aquele interrogatório. Porém, mais do que isso, parecia
zangado — zangado com Bruce por estar duvidando de sua
palavra!
Esse pingo de gente de 2 anos estava enfrentando o pai por
causa do nome Natoma! Andrea estava um pouco chocada, de
modo que interrompeu o interrogatório e pôs James na cama.
Leu os três livros para ele, deu-lhe os cem beijos, cantou a
música que o filho gostava e o abençoou para que tivesse uma
tranqüila noite de sono.
Bruce não estava na sala de estar, e sim em seu escritório,
fazendo uma busca no Google. Ele digitara Natoma e
encontrara algo.
— Você não vai acreditar nisto — disse Bruce em voz baixa.
Andrea olhou para a tela do monitor por cima do ombro do
marido e viu uma fotografia em preto e branco de um
pequeno porta-aviões de escolta.
Bruce se levantou. Com a voz repleta de surpresa, ele
acrescentou:
— Natoma Bay foi na realidade um porta-aviões dos Estados
Unidos que combateu no oceano Pacífico na Segunda Guerra
Mundial.
Os dois ficaram paralisados, de cabelo em pé.
CAPÍTULO ONZE
Quando James nos forneceu o nome Natoma, eu fiquei
zangado de maneira engraçada. Não com uma pessoa
específica, apenas com a situação. Ele nem mesmo tinha
deixado de usar fraldas e estava me dizendo uma coisa que
abalou meu mundo. Eu precisava ter certeza do que estava
acontecendo. Gosto de ser capaz de resolver as coisas.
Consertar a pia. Montar a bicicleta. Fazer com que a gerência
enxergue as vantagens de melhorar os benefícios dos
trabalhadores. Gosto de chegar a uma conclusão, de encontrar
soluções lógicas para problemas difíceis e avançar para o
desafio seguinte.
Havia uma coisa importante que era preciso compreender a
respeito de Bruce Leininger: quando ele se aventurava em um
território realmente desconhecido, quando se via diante de
qualquer coisa que não estivesse escrita em um manual ou
programada em um disco rígido, ele começava a entrar em
pânico. Você nunca conseguiria ver o pânico, apenas a severa
fortaleza de silêncio resignado que ele exibia para o mundo.
Era o mesmo mecanismo que muitos homens modernos usam
para lidar com os problemas. Sua formação era
convencionalmente treinada e sistematicamente orientada.
Seu lado espiritual.estava coberto pela sua fé cristã; e ponto
final. Mas, quando se tratava do mundo secular, os pinos
tinham de se encaixar nos buracos certos. Se lhe dissessem
que um operário tinha sido derrubado de uma plataforma de
petróleo por um tubo de alta pressão, ele seria perfeitamente
capaz de lidar com a situação, pois esta teria uma causa e um
efeito racionais. Agora, quando lhe diziam que um menino de
2 anos, seu próprio filho, estava sonhando com uma batalha
da Segunda Guerra Mundial, não sabia o que pensar.
Devo dizer que, quando Andrea saiu do quarto declarando
que o "rapaz" era James, bem, digamos que eu quis obter
pessoalmente essa informação. Voltamos para o quarto, e ela o
induziu a me dizer o que estava acontecendo. "Quem é o
rapaz?" E ele respondeu: "Eu", e depois ele disse que o nome
do homem era "James", e eu achei que ele estava apenas
confuso com relação a quem ele era. Só Deus sabe como eu
estava confuso.
E depois, quando ele disse o nome do avião, afirmando que
era um Corsair, fiquei absolutamente impressionado. Foi uma
informação muito específica sobre um equipamento muito
específico. Como ele poderia saber aquilo? Mas depois,
quando perguntamos a ele o nome do navio de onde o avião
decolava, ele respondeu Natoma; parecia, decididamente,
uma palavra japonesa. Quando eu disse isso a James, ele olhou
para mim como se eu fosse um completo idiota, manteve a
história e afirmou que o navio era americano. Eu estava
bastante confiante de que ele estava errado. Natoma tinha de
ser um nome japonês. Eu estava insistindo com uma criança
que usava fralda como se estivesse interrogando um suspeito
de um crime.
Mesmo assim, eu ainda tinha de provar que estava certo.
Então, quando Dre foi colocar James na cama, fui para o
escritório e comecei a fazer uma busca no Google com a
palavra "Natoma". E aí, bem, fiquei perplexo de novo. A busca
apresentou mil resultados. Havia um Lake Natoma Hotel na
Califórnia, um restaurante Natoma em Ohio e até mesmo
uma cidade no Kansas chamada Natoma. Depois de muitos
outros Natomas, encontrei uma referência a um navio
chamado Natoma. Isso realmente me preocupou. Tive de me
obrigar a entrar no site, mas acabei constatando que era um
navio de Pesquisas Geodésicas, e não um porta-aviões. Ok!
Era apenas uma coincidência. Era tudo bobagem!
Quase interrompi a busca naquele momento, mas não queria
ser preguiçoso. Havia um site a respeito de Natoma Bay no
Alasca, e eu achei que deveria dar uma olhada nele. Ali estava
o navio, o USS Natoma Bay CVE-62. Era um porta-aviões de
escolta que estivera em serviço durante a Segunda Guerra no
Pacífico. O site mostrava até uma foto em preto e branco do
navio.
Foi nesse momento que Dre entrou no escritório e viu a
expressão no meu rosto.
Agosto terminou, e a vida continuou, porém com um ar de
suspense e incompletude pairando sobre a questão de James e
seus pesadelos. Andrea e o conselho estavam se inclinando na
direção de uma explicação sobrenatural, embora de maneira
passiva e relaxada. Quer dizer, ninguém estava telefonando
para especialistas em paranormalidade — ainda. Uma espécie
de aceitação estava se acomodando sobre os fatos — os
pesadelos e uma explicação absurda.
O mesmo não estava acontecendo com Bruce, que encarava
toda a abordagem das mulheres Scoggin como pura heresia —
nada mais do que uma superstição, e ele não ia ficar sentado
sem fazer nada. Nada relacionado a vidas passadas ou
reencarnação iria acontecer debaixo de seu teto. Sua raiva
estava associada à sua incapacidade de definir com precisão a
verdade. Tudo o que ele precisava fazer — para reafirmar sua
natural liderança da família, e para reforçar suas obrigações
para com sua crença religiosa — era estabelecer uma causa
natural para a angústia noturna de James.
O problema era que suas idéias haviam se esgotado. A questão
do Natoma o deixara sem palavras. Precisava se recompor,
repensar tudo aquilo. Ele resolveria a charada, mas precisava
de um pouco de tempo e, talvez, de alguma ajuda.
Eu estava trabalhando arduamente durante muitas horas.
Fiquei estressado de tal modo que finalmente cedi às súplicas
de Dre e me matriculei na Red's Gym. Eu passava uma hora
no aparelho de step e depois fazia musculação, de modo que
estava bem menos tenso quando chegava em casa.
Andrea descobrira primeiro a academia de Red Lerille. Era
uma dessas academias de última geração, do tamanho de um
campo de futebol americano. Foi um presente de Deus para
Andrea, que se descuidara um pouco da aparência depois que
deixara de ser bailarina em tempo integral. Andrea se dera
conta de que seu peso tinha quase atingido a marca dos 60
quilos. Isso era o máximo que as meninas Scoggin achavam
que Andrea poderia pesar com a flacidez e as gordurinhas que
se haviam acumulado ao longo dos anos. Foi então que ela
resolveu levar o assunto a sério. Tivera um filho, cuidava da
casa e envelhecera alguns anos, mas agora iria emagrecer.
Ela não precisaria fazer um grande esforço para voltar aos 48
quilos que tinha quando dançava; não seria obrigada a
enfrentar os brutais testes eliminatórios nos quais os diretores
que distribuíam os papéis decidiam seu destino com um mero
passar de olhos. Nem mesmo precisaria suportar uma dieta de
cubos de caldo de carne e refrigerantes diet para ser aprovada
em seus testes diários diante do espelho. Talvez nunca mais
fosse ter 22 anos, mas poderia ser uma mulher de 38 com
ótima aparência.
E foi o que ela fez. Foi na Red's Gym que ela atingiu sua meta
principal: livrou-se dos quilinhos a mais.
Mas também estava faltando outra coisa. Desde que a família
Leininger se mudara para Lafayette, Andrea estivera tão
ocupada com a casa, com as diversas crises de James e Bruce,
que não fizera amizade alguma.
A vizinhança estava repleta de pessoas que caminhavam e
corriam, de modo que Andrea decidiu se juntar a elas. Com
seu jeito prático e dedicado, Andrea conseguiu fazer amigas.
A academia a fez voltar ao peso saudável de 55 quilos, ela
tinha agora um grupo de amigas, James passava feliz o Dia de
Lazer da Mãe e Bruce estava ocupado com seus
desconcertantes enigmas. No fim do verão, a família
Leininger estava realmente instalada. Estavam começando a
se sentir em casa em Lafayette.
CAPÍTULO DOZE
No dia 5 de outubro, com um profundo suspiro de alívio,
Andrea abriu, animada, todas as janelas, para que a agradável
brisa entrasse em sua casa. A sufocante temperatura tropical
finalmente cedera. James seguia atrás, imitando a mãe,
saboreando o primeiro sinal do outono. Parecia que o ar de
suspense, criado pelos novos detalhes que James revelara a
respeito de seus sonhos, tinha sido suavizado pela
temperatura mais amena e a redução da umidade.
Naquela quinta-feira, o otimismo inato de Andrea entrou em
cena. Havia energia no ar, faltavam apenas dois dias para o
aniversário de 51 anos de Bruce (ela aproveitava qualquer
desculpa para comemorar) e, como suas roupas estavam
folgadas, ela sabia que estava entrando em forma, perdendo as
gordurinhas. Como ela fora bailarina, sua meta tornava-se
inatingível quando ela ficava diante do espelho vestindo
apenas uma malha de ginástica. Por mais em forma que
ficasse, ela sempre sentiria uma pontada de decepção; de
alguma maneira, sempre esperava ver a bailarina de 22 anos
olhando para ela do espelho.
Mas a disciplina feroz também fazia parte de sua história, de
modo que pegou James, prendeu-o na cadeirinha do carro,
colocou a sacola com as fraldas no piso e, em seguida, sentou-
se no banco do motorista. Colocou o cinto de segurança e saiu
em direção à academia.
Ao olhar pelo retrovisor, Andrea sorriu. James tinha criado
uma nova e cômica seqüência de movimentos; era um ritual
que ele fazia no carro. Depois que estava seguro na
cadeirinha, ele estendia a mão para cima e puxava uma coisa
imaginária sobre as orelhas, como se estivesse colocando
protetores de ouvido; em seguida, levantava ainda mais o
braço e puxava outra coisa imaginária, pondo-a na frente da
boca, como um jogador de futebol americano que estivesse
colocando a viseira de proteção. Ela não tinha a menor idéia
do que aquilo significava, mas era engraçadinho. Já vinha
acontecendo havia algumas semanas. James agora repetia os
movimentos sempre que entravam no carro, e Andrea tinha a
intenção de mencionar o fato para Bruce e deixar que ele se
preocupasse com o assunto. Ele era o especialista em
preocupações da família.
Foram à academia, pararam para comprar cartões de
aniversário melosos, compraram presentes para Bruce —
várias roupas de exercício, um walkman e um carrinho de
bebê para jogging, para que ele pudesse levar James quando
fosse correr — e depois algumas garrafas de champanhe
francês e um bolo inglês de chocolate em camadas, chamado
doberge, na Poupart's Bakery.
Foram para casa e almoçaram coisas leves. Andrea colocou
James na cama para tirar seu cochilo e começou a preparar o
jantar. Ela gostava de cozinhar, tinha prazer em sujar as mãos
com molhos e outros ingredientes. Apreciava o desafio
mental de planejar cardápios — algo que fosse "adulto", mas
com o qual um menino de 2 anos que ainda estava se
familiarizando com os utensílios conseguisse lidar. A receita
de frango tetrazzini de tia G. J. levava peito de frango,
macarrão com manteiga, ervilhas e cogumelos, o que agradava
a todo mundo.
Bruce chegou em casa do trabalho, e a família sentou-se para
jantar. As refeições que faziam juntos eram sempre as
melhores. Uma enorme agitação tinha lugar — arrumar a
mesa, sincronizar os pratos (eles sempre tinham de ser
servidos juntos para Bruce) — e depois vinha a calma da hora
da oração, segui¬da de um bate-papo tranqüilo.
Eles geralmente jogavam "altos e baixos", um jogo em que
todo mundo tinha a oportunidade de reclamar ou falar bem
de seu dia. James ainda estava aprendendo a usar o garfo, e
Andrea o repreendia suavemente quando ele voltava a usar as
mãos. Os modos à mesa eram importantes para Andrea, mas,
ainda assim, de vez em quando, as mãozinhas se introduziam
furtivamente no prato para agarrar aquele bocadinho que caía
do garfo.
Após o jantar, iniciavam-se os rituais noturnos, entre eles o
banho no qual James e Bruce compartilhavam a banheira e
conversavam "de homem para homem". Depois Andrea
assumia o comando, e lá vinham os três livros, os cem beijos e
a rotina de boa-noite.
Mas Andrea inventara outro truque. Depois dos cem beijos,
ela fazia com que James se deitasse de costas na cama e
fechasse os olhos. Depois, ela deslizava a mão pelo cabelo dele
como se estivesse puxando alguma coisa, e jogava em seguida
essa coisa no chão, fosse o que fosse.
— Estou retirando tudo que assusta você — dizia ela. Es¬tou
retirando tudo que faz você chorar. E uma vez mais sua mão
simulava o movimento de agarrar alguma coisa e atirá-la no
chão. — Tudo que deixa você zangado ou assustado.
A seguir, ela invertia o processo, pegando uma coisa no ar e
deslizando a mão sobre o rosto de James.
— Agora vamos pôr dentro de você tudo que o faz feliz, tudo
que faz você sorrir e todo o amor de quem ama você.
Andrea corria então suavemente a mão sobre a testa do filho a
cada pedido, ou talvez oração, e James chamava essa última
parte do processo de "botar para dentro os sonhos bons".
Essa técnica pareceu ajudar, ou seja, a incidência dos
pesadelos caiu de três ou quatro vezes por semana para duas
ou três, mas eles não pararam totalmente nem diminuíram de
intensidade. Foi uma pequena vitória.
Depois que Andrea tinha inserido o último sonho bom nessa
primeira quinta-feira de outubro, Bruce entrou no quarto
para dar boa-noite ao filho. Ele beijou James e disse:
-Nada de sonhar com o rapaz esta noite, ok, meu chapa?
James respondeu:
-O nome do rapaz é James, papai.
-Querido, seu nome é James — disse Andrea. Mas James
insistiu:
-O rapaz também se chama James. Andrea ficou confusa.
-Você se lembra do sobrenome do rapaz?
-Não, não consigo me lembrar.
Bruce e Andrea estavam sentados na cama. Era um daqueles
frágeis momentos em que James dava espontaneamente
alguns detalhes, poucos e selecionados, como se estivesse
deixando cair pérolas. Mas os pais sabiam que isso era apenas
um breve vislumbre dos sonhos do filho e que poderia
terminar se exercessem alguma pressão, por menor que fosse.
James falava quando queria falar, e ficava silencioso e sombrio
quando não queria conversar sobre o assunto. Bruce
comparava a situação aos telescópios que funcionavam com
moedas no alto do Empire State Building. Você colocava 25
centavos e conseguia enxergar bem longe, e depois, de
repente, quando você estava bem envolvido com o cenário,
na cúspide de uma perfeita clareza, o telescópio parava de
funcionar. O tempo da moeda tinha acabado.
Mas Bruce e Andrea insistiram com James, mesmo sabendo
que estavam vendo através de uma lente muito embaçada.
— Você consegue se lembrar do nome de mais alguém no
sonho? — perguntou Andrea. — Algum amigo?
James se concentrou por um momento; em seguida, seu rosto
se iluminou e ele disse:
— Jack!
Bem, era um nome, mas não era nada extraordinário. Havia
milhões de homens chamados Jack. Ele poderia ter dito
Frank, Tom ou Joe. Jack poderia até mesmo ser um apelido
para James.
— Você se lembra do sobrenome de Jack? — perguntou
Andrea.
E, então, James respondeu, com muita nitidez:
— Larsen. Era Jack Larsen.
— Vá buscar papel e caneta — disse Bruce, refreando sua
agitação.
Andrea desceu até o escritório e pegou o bloco e uma caneta,
e Bruce começou a fazer anotações, tentando se lembrar de
tudo na seqüência. Andrea percebeu que James estava
sonolento, mas de qualquer modo fez mais uma pergunta.
— Jack era amigo de James?
Ao que James retrucou:
— Ele também era piloto.
Eram informações demais para assimilar. Não poderiam
pressionar mais o filho. Ele estava bocejando e pronto para
dormir, de modo que o beijaram na testa e se encaminharam
para a sala de estar, onde se sentaram em silêncio, tentando
digerir esse último acontecimento.
CAPÍTULO TREZE
"Jack Larsen" lançou o casal Leininger no centro da questão:
crença ou ceticismo.
Andrea decidiu acreditar. Naquelas circunstâncias, isso lhe
pareceu a coisa mais sensata a fazer. Ela não poderia viver
indefinidamente em um estado de medo e nervosismo. (Até
mesmo durante uma batalha os soldados atacados lidam com
as particularidades da vida diária.) No fim, acreditar parecia a
única solução prática.
Para ela, o nome Jack Larsen era uma prova suficiente da tal
lembrança de uma "vida passada" que não deveria jamais ser
mencionada. Andrea não precisava de um círculo perfeito.
Ela era uma mãe que tinha determinadas tarefas a cumprir,
como preparar refeições, manter a casa limpa e cuidar de uma
criança. A vida precisava continuar. Essas necessidades
enfadonhas do dia a dia prevaleciam sobre os mistérios da
meia-noite.
No que dependesse de Andrea, a guerra tinha sido ganha, e as
tropas podiam voltar para casa.
É claro que ela teve ajuda para chegar a essa nova conclusão.
Sua mãe continuava a falar a respeito de uma solução
paranormal new age para o problema. Ela mantinha viva a
possibilidade de uma vida passada.
No lado oposto da situação estava Bruce, que fortalecera sua
posição e era agora um firme incrédulo. Da maneira como ele
percebia a questão, era sua missão provar à esposa (e a todo o
clã Scoggin) que os pesadelos de seu filho eram apenas
coincidências, e não a lembrança recuperada de... Bem, ele
teria de obter informações a respeito de "Jack Larsen" para
demonstrar que tinha razão.
Essa atitude não era apenas um capricho de Bruce. A
integridade de sua fé cristã estava em jogo, bem como toda a
história do pensamento racional que ele estudara na faculdade
e na pós-graduação. Ele havia descartado a possibilidade de
uma vida passada. Para ele, nada mais era que uma
superstição. Bruce tivera uma formação convencional e
sistematicamente orientada, estudara matemática, história e
Descartes, e acreditava no método científico e em um
universo racional.
Além disso, tinha outro incentivo: ser vitorioso em seu lar.
Ele não poderia renunciar ao seu papel de zelador do bom
senso e da capacidade de discernimento da família. Bruce se
apresentava como a voz da razão na West St. Mary Boulevard.
"É impossível argumentar com as mulheres da família
Scoggin", ele costumava declarar. "É preciso provar que elas
estão erradas."
Enquanto Andrea cuidava dos afazeres domésticos, Bruce
passava horas em seu escritório em casa refletindo sobre os
pesadelos do filho. Na primeira noite depois que James
revelou o nome de Jack Larsen, ele foi para o escritório e
sentou-se diante da tela do computador, tentando imaginar
como poderia asso¬ciar esse nome aos pesadelos. Era tarde,
passava das 22h — ele viu a hora brilhando na tela do
computador — e teria um dia cheio no trabalho no dia
seguinte. Bruce precisava descansar, mas sentia que tinha de
lidar com o incômodo problema dos pesadelos. Mas como?
Por onde deveria começar? Seria Jack
Larsen o rapaz no avião em chamas? Seria Jack Larsen outro
nome para James? Afinal de contas, Jack era um apelido. O
nome poderia ser John.
Ele virou e revirou o quebra-cabeça, examinando-o a partir
de diversos ângulos, buscando a chave que revelaria o
segredo.
A reflexão sobre os problemas na casa da família Leininger se
transformou em uma intensa busca na internet. As palavras-
chave eram digitadas, e o Google mostrava — no caso de Jack
Larsen — becos sem saída. Bruce não sabia o que fazer nem
tinha a menor idéia de por onde deveria começar. Era como
se ele de repente ficasse paralisado diante do computador.
Então, ele foi para a cama.
O tempo voltou a ficar terrivelmente abafado no sábado, e a
busca por Jack Larsen foi colocada em banho-maria enquanto
a família Leininger comemorava o aniversário de Bruce. Ele
tomou o café da manhã, leu o jornal e depois foi trabalhar no
jardim. Em seguida, recebeu os habituais abraços, beijos e
presentes. Como sempre, ficou encantado com o que Andrea
lhe deu; sua velha roupa de jogging estava surrada, e ele
gostava de trajes novos. No entanto, o presente de que Bruce
mais gostou foi o carrinho para jogging, porque agora poderia
levar James consigo quando fosse correr.
Bruce levou o carrinho para um test drive. James refestelou-se
no assento, balançando as mãos ao vento, enquanto o pai
corria atrás, empurrando o carrinho. Depois, voltaram para
casa, e ele foi submetido ao que chamava de "interrogatório
Scoggin".
— Como foi?
— Bem.
— James se divertiu?
— Bastante.
— O que ele fez? O que disse? O que você fez? Até onde
vocês foram? O que achou? Estava quente?
Andrea queria saber todos os detalhes do test drive; Bruce
estava bastante seguro de que fizera um bom relato ao dizer
que as coisas tinham ido "bem".
Essa era a principal diferença entre eles: a exigência aberta e
audível dela de uma instantânea prestação de contas e a
reserva contida e silenciosa dele. Andrea não era apenas
curiosa, ela precisava pesquisar a essência de cada pequeno
evento. Já Bruce queria saboreá-lo, pensar nele, encontrar o
local exato para ele entre suas experiências e opiniões.
Essa era a característica que fazia com que ela se contentasse
com uma solução rápida para os pesadelos e que levava Bruce
a continuar procurando mais intensamente por uma prova.
À noite, eles desfrutaram um jantar de aniversário. Foram ao
Blue Dog Café, um restaurante cajun que Andrea e James
estavam ansiosos para experimentar. Andrea levou vários
lápis de cera e brinquedos para manter James ocupado, mas o
Blue Dog estava bem preparado para receber famílias, pois
todas as mesas eram cobertas por papel parafinado e tinham
em cima um copo cheio de lápis de cera. James pôde
experimentar a sensação de desenhar em uma toalha de mesa,
e Bruce e Andrea puderam provar os molhos à base de
Tabasco que faziam os ajudantes de garçom correrem de um
lado para o outro no salão de jantar, para encher de água os
copos dos clientes.
Quando voltaram para casa e acenderam as velas no bolo de
aniversário doberge de chocolate de oito camadas, Bruce
deixou James apagá-las. Cantaram parabéns, beberam
champanhe (leite para James) e depois voltaram a acender as
velas, para que James pudesse soprá-las de novo... e de novo.
Naquele agradável momento, ele era um menino de 2 anos
sem problemas, que não conseguia se contentar com as velas e
o bolo. E Bruce e Andrea tiveram sua cota de champanhe e
chocolate.
Mais tarde, Bruce acabou indo novamente para seu escritório
e ficou olhando para a tela vazia do computador. Em 2000,
era praticamente impossível entrar na internet nas horas de
maior movimento, ou seja, entre 19h e 23h. Mas já era 1h.
Se eu não conseguisse me conectar naquela hora, seria capaz
de jogar aquele computador de merda pela janela. Liguei a
maquina e cruzei os dedos. Ouvi o conhecido sinal de
discagem que dava acesso à internet. Esperei... esperei e
esperei, prendendo a respiração e cruzando os dedos. Meu
sinal avançou até o meio dos três ícones da rede discada, e,
em seguida, ouvi o som agudo familiar do computador
buscando um sinal. Eu mal conseguia respirar. Olhei para a
tela, torcendo para não receber novamente o sinal de que
todas as linhas estavam ocupadas e que eu deveria tentar mais
tarde, torcendo para que, quando Andrea acordasse de
manhã, não encontrasse os restos fumegantes do computador
na pilha de folhas do quintal. Por sorte, recebi o sinal de
conexão e finalmente consegui respirar. Obtivera o direito de
entrar na Cidade das Esmeraldas...
Bruce digitou o nome Larsen, com todas as suas possíveis
grafias e variações, inclusive do primeiro nome, Jack. Mas isso
foi um tiro no escuro. O Google ainda estava em seu estado
inicial, e a utilização desse poderoso mecanismo de busca era
inevitavelmente caótica. Era impossível obter respostas
rápidas.
Surgiram sites com Jack, com Larsen, e houve todas as
variações, de LaMere a Lwoski. De Jack a Jake, John e Johann.
Como o número de estrelas no céu. Ninguém, pensou ele,
poderia encontrar algum significado nas centenas de nomes
com inúmeras combinações. A questão era como refinar a
busca.
No domingo de manhã, depois de alimentar James com uma
mamadeira clandestina, Bruce voltou ao escritório, tentando
encontrar Jack Larsen.
Dessa vez ele tinha um ponto de partida. Jack Larsen era um
piloto da Marinha americana. Bruce partiu do princípio de
que, mesmo que ele realmente tivesse existido, já estaria
morto. No entanto, havia a possibilidade de Jack Larsen ser o
nome do rapaz nos sonhos de James. Jack Larsen, piloto da
Marinha — os links da busca conduziram Bruce aos mais
diferentes lugares. Havia vários homens chamados Jack
Larsen que ainda estavam vivos e eram pilotos da Marinha;
havia outros que estavam aposentados — muitas centenas de
possibilidades envolviam o nome de Jack Larsen e todas as
suas variações fonéticas.
Ele estava fazendo a triagem de páginas e páginas de links,
procurando uma agulha no palheiro. Mesmo que, por milagre,
ele encontrasse a pessoa certa, como iria saber que era ela?
Bruce começou uma busca por mortos na guerra. Essa
mudança resultou em mais um enigma a ser decifrado. As
informações estavam, em sua maioria, relacionadas por
estado, e as listas eram incompletas e desorganizadas.
Foi então para o solário e tomou um martini. Aquilo não era
algo que ele iria decifrar com facilidade. Era um quebra-
cabeça com várias peças, estruturado, que ele teria de
dominar e, depois, levar até o fim.
CAPÍTULO QUATORZE
Ele era incessantemente requisitado no trabalho. A empresa
de petróleo que pagava o salário de Bruce precisava dele com
muita freqüência. A companhia estava envolvida com a difícil
e complicada tarefa de fechar as portas. A OSCA sempre fora
destinada a ser vendida para que houvesse injeção de dinheiro
na empresa controladora. Isso significava uma espécie de
maquiagem corporativa em que os livros contábeis
precisavam estar equilibrados, os trabalhadores tinham de ser
generosamente (porém não exageradamente) remunerados e
os benefícios tinham de ser, ao mesmo tempo, sedutores e
apre¬sentar uma boa relação custo-benefício. A função de
Bruce era ajudar a enfeitar a noiva (os resultados financeiros)
para o noivo (o capital forte).
A tarefa de obter todos os códigos da folha de pagamento era
simplesmente exaustiva — sessenta páginas de exigências e
rotinas de procedimentos —, de forma que correspondessem a
cada uma das posições dos trabalhadores. Bruce passava o dia
inteiro envolvido com os infinitos e minúsculos detalhes dos
códigos do governo e as exigências da direção; era um
operário em uma indústria pesada.
À noite e nos fins de semana, Bruce se curvava sobre o
computador de casa, tentando arrancar dele alguma
informação sobre o mistério do filho.
A busca de Bruce tinha de ser realizada como uma atividade
paralela, em tempo livre, ou seja, depois da meia-noite e nos
fins de semana. De certa maneira, isso era bom, porque o
afastava da obsessão por descobrir o que eram os pesadelos e
possibilitava que ele abordasse o quebra-cabeça revigorado,
voltasse a lidar com ele cada vez que deixava suas obrigações
na OSCA e visse a situação sob uma luz limpa e clara. Além
disso, Bruce também descobriu que, quando simplesmente
esvaziava a cabeça e deixava que a mente vagasse para lhe
trazer outras possibilidades, idéias proveitosas, que vinham do
nada, lhe ocorriam. Por que não olhar aqui ou ali, ou se
concentrar nos links militares?
Não era como se Bruce não tivesse treinamento algum em
pesquisas em larga escala. Quando era aluno da graduação na
Fairleigh-Dickinson University, em Nova Jersey, Bruce
especializou-se em duas disciplinas: ciência política e assuntos
russos. Isso foi no início da década de 1970, e a especialização
em Guerra Fria ainda era uma carreira que estava em alta. Sua
tese de pós-graduação na Columbia University foi sobre
Relações Internacionais, sob a orientação de Zbigniew
Brzezinski, entre outros, e Bruce ficou animado com a
perspectiva da ciência política em grande escala. Examinou
todos os aspectos da trégua que ocorrera entre 1965 e 1975 (e
descobriu que os russos interpretavam o mundo de maneira
diferente e mais agressiva) e estudou o idioma russo,
imaginando que, um dia, de alguma maneira, faria parte das
altas esferas da diplomacia.
Nos tempos de estudo, Bruce aprendera a ser muito
sistemático a respeito da resolução de problemas e da
realização de pesquisas básicas. Eis os passos que ele seguia:
1. Definir o problema;
2. Desenvolver uma declaração de propósito;
3. Escolher um método de pesquisa;
4. Elaborar um projeto de pesquisa;
5. Definir os limites do projeto;
6. Explicar claramente a metodologia.
E foi assim que ele tentou abordar o "projeto" dos pesadelos
de James. É importante lembrar que seus dias de estudante
foram na era pré-computador. Os softwares modernos
modificaram muitas técnicas de pesquisa, às vezes acelerando
as coisas, porém, com freqüência, saturando o sistema com
excesso de informações. Em certas ocasiões, era simplesmente
impossível lidar com elas.
Bruce também fortaleceu sua perseverança quando come¬çou
a pesquisar a genealogia da família. Seu tio Bill, o mais velho
dos sete filhos dos avós de Bruce, sempre alimentara uma
grande curiosidade a respeito da história deles. A lenda
familiar era de que os Leininger tinham vindo para os Estados
Unidos procedentes da Alsácia-Lorena, uma região entre a
França e a Alemanha que por longo tempo foi alvo de disputa
territorial, mas os detalhes da linhagem de Bruce estavam
perdidos na névoa do mito e da lembrança.
Em meados da década de 1990, Bruce passara fins de semana
inteiros examinando pilhas de livros empoeirados e
abandonados em uma biblioteca do Texas, tentando encontrar
o trajeto da migração de sua família do Palatinado para os
Estados Unidos. Finalmente, em um lugar pouco visível, ele
deparou com a Collection of 30,000 Names 1727-1776, de J.
Daniel Rupp. Na página 238, em uma lista de 338 passageiros
que chegaram à Filadélfia a bordo de um navio chamado
Phoenix, no dia 28 de agosto de 1750, constava o nome de
Johan Jacob Leininger — um de seus ancestrais. Mais tarde,
Bruce encontrou uma comprovação desse fato nas pilhas
empoeiradas dos arquivos do tribunal da Filadélfia.
A descoberta desse trajeto em direção ao seu passado conferiu
a Bruce um sentimento de poder, a certeza de que, com
empenho e imaginação, ele seria capaz de decifrar qualquer
enigma.
Inclusive o mistério dos pesadelos de James.
Em meados de outubro, Bruce estava no site da American
Battle Monuments Commission, que fornece o nome dos
mortos e desaparecidos tanto na Segunda Guerra Mundial
quanto na Guerra da Coréia. Ele se concentrou nas mortes em
combate em porta-aviões na Segunda Guerra e descobriu um
site com 87 páginas, com até duzentos nomes por página.
Havia quase dez mil nomes. Ele levou quase dois dias para
imprimir tudo.
Cento e vinte e uma pessoas com o nome Larson haviam sido
mortas na Segunda Guerra, e outras 49 cuja grafia era
"Larsen". Das 170 pessoas com o nome Larson/Larsen,
somente dez cujo primeiro nome era Jack, James ou John
tinham sido enterradas no exterior. Foi necessário um esforço
heróico, que exigiu muitas pesquisas realizadas depois da
meia-noite, para extrair essas informações do site.
Bruce ia dormir às 2h e entrava de novo na internet às 6h.
Quatro horas de sono eram suficientes. Mas ele ainda estava
tateando no escuro; não tinha um plano viável para rastrear
os Larson/Larsen mortos, nem sabia exatamente o que
procurar quando encontrava um que parecia promissor.
Mas ele tinha em mãos outros fatos, e pôde pesquisar em
diversas fontes.
Tinha a história do Natoma Bay, que ele carregava consigo
por toda parte, levando-a inclusive para o trabalho, como se
ela pudesse despertar alguma inspiração.
Ao examinar o livro em seu escritório, ele descobriu que o
navio entrara em atividade no dia 14 de outubro de 1943,
portanto os homens que tinham sobrenome Larson ou Larsen
teriam que se encaixar nesse período — entre outubro de
1943 e o fim da guerra, no início de agosto de 1945.
Ele tinha a aeronave: um Corsair, que só começou a decolar
dos porta-aviões em 1944, de modo que Bruce tinha uma
outra janela, mais estreita, através da qual buscaria
informações.
Três pistas confiáveis: Natoma Bay, Jack Larsen, o Corsair.
Agora, tudo o que tinha a fazer era, de alguma maneira, ligálas.
Às vezes, no meio da noite, quando todos os sites e hiperlinks
o deixavam à beira de um colapso, Bruce ia para a varanda e
se sentava na cadeira de balanço. Folhas que caíam das
grandes bétulas à margem do rio eram levadas pelo vento até
o jardim. Em algum lugar ao norte, nas distantes plantações,
estavam queimando as cepas da cana-de-açúcar para preparar
a terra para a plantação da primavera. Em alguns dias, cinzas
flutuaram como neve sobre as ruas de Lafayette. Não era raro
acordar pela manhã e encontrar resquícios de cana-de-açúcar
no pára-brisa.
Mas agora, sendo um ianque em território cajun, ele apenas
ficava sentado na cadeira de balanço, bebericando seu
drinque no outono de mais de 20°C e eliminando o estresse da
mente.
Em meio a tantas preocupações, Bruce ainda precisava fazer
uma limpeza no jardim. Seu pai, Ted, estava prestes a chegar
para uma visita, e Bruce queria que o lugar passasse na
inspeção. Ted era um fuzileiro naval de 73 anos que servira na
China logo depois da Segunda Guerra Mundial e tinha um
relacionamento distante e difícil com o filho. "Não me lembro
de nenhuma vez em que ele tenha me feito uma pergunta
pessoal", recorda Bruce.
Para chegar a Lafayette, Ted saiu de Pine Grove, na
Pensilvânia, com sua segunda esposa, Mary Lou, e dirigiu
mais de 2.400 quilômetros em uma minivan. Eles compraram
o veículo com os 14 mil dólares da aposentadoria de Mary
Lou. Bruce a chamava de "Irmã Mary Lou", pois ela aturava
seu pai há mais de 30 anos.
De certa maneira, o fato de Ted ir vê-lo era uma vitória. Ele
se recusara a visitar o filho quando Bruce morava em São
Francisco, que ele chamava de "a terra dos gays e malucos".
Ted também tinha idéias excêntricas e peculiares. Ele não
andava de avião, porque acreditava que todos os mecânicos
das companhias aéreas "fumavam maconha".
Ele nem mesmo queria visitar o novíssimo Museu do Dia D
— a grande atração que Bruce recomendara com insistência
— porque ficava em Nova Orleans. Ted considerava aquela
cidade o epicentro das piores tentações do mundo. Bruce teve
de garantir ao pai que evitariam os clubes de strip-tease da
Bourbon Street e iriam diretamente ao museu, que estava
localizado em uma área comercial da cidade.
Bruce e Ted fizeram o percurso de duas horas de carro até
Nova Orleans, enquanto Mary Lou visitava o Super Wal-
Mart.
Na ida, pai e filho ficaram em silêncio por boa parte do
trajeto. No entanto, na volta, depois da visita, eles
conversaram. Anteriormente, eles falavam um para o outro,
sem jamais estabelecer contato emocional. Bruce descrevia
sua interação com o pai "como dois âncoras no noticiário
noturno falando sobre os acontecimentos". Ninguém jamais
descreveria o diálogo entre eles como uma conversa, mas
dessa vez foi diferente. Talvez tenha sido por causa das velhas
lembranças da Segunda Guerra, ou, finalmente, por causa de
um reconhecimento do elo entre ambos, mas o fato é que Ted
ouviu respeitosamente, silencioso e impassível, a história dos
pesadelos, sem ridicularizar, desacreditar nem fazer pouco-
caso da preocupação do filho.
Alguns dias depois, Ted e Mary Lou foram embora, seguindo
para St. Louis e para uma reunião dos fuzileiros navais da
China, deixando Bruce com sua aflição. Engraçado, pensou
ele, como seu pai se mostrara receptivo à idéia de o neto ter
sonhos inexplicáveis. Ele pareceu aceitar o fato de que James
poderia realmente ter conhecimento de coisas que ele, o avô,
não teria como saber.
Se tivessem pedido a Bruce que previsse a reação do pai, ele
teria achado que Ted faria algum comentário cruel e
sarcástico. Mas não foi o que aconteceu.
Surpreendentemente, seu pai foi algo que quase nunca era:
solidário, mostrando-se até mesmo interessado.
Bruce voltou para seu escritório em casa e trabalhou horas a
fio no computador. Concentrando-se no nome dos pilotos
falecidos, escolheu um ao acaso: Charles T. Larson. Foi uma
tentativa aleatória entre as baixas do período de 1944 a 1945.
Ele acessou o site dos National Archives e preencheu um
formulário pedindo informações detalhadas sobre o piloto
falecido. Ele deu o nome, o posto, o número de série e a data
de nascimento do piloto, mas, como não era um parente, o
National Archives informou que não poderia ajudá-lo;
somente parentes consangüíneos tinham o direito de fazer tal
consulta.
Os dias seguintes envolveram um emaranhado de
preparativos para o Dia de Ação de Graças, pois Jen e o
marido, Greg, iam passar novamente o feriado com eles.
Bruce gostava muito de Greg, e estava ansioso para ter uma
conversa informal em que poderiam se sentar e reclamar do
caos da vida profissional.
No auge dos preparativos, receberam um livro de Bobbi. Ela o
descobrira em uma biblioteca dedicada a assuntos sobre
naturais e paranormais, além de fenômenos new age. O livro
se chamava Crianças e suas vidas passadas: como as
lembranças de vidas passadas afetam nossos filhos, de autoria
de Carol Bowman, renomada especialista no campo de
investigação das vidas passadas, uma área extremamente
delicada e não comprovada. O filho de Bowman teria
supostamente vivido em um campo de batalha da Guerra
Civil, em outra encarnação. Bobbi enviou o livro para
Andrea, que o colocou numa pilha de livros não lidos. Ela
tinha a intenção de lê-lo, mas estava ocupada demais com os
preparativos para o Dia de Ação de Graças, e, além disso, não
precisava ser convencida, pois já acreditava na palavra de sua
mãe a respeito da explicação dos pesadelos de James; uma
espécie de reforço de que seu filho estava passando pela
experiência de uma vida anterior.
Naquela época festiva, também chegou outro livro: The Battle
for Iwo Jima. Bruce o havia encomendado para dar de
presente a Ted, que apreciava qualquer fonte de informação
sobre a atuação do corpo de fuzileiros navais no oceano
Pacífico na Segunda Guerra Mundial.
Na manhã de sábado, entediado com os desenhos animados,
James pulou no colo de Bruce, e juntos folhearam o livro que
dariam ao vovô no Natal. Em determinado momento,
chegaram a uma página que continha uma foto de Iwo Jima.
James apontou para ela e disse:
— Papai, foi aí que meu avião foi derrubado.
— O quê?
— Foi aí que meu avião foi derrubado.
— James, o que exatamente você está querendo dizer?
— Foi aí que acertaram meu avião e ele caiu.
Bruce correu para o escritório, onde tinha uma cópia do
Dictionary of American Naval Fighting Ships. O Natoma Bay
esteve em Iwo Jima, para combater e dar respaldo à invasão
pelos fuzileiros navais norte-americanos em março de 1945.
Esse foi outro dos momentos surpreendentes em que Bruce
ficou ao mesmo tempo perplexo e furioso diante desse
mistério. Algo estava acontecendo, mas ele não sabia o que
era. Bruce sentiu que procurava desesperadamente um
caminho a seguir, guiado por pequenas informações dadas por
seu filho de 2 anos.
Era algo completamente diferente do método de pesquisa
convencional utilizado por Bruce. Para seguir em frente, ele
precisaria muito de inovação, inspiração... e sorte.
Bruce ainda estava pensando na visita do pai. Ted partira para
a reunião dos fuzileiros navais que serviram na China. Foi
então que teve um estalo. Talvez houvesse uma reunião de
veteranos da Segunda Guerra Mundial. Bruce digitou a frase
"Reuniões de Veteranos da Segunda Guerra Mundial" e
recebeu como resposta um monte de sites. Um deles continha
uma referência a um porta-aviões de escolta. Navegando no
site, Bruce encontrou uma referência à reunião de uma tal de
Natoma Bay Association.
Bingo!
SEGUNDA PARTE
O Navio
CAPÍTULO QUINZE
SETEMBRO DE 2002
Bruce Leininger estava em um assento da janela do vôo 1107
da Continental Airlines, que manobrava para decolar do
Lindbergh Field, no San Diego International Airport. Ele
preferia sentar na janela, e nesse vôo havia muitos assentos
desse tipo disponíveis. Não havia ninguém ao lado, na frente
nem atrás dele. Na realidade, havia apenas cerca de quarenta
passageiros no avião, cuja capacidade era de 150 lugares.
Ele se lembrou de que o aeroporto estava estranhamente
deserto. Quarta-feira era sempre um dia muito movimentado,
mas naquela quarta, especificamente, o aeroporto estava tão
vazio que chegava a ser esquisito. No entanto, nada disso
preocupava Bruce. Na realidade, era agradável ter o avião
todo para ele no trajeto até Houston. Seriam três horas de
silêncio e tranqüilidade.
Bruce precisava de tempo. Acabara de comparecer à sua
primeira reunião do grupo do Natoma Bay, e um amontoado
de fatos novos e fragmentados passavam pela sua cabeça.
Embora muito já tivesse sido esclarecido quando ele se
encontrou com os veteranos, a história se tornara agora mais
complicada e enigmática. Perguntas e respostas se
sobrepunham, colidiam e não faziam sentido. Ele precisava
organizar seus pensamentos, e um avião voando a 9 mil
metros de altitude era um lugar excelente para fazer isso.
Era um vôo matutino com café da manhã, mas, apesar de o
avião ter decolado às 9h30, Bruce pediu um uísque.
"Senhoras e senhores, aqui é o capitão. Estamos voando a 9
mil metros, o céu está limpo e deveremos chegar a Houston
um pouco antes do horário previsto. Gostaria de pedir um
momento de silêncio, em respeito àqueles que morreram há
exatamente um ano, nos atentados de 11 de Setembro..."
Então era isso! Bruce esquecera-se completamente do fato.
Onze de Setembro! Isso explicava a fraca movimentação no
terminal e as poltronas vazias no avião. Não se tratava apenas
de uma anomalia no fluxo de tráfego: era a lembrança do
World Trade Center!
Onze de Setembro; tanta coisa acontecera depois daquele
dia...
Bruce estava no trabalho quando os aviões se chocaram
contra o World Trade Center, o Pentágono e uma terceira
aeronave caiu em um campo na Pensilvânia. Fora uma manhã
rotineira, até ser violentamente interrompida. Andrea
telefonou para alertá-lo; a conversa era um eco repetido em
todas as partes dos Estados Unidos:
— Você já sabe?
— Estou assistindo.
Como todo mundo, eles ficaram atônitos, grudados no
aparelho de tevê mais próximo (ele, no trabalho, ela, em
casa), enquanto as notícias mais recentes eram transmitidas
na tevê em edições extraordinárias. Uma enorme cobertura
jornalística, mas pouco se entendia sobre o que estava
acontecendo. Durante algum tempo, todos ficaram
simplesmente assistindo, como se esperassem por alguma
explicação. Entretanto, repetiam-se sempre as mesmas
notícias, exibindo os mesmos aviões se chocando contra os
mesmos prédios, que caíam inúmeras vezes... No final, todos
acabaram ficando com a mesma raiva.
Soldados foram recrutados em Lafayette, como em todos os
outros lugares, fitas amarelas foram colocadas ao redor do
tronco das árvores e uma pergunta desconcertante, "O que
virá a seguir?", deixava todo mundo em um estado de nervosa
expectativa.
No caso do casal Leininger, envolvidos com o longo dilema do
filho, seguir em frente tornou-se ainda mais urgente.
Bem, isso era outra coisa em que pensar enquanto o avião
avançava para Houston. Não que a mente de Bruce estivesse
inativa. A reunião colocou novas preocupações em sua mente.
Havia a questão da mentira, que pesava fortemente sobre ele.
Tudo começou de maneira inocente; ele só mentiu porque
não conseguiu descobrir uma maneira de contornar a
situação. Mas, como todas as mentiras, ela ficou fora de
controle e se tornou algo enorme e ingovernável.
Tudo começou com os telefonemas, quase dois anos antes, no
outono de 2000. Eles começaram após as inesquecíveis
declarações de James no feriado de Ação de Graças a respeito
de Iwo Jima e Jack Larsen. Bruce ficou um pouco fora de si na
ocasião, desesperado para descobrir o mistério da identidade
de Jack Larsen.
Depois das buscas exaustivas em inúmeros sites, ele
encontrou o da Escort Carriers Sailor's and Airmen's
Association, pegou quatro nomes no site e telefonou para eles.
Um dos números tinha sido desligado. Outro membro do
grupo estava à beira da morte no hospital. Um terceiro nunca
atendeu o telefone. O quarto foi Leo Pyatt. Bruce precisou
tentar várias vezes, mas o homem acabou atendendo.
Quando Leo atendeu o telefone, eu disse: você não sabe quem
eu sou, mas estou interessado no Natoma Bay. Ele perguntou
se eu tinha servido no navio. Eu respondi que não. Ele, então,
perguntou se meu pai tinha servido nele. Eu respondi que
não. Em seguida, ele me fez uma pergunta para a qual eu
estava completamente despreparado. Uma pergunta simples,
na verdade, e fui um idiota por não tê-la previsto, por não
estar preparado, por não ter uma resposta pronta.
— Então, por que você está interessado no Natoma Bay?
Eu não sabia o que dizer, não estava preparado para uma
pergunta tão óbvia, mas não podia simplesmente dizer a ele
que meu filho de 2 anos falava sobre o navio, sobre Iwo Jima
e tudo mais. Menti. Eu disse que havia um cara no meu bairro
que falava muito sobre seu navio...
— Quem é ele?
— Um bom amigo... Ravon Guidry.
Esse é o problema das mentiras; seguimos por esse caminho e
logo, logo, ficamos atolados...
— ... E ele tem um tio que falava muito sobre o navio. O tio
tem Alzheimer, e fica bastante apático a maior parte do
tempo... Mas descobrimos que o Natoma Bay era um navio de
verdade, de modo que comecei a fazer uma busca. Sou
escritor e gostaria de fazer algo para imortalizar o Natoma
Bay. Estou pensando em escrever um livro...
Daí a pouco eu estava tagarelando e falando de forma
desconexa, como uma pessoa louca, mas Leo Pyatt deve ter
ficado com pena de mim, porque disse: "Ok, eu lhe direi tudo
o que você quer saber."
Foi assim que a mentira começou. Bruce ia escrever um livro
a respeito do Natoma Bay. Apesar de suas preocupações a
respeito de seu improviso, este se revelou brilhante, pois lhe
proporcionou uma autorização para bisbilhotar e fuxicar sem
precisar mencionar a fantástica possibilidade de que seu filho
de 2 anos — de acordo com sua esposa e vários membros da
família dela — tenha sido colega de bordo de Leo. Havia
também o detalhe ainda mais improvável de que o piloto da
Segunda Guerra sobre o qual estavam falando tivesse sido
morto antes de Bruce ter nascido. E, como se tudo isso não
bastasse, ele era o pai desequilibrado que estava do outro lado
da linha. Não era a abordagem ideal para estabelecer um
relacionamento de confiança com um veterano velho e
ríspido.
Um livro foi o disfarce perfeito. Bruce conseguiu fazer suas
perguntas sem precisar se submeter a uma avaliação
psiquiátrica. E prosseguiu diretamente para o X da questão.
— Havia Corsairs no Natoma Bay?
— Não. Pelo menos não que eu saiba.
Isso! Bruce conseguira provar que estava certo. Não havia
Corsairs. James estava errado. Bruce havia desmascarado toda
a história, além da louca possibilidade de reencarnação. Bruce
sentiu de imediato uma grande euforia e uma decepção. Ele
provara que estava certo: nada de Corsairs ou de
reencarnação. Ponto final. Mas isso o deixou, de qualquer
modo, um pouco deprimido. Poderia ser tão fácil assim? Isso
era tudo? Uma única pergunta? Chegou à conclusão de que
era melhor explorar um pouco mais a questão. Um bom
pesquisador não se desvia do caminho por conta da primeira
contradição que encontra. Uma coisa era possível afirmar a
respeito de Bruce: ele era meticuloso.
— Ok, que tipo de avião decolava do navio?
— O FM-2 e o TBM.
— Como eles eram?
— O FM-2 era um pequeno avião de caça, chamado de
Wildcat. E o outro, um Avenger, com uma tripulação de três
pessoas.
— Legal. Esses eram os únicos aviões?
— Eram os únicos aviões que eu vi decolar do navio.
— Você era piloto?
— Eu era técnico de aviação. Operador de rádio em um TBM
Avenger. O meu esquadrão era o VC-81.
— O que quer dizer "VC?"
— "VC" significa "esquadrão misto"; mais de um tipo de
aeronave era designado para ele.
— Você pode me contar algo a respeito do que aconteceu em
Iwo Jima?
— Mais ou menos.
— Como assim?
— Participei de 36 missões de combate. Fazíamos um vôo de
reconhecimento atrás do outro como apoio à batalha...
Leo começou então a falar sobre o duro combate aéreo, com
ataques terrestres e artilharia antiaérea, e quando ele estava
realmente empenhado em descrever a ação, Bruce fez outra
pergunta. Ele queria esclarecer completamente o assunto, e
ainda havia a questão da identidade do piloto.
— Você sabe me dizer algo a respeito de um cara chamado
Jack Larsen?
Leo nem mesmo fez uma pausa.
— Claro, eu me lembro de Jack. Nunca o vimos de novo.
— O que você quer dizer com isso?
— Ele decolou um dia e não voltamos a vê-lo.
Isso estava errado! Era uma prova que ratificava o que James
dissera. Leo conhecia o nome. Como o menino poderia ter
inventado o nome de um membro genuíno do grupamento
aéreo? Essa foi outra revelação que o fez estremecer.
Para Bruce, a conversa efetivamente esclareceu, de maneira
indireta, que Jack Larsen era uma pessoa real e, de fato,
aquela com quem James vinha sonhando. Não que isso fizesse
sentido. Bruce sentiu-se dolorosamente confuso, perplexo.
Pelo menos o mistério relacionado apenas com quem James
estava sonhando estava agora resolvido, embora o como e o
porquê ainda permanecessem impenetráveis.
Ainda assim, era apenas um sonho, e o fato de James ter dado
uma informação errada — a referência aos Corsairs — me
tranqüilizara de maneira estranha. Os Corsairs eram
fundamentais para meu ceticismo. James insistia no Corsair, e
eu insistia na coerência. Esse era meu elo mais forte com a
realidade.
Conversamos um pouco mais, e finalmente, quando Leo
começava a se sentir à vontade comigo, falou a respeito da
reunião dos membros da tripulação do Natoma Bay, que
aconteceria em San Diego em 2002. Se eu realmente queria
obter mais informações sobre o "Naty Maru"— era assim que
os homens carinhosamente chamavam o Natoma Bay—, ele
conseguiria um convite para mim. Esse seria o lugar para
investigar mais sobre o Natoma Bay.
Bruce, é claro, precisou esperar quase dois anos para que
chegasse o dia da reunião, e muita coisa aconteceu antes de
ele ir até lá. Para começar, leu o livro Crianças e suas vidas
passadas, de Carol Bowman. Naquele inverno de 2000, ele
retirou furtivamente o exemplar de casa sem que Andrea
percebesse e leu-o, na hora do almoço, no trabalho. Bruce não
acreditava nas histórias das crianças sobre as quais a autora
escrevera — elas o faziam revirar os olhos —, mas leu o livro
inteiro e não fez objeções quando Andrea entrou em contato
com Carol Bowman. Andrea, na verdade, leu o livro depois de
Bruce. O Natal de 2000 foi bastante agitado, pois Jen e Greg
foram passar alguns dias com eles e Andrea deixava para ler o
livro tarde da noite, quando não precisava ficar atenta aos
pesadelos de James, durante os sensuais banhos de banheira
regados a vinho. Ela se identificou com o livro, de modo que
enviou um e-mail para a autora.
Prezada Carol Bowman:
Não sou maluca. Coordenei uma operação contábil em uma
grande empresa, e meu marido é vice-presidente de uma
companhia de petróleo. Minha mãe me deu seu livro de
presente, e acredito que meu filho esteja passando pela
experiência de uma vida anterior. Ele e obcecado por aviões
da Segunda Guerra Mundial e é capaz de identificá-los, por
exemplo, o Mustang P-51...
Bruce resmungou algumas palavras ríspidas a respeito daquela
"tolice de reencarnação", mas, do seu jeito relutante, ele
também estava curioso. Afinal, essa era a primeira vez que
estavam consultando um "especialista", alguém que não fazia
parte da família. Bowman era uma autoridade reconhecida na
área de pesquisas sobre reencarnação. Ela tinha credenciais.
O e-mail de Andrea fez Carol Bowman pensar em algo
familiar.
"Eles não eram malucos", concluiu Bowman, depois de uma
série de e-mails nos quais tentara ajudar o casal Leininger a
controlar os pesadelos de James, no inverno de 2001.
"Prestei atenção ao tom. Eles davam a impressão de ser
pessoas lúcidas e equilibradas. E a história tinha um
encadeamento comum: a idade em que os pesadelos
começaram — 2 anos —, a violência, a lembrança da morte,
toda a energia que cercava o trauma. Tudo isso é crucial e
compatível com crianças que estão tendo a experiência de
uma vida passada."
Carol aconselhou Andrea a dizer a James que ele estava
vivendo situações que lhe haviam acontecido antes, que tudo
já tinha terminado e que agora ele estava em segurança. Ela
afirmou ter usado essa técnica antes, e que ela parecia ter um
poderoso efeito curativo nas crianças. Carol também tinha
outro conselho muito importante, algo que recomendava a
todos os pais cujos filhos pudessem ter lembranças de uma
vida passada: não faça perguntas que possam sugerir uma
resposta. Por exemplo, não pergunte: "Você pilotou um
Corsair?" Isso era algo que Andrea sabia instintivamente; ela
nunca induzia James a nada. O que Andrea fazia, como Carol
Bowman havia sugerido, era formular perguntas abertas, não
específicas, às quais somente ele poderia responder com as
informações verdadeiras. Perguntas como: "E depois, o que
aconteceu?" Desse modo, Andrea nunca forneceria detalhes
ao menino. A abordagem de
Carol, ou seja, dizer a James que o que estava acontecendo
com ele era algo que ocorrera antes, mas que agora já tinha
acabado, funcionou. Isso aliviou a tensão e, assim que Andrea
conversou com James e lhe disse que ele estava dormindo em
sua cama e que não estava em um avião em chamas, os
pesadelos diminuíram gradualmente de várias vezes por
semana para uma vez a cada 15 dias.
Durante as horas que passava acordado, James começou a
falar racionalmente a respeito de suas supostas experiências
de uma vida passada, fenômeno que Carol Bowman chamava
de "associação da realidade".
Em março de 2001, Andrea enviou um e-mail de
agradecimento a Carol, informando-a de que sua tática tinha
funcionado. Em seguida, a vida seguiu seu rumo, e elas
deixaram de se comunicar por mais ou menos um ano.
CAPÍTULO DEZESSEIS
James completou 3 anos em abril de 2001, e os pesadelos,
graças aos conselhos de Carol Bowman, tornaram-se menos
violentos e menos freqüentes. Entretanto, a obsessão por
aeronaves não arrefeceu. James assistiu a dois vídeos dos Blue
Angels várias vezes naquele ano, destruindo-os com o uso. Ele
até acabou indo a um encontro com alguns dos pilotos
quando a equipe de demonstração de vôo dos Blue Angels foi
a Lafayette para o Sertoma Air Show.
Em determinado Halloween, uma das tarefas escolares de
James foi decorar uma abóbora. Ao contrário de Cinderela,
ele insistiu em transformar a abóbora em um avião. Assim, lá
foram Andrea e James fazer compras em uma loja
especializada em artigos para colecionadores, onde
selecionaram um planador de espuma, prendendo as asas e a
fuselagem com espetinhos de madeira na abóbora pintada. O
produto final acabou se parecendo um pouco com um
Thunderbird F-16. Na realidade, alguns dos pilotos de
Thunderbird que por acaso estavam visitando Lafayette foram
dar uma palestra na escola de James e viram o avião de
abóbora. Eles o pediram emprestado para mostrar aos outros
pilotos.
É claro que, como acontece na vida de qualquer criança, havia
os habituais imprevistos e tribulações. James teve uma
infecção aguda na garganta, um abscesso parafaríngeo, que o
obrigou a ficar internado alguns dias. A situação foi mais
difícil para a família do que para James; ele enfrentou os
exames, as agulhas e uma pequena cirurgia como um
veterano, e se recuperou vigorosamente. Bruce e Andrea é
que ficaram abalados.
De modo geral, James era uma criança comum que levava
uma vida comum, ou pelo menos era essa a impressão que ele
transmitia. Havia intervalos calmos e sem ocorrências
especiais, quando tudo parecia perfeitamente normal.
Inevitavelmente, como acontece na vida de qualquer criança,
também havia momentos de brincadeiras e travessuras.
Ninguém na família se esqueceria da cena em que James, aos
3 anos, subiu no patamar da escada da casa de hóspedes,
baixou as calças e fez xixi no quintal, marcando seu território.
O vizinho, certamente, sempre se lembraria, pois
imediatamente construiu uma cerca de madeira de quase 3
metros de altura, isolando aquele cenário particular.
Foi mais ou menos nessa mesma época que Bruce teve de
suportar uma das travessuras mais criativas de James. Certo
dia, ao entrar no carro, já atrasado para uma viagem de
negócios a Houston, Bruce descobriu que James estivera
brincando com as alavancas que ajustam a posição do encosto
do banco do motorista, emperrando-as irremediavelmente.
Bruce não tinha tempo para corrigir o problema, de modo que
teve de dirigir até Houston e voltar com o encosto
praticamente na horizontal.
Foi apenas uma traquinagem de criança, e nem Bruce nem
Andrea puniam James com algo mais do que um breve castigo
ou um olhar de desaprovação.
No entanto, todas as vezes que o casal Leininger baixava a
guarda, sempre que os pesadelos diminuíam ou quando as
arrepiantes observações de James pareciam apenas obra de
uma criança hiperimaginativa — ou seja, sempre que as coisas
se acalmavam e a vida parecia seguir adiante sem um
momento sobrenatural e emocionante —, eles eram
repentinamente lembrados de que o destino deles não era
comum. E nunca sabiam o que desencadearia outra estranha
revelação.
No meio disso tudo, situações enigmáticas continuaram a
surgir de repente. Nessa época, por exemplo, James ganhara
de presente dois bonecos GI Joe, e lhes deu nomes curiosos:
Billy e Leon. Não os nomes glamorosos e heróicos que
poderíamos esperar que um menino de 3 anos desse a seus
soldados de linha de frente. O casal Leininger não considerou
os nomes peculiares; James tinha uma inclinação para nomes
esquisitos. Ele tinha um cachorro de pelúcia chamado
Balthazar. Ninguém conseguiu fazer com que James
fornecesse uma explicação, algo que ele provavelmente não
tinha. Quando lhe perguntavam, ele simplesmente dava de
ombros.
Houve outros momentos peculiares, como no dia em que
James estava sozinho no solário e, enquanto Andrea
observava a distância, ele assumiu a posição de sentido e
bateu continência. Em seguida, disse: "Eu o saúdo e nunca me
esquecerei. Agora, eis minha opinião."
Qual era o significado disso? Um jogo melodramático de uma
criança? Algo relacionado com a queda do avião em chamas
que se repetia? Eram muitos mistérios para uma criança que
acabara de abandonar as fraldas.
E depois vieram os desenhos violentos. Em algum momento
daquele verão de 2001, James começou a desenhar. As
imagens eram invariavelmente cenas de combate, com balas e
bombas explodindo pela página inteira. Uma batalha naval,
sempre havia aeronaves no céu. Os desenhos eram claramente
violentos, e os detalhes das armas e das táticas eram precisos e
adequados a um estilo. Havia algo inexplicavelmente antigo
nas batalhas — elas sugeriam um ambiente da Segunda
Guerra Mundial. Nada de jatos ou mísseis. Aviões movidos a
hélice combatendo em uma batalha naval.
E James era capaz de dizer o nome dos aviões nas figuras. Ele
disse a Bruce e Andrea que tinha desenhado Wildcats e
Corsairs, e até mesmo soube dizer o nome dos aviões
japoneses com o sol vermelho na fuselagem: Zekes ou Bettys.
Por que, perguntou Bruce, ele estava dando nomes de
meninos e meninas aos aviões japoneses?
James respondeu que "os aviões dos meninos eram caças, e os
das meninas, bombardeiros".
Bruce pesquisou na internet e viu que James tinha razão. De
acordo com os integrantes da Marinha norte-americana
daquela época, nomes masculinos designavam caças, e os
femininos, bombardeiros.
Mas os desenhos continham algo ainda mais curioso: Ja¬mes
assinava alguns deles como "James 3". Quando lhe
perguntaram por que assinava dessa maneira, ele
simplesmente disse: "Porque sou o terceiro James. Sou James
3." No entanto, uma vez mais, ele não tinha outras
explicações a fornecer. E nenhum outro estímulo produziu
uma resposta diferente. Era como se ele próprio não tivesse as
respostas a essas perguntas inoportunas.
Em março de 2002, às vésperas do aniversário de 4 anos de
James, Carol Bowman telefonou. Andrea atendeu o telefone.
Ela telefonou certa noite, mais ou menos na hora do jantar.
Apresentou-se como Carol Bowman, mas na ocasião não
liguei o nome à pessoa, e aconteceram pausas longas e
constrangedoras enquanto eu vasculhava meu cérebro. Em
seguida ela disse que era a autora de Crianças e suas vidas
passadas, e eu me senti uma completa idiota por não ter
reconhecido o nome dela. Conversamos durante cerca de uma
hora e ela disse que uma produtora do programa de televisão
20/20 a procurara para perguntar se ela gostaria de participar
de um dos programas. A produtora era Shalini Sharma, uma
mulher de tradição indiana interessada em mistérios
espirituais. Ela também acreditava em reencarnação.
Queriam fazer um programa sobre crianças que se lembravam
de uma vida passada. Estavam particularmente interessadas
em uma criança cuja lembrança de uma vida passada fosse de
natureza militar. Eu podia compreender o motivo. Afinal,
pouco mais de seis meses tinham se passado depois dos
atentados ao World Trade Center, e fazia apenas cinco meses
que as tropas norte-americanas tinham sido enviadas para o
Afeganistão, no dia 7 de outubro de 2001 — dia do
aniversário do Bruce e motivo pelo qual eu me lembro com
tanta clareza. Portanto, os militares e a morte eram recentes
na mente de todos.
Carol perguntou se estaríamos interessados, e eu respondi que
não sabia. Teria de pensar a respeito. Eu nunca pensara na
possibilidade de tornar a história de James pública.
Francamente, estava preocupada a respeito do que os vizinhos
pensariam. Moramos em uma pequena cidade sulista,
fortemente católica. Eu não queria ser excluída. Não queria
que pais dissessem aos filhos que não queriam que eles
brincassem com James porque ele era esquisito. Eu não queria
ser rejeitada por ser considerada idiota ou maluca.
Meu primeiro instinto foi dizer não. Mas eu tinha de falar
com Bruce — e, é claro, com o conselho. Quando Bruce
chegou em casa do trabalho, conversamos sobre o assunto
durante um longo tempo, e, surpreendentemente, ele foi
totalmente a favor de que participássemos. Bruce achou que
os recursos que uma produtora do 20/20 poderia utilizar
inevitavelmente trariam à tona algumas respostas que não
envolveriam a reencarnação. Essa sempre era a intenção de
Bruce: jogar água fria na teoria da reencarnação.
O conselho, contudo, por estar coletivamente à procura de
aventuras, foi totalmente favorável à participação de James no
programa, desde que sobrenomes não fossem usados e a
cidade de Lafayette não fosse mencionada. Andrea temia a
perda do anonimato, mas, acima de tudo, receava que seu
precioso filho sofresse algum dano.
Mais tarde, Bobbi apresentou uma idéia que pareceu
executável: "Por que você simplesmente não permanece
receptiva e avalia como se sente em cada fase do processo? Se,
em qualquer ocasião, você sentir que as coisas não estão
funcionando a seu favor, pode optar por não seguir em frente.
Apenas prossiga com um otimismo cauteloso, estabeleça os
princípios básicos e faça avaliações à medida que seguir
adiante."
Apesar de estar do seu lado, Bruce reclamou do fato de a
opinião do conselho ter tanto peso na vida de sua família.
Andrea explicou que o conselho era uma realidade da vida
que não podia ser evitada. "É assim que funcionamos."
Andrea telefonou então para Carol e compartilhou suas
apreensões. Carol foi compreensiva e mostrou-se neutra a
respeito da decisão. Andrea se sentiu grata pelo fato de Carol
não ter tomado partido, pois qualquer pressão só poderia
trazer à tona a tendência excessivamente protetora de
Andrea. (Seu medo de molestadores de crianças era tão
grande que ela nunca deixava James ir sozinho a um banheiro
público; quando Bruce perguntou a Andrea quando ela
pretendia permitir isso, ela respondeu, brincando, que isso
aconteceria quando ele se formasse no ensino médio ou
conquistasse faixa preta no caratê.)
Carol lhe disse que três famílias estavam sendo cogitadas para
o programa, que seria um piloto para um novo programa cujo
nome provisório era Unexplained Mysteries (Mistérios
inexplicados).
Haveria uma criança do Colorado e outra da Flórida, mas
James era a única com uma história "militar".
Após muitos telefonemas nas semanas seguintes — de Carol
para Andrea, de Andrea para Carol, de Shalini para Andrea -,
todas as condições de Andrea foram aceitas. Não seriam
usados sobrenomes no programa, e a cidade de Lafayette não
seria mencionada.
Duas outras histórias talvez fossem usadas no programa, mas a
de James seria a mais persuasiva.
No início de maio, depois de James completar 4 anos, Shalini,
a produtora do programa, foi visitar a família Leininger. Ela
estava fazendo um tour, visitando os meninos no Colorado, na
Flórida e em Louisiana. Ela era jovem e bonita, e no contexto
de uma decisão na qual os sentimentos e os impulsos
desempenhavam um papel tão importante, as "impressões"
tinham grande valor. Andrea, Bruce e, o mais importante,
James gostaram dela.
O impacto total do que estava prestes a empreender ainda não
havia atingido a família Leininger. Não era o fato de o caso ir
a público ou mesmo de aparecer em cadeia nacional; era
apenas essa mulher jovem e meiga que acreditava em
reencarnação; ou seja, ela acreditava em James.
Passaram juntos uma única tarde, mas foram algumas horas
plenas. Shalini fez perguntas a James a respeito de sua
história, e ele falou sobre o Corsair. Ela pediu ao menino que
lhe mostrasse a fotografia de um Corsair, então ele pegou um
dos livros de Bruce e selecionou o Corsair.
— Este é um Corsair — disse ele. — Eles costumavam furar
os pneus o tempo todo! E sempre queriam virar à esquerda
quando decolavam!
James nunca dissera isso antes, nunca fornecera as
características do avião. Andrea ficou muito agitada. James
acabara de ter uma lembrança de uma vida passada diante de
uma pessoa que não era membro da família. Ele as tivera na
presença de Jenny e Bruce, mas isso era diferente,
significativo, o que foi reconhecido por Shalini. As
lembranças de James podiam ressurgir a qualquer momento,
desde que tivessem o incentivo adequado. O ocorrido trouxe à
tona um novo tema para a conversa da tarde. Naquela noite,
quando Bruce chegou em casa, foram jantar no restaurante
favorito de James, Tsunami, onde ele comeu seu prato
predileto: sushi.
Shalini já tinha sua história principal para o programa. Em
sua opinião, James era de fato autêntico.
Em seguida, ela pegou o avião para visitar outra família, na
Flórida, outro menino, e verificar outra história.
CAPÍTULO DEZESSETE
Em abril de 2002, logo depois de seu aniversário de 4 anos,
James pegou sua velha cadeirinha para automóvel na garagem
e arrastou-a até o armário do escritório de Bruce, montando-a
em uma caixa de arquivo de plástico. Em seguida, pegou um
brinquedo educativo que tinha um teclado e Bruce ajudou-o a
pendurá-lo bem alto sobre a parte da frente da velha
cadeirinha do carro. James também conseguiu um painel de
um carro de brinquedo que tinha um pequeno fone acoplado
e inseriu-o diretamente na frente de sua invenção. Essa era
sua cabine de pilotagem. James encontrou ainda um velho
capacete de construção civil e ajustou-o, de maneira que se
tornasse seu capacete de piloto. Algumas bolsas velhas de lona
e uma mochila se tornaram seu pára-quedas.
James perambulava pelo escritório enquanto Bruce estava
trabalhando, abria a porta do armário, amarrava o
equipamento, colocava o capacete, subia na cadeirinha do
carro e fechava a porta atrás de si. Bruce ouvia então a
decolagem: "VRUUM! VRUUMMMM! VRRRRRR!"
Ele ouvia o combate através da porta: "Entendido... Zero a seis
horas... Atingido!"
Depois de algum tempo, a porta abria-se de repente e James
entrava tropeçando e caindo. Na primeira vez que Bruce viu
isso acontecer, pensou que o filho tinha caído. Mas James
simplesmente se levantou, sacudiu a poeira, e quando Bruce
perguntou o que estava acontecendo, ele respondeu: "Meu
avião foi atingido e eu estava saltando de pára-quedas."
Era engraçado, mas ao mesmo tempo sinistro.
James já tinha deixado os pais abalados em um show aéreo na
cidade quando subira na cabine do piloto de um Piper Club,
pegara o capacete de proteção e o colocara com uma
arrepiante familiaridade. Bruce estava ocupado filmando
outra cena para um vídeo da família e não viu o que o filho
fez, mas ouviu Andrea gritar: "É isso! É isso!"
— O que é? O que está errado?!
— É isso! — repetiu Andrea, apontando para James, que
estava colocando o capacete. — É isso que ele faz quando
entra no carro! Oh, meu Deus, depois que ele afivela o cinto
de segurança, ele coloca o fone de ouvido, exatamente como
um piloto!
Essa era a rotina que ela observara repetidamente no carro, na
qual James imitava os movimentos de se acomodar em uma
cabine de pilotagem.
Até mesmo os Blue Angels ficaram espantados com James. No
show aéreo em que ele os conheceu, quando tinha 3 anos,
perguntaram a James o que ele queria ser quando crescesse. A
maioria dos meninos responderia automaticamente um piloto
Blue Angel, mas James foi um pouco mais específico:
— Quero ser piloto do Super Hornet F-l8 e depois piloto Blue
Angel na posição de vôo número 4.
Não era exatamente a ambição típica de um menino de 3
anos.
Nesse meio tempo, Carol, Andrea e Shalini realizavam sessões
diárias para a filmagem do programa de julho do 20/20. As
condições foram aceitas: sobrenomes e nomes de cidades não
seriam mencionados, tampouco seriam fornecidas indicações
facilmente identificáveis. Shalini enviou de presente a James
uma miniatura de um Corsair. Ele logo destruiu a hélice do
avião simulando uma queda. James ficou emocionado.
Bruce, por sua vez, estava vivendo um dilema duplo. Por um
lado, o verdadeiro motivo para seu intenso interesse pelo
Natoma Bay seria revelado aos veteranos — ou seja, que ele
estivera acompanhando os pesadelos do filho e que a idéia do
livro surgiu como uma reflexão posterior. Apesar da omissão
de todos os nomes, os veteranos saberiam a verdade. Nesse
estágio, ele não conhecia pessoalmente qualquer dos
veteranos nem traíra a confiança deles em nenhum aspecto
importante, e embora ainda pudesse alegar uma inocente
duplicidade, Bruce sentiu uma pontada de remorso.
Havia, contudo, outro dilema, algo ainda mais intenso, e
Bruce precisava tomar uma decisão. Já que participariam de
um programa em cadeia nacional, Bruce teria de dar a
impressão de que acreditava na teoria da reencarnação. Mas
ele continuava a não acreditar naquilo. Na realidade, sua
posição era exatamente contrária. No entanto, que mal havia
em parecer concordar, ficar quieto e deixar que os
profissionais da tevê chegassem às próprias conclusões?
Talvez eles mesmos acabassem confirmando ou
desmascarando a história. Afinal, algo ou alguém teria de
desvendar o caso.
Diante disso, Bruce fez um pacto consigo mesmo, prometendo
manter suas dúvidas fora do programa, enquanto deixava que
Andrea defendesse o outro ponto de vista. Isso fazia com que
ele se sentisse um pouco desonesto.
Em meio à animação e aos preparativos para o 20/20, Bruce
ainda tinha outras preocupações mais urgentes.
Seu período na empresa estava quase terminado. Naquele
verão, três empresas haviam se mostrado interessadas em
comprar a OSCA, que estava crescendo muito rápido. Em um
ano, o valor das ações da empresa tinha mais do que
duplicado. Durante todo aquele período, Bruce, junto à
equipe executiva, participou de reuniões secretas e silenciosas
com a Halliburton, a Weatherford e a BJ Services,
examinando a contabilidade, respondendo a ofertas iniciais,
ajustando números, tentando proteger os interesses dos
trabalhadores e dos acionistas.
Finalmente, o negócio foi fechado: a OSCA foi vendida para a
BJ Services, e uma nova e sinistra realidade instalou-se em
West St. Mary Boulevard. A maior parte da equipe executiva
foi dispensada, o que não representou surpresa alguma.
Afinal, essa sempre fora a intenção. Os pacotes de
indenização haviam sido bastante generosos. Bruce cuidara
dessa parte. Tudo correu como planejado. Mas, mesmo assim,
a dura realidade de estar mais uma vez desempregado foi uma
ducha de água fria.
Bruce continuou a ir ao escritório, certificando-se de que
todos os benefícios para a equipe executiva tinham sido
distribuídos, tomando medidas para que a transição de uma
equipe administrativa para outra ocorresse sem problemas.
Andrea foi acometida pelo pânico. Seu marido estava
desempregado. Independentemente da carteira de ações mais
valorizada, do cheque polpudo da indenização e do fato de ele
ter sido contratado exatamente para cuidar da venda da
companhia, a realidade era que Bruce estava desempregado. E
essa realidade conduzia inexoravelmente à outra maldita
ameaça. Lafayette era uma cidade pequena. A perspectiva de
outro cargo de alto nível na área de recursos humanos ficar
disponível nos arredores era pequena. Havia, por conseguinte,
a possibilidade concreta de que a família Leininger tivesse de
se mudar de novo. Para Andrea, essa era uma idéia
impossível.
Até mesmo devido ao ritmo acelerado da família, o verão de
2002 foi agitado. O filho mais velho de Bruce, Eric, estava se
formando na Virgínia Tech. Toda a família foi de avião para a
cerimônia, e durante o vôo James causou forte impressão no
piloto por causa de seu profundo conhecimento de uma
cabine de pilotagem e de seu entusiasmo pelo vôo.
Em meio a tudo isso, Bruce precisou se submeter a uma
operação de hérnia dupla, depois da qual teve de ir de carro
para Dallas. Jen e Greg estavam dando uma grande festa para
comemorar os estágios finais da adoção de sua filha, Ainsley.
Bruce tinha saído do hospital havia apenas dois dias, mas teve
de viajar de carro. Andrea dirigiu os quase 650 quilômetros
até Dallas com Bruce reclinado no banco do passageiro,
segurando bolsas de gelo.
Ao mesmo tempo, a equipe do 20/20 queria fazer uma
filmagem preliminar de James em um museu de aviões
antigos. Dessa forma, depois da festa em homenagem a
Ainsley, a família pegou o carro e foi para Galveston — cerca
de 500 quilômetros de Dallas —, onde, no dia 29 de junho,
filmaram James no Lone Star Flight Museum. James deu a
volta em um Corsair recauchutado, girou a hélice, tocou as
rodas e inspecionou com surpreendente familiaridade todas as
partes do avião, que, ao lado dele, eram gigantescas.
James ficou muito sério enquanto realizava a inspeção
profissional que um piloto faz na aeronave antes de um vôo.
(Bruce mostrou-se hesitante o tempo todo, um espectador,
com medo da viagem de volta de 380 quilômetros para
Lafayette na estrada interestadual — um pesadelo
sacolejante.)
A equipe do 20/20 filmou durante o que pareceu uma
eternidade um menino de 4 anos rodeando um Corsair. James
chamou a atenção para o gancho traseiro, o qual, disse ele,
claramente indicava que se tratava de uma aeronave naval.
Somente os aviões da Marinha tinham ganchos traseiros
destinados a prender o cabo de retenção quando aterrissavam
em um porta-aviões. Também chamou a atenção para os
pneus vulneráveis, que recebiam muita pressão quando
pousavam em um porta-aviões com a pista quente. Eles
tinham a tendência de estourar — outro detalhe fascinante
que Shalini Sharma confirmou mais tarde com um historiador
naval.
Menos de uma semana depois, Andrea ficou emocionada.
Shari Belafonte ia visitá-la! A filha de Harry Belafonte! O
conselho inteiro estava emocionado, porém ninguém estava
mais feliz que Bobbi, que simplesmente adorava Harry
Belafonte. Shari era o talento que realizaria a entrevista ao
vivo para o programa 20/20.
Durante dois dias, Andrea tentou fazer antecipadamente tudo
que era possível. Limpou e poliu, como um soldado se
preparando para uma inspeção. Deixou a postos um grande
jarro de café, bem como uma enorme bandeja de folheados.
Encomendou quentinhas e salada de macarrão para o almoço
em uma empresa do bairro que fornecia refeições, marcando a
entrega para as 11h30.
Às 8h do dia 2 de julho, a equipe chegou à casa da família
Leininger. Eram cinco pessoas: um técnico de som, um
técnico de iluminação, dois câmeras e a produtora — Melissa.
Todos tinham por volta de 30 anos e exibiam um
comportamento muito profissional. Examinaram a casa em
busca dos melhores ângulos e tais para a câmera. Em seguida,
começaram a mudar a mobília de lugar, retirando tudo do
solário...
Oh, céus!, pensou Andrea, corroendo-se por dentro. E se eu
não tiver limpado o solário adequadamente? E se
encontrarem bolos de poeira ou, Deus me livre e guarde, uma
barata morta?!
Melissa explicou que Shari e Carol Bowman estavam em
Girard Park, perto do campus da University of Louisiana,
filmando outros locais e fazendo mais entrevistas, mas que
dali a pouco chegariam.
Por fim, pontualmente às 9h, a campainha tocou.
Shari Belafonte, deslumbrante com o cabelo dourado e
macacão de vôo verde-oliva, parecia irradiar glamour. Seu
sorriso era como um raio de sol, e James simpatizou
imediatamente com ela. Shari sentou-se no chão com o
menino e brincou com os aviões, e James explicou por que
nenhum deles tinha hélice.
Em determinado momento, o telefone tocou. Andrea pôde
ver no identificador de chamadas que era sua irmã Jen, de
modo que pediu a Shari que atendesse. Jenny ficou exultante
e disse: "Estou me sentindo como se estivesse falando com
Mick Jagger ou algo assim."
Andrea achou que Carol parecia uma terapeuta: calma e
tolerante. Era uma mulher de meia-idade e vestia um
conjunto verde-oliva. Tinha a voz suave, o sorriso agradável e
não parecia nem um pouco ser uma pessoa crítica.
O calor estava incomodando Carol e Shari, afinal, estavam no
sul, em pleno verão. Elas pediram água gelada enquanto
Melissa preparava a filmagem.
Andrea se comportava como uma animada beldade sulista,
servindo bastante comida e bebida, tirando inúmeras fotos
dessa experiência, que só acontece uma vez na vida,
certificando-se de que James estava se comportando bem, de
que ela não parecia ter 1 milhão de anos e de que ela não
parecia gorda! O tempo todo um pensamento passava pela
cabeça dela: Shari Belafonte está em minha casa!
O almoço foi entregue pontualmente, mas mandaram por
engano algumas embalagens extras de salada de macarrão. Por
sua vez, Bruce estava um pouco desnorteado com toda a
confusão e um pouco enfraquecido por causa da recente
cirurgia.
Nesse meio tempo, o eletricista-chefe instalou as luzes, os
câmeras prepararam o equipamento e o técnico de som
ajustou os microfones e gravadores. Melissa explicou como
seria aquele take específico. Quando não saía do jeito que ela
queria, gritava "Corta!", e filmavam de novo.
Em determinado momento, Shari perguntou se Andrea e
Bruce acreditavam em reencarnação ou em almas que
voltavam à Terra, mas logo depois disso o técnico de som
informou que a bateria do gravador tinha acabado. Ele
colocou uma nova bateria, mas aí houve um problema com o
carregador, e não conseguiram gravar.
Melissa pediu a Shari que fizesse a pergunta novamente, mas
o parafuso que segurava a câmera no tripé quebrou e ela
estatelou-se no chão. Tentaram de novo, e uma vez mais
aconteceu um defeito. Logo em seguida, ouviram o som da
televisão no aposento ao lado, de modo que todo mundo
sentiu um arrepio gelado e assustador. Exceto pelo barulho da
televisão a distância, o silêncio era total. Finalmente, a
produtora disse: "Vamos perguntar outra coisa." Isso evitou
que Bruce respondesse à pergunta crucial a respeito de
reencarnação, algo que temia desde que haviam concordado
em gravar aquele programa.
A família Leininger passou pouco tempo com Carol Bowman,
mas ela lhes disse o que pensava. James era uma criança
encantadora, e os pesadelos estavam associados à realidade.
Os sonhos não eram fruto de sua imaginação e suas reações
eram completamente autênticas. Ela via Andrea como uma
mãe preocupada que se esforçava ao máximo para lidar com
um turbilhão desorientador. No entanto, Andrea era
receptiva à idéia de uma vida passada. Era uma pessoa cordial
e disposta a aceitar conselhos: "seja gentil com James", "não
tente forçá-lo a responder a perguntas", "deixe que ele se sinta
à vontade". "Se ele quiser falar, ótimo; mas não o pressione."
"Se ele não quiser ser entrevistado, não o force." Andrea não
precisava ser orientada, mas concordou com isso. Sua maneira
de encarar a experiência de James era igual à de Carol
Bowman. James era um milagre maravilhoso que chamavam
de vida passada.
Bruce? Bem, Bruce era outra história.
"Bruce", diria Carol Bowman mais tarde, "era muito hostil à
idéia de reencarnação. Isso estava muito claro. Ele não
acreditava na possibilidade. Na verdade, lutava contra ela."
De certa maneira, Carol lidou com Bruce do mesmo jeito que
lidou com James: ela o deixou em paz. Não tentou forçá-lo a
aceitar convicções. Ele teria de chegar sozinho às próprias
conclusões. Carol sabia que, quanto mais pressionasse, mais
ele resistiria.
De fato, Bruce estava tendo dificuldades com a certeza
obstinada de Andrea. Ela acreditava em toda aquela história
de vidas passadas, mas ele ainda estava envolvido até o
pescoço com a pesquisa sobre Jack Larsen. Ele queria uma
prova — algo que resistisse a uma verificação científica — de
que vidas passadas eram uma realidade. Além disso, Bruce
buscava algo tangível a respeito da experiência de seu filho.
Até então, tudo que ele tinha eram indicações
desconcertantes de que algo fora do comum estava
acontecendo, mas nenhuma prova do que efetivamente era.
Muitas pessoas pensavam como Bruce. No final, Shari
Belafonte achou que o caso era fraco demais para ir ao ar. Não
que ela não acreditasse nele, mas as provas eram insuficientes.
Pelo menos para o horário nobre.
"Na ocasião", relembraria mais tarde Carol Bowman, "não era
um caso realmente notável. As indicações eram boas, mas não
muito convincentes. Pelo que me lembro, era apenas outra
criança com pesadelos."
Como todos viriam a descobrir mais tarde, era cedo demais
para dizer qualquer coisa.
CAPÍTULO DEZOITO
Não foram os indecisos jornalistas ou mesmo os ambíguos
especialistas que levaram Bruce a continuar procurando uma
explicação confiável para os pesadelos de seu filho, e sim sua
própria relutância em abandonar a busca. Ele precisava saber
o que estava acontecendo com James. E tinha de saber por
meio de algo mais substancial do que um palpite, uma
intuição ou uma teoria fantasiosa.
Foi então que no dia 30 de abril de 2002 algo concreto
chegou: uma carta. Leo Pyatt cumprira o prometido.
Prezado Bruce,
Tenho o prazer de lhe informar que a reunião do esquadrão
VC-81 do Natoma Bay CVE 62 está confirmada. Ela será
realizada em San Diego, Califórnia, nos dias 8, 9, 10 e 11 de
setembro no Grant Hotel... Na realidade, nosso mímero está
diminuindo, mas ainda podemos apreciar esses encontros.
Leo Pyatt VC-81
CVE 62
Portanto, lá estava Bruce no dia 8 de setembro, voando mais
de 3 mil quilômetros em direção à San Diego, sentindo-se um
pouco tolo — um fã da Segunda Guerra Mundial de 53 anos
com segredos que queria tentar descobrir... e segredos que
queria guardar.
Como não conseguiu um quarto no U.S. Grant Hotel, onde o
encontro ocorreria, Bruce hospedou-se a cerca de 1
quilômetro dali, em um Holiday Inn. Deixou a bagagem no
quarto e pegou a pasta que continha seu gravador, pilhas
extras, blocos e várias canetas, além da lista de 18 nomes que
ele obtivera em todos os sites em memória dos veteranos: os
homens do Natoma Bay que haviam sido mortos em combate.
O U.S. Grant, com seu lobby majestoso e decoração de bom
gosto, pertencia a outra época. Fora construído em 1910 com
toda a pompa e o esplendor do estilo eduardiano. Durante a
Segunda Guerra, foi um dos elegantes refúgios para o pessoal
da Marinha que logo partiria para o combate. O Grant
guar¬dava importantes lembranças para os homens do
Natoma Bay, que haviam passado por San Diego mais de meio
século antes. O hotel era o símbolo de um mundo elegante e
confortável, bem como da juventude deles.
Bruce perguntou ao concierge onde era o encontro, e o
homem apontou para uma placa: Sala de Operações do
Natoma Bay, Segundo Andar.
Eu me senti como se estivesse pisando em solo sagrado. Todos
eram, sem dúvida, veteranos, nenhum tinha menos de 75
anos, mas seus olhos continham a luz inconfundível de algo
excepcional. Era o brilho de homens que sabiam exatamente
quem eram e o que tinham feito. Brincavam e implicavam
uns com os outros com a familiaridade de homens que tinham
vivido juntos uma versão do inferno. Eles haviam sido postos
à prova.
Alguns frágeis veteranos estavam conversando perto da porta
e me cumprimentaram demonstrando simpatia. Eles me
aceitaram aberta e inocentemente, como fariam com um
viajante sedento.
A sala estava ocupada com mesas cobertas de pôsteres, mapas
e fotografias — os mais diversos tipos de recordações, diários
e documentos —, um arquivo do Natoma Bay. Um homem
cordial com o cabelo completamente branco se aproximou de
mim enquanto eu folheava o material que estava na mesa e se
apresentou.
— Sou John DeWitt — disse ele, estendendo a mão.
Eu sorri, pois estivera tentando entrar em contato com John
DeWitt havia meses. Ele era o historiador naval e secretário
da Natoma Bay Association. E, como ficou evidente, como
tantas coisas naquela sala de operações improvisada das quais
eu apenas ouvira falar — e das quais duvidava —, ele era real.
— Tentei falar com você várias vezes — comentei. Uma
delicada reclamação.
Ele assentiu com a cabeça. Sabia que pessoas anda¬vam
tentando entrar em contato com ele.
— Estou aposentado, você sabe. Isso quer dizer que não fico
sentado esperando que alguém me telefone.
— Então, por que você não tem uma secretária eletrônica?
Ele fez uma pausa, avaliando, suponho, se eu merecia ou não
uma resposta sincera.
— Bem, Bruce — suspirou John, depois de ter decidido a meu
favor—, quando me aposentei, disse a mim mesmo que jamais
deixaria um telefone governar minha vida. Se uma pessoa
realmente quiser falar comigo, ela ligará novamente.
Foi um momento de aprendizado para mim; ele me revelou
muita coisa a respeito de valores e prioridades daquele grupo
social subestimado. A vida estava bem diante deles, e eles não
ficavam sentados, ansiosamente esperando que alguém
ligasse.
— O que o traz ao nosso modesto reencontro? —perguntou
ele.
Contei então a história falsa, do homem imaginário na cidade
onde eu morava que falara sobre o Natoma Bay, e repeti a
mentira inofensiva de que eu estava pensando em escrever
um livro a respeito do navio — mentira essa que estava
começando a queimar meus lábios.
Não que tudo que eu falei tenha sido falso. Eu disse a John
que tinha uma lista de 18 homens que morreram em combate
enquanto serviam no navio, e que eu gostaria de saber mais
coisas a respeito deles. (Um deles, em Particidar. Shalini
Sharma, a produtora do 20/20, me informara que um amigo
dela do Center for Naval History encontrara o registro de um
tal de John Larsen que era piloto naval, e esse nome era bem
próximo de Jack Larsen.)
Por razões óbvias, não mencionei os pesadelos de meu filho
nem a investigação que eu estava fazendo para tentar provar
que tudo aquilo era falso. Neste caso, eu achava que o fim
justificava os meios, embora eu não achasse nada de errado
em minha conduta.
John DeWitt, acreditasse ou não na minha história, me
concedeu o beneficio da dúvida. O navio certamente merecia
um livro. Afinal de contas, ele era o historiador e sabia tudo a
respeito das batalhas travadas e das baixas sofridas pelo
Natoma Bay.
Em seguida, eu trouxe à tona o nome da pessoa na qual estava
realmente interessado: Jack Larsen. Disse que estivera
tentando encontrá-lo. Queria saber que fim ele levara. Leo
Pyatt me informou que o vira ir embora um dia e ele nunca
mais voltou. Parecia que fora dado como desaparecido, e eu
não tinha certeza se descobriria o que afinal aconteceu depois
que ele deixou o navio. Somente os membros da família
tinham acesso aos registros militares e pessoais desses
veteranos.
DeWitt inclinou a cabeça e olhou para mim com uma
expressão meio interrogativa.
— Sabe de uma coisa, Bruce? Acho que ele está na lista dos
membros de nossa Associação.
Ele me conduziu a uma das mesas da sala, remexeu em uma
pilha de documentos, retirou dela um maço de papéis
amassados e começou a analisá-lo. Várias páginas depois,
parou com um sorriso nos lábios.
— Eu estava certo, aqui está ele — disse John, mostrando-me
a página que tinha o nome de Jack Larsen.
Em seguida, ele me perguntou se havia algo errado.
Aparentemente, eu empalideci.
— Você está se sentindo bem?
Talvez eu tenha dito que sim, não lembro; eu estava naquela
névoa temporária que embaça a memória. E tentava aceitar o
fato de que Jack Larsen, o esquivo personagem cuja morte eu
estivera tentando documentar, não apenas estava vivo, mas
morava em Springdale, Arkansas.
Naquele momento, enquanto eu tentava absorver essa última
revelação, Leo Pyatt aproximou-se da mesa e se apresentou.
Depois dos cumprimentos, eu disse que John DeWitt acabara
de bater na minha cabeça com um martelo. Ele me mostrou o
nome de Jack Larsen na lista da associação. Ele ainda estava
vivo!
O que eu disse não pareceu perturbar Leo. Não ficou nem
mesmo surpreso. Aparentemente, eu interpretara errado o
primeiro comentário que ele fizera, dizendo que Larsen tinha
ido embora um dia e ninguém voltara a vê-lo. O que Leo, na
verdade, tinha intenção de dizer era que Larsen havia
literalmente pego o avião e ido embora do Natoma Bay para
participar de outra missão, o que não significava
necessariamente que ele tivesse morrido.
Tudo aquilo estava quase além da minha capacidade de
assimilação. Eu estava no local havia menos de meia hora e
encontrara uma grande peça do quebra-cabeça, algo que me
mantivera acordado nos dois anos anteriores. E ela estava na
minha cara o tempo todo.
Tive de me acostumar às novidades. Havia também a questão
de James M. Huston, o nome que sempre se destacara na lista
dos 18 falecidos. Nome ao qual eu sempre resistira. Eu havia
descartado Huston como um candidato para a minha
pesquisa. Tinha os meus motivos, mas, pensando bem,
nenhum deles era muito bom. Eu simplesmente não queria
que ele fosse o cara. No entanto, agora eu precisava repensar
aquele nome...
Tratava-se, na verdade, de um problema em família. Andrea
se dera conta de que a solução poderia estar no nome de
Huston muito antes do encontro. Ela viu o "James", de modo
que, para ela, a conexão era evidente. Mas ela não conseguiu
fazer com que Bruce percebesse a mesma coisa. Ele estava
dedicado à sua primeira escolha, Jack Larsen. Ele ouvira as
palavras da boca do próprio Leo Pyatt: Larsen foi embora um
dia e nunca voltou.
Bruce passou o restante dessa primeira noite do encontro
tentando obter o maior número possível de informações para
reiniciar sua pesquisa, mas foi em vão. O local estava cheio de
militares idosos da Marinha e da Força Aérea relembrando o
que tinham passado no oceano Pacífico, mas não era isso que
Bruce estava procurando. É bem verdade que os veteranos
tinham vívidas recordações, mas não enxergavam a realidade
mais ampla. À semelhança de todos os soldados, eles
observavam a guerra a partir da perspectiva de uma
trincheira, mesmo que estivessem em um porta-aviões.
O Natoma Bay, como todos os navios, era fortemente
compartimentado. Os grupos da Força Aérea não interagiam
com a tripulação do navio e vice-versa. O mesmo ocorria
entre os esquadrões: os membros do VC-63 conheciam os
outros membros do VC-63, mas não conheciam os membros
do VC-9 ou do VC-81. Eram compartimentos à prova d'água.
Eles se lembravam dos caras da própria seção, mas, se não
tinham nenhum assunto a tratar com alguém, eles não se
misturavam. Era assim que tudo funcionava.
Bruce se viu examinando os registros, procurando relatórios
de combate e tentando obter informações relevantes dos
veteranos, e embora eles estivessem receptivos, simplesmente
não conseguiram resgatar suficientemente as lembranças para
satisfazê-lo.
— Não o conheci, não era do meu esquadrão — era a resposta
habitual. Ou, então, "Ele não aparece nas reuniões".
Esse era Jack Larsen. Por que ele não ia aos encontros?
— Não sei — respondeu DeWitt. — Sempre enviamos os
convites, mas ele nunca aparece. Alguns caras não vêm. Não
gostam de recordar.
Tentou então seguir esse novo fio, o que conduzia a James
Huston. Mas Bruce não acreditava nele. Teria vasculhado mil
relatórios de missões de combate para descobrir exatamente o
que acontecera a Huston. E Bruce viria a descobrir que
Huston nem mesmo morrera em Iwo Jima. Fora morto em
uma missão a algumas centenas de quilômetros de distância,
em um lugar chamado Chichi-Jima. E ninguém vira seu avião
ser abatido. Mas, nesse estágio, Bruce não estava disposto a
seguir essa pista. Por motivos tanto explícitos quanto
intuitivos, ele não queria acreditar que Huston fosse o homem
que estivesse procurando. Larsen — esse era o nome que o
filho lhe fornecera. Esse era o nome que aparecia nos
pesadelos. James nunca mencionara Huston, e esse era o
fundamento lógico ao qual Bruce se agarrava. Ele permaneceu
perdido em uma névoa, tendo o nome Jack Larsen como o
dado concreto com o qual podia contar.
Escoltado por seus novos amigos, Leo Pyatt e John DeWitt,
Bruce ajudara a reunir os veteranos, levou-os a falar, mas não
demorou muito para que eles ficassem cansados, começassem
a bocejar e fossem embora.
Bruce voltou para o hotel em um estado de extrema agitação,
confusão e nervosismo. A primeira coisa que fez foi telefonar
para casa.
Andrea não ficou surpresa ao ser informada a respeito de Jack
Larsen. Nem mesmo ao saber que ele estava vivo e morava em
Arkansas. Ela ficou feliz porque talvez fossem finalmente
conseguir explicar as coisas e até mesmo contente porque o
dinheiro da viagem não fora desperdiçado.
— Nossa, como estou feliz por você ter ido à reunião! —
exclamou.
Em seguida, Bruce falou a respeito de James M. Huston, e ela
demonstrou espanto ao telefone.
— Oh, meu Deus!
Bruce estava menos animado, e não conseguiu entender de
imediato o que ela quis dizer.
— Ouça, já topamos antes com esse nome — disse ele.
— Nunca concordamos a respeito dele. O caso não está tão
claro e...
— Não! — exclamou Andrea, praticamente berrando.
— Repita o nome.
— James M. Huston Jr.
— Você ainda não percebeu?.
— Percebi o quê?
— Júnior, Júnior! Nunca tínhamos visto antes esse "Júnior".
Isso faz do nosso James... James III.
Era a assinatura na parte inferior de todos os desenhos que o
pequeno James Leininger fazia de batalhas aéreas e navais:
James 3.
Andrea estava ansiosa para desligar o telefone e convocar o
conselho, mas primeiro queria convencer Bruce a seguir
aquela pista, a juntar o maior número de documentos que
conseguisse carregar e telefonar para Jack Larsen, agora que o
tinham encontrado.
— Hoje está muito tarde; vou telefonar de manhã. Nesse meio
tempo, não fique toda animada a respeito de Huston. Ele pode
não ser quem estamos procurando.
— É ele, eu tenho certeza — disse Andrea a Bruce, tentando
não explodir de entusiasmo.
— Os registros não são claros — insistiu Bruce.
— Bruce!
Ele recorreu ao fato de que ninguém no encontro jamais
soubera o que acontecera a Huston. Ninguém efetivamente o
vira morrer.
Além disso, a verdade é que Bruce era teimoso. Ele ficara cego
pela declaração anterior de Leo Pyatt de que Larsen tinha ido
embora em um determinado dia e ninguém jamais o vira de
novo. Ele considerou isso uma prova irrefutável de que o caso
estava solucionado.
Mas ele estava cedendo. Suas convicções estavam começando
a ser abaladas, alvejadas pelos franco-atiradores das vidas
passadas. Ele estava ficando um pouco cansado de defender
sozinho essa causa. Mesmo assim, ainda tinha uma carta na
manga.
— E o Corsair? — perguntou, quase gritando. Andrea não
soube responder.
Ele insistira nesse ponto crucial. Nenhum Corsair jamais
decolara do Natoma Bay; todos os veteranos presentes no
encontro concordaram unanimemente quanto a isso. Huston
estava pilotando um FM-2 Wildcat no dia em que morrera, e
não um Corsair, como afirmava James.
E não havia testemunhas oculares de sua morte, de modo que
não sabiam se ele tinha sido derrubado da maneira como
James descrevia. Ele pode simplesmente ter ficado sem
combustível.
No que dizia respeito a Bruce, a coisa toda ainda era um
mistério.
CAPÍTULO DEZENOVE
Eu estava preocupada com Bruce. Ele voava de volta para casa
no primeiro aniversário do atentado terrorista — 11 de
setembro. Ele não mencionara o fato, de modo que também
não falei nada, mas, quando o avião aterrissou em Houston,
suspirei aliviada. Um fanático maluco talvez tentasse explodir
um avião que estivesse indo de San Diego para Houston, mas
imaginei que nenhum terrorista com um mínimo de auto-
respeito se daria ao trabalho de destruir um avião teco-teco
indo de Houston para Lafayette.
Nesse meio tempo, o relato que Bruce fez da reunião foi uma
grande notícia para nós, meninas. O conselho assimilou todas
as informações, analisou-as, deu a elas sua interpretação
pessoal, suas melhores idéias, seus palpites, e depois falamos...
simplesmente não paramos de falar. Era impossível nos fazer
calar. O telefone não parou por um único instante; alguém
sempre tinha outra idéia, outra opinião. Ah!, e todas tínhamos
milhares de idéias e opiniões! E houve também um monte de
momentos "Bem que eu te disse". Mas, acima de tudo,
estávamos loucas de curiosidade. Mal podíamos esperar para
ouvir as novidades de Bruce.
As notícias de San Diego causaram rebuliço na vida de
Andrea. As informações eram abundantes. Como é possível
aceitar uma resposta definitiva para algo em que depositamos
nossas energias sem pensar um pouco, sem um momento de
reflexão?
Isso era tudo?
Jack Larsen estava vivo!
Não, claro que não; ela tinha de esperar pelo momento final.
Tinha de esperar até Bruce sentar ali na sala, frente a frente,
pronto para ser interrogado. Era angustiante ter tantas
revelações e depois se comportar como se nada tivesse
ocorrido.
Mas era exatamente isso o que ela deveria fazer. Andrea tinha
um filho e uma vida, e pessoas dependiam das tarefas diárias
que eram sua responsabilidade.
Além disso, como sempre, a vida era complicada. Andrea era
uma pessoa comum. Ela podia dar a impressão de ser uma
fortaleza, mas um grande número de pequenos defeitos estava
oculto por aquele sorriso luminoso.
Apesar de a presença de Bruce na reunião aparentemente ter
sido produtiva, Andrea sentiu uma pontada de inveja por ter
sido deixada para trás. Por que seu marido deveria realizar
uma elegante viagem "investigativa" de quatro dias à
Califórnia enquanto ela tinha de ficar em casa e... lidar com
os problemas do dia a dia? Um pequeno e desagradável
ressentimento.
Logo, ela procurou agradáveis compensações. Andrea sempre
fora capaz de enxergar o lado positivo de qualquer situação.
Na ausência de Bruce, ela teve James todinho para si.
Comportaram-se como duas crianças que se encontravam
para comer junk food e fazer travessuras. Saíram para almoçar
comida mexicana e assistiram a Lilo & Stitch no cinema. E,
enquanto Bruce insistia no ritual do jantar de família à mesa,
Andrea podia se soltar um pouco quando só tinha de preparar
a refeição para James e para ela. Preparou uma "noite de café
da manhã no jantar", com ovos mexidos e torrada. E pôde
preparar o quiche, comida que Bruce considerava efeminada,
que seu filho comeu e realmente apreciou. À noite, James
dormia com ela. De manhã, Andrea tinha uma cama a menos
para arrumar.
Toda a rotina da casa assumiu um ritmo relaxado e passou por
uma espécie de desaceleração, de afrouxamento.
James teve permissão para convidar seu melhor amigo, Aaron
Brown, para ir brincar com ele no quintal. Eram colegas de
turma do pré-jardim da Asbury United Methodist Church.
Andrea adorava a escola; ficou encantada imediatamente
quando viu James saltar do carro, jogar os braços para fora
como asas e depois correr, pular e dar voltas na calçada,
entrando em seguida na sala de aula.
Ele fizera muitos amigos na escola, mas nenhum tão próximo
quanto Aaron Brow, um anjinho louro.
De tempos em tempos, Andrea também convidava outra
colega dele, Natalie St. Martin, uma moreninha graciosa, para
se juntar a eles no quintal. A mãe de Natalie, Lynette, se
tornara amiga de Andrea. As duas mães se sentavam no
terraço bebericando café enquanto as crianças corriam pelo
jardim.
Mas era quando James estava com Aaron que Andrea
idealizava as brincadeiras realmente interessantes para os
meninos. A preferida era o ataque aos brinquedos quebrados.
Andrea enchia um balde com pequenas bolas de encher
cheias de água e depois o arrastava até o quintal. Os meninos
ficavam esperando no patamar da escada da garagem de dois
andares. Eles carregavam o balde para cima, para a
plataforma, e depois atiravam as bolas cheias de água sobre os
restos dos brinquedos escolhidos como alvo. Um cruzador foi
atingido! Era uma brincadeira barulhenta e emocionante.
Andrea observava a uma distância para manter-se seca e
segura enquanto os meninos corriam, gritavam, guinchavam e
jogavam as bombas; duas crianças de 4 anos brincando felizes.
Tudo era muito inocente. Só que algo triste contrariava toda
aquela alegria. Carol, a mãe de Aaron, fora diagnosticada com
câncer e estava se submetendo a sessões brutais de
quimioterapia no Our Lady of Lourdes Hospital, que ficava
próximo. Andrea empenhou-se em proporcionar a Aaron
momentos alegres para que ele se distraísse e esquecesse um
pouco o que estava acontecendo na outra esquina da West St.
Mary Boulevard.
Quando as bolas se esgotaram, Andrea os chamou para
almoçar: salsichas empanadas, macarrão com queijo, ou
sanduíches de queijo quente e sopa; frutas, legumes e
verduras sempre faziam parte da refeição. Todos davam as
mãos, oravam e falavam sobre a escola ou assuntos de criança
— qualquer coisa que passasse pela cabeça dos meninos.
Depois eles voltaram para o bombardeio.
No final da tarde, o quintal era um arco-íris de pedaços
multicoloridos, e James e Aaron ficavam corados e ofegantes.
Eles entravam, comiam biscoitos, bebiam leite e assistiam a
desenhos animados na televisão. Os dias eram sempre
agradáveis e divertidos — até que o pai de Aaron ia buscar o
filho para levá-lo para casa. A casa da família Leininger
tornara-se um santuário para Aaron e, dia após dia, James e
Andrea mantinham a cabeça dele afastada da dura realidade
em seu lar.
A mãe de Aaron faleceu três meses depois de receber o
diagnóstico.
As contas eram responsabilidade de Andrea, e ela cuidava
disso com a perspicácia de um auditor da Secretaria da
Receita Federal. Ela ia às compras com uma calculadora e
uma bolsa cheia de cupons de desconto. (Os jornais da cidade
não tinham os melhores cupons, de modo que Andrea pedia a
Bobbi que recortasse uma porção deles do Dallas Morning
News e enviasse para ela todas as semanas.) Bruce já estava
desempregado havia três meses, e o orçamento estava
apertado. Eles gastavam 7 mil dólares por mês apenas com as
coisas básicas: hipoteca, manutenção dos carros, seguro de
saúde, pensão para a ex-mulher e os filhos de Bruce. Andrea
ficava com 75 dólares por semana para gastar com comida. O
dinheiro da indenização da OSCA só duraria mais seis meses.
Quando ele acabasse... bem, não haveria outra escolha, Bruce
simplesmente teria de arranjar outro emprego. Ele planejava
abrir um negócio de consultoria no outono, mas Andrea
estava cética com relação à idéia.
A viagem a San Diego foi um grande sacrifício. Para que
Bruce pudesse comparecer ao encontro, tiveram de recorrer à
conta de seu fundo de emergência. Enquanto Bruce estava
fora, ela o visualizava hospedado em um hotel elegante,
saboreando jantares sofisticados enquanto ela e James tinham
de ficar em casa comendo ravióli enlatado.
Mas as meninas do conselho foram unânimes. Os homens do
Natoma Bay não estavam ficando mais jovens, e quando
morressem, as lembranças morreriam com eles, o que faria
com que a possibilidade de solucionar os pesadelos de James
também se extinguisse.
É claro que elas estavam certas, e a Andrea "pão-dura" e com
senso prático cedeu. Bruce tinha de ir. E, como ela constatou
mais tarde, ele achou ouro. Ele encontrou Jack Larsen!
Na manhã do segundo dia do encontro, depois de descobrir
que o homem estava vivo, Bruce telefonou para Jack Larsen
de seu quarto no Holiday Inn. Na ocasião, ele ainda estava sob
o fascínio de uma possível ligação entre Jack Larsen e James
— seu filho. Tinha de haver uma conexão, raciocinou. "Por
que outro motivo James nos teria fornecido o nome dele?"
No telefone, Bruce repetiu a história de que iria escrever um
livro e precisaria de todas as informações que pudesse obter
sobre o Natoma Bay, e Jack Larsen foi afável e cordial — não
poderia ter sido mais agradável. "Sem problemas", disse ele,
"venha ao Arkansas, quando estiver pela área. Terei prazer em
ajudá-lo."
Depois que desligou, Bruce caminhou até o Grant e
encontrou Al Alcorn, um dos tripulantes do Natoma Bay que
se tornara uma pessoa influente na associação. Foram até o
porto. Todos os veteranos estavam partindo em uma excursão
de barco que iria além da North Island Naval Air Station,
onde muitos pilotos da Marinha tinham treinado durante a
Segunda Guerra Mundial.
John DeWitt, Leo Pyatt e Al Alcorn, que se haviam nomeado
guias de Bruce na reunião, convidaram-no para se juntar a
eles, mas Bruce recusou o convite, alegando preferir passar
algum tempo na sala de operações e dar outra olhada nos
documentos.
Quando ficou sozinho com as pilhas de documentos, perdeu a
noção do tempo. Pulou refeições e inclinou-se sobre os
documentos desgastados, incompletos e frustrantes que tinha
diante de si. O material era suficiente para motivá-lo, mas não
para responder às suas perguntas. De qualquer forma, ele
estava na pista certa. Registros, documentos informativos —
provas! — eram sua especialidade. Não as especulações
esotéricas que surgiam em Dallas e Lafayette!
A lista das baixas que ele obteve da Battle Monuments
Commission (Comissão de Monumentos de Combate) estava
incompleta (na realidade, 21 homens do Natoma Bay haviam
morrido, não 18, e eles estavam distribuídos por três
esquadrões). Bruce não sabia que nomes pertenciam a cada
esquadrão, até que encontrou o material em San Diego. Um
dos membros da tripulação do navio também tinha falecido:
Loraine Sandberg. Dos pilotos, quatro homens do VC-63
haviam sido mortos: Edmund Lange, Eldon Bailey, Eddie
Barron e Ruben Goranson; cinco do VC-9: Clarence Davis,
Peter Hazard, William Bird, Richard Quack e Robert
Washburg; e 11 do VC-81: Adrian Hunter, Leon Conner,
Donal Bullis, Louis Hill, Walter Devlin, Edward Schrambeck,
Billie Peeler, Lloyd Holton, John Sargent, George Neese e
James M. Huston Jr., o único homem morto na batalha de
Iwo Jima.
James Huston Jr., o único homem morto em Iwo Jima! Isso
deveria despertar sua atenção.
Entretanto, em alguns momentos a mente de Bruce ficava
paralisada. Ele via algo bem diante de seus olhos, mas não
conseguia entender o significado. O nome James Huston só
era registrado dentro dos limites do que Bruce previamente
aceitara como verdadeiro. Ele precisava de provas.
Seu filho não mencionara Huston; só se referira a Jack Larsen.
Bruce ouvira o nome dos lábios de James: Jack Larsen.
Corsair. Ele se viu em um beco sem saída.
Mas não Andrea. Quando Bruce ligou, como em todas as
noites, para fazer um relatório do dia, ela sentiu o calafrio
gelado da clareza de uma resposta completa para a busca.
Eu sabia. Sabia instintivamente. Mesmo antes de ele irá
reunião dos veteranos. Desde que vi o nome pela primeira vez
na lista de baixas — eu sempre soube que era James Huston.
Não sou como Bruce. Quando li o livro de Carol Bowman,
soube que Huston era o "James" de quem meu filho se
lembrava. Eu não precisava de nenhuma prova ou
confirmação. Aceitei a explicação da vida passada como a
única que Jazia sentido, a única que prometia um resultado
tranqüilo para meu filho. James Huston soou familiar. E
quando Bruce telefonou de San Diego dizendo que ele fora o
único combatente morto durante a batalha de Iwo Jima, bem,
é claro que era James Huston. Ponto final. A busca tinha
acabado. Mesmo antes de eu saber do detalhe de que ele fora
o único morto nessa batalha, mesmo antes de tudo isso, juro
que lá no fundo eu sabia.
Nesse estágio, para Bruce, eram apenas nomes. Como se
estivesse olhando para nomes gravados em uma placa de
mármore, num monumento da Segunda Guerra Mundial.
Os registros mostravam que James M. Huston Jr. morrera no
dia 3 de março de 1945. Ele estava pilotando um FM-2
Wildcat, dando cobertura a uma missão de bombardeio
contra Chichi-Jima, a base de suprimentos situada a menos de
300 quilômetros de Iwo Jima.
Bruce ficou perturbado; era uma possibilidade. Mas sua
posição inflexível contra a reencarnação persistia: Huston
estava pilotando um Wildcat, não um Corsair! Ou ele não era
Huston, ou seu filho estava equivocado com relação ao avião.
Droga! Por que as coisas não podiam se alinhar
agradavelmente, como uma equação matemática? Por que
sempre tinha de haver essas complicações ilógicas?
Ainda assim, sua característica obstinação o levou a continuar
a investigar, superando, ao que parecia, as próprias objeções.
Ele não conseguia parar. Bruce era uma pessoa difícil.
Na reunião, ele encontrou um dos pilotos do VC-81, Ken
Wavell. Era um homem alto e magro, de fala mansa, que se
lembrava dos pilotos abatidos. Walter Devlin, por exemplo,
caiu na água perto de navio, mas não sabia nadar. Wavell
atirou uma bóia salva-vidas de seu avião, que estava
circulando o local, mas era tarde demais. Devlin se afogou.
Ele fora simpático, e Bruce pôde notar que falar naquilo ainda
incomodava Wavell, de modo que mudou de assunto.
— E o que você tem a me dizer sobre James Huston? —
perguntou Bruce.
— Ele era realmente um bom homem — respondeu Wavell.
— Por quê?
Wavell não se apressou em responder.
— Bem, muitos caras deixavam de ir em uma missão para a
qual haviam sido designados se outros quisessem ir no seu
lugar. Era permitido fazer isso. Mas Jim nunca fugia à sua
obrigação. Ele foi o primeiro a se apresentar como voluntário
para a missão daquele dia. Eu estava na sala de operações
quando o subcomandante convocou pilotos de caça para
escoltar os TBMs até Chichi-Jima. O local estava coberto por
baterias antiaéreas. Foi lá que o TBM de George Bush foi
derrubado em 1944. Era um lugar muito perigoso. O fogo
antiaéreo cobria cada centímetro do porto de Futami Ko, que
conduzia a Chichi-Jima. Mas Jim se apresentou como
voluntário.
Não que ele fosse imprudente. Earl Garrison, que era o
empacotador de pára-quedas do esquadrão, recordou que
Huston sempre reconferia cuidadosamente seu equipamento
antes de cada missão.
Ironicamente, ele estava para ser substituído pelo restante de
seu esquadrão. De uma maneira ou de outra, por mais
cuidadoso que ele fosse, Chichi-Jima seria sua última missão.
Jack Larsen estava na fotografia em grupo que Bruce
examinou no avião quando voltava da reunião, assim como
Ken Wavell e James Huston. Quando chegou a Louisiana,
Bruce não tinha certeza do que estava procurando, tudo
parecia muito confuso, mas ele sabia que alguma coisa
importante esperava para ser descoberta.
Fui com James buscar Bruce no aeroporto. Ele trouxe um
avião de brinquedo, e sua bagagem estava cheia de dossiês,
fotos, relatórios e anotações que ele tinha reunido, copiado e
pedido emprestado (...). Eles abririam um mundo
inteiramente novo de pesquisas. Bruce agora estava obcecado,
e minha influência era muito pequena. Eu conseguia perceber
que ele teria de chegar sozinho às minhas conclusões.
Poderíamos conversar sobre o assunto, mas ele iria em frente
independentemente do que acontecesse...
Bruce chegou na quarta-feira à noite; estava preparado para
um completo interrogatório. Passara muito tempo em uma
gráfica em San Diego, copiando tudo aquilo em que conseguiu
pôr as mãos: diários de bordo, listas de ex-alunos, fotografias
do navio, fotografias da tripulação. E agora tinha bons
motivos para dar seguimento à busca: Jack Larsen estava
vivo... e disponível.
Essa nova pista parecia indicar que Larsen não era o homem
que estavam procurando. Talvez estivessem procurando
James M. Huston Jr.; ou, dizendo de outra maneira, James II.
James III estava dormindo em seu quarto.
Dessa vez, Andrea não sabia de todas as novidades. Bruce
estava de posse de um grande número de informações,
histórias e pistas. Ele estava em uma missão. Havia algo a
respeito desses homens idosos, arqueados pelas cicatrizes de
combates e pela idade... Bem, Bruce teve dificuldade em
explicar com exatidão suas conclusões para Andrea. Aqueles
veteranos podiam parecer muito velhos e cansados, mas ele os
via como estavam nas fotos: jovens magros, exibindo no rosto
um sorriso torto e atrevido, homens que davam a impressão
de brilhar intensamente com o que Bruce via como um
destino imortal. Ele estava fascinado.
Os veteranos também fizeram com que ele se sentisse um
pouco envergonhado. Sua pequena mentira a respeito de
escrever um livro em homenagem a eles não estava à altura
daqueles homens. A mentira transformou-se em outra coisa:
uma promessa. Portanto, Bruce e Andrea concordaram em
continuar procurando o máximo que pudessem a respeito de
Jack Larsen e James Huston, e obter respostas para as
perguntas e dúvidas. Também começariam a reunir as
informações necessárias a respeito de todos os homens que
haviam servido a bordo do Natoma Bay, para cumprir a
promessa.
Andrea tinha uma missão diferente:
Acordei no meio da noite em pânico. Oh, meu Deus! O que
estamos fazendo? Eu tinha um monte de fantasias românticas
a respeito de James M. Huston — um jovem bonito e
agradável, de boa família, que tivera uma morte heróica e
magnífica a serviço de seu país. Um típico sonho americano.
Mas e se descobríssemos que ele era um conquistador barato
que traía a mulher, espancava os filhos e roubava dinheiro do
prato de esmolas da igreja? E se ele fosse um assassino? Eu
teria de passar os próximos vinte anos vigiando meu filho em
busca de quaisquer sinais de tendência à violência.
Por que precisávamos descobrir mais coisas a respeito de
James M. Huston? Já não era o bastante termos descoberto
quem ele era? Um número maior de informações mudaria as
coisas de maneira positiva? Não. Estava na hora de fechar os
livros e seguir em frente.
CAPÍTULO VINTE
A sala de jantar na West St. Mary Boulevard, que um dia fora
motivo de orgulho, agora estava um caos, com pilhas de
papéis espalhadas por todos os lados. Havia mapas, pastas,
fichários, notas e listagens de computador, todos relacionados
com o Natoma Bay. E muitos livros. Livros sobre a Segunda
Guerra Mundial, antigos aviões de combate, sobre a Marinha,
sobre cada batalha ocorrida no oceano Pacífico e,
principalmente, a respeito da luta por Iwo Jima. Era o grande
desafio de um feliz pesquisador.
E Bruce aceitou o desafio: escalou as pilhas de documentos,
imprimiu relatórios obtidos em sites, entrou em contato com
outros pesquisadores na internet e passou horas refletindo
sobre o material, em busca de significado. Ele era, no fundo,
um pesquisador empenhado, pois seu instinto lhe dizia que
dentro de todo aquele lixo inexplorado residia a resposta para
o desconcertante mistério que perseguia sua vida. Se ele
filtrasse cuidadosamente as informações, encontraria toda a
história do Natoma Bay e de suas tripulações, bem como uma
explicação completa sobre os pesadelos de seu filho. E, de
alguma forma, ele talvez até conseguisse encontrar a
explicação primordial: o significado da vida.
Portanto, ele teria ficado muito satisfeito em passar dias,
meses e até anos — o tempo que fosse necessário —
examinando dossiês, pastas e registros, garimpando os
documentos como um velho explorador.
Em uma inversão de papéis, coube a Andrea, a mística
intuitiva, desempenhar o papel da chefe da casa, enquanto
Bruce desligou-se de todo o resto.
— Por que você está investigando um monte de marinheiros
mortos enquanto estamos a um passo de nos tornar
indigentes? — perguntou Andrea. — A hipoteca já venceu,
James precisa comer, eu preciso comer, você tem que arranjar
um emprego. O dinheiro só vai durar mais algumas semanas!
Bruce não queria ouvir aquilo. Andrea desejava que ele
arranjasse um emprego de verdade, com benefícios reais. Ela
queria um seguro-saúde decente, começar a juntar dinheiro,
ter uma reserva para a aposentadoria — um contracheque
garantido. A situação financeira da família estava crítica!
Já que tinha de ganhar dinheiro, Bruce não queria mais
trabalhar para ninguém. Não mais. Ele queria ser o próprio
patrão, administrar sua empresa de consultoria. Queria
trabalhar em casa, oferecendo consultoria em recursos
humanos para as empresas.
Era uma excelente idéia, só que ele estava adiando.
Chegaram a um acordo. Bruce tomaria algumas medidas:
enviaria currículos, estabeleceria uma rede de contatos e
procuraria empresas que estivessem precisando de ajuda.
Dessa maneira, ele ainda poderia trabalhar por conta própria.
"É agora ou nunca, meu chapa!", era o jeito de Andrea colocar
as coisas. Bruce teria de pôr de lado a pesquisa sobre o
Natoma Bay. O dever o chamava para mais perto de casa.
E, assim, as pilhas de documentos sobre a mesa da sala de
jantar foram modificadas. As conversas a respeito de Jack
Larsen e do Natoma Bay transformaram-se em planos de
marketing, de cartões de visita e papel de carta corporativo.
Bruce começou a marcar entrevistas com possíveis clientes,
espalhando a notícia de que estava disponível para trabalhar
sob contrato.
Andrea cuidou da parte administrativa, abrindo contas
corporativas e instalando o software necessário para o
gerenciamento do serviço. Eles formavam uma equipe bem
equilibrada. Bruce lidava com toda a produção e a
distribuição, enquanto ela administrava o escritório e a
escrituração contábil.
Como o dinheiro disponível não dava para a aquisição de
cartões de visita e papéis de carta dispendiosos, Andrea criou
ela mesma esse material. A pessoa jurídica foi fundada com o
nome Accelerated Performances Resources, LLC.
E, quase de imediato, Bruce arranjou trabalho. Começou a
assessorar várias empresas, ajudando-as a montar pacotes de
benefícios para os empregados, configurando programas de
treinamento de executivos, administrando o
redimensionamento corporativo, organizando pacotes
indenizatórios para funcionários demitidos e transformando
empresas sindicalizadas em empresas não sindicalizadas mais
solventes.
E um grande peso foi tirado dos ombros de Andrea.
Eu me senti muito bem por ele estar tomando providências
para consolidar seu negócio de consultoria. Não me importava
com o fato de Bruce trabalhar à noite e nos fins de semana na
pesquisa sobre vidas passadas, mas eu não tinha a menor
intenção de ir morar no carro ou em um abrigo debaixo da
ponte. Eu não faria isso nem mesmo por todos os fantasmas
do Natoma Bay reunidos.
Ao mesmo tempo, enquanto Andrea empenhava todo seu
esforço no negócio de consultoria, Bruce escapulia sozinho
para lançar mensagens em garrafas, ou seja, fazer contatos na
internet.
E ele pôde perceber que havia começado algo irresistível, que
o Natoma Bay não o deixaria em paz. Pouco depois de voltar
do encontro em San Diego, Bruce descobriu um site sobre
Chichi-Jima, patrocinado por alguém chamado John LaPlant.
Bruce enviou uma de suas mensagens, que ele montou a
partir de informações extraídas do diário de bordo do navio
— documento que ele nunca considerara completamente
confiável, já que fora organizado em 1986 e não era oficial,
sendo formado por meras contribuições da tripulação:
Estou fazendo uma pesquisa para a CVE-62 Natoma Bay, uma
associação de um porta-aviões de escolta da Segunda Guerra.
Minha finalidade, ao visitar seu maravilhosamente elaborado
site, é obter mais informações sobre a ilha e Futami Ko. O
segundo-tenente James M. Huston Jr., um piloto de FM-2 do
Natoma Bay, desapareceu no dia 3 de março de 1945, durante
um ataque marítimo em Futami Ko. Seu avião,
aparentemente, foi atingido por fogo antiaéreo e caiu perto da
entrada do porto. Eles entraram vindo do lado do terreno
elevado do porto, e ele caiu quando estava se retirando. Estou
trabalhando na publicação de um memorial a respeito dos
mortos do CVE-62 e em uma história a respeito dos porta-
aviões de escolta para a Natoma Bay Association. James M.
Huston Jr. foi um dos desaparecidos. A história será dedicada
a toda a tripulação e a todos os outros mortos em porta-aviões
na Segunda Guerra Mundial. Existe algum lugar aonde eu
possa ir para obter uma fotografia maior do porto ou
descrições mais detalhadas de quaisquer locais de naufrágios
que possam ter sido encontrados no porto ou perto dele? Eu
agradeceria imensamente por qualquer ajuda que me pudesse
ser oferecida. Obrigado.
Esse foi o melhor texto que ele conseguiu escrever. Bruce foi
dormir; a mensagem fora enviada para o "éter". Ela
permaneceria no ciberespaço durante quase um ano, e depois,
inesperadamente, uma resposta surpreendente chegaria. Mas
o pedido de Bruce teria, primeiro, de permanecer invisível,
sem ser lido, um fragmento perdido na atmosfera atravancada
da internet — até que fosse descoberto, acessado e ressurgisse
no momento ideal. Mas não agora, não ainda. Por enquanto,
Bruce estava saltando de um lado para o outro, esforçando-se
para encontrar algumas respostas às suas perguntas.
O dia seguinte era domingo, e enquanto estava na igreja,
inspirado ou apenas sonolento por ter ido dormir tarde, Bruce
tomou uma decisão. Cuidaria das necessidades financeiras da
família, já que também não desejava acabar tendo de dormir
no carro ou em um abrigo, mas continuaria a pesquisar a
suposta história de uma vida passada. Depois da igreja,
telefonou para Jack Larsen e tomou providências para
percorrer de carro os quase mil quilômetros até Springdale,
Arkansas.
Eu estava determinado a descobrir o que Jack Larsen tinha a
ver com as lembranças de James. Francamente, ainda não
tinha me recuperado completamente da descoberta de que ele
não estava morto. Acho que eu precisava vê-lo em carne e
osso para acreditar na história.
Ao telefone, Larsen foi educado, mas se mostrou curioso. Por
que eu estava interessado nas proezas dele? Eu lhe disse que
ele era o único piloto do VC-81 que consegui encontrar que
sabia tudo a respeito dos pilotos que haviam sido mortos:
Adrian Hunter, Walter Devlin, Billie Peeler, John Sargent e
James M. Huston.
Mas antes de ir se encontrar com Jack Larsen, Bruce foi de
carro a Dallas para cumprir a outra promessa: tornar seu
nome conhecido na rede de consultores de recursos humanos.
Ele foi diligente. Fez alguns contatos e deixou alguns cartões
de visita, e a iniciativa logo seria compensadora. Ele
conseguiria algum trabalho.
Para economizar, Bruce ficou na casa de Jennifer e Greg, que
tinham se mudado para Dallas. Isso significou que na véspera
do dia em que partiu para o Arkansas, à noite, teve de se
submeter ao interrogatório do conselho. Bobbi, Becky e
Jenniffer bombardearam-no com perguntas que ele deveria
fazer a Jack Larsen. Afinal de contas, talvez ele fosse o piloto
dos sonhos. Bruce tinha de verificar se a versão de James
sobre a história lhe evocava alguma lembrança. Ele já tinha
sido derrubado alguma vez por um tiro? O motor do avião
dele tinha sido atingido?
Com Andrea ao telefone, e os outros membros do conse¬lho
contribuindo com perguntas e preparando armadilhas
saudáveis para Jack Larsen, Bruce estava zonzo devido às
novas instruções; ele estava ansioso para partir.
Era uma manhã revigorante no final de setembro quando ele
estacionou na entrada de veículos da casa de Jack e Dorothy
Larsen. A viagem fora estressante, longa demais, e as
especulações e possibilidades eram abundantes. Springdale,
no Arkansas, era uma cidadezinha imaculada, podada e limpa
— exatamente onde poderíamos esperar encontrar um oficial
da Marinha reformado. Os gramados estavam bem cuidados,
sem qualquer defeito.
Jack Larsen, um senhor animado com um sorriso radiante e
uma barriguinha proeminente, estava esperando Bruce na
porta, ao lado da esposa. Eles se sentaram no solário e
beberam chá gelado, almoçaram e bateram papo a respeito das
respectivas famílias. Foi uma apresentação fácil, sem pressão,
ao ex-piloto. Larsen falou sobre sua carreira na Marinha; ele
permaneceu no serviço ativo durante 22 anos, reformando-se
em 1964 como capitão-de-corveta. Depois que deu baixa,
trabalhou em funções administrativas nos governos estaduais
da Califórnia ao Arkansas, mas nada cansativo demais. Ele já
tinha cumprido seu papel servindo ao país em duas grandes
guerras.
— Bem, como você vai querer fazer? — ele finalmente
perguntou.
Bruce pegou o gravador, e Jack falou a respeito da vida no
Natoma Bay: a guerra, as batalhas, os jovens. E depois algumas
fascinantes pérolas históricas vieram à tona. Jack era o oficial
auxiliar de armamento, e foi a bordo do Natoma Bay que as
primeiras bombas de napalm rudimentares foram
improvisa¬das. Eles misturavam pó de napalm com gasolina
nos tanques descartáveis para formar a substância gelatinosa.
— Tínhamos a impressão de estar fabricando gelatina caseira
— disse Jack.
Depois, eles equipavam os tanques descartáveis com um
detonador: uma granada de mão com uma corda para disparo
amarrada ao pino. Quando o tanque era solto e caía, a corda
para disparo puxava o pino. O tanque tinha de ser solto na
altitude e velocidade certas para que a granada explodisse
quando a bomba atingisse o solo.
Bruce trouxe então à tona o assunto das baixas: os 11
membros do VC-81 que haviam morrido quando serviam no
Natoma Bay. Ele descobrira que alguns estavam oficialmente
na lista um ano antes de terem sido efetivamente mortos. Ele
queria ser sistemático e estabelecer uma ordem cronológica,
mas um grande número de mortos e desaparecidos estava
relacionado como tendo sido mortos em 1945 e 1946, bem
depois do final da guerra. Esse fato criou confusão e fez com
que Bruce resistisse a designar Huston como o piloto dos
sonhos de James. Jack explicou que se tratava de uma
peculiaridade da escrituração militar: quando não havia
testemunhas oculares do desaparecimento, o piloto era
relacionado como desaparecido em combate. Havia um bom
motivo para esse critério. Alguns pilotos sobreviviam a uma
queda e eram capturados. Se o piloto continuava desaparecido
depois de um ano ou depois de todos os prisioneiros de guerra
terem sido libertados, as Forças Armadas o reclassificavam. A
data oficial da morte seria então um ano depois da data em
que ele desapareceu. O seguro era pago, e os arquivos,
fechados.
Havia um total de sete membros da tripulação dos aviões do
Natoma Bay cuja morte só se tornou oficial depois que a
guerra terminou; três tinham sido do VC-81.
Jack se lembrava da maioria dos que eram do VC-81, mas não
com muitos detalhes, e não tinha muitas recordações da
morte deles. Só relembrava as coisas que podiam ser
desencavadas quase sessenta anos depois do fato.
Com exceção de James Huston. Jack lembrava-se claramente
do dia em que James M. Huston Jr. morreu: 3 de março de
1945. "Seria nossa última chance de pegar os japoneses. Nosso
esquadrão estava programado para passar pelo reveza-mento.
Era nossa última missão, e eu queria muito atirar neles mais
uma vez."
Jack pegou seu diário de vôo e mostrou os detalhes da missão
a Bruce: um caça FM-2 equipado com projéteis, pilotado por
Larsen, decolou do Natoma Bay para atacar Chichi-Jima.
"Não encontramos resistência no vôo para Chichi-Jima.
Nenhuma aeronave inimiga. E quando nos aproximamos do
porto de Futami Ko, entramos em formação para atacar antes
dos bombardeiros. Quando avançamos para atacar em vôo
rasante com fogo de metralhadora, as pesadas nuvens pretas
de fumaça da artilharia antiaérea eram tão densas que tive a
impressão de que poderia ter andado até o solo sobre elas. Eu
só conseguia pensar em acabar o mais rápido possível com
aquilo e cair fora o quanto antes.
"Realmente não me lembro de mais nada, a não ser que foi
somente quando já estávamos de volta ao navio que eu soube
que Huston estava desaparecido. Ninguém vira seu avião cair,
porque ele era o último da formação. Ele foi o último piloto
do nosso grupo a fazer o ataque inicial em vôo rasante com
logo de metralhadora. Fiquei feliz por ter conseguido voltar
são e salvo para o navio. Estou razoavelmente certo de que o
avião de Jim foi atingido pela artilharia antiaérea, porque era
intensa naquele dia."
Mais uma vez, nenhuma testemunha ocular.
O simples fato de ouvir a história de Larsen foi um choque.
Bruce não compreendia totalmente, não até esse momento,
como eram as coisas, a fúria assustadora de um combate:
aqueles homens em pequenos e frágeis aviões voando através
de um furacão de aço para atacar a base japonesa. O que eles
não devem ter sentido, arremetendo para dentro e para fora
daquele fogo cruzado mortífero, cegos para tudo exceto para a
missão! Alguns homens gritavam o tempo todo durante o
ataque; outros perdiam o controle da bexiga; outros, ainda,
apertavam o manche com tanta força que ele quase saía na
mão deles. E alguns morriam.
Ficaram sentados por um momento, Bruce e Jack Larsen, em
silêncio. Tudo aquilo era agora uma lembrança, mas seria
sempre um momento horrendo para Jack. Como seu filho,
Bruce estava começando a perceber o ar mortal que pairava
sobre Chichi-Jima.
O casal Larsen insistiu em levar Bruce para jantar fora. E ele
acabou aceitando o convite para ficar na casa deles, no quarto
de hóspedes, e cancelou a reserva no hotel. Foi como se Bruce
tivesse passado em algum teste e fosse agora merecedor da
amizade dos Larsen. Naquela noite, falaram mais sobre a
guerra, sobre a vida em casa durante a Segunda Guerra.
Dorothy lembrava-se de que as esposas estavam
constantemente nervosas, com medo de receber um
telegrama que lhes informaria que tinham ficado viúvas.
No dia seguinte, quando estavam tomando o café da manhã,
Bruce começou a falar sobre seu filho, um menino de 4 anos,
que tinha um estranho fascínio pelos aviões da Segunda
Guerra. Além disso, o curioso era que James também tinha
um profundo conhecimento do assunto, inclusive a
capacidade de distinguir o Corsair do Avenger. Além do mais,
o que era ainda mais surpreendente, ele era capaz de
identificar tanto o Betty japonês quanto o Zero.
Jack empurrou a cadeira e se levantou da mesa. "Espere um
minuto", disse ele, desaparecendo em seguida por uma porta
na cozinha que dava na garagem. Pouco depois, Bruce pôde
ouvir o barulho de coisas sendo remexidas. Larsen voltou para
a cozinha carregando nas mãos uma velha bolsa de lona
empoeirada e amassada, que entregou para Bruce.
— Dê isso a James.
Dentro, havia um velho capacete de vôo de pano com os
óculos e a máscara de oxigênio presos a ele.
— Eu o estava usando no dia em que decolei do Natoma Bay
— disse Larsen. — No dia em que James Huston foi
derrubado.
CAPÍTULO VINTE E UM
Quando voltou do Arkansas, Bruce entregou ao filho o
capacete de vôo de pano de Larsen, que ele tinha usado na
missão na qual Huston foi derrubado. James o usava sempre
que ia para sua cabine de pilotagem no closet. Ele o usava
enquanto pilotava seu simulador de vôo e enquanto assistia às
fitas dos Blue Angels. Realizava uma espécie de ritual apenas
para colocar o capacete. James o colocava de maneira firme e
profissional, dando tapas para retirar as bolhas de ar,
ajeitando-o na cabeça como se estivesse indo para o trabalho.
No dia seguinte à sua volta, Bruce recebeu um pacote de John
DeWitt, o historiador da Natoma Bay Association. DeWitt
havia prometido enviar para Bruce o diário de guerra do VC81
— o esquadrão de James Huston. Bruce já tinha o diário
não oficial, mas sentia que não poderia confiar em nada que
tivesse interpretações pessoais. A tripulação havia compilado
"The Blue Book" (um diário provisório) em 1998, mais de
quarenta anos depois do evento. Como se poderia confiar
naquilo?
Mas DeWitt enviou o diário de guerra. Tratava-se de um
documento oficial do governo, datilografado em 1945, logo
depois da batalha e do relato da missão, quando a memória de
todo mundo era recente:
O 16º. dia em Iwo Jima, 3 de março de 1945, foi repleto de
acontecimentos. Teve início com um ataque a uma
concentração de grandes cargueiros inimigos em Chichi-Jima
que nos havia sido informada. Oito FM-2s deste esquadrão
participaram do ataque. Fizeram três ataques: no primeiro,
atiraram projéteis nos navios; no segundo e no terceiro,
atacaram posições antiaéreas para proteger os bombardeiros
lança-torpedos que vinham logo atrás. As embarcações foram
identificadas como um navio de transporte de médio porte e
cargueiros menores da classe FTC. Não foram observadas
avarias. No primeiro ataque, quando os caças estavam se
retirando em direção à entrada do porto de Futami Ko, o FM2
pilotado pelo segundo-tenente James M. Huston Jr. foi
aparentemente atingido pela artilharia antiaérea. O avião fez
um mergulho a 45 graus e caiu na água, logo no início do
porto. Ele explodiu no impacto e nenhum sobrevivente ou
destroços vieram à tona. Ele era um dos melhores pilotos do
esquadrão. Era sossegado e despretensioso, sempre alerta, e
seus olhos penetrantes distinguiam tudo que estava à vista.
Era sempre o primeiro a ver os aviões e os navios; avistou o
único submarino descortinado pelo esquadrão. Recebeu o
mérito de ter destruído quatro aviões inimigos durante o vôo.
Excelente. A maior parte das informações que Bruce colocara
no site de Chichi-Jima era precisa. No entanto, uma
documentação confiável era fundamental, principalmente
para alguém como Bruce. A questão da testemunha ocular
ainda estava no ar. Quem tinha visto o avião ser atingido? A
palavra "aparentemente" modificava o relatório do fogo
antiaéreo.
Mas que piloto ou membro da tripulação efetivamente vira o
avião cair na água e explodir com o impacto? De onde surgira
esse detalhe? Ele não foi fornecido por Jack Larsen, que
declarou só ter notado que Huston estava ausente quando
voltou para o navio.
Uma vez mais, Bruce estava diante da pequena janela de
incerteza através da qual pôde se comprimir com suas
dúvidas.
Bruce telefonou para John DeWitt para agradecer-lhe o envio
do diário de guerra e os relatórios, e eles conversaram a
respeito de James Huston. DeWitt disse ter se lembrado de
algo novo, que nunca parecera importante até que Bruce
começou a fazer perguntas; antes, só parecia uma coisa triste.
DeWitt relembrou que o pai de James Huston, James
McCready Huston, costumava comparecer aos primeiros
encontros, ocorridos na década de 1960.
Ao contrário de muitos pais de soldados mortos ou
desaparecidos, que sofriam resignados, Huston ia às reuniões
em busca de detalhes a respeito da morte do filho. McCready
não conseguia lidar com o fato de seu filho simplesmente ter
desaparecido da face da Terra sem qualquer explicação, uma
prova concreta, uma testemunha ocular que assegurasse que
essa terrível perda efetivamente acontecera. Era de fato
comovente. O pai era um senhor idoso e arqueado que
sempre procurava não chamar a atenção, escolhendo os
velhos pilotos ou membros da tripulação, mencionando seu
filho, buscando alguma coisa...
— Sou pai de James Huston. Você sabe o que aconteceu com
ele?
Ele nunca descobriu, já que não tinha como encontrar
testemunhas oculares; o único sobrevivente que talvez
pudesse dizer alguma coisa a ele, Jack Larsen, nunca ia aos
encontros. E, assim, James Huston desistiu. Ele finalmente
deixou de ir às reuniões, sufocado pela dor e pela frustração.
McCready morreu em 1973, sem nunca descobrir nada
específico a respeito da morte do filho.
Depois que se despediu de John DeWitt e desligou o telefone,
Bruce descreveu para Andrea as pungentes visitas do pai de
Huston. Ela considerou a trágica busca desse senhor como
outro indício significativo da ligação cósmica; ela estava agora
ainda mais certa de que James Huston Jr. era o objetivo da
pesquisa deles.
— Não — disse Bruce lentamente —, existe ainda a questão
do Corsair. E também o fato de que não conseguimos
encontrar uma testemunha ocular.
— Não pode haver uma prova irrefutável — argumentou
Andrea. — Não depois de todo esse tempo. Você está sendo
teimoso.
Bruce não discordava da mulher. Ele sabia que estava sendo
teimoso. Mas essa era a característica do bom pesquisador —
continuar a perseguir seu objeto até obter uma confirmação
clara e palpável. Caso contrário...
No outono de 2002, o golfo do México foi atingido por uma
série de tempestades rápidas e violentas, e enquanto Bruce
vivia as conseqüências dos registros, dos diários e da memória
enfraquecida dos sobreviventes do Natoma Bay — bem como
com a indiferença de Andrea em relação aos detalhes factuais
exigidos por seus rigorosos requisitos de uma prova
irrefutável —, outra tempestade se aproximava de Lafayette,
Louisiana: o furacão Lili.
No dia 30 de setembro de 2002, o Centro de Operações de
Emergência do Departamento de Prontidão de Emergência de
Lafayette anunciou que um furacão atingiria o litoral dos
estados da Louisiana e do Texas no máximo na quinta-feira, 3
de outubro. O governador decretou que os trailers e as casas
pouco acima do nível do mar fossem evacuados.
Bruce não estava preocupado. Lafayette era a cidade mais
elevada da região. Além disso, estava previsto que o furacão
atingiria, primeiro, a Flórida, não a Louisiana. Quando
chegasse lá, já teria se dissipado.
Tudo isso era emocionante para James, que tinha uma
professora chamada Lily e queria saber por que tinham dado o
nome dela a um furacão. "É melhor você ficar quieto para não
irritar a professora", disse Andrea.
Enquanto esta andava agitada de um lado para o outro,
tentando reforçar sua pequena fortaleza para que conseguisse
resistir aos ventos e à possível inundação, que se
aproximavam, Bruce estava ocupado fazendo as malas.
Andrea perguntou para onde ele estava indo.
Ele lembrou a ela que tinha um importante compromisso de
negócios no dia 3 de outubro em Houston. Ele sairia cedo no
dia 2, passaria uma noite em Houston para estar bem
descansado na hora da entrevista e depois voltaria
diretamente para casa. Nada demais.
Andrea ficou desesperada.
— O quê?
— Bem, você queria que eu começasse a me mexer, e foi
exatamente o que eu fiz. Você queria que eu marcasse uma
entrevista de trabalho, e eu arrumei a entrevista. Era o que
você queria, não era?
— Agora?
— Estou fazendo o que você me disse para fazer.
Bruce era assim. Quando lhe indicavam determinada direção
e lhe diziam para atacar, ele marchava ao som de tambores.
Nos quatro meses que se seguiram ao término de seu emprego
na OSCA, Bruce conseguira essa única entrevista, portanto ela
tinha de deixá-lo ir. A casa talvez estivesse em perigo, mas a
segurança de Andrea dependia de que ele obtivesse um
emprego sólido, de horário integral, e não de que ele abrisse
uma firma de consultoria.
Bruce reiterou que a casa era forte. James parecia animado
com a perspectiva de ser levado pelo vento. Bem, concluiu
Bruce, ele não ia ficar longe tanto tempo assim.
Desse modo, com as nuvens da tempestade sendo ainda
apenas uma previsão, Bruce pegou o carro e partiu para
Houston. E às 9 da manhã do dia 3 de outubro, quinta-feira,
encontrou-se com seu possível empregador. A reunião correu
tão bem que decidiram almoçar juntos. Em seguida, Bruce
estava pronto para pegar a estrada de volta para Lafayette.
Nesse meio tempo, Andrea estava tentando,
desesperadamente, tomar precauções. Ela entrou na fila de
distribuição de sacos de areia, mas a demanda estava tão
elevada que os sacos foram racionados. Depois de passar
quatro horas esperando, avisaram na fila que cada pessoa só
teria direito a um saco de areia. "O que eu vou fazer com um
maldito saco de areia?", gritou ela da janela do carro. "Me
agarrar a ele para não ser levada pelo vento?"
Contendo a raiva, Andrea foi até uma grande casa de material
de construção e recomeçou a busca pelos sacos de areia. A
única coisa que conseguiu encontrar foi areia de qualidade
superior, muito cara, na qual é possível procurar por
diamantes. E o compensado que ela teve de comprar foi o da
mesma qualidade usada na fabricação de móveis. Ela também
comprou cinco rolos de fita crepe. Em seguida, colocou James
e o material no carro e voltou às pressas para a casa na West
St. Mary Boulevard. No caminho, deu uma passada no
McDonald's para comerem um McLanche Feliz, porque não
tinha a menor idéia de quando comeriam de novo.
Ao chegar em casa, Andrea começou a entrecruzar fita crepe
nas janelas para impedir que o vidro se estilhaçasse por causa
do vento forte. As notícias não eram boas. Lili estava
piorando e aproximando-se, tendo se transformado em um
furacão de categoria 3. O município abrira as portas da Cajun
Dome e o declarara abrigo de emergência. Andrea tentou
falar com Bruce, mas ele desligara o telefone. Ela começou a
respirar fundo, e isso a ajudou a se acalmar.
Quando Bruce telefonou, às l4h, depois do almoço de
negócios, dizendo que ia pegar a estrada e que deveria estar
em casa por volta das 17h, Andrea estava uma pilha de
nervos.
— Acho bom você vir logo. A comida acabou, a população
limpou os supermercados. Todo mundo está se mandando.
A voz de Andrea mostrava que ela estava em pânico, e Bruce,
sentindo que talvez tivesse subestimado a crise, rapidamente
se dirigiu para a estrada interestadual. Foi uma viagem fácil,
porém estranha. Todo o trânsito estava indo no sentido
oposto. Passou por Beaumont... uma cidade fantasma. Depois
de Beaumont, não cruzou com um único carro vindo na outra
direção. E com nenhum carro da Polícia Rodoviária. Assim,
pisou fundo no acelerador, e o seu Volvo 850 superpotente
disparou, ultrapassando todos os limites de velocidade.
Em casa, Andrea resolveu agir, colocou James de volta no
carro e saiu de novo. Encheu o tanque de combustível, sacou
300 dólares em um caixa eletrônico, comprou um estoque de
velas e pilhas, voltou para casa, tomou uma chuveirada e deu
banho em James (era preciso estar limpo em um furacão, algo
que ela nem mesmo sabia que sabia), em seguida limpou a
banheira e a encheu de água.
Ainda nem sinal de Bruce. Lili agora tinha saltado para a
categoria 4. Andrea começou a recolher fotos e vídeos da
família.
E, então, Bruce chegou. Juntos, ele e Andrea pregaram o
compensado sobre a grande janela do solário e sobre as janelas
do lado sul da casa, que receberia o impacto da tempestade.
Andrea estendeu um forro de plástico e segurou-o com o que
considerava sacos de areia incrustados de diamantes para
impedir que a água entrasse na casa. James dava gritinhos de
prazer, achando que encontrara outra brincadeira, que se
chamava Monstro Lili.
Nesse meio tempo, as notícias estavam se tornando cada vez
mais alarmantes. Andrea preferia ir para Dallas, mas Bruce
não queria fazer isso. Estava determinado a se manter firme e
defender sua casa.
— Se alguma coisa se quebrar, eu consigo consertar,
minimizar o dano — argumentava ele. — Além disso,
podemos partir a qualquer momento; se as coisas ficarem
realmente feias, simplesmente entramos no carro e botamos o
pé na estrada.
À medida que a noite avançava, as previsões ficavam cada vez
piores, e Andrea, mais nervosa. Passava da meia-noite quando
ela declarou: "James e eu vamos embora, com ou sem você."
Bruce finalmente percebeu que estava na hora de partir.
Disseram a James que iam tirar umas pequenas férias e ele ia
visitar os primos, Hunter e K. K. Como de costume, o menino
aceitou tudo de bom grado. James ficava animado com
qualquer coisa.
— Dê uma olhada na casa — disse Bruce —, porque ela
poderá não estar aqui quando voltarmos.
O coração de Andrea deu um salto.
— Você realmente acha que poderemos perder a casa? —
perguntou, em tom lastimoso. Ela não conseguia suportar a
idéia de ficar sem a casa; era sua última mudança, sua última
parada.
— Não, não creio que vamos a perder a casa, mas ela,
certamente, vai sofrer danos. Pode ser que o telhado vá
embora.
De forma estranha, o comentário do marido pareceu acalmála.
De repente, quando estava dando marcha à ré na entrada de
veículos, Bruce parou o carro. Ele esquecera algo. Entrou
correndo em casa e voltou carregando todo o seu material de
pesquisa do Natoma Bay.
Passava de uma da manhã quando finalmente partiram, em
direção a Dallas, apostando corrida com as nuvens e com o
vento.
Todos os hotéis e paradas na estrada interestadual pela qual
seguiam haviam se transformado em abrigos. Havia uma
multidão de carretas estacionada perto da estrada, formando
círculos, como viajantes se preparando para defender um
comboio de uma tempestade.
Chegaram à casa de Jen e Greg ao amanhecer. A primeira
coisa que fizeram foi ligar a televisão e assistir a Lafayette ser
atingida por ventos de 140 quilômetros por hora. As linhas de
transmissão de energia ficaram inoperantes e a chuva castigou
violentamente o centro da cidade. Bruce tentou ver se o
telefone de casa chamava, mas a linha estava muda. Ele
conseguiu ligar para um vizinho para perguntar o que tinha
acontecido. O homem deu uma volta de carro e depois ligou
para dizer que muitos galhos tinham caído, mas que a casa
parecia intacta.
A família Leininger voltou para casa uma semana depois, e
levaram quatro dias para limpar a bagunça. E, depois, uma
coisa aconteceu. Foi outro daqueles momentos que deixaram
Bruce e Andrea embasbacados.
Foi durante a limpeza. Quando Bruce e James estavam
juntando as folhas com o ancinho e recolhendo os galhos
caídos do jardim, Bruce teve o impulso repentino de abraçar o
filho. Ele o levantou e o beijou, dizendo que se sentia muito
feliz por tê-lo como filho.
James retrucou, em um tom que pareceu sinistro para Bruce:
— Foi por isso que eu escolhi você; eu sabia que você seria
um bom papai.
Bruce não entendeu o que tinha acabado de escutar.
— O que você disse?
— Quando encontrei você e mamãe, tive certeza que você
seria bom para mim.
Essa não era a fala de uma criança, embora estivesse saindo da
boca de um menino de 4 anos.
— Onde você nos encontrou? — perguntou Bruce.
-— No Havaí — respondeu James.
Bruce disse ao filho que ele estava enganado. Eles tinham ido
ao Havaí no verão anterior, todos juntos.
— Não foi quando todos fomos ao Havaí. Foi quando você foi
sozinho com mamãe.
Embora profundamente abalado, Bruce conseguiu perguntar
onde ele os tinha encontrado. James respondeu:
— Encontrei vocês no grande hotel cor-de-rosa.
Bruce permaneceu atônito enquanto James acrescentava:
— Eu encontrei vocês na praia de noite. Vocês estavam
jantando.
Em 1997, Bruce e Andrea tinham ido ao Havaí para
comemorar seu quinto aniversário de casamento. Ficaram
hospedados no Royal Hawanan, o hotel cor-de-rosa que era
um ponto de referência na praia de Waikiki, e na última noite
tinham jantado ao luar na praia. Cinco semanas depois,
Andrea descobriu estar grávida. E James descrevera tudo com
perfeição.
Isso não era uma coisa que os pais tivessem discutido, pelo
menos não com detalhes. Certamente, não tinham
mencionado o hotel cor-de-rosa, o jantar na praia nem o fato
de Andrea estar grávida cinco semanas depois.
Bruce não sabia como interpretar o ocorrido. Estava confuso e
assustado. Entrou em casa correndo e contou a Andrea o que
acontecera, mas ela já estava convencida de que possuía um
conhecimento que ninguém saberia explicar de imediato. Era
apenas mais uma coisa.
Nesse ínterim, Bruce havia conseguido um contrato de
consultoria com uma siderúrgica da região, o que representou
alívio financeiro, na hora certa. Suas economias estavam
rapidamente se esgotando, o moral da família estava baixo,
mas as coisas estavam melhorando.
Mais ou menos na mesma época, John DeWitt enviou nove
rolos de microfilme contendo registros do Natoma Bay. Bruce
passou as três semanas seguintes na biblioteca da University
of Louisiana, copiando cinco mil páginas desses registros.
A cada dia ele descobria algo. Um dos microfilmes conti¬nha
um diagrama que localizava com precisão o ponto no qual o
avião de James Huston havia caído. Outro continha alguns
detalhes a respeito da queda. Também relacionava os outros
pilotos que tinham participado do ataque: Stewart Gingrich,
Robert Greenwalt, Daryl Johnstone, Jack Larsen, William
Mathson, Robert Mount e Mac Roebuck.
E Bruce também encontrou uma nova pista essencial. Os oito
bombardeiros lança-torpedos Avenger que participaram do
ataque — os mencionados por Jack Larsen — tinham
decolado de outro navio, o USS Sargent Bay (CVE-83). O
Avenger era equipado com um avançado sistema de
comunicações que possibilitava que o líder pudesse controlar
o ataque do ar. O relato da testemunha constante do diário de
guerra do VC-81 — os detalhes a respeito de o avião ter sido
atingido na frente, incendiando e caindo no mar quando se
retirava — tinha necessariamente de ser do líder de ataque do
VC-83. Era a única coisa que fazia sentido. Esse homem era
sua testemunha ocular!
Agora, tudo o que ele precisava fazer era descobrir uma
reunião do VC-83; localizar os membros da tripulação dos
bombardeiros Avenger que acompanharam os aviões de caça
do VC-81 no dia 3 de março de 1945. Certamente, havia mais
testemunhas oculares, mais evidências a ser encontradas.
Bruce encontrava-se no paraíso dos teimosos.
CAPÍTULO VINTE E DOIS
O apego de James aos bonecos GI Joe não passou despercebido
na família. Ele brincava todos os dias com Billie e Leon,
nomes prosaicamente escolhidos; tomavam banho juntos, e
James até mesmo dormia com eles.
No Natal de 2001, James ganhou um boneco da tia G. J. Ele já
tinha Billy, cujo cabelo era castanho, mas o novo era louro,
musculoso e vinha com uma balsa salva-vidas de borracha
preta e um motor de popa movido à pilha, excelente para a
banheira. James o chamou de "Leon".
— Uau! — exclamou Andrea. — Que nome legal, cara! —
Não era um nome muito compreensível, já que nem Bruce
nem Andrea conheciam alguém chamado Leon. Não havia
nenhum Leon na família, tampouco entre os amigos ou
vizinhos. O nome não parecia combinar com um boneco de
plástico.
Entretanto, Leon adaptou-se de imediato a Billy e James.
Juntos, os três —-Billy, Leon e James — formavam uma
magnífica unidade de combate, cumprindo com sucesso
muitas missões no quintal.
A guerra, mesmo a batalha de mentira travada no quintal
pode ser infernal. Durante um dos contatos com o inimigo,
Billy foi gravemente ferido; perdeu a perna esquerda do
joelho para baixo. James ficou traumatizado, mas Andrea,
como uma verdadeira mãe médica do campo de batalha,
acudiu prontamente. Ela conseguiu prender de novo a perna
por meio de uma cirurgia improvisada que envolveu um clipe
e Super Bonder. Logo Billy estava de volta, em ação, lutando
pela democracia e levando um inimigo para debaixo dos
arbustos de azaléia no quintal.
No Natal de 2002, Papai Noel recrutou um terceiro boneco.
Esse era ruivo e vinha com muita bagagem — uma maleta
repleta de uniformes e acessórios. Depois que todas as
embalagens tinham sido abertas e os papéis de presente
levados para a garagem, James levou seu novo boneco GI Joe
para apresentá-lo à antiga unidade, Billy e Leon.
Bruce e Andrea ficaram na porta sorrindo e observando o
presente de Natal adquirir vida. James estava na cama,
vestindo novos uniformes em Billy e Leon, e colocando-os no
novo equipamento.
— Então, como você vai chamar o novo boneco, James? —
perguntou Bruce.
James se virou e levantou os olhos.
— Walter — respondeu.
Bruce e Andrea olharam um para o outro, perplexos, porém
achando aquilo divertido. Eles não conheciam nenhum
Walter. Na realidade, seu filho parecia ter uma coleção inteira
de nomes curiosamente desinteressantes: Billy, Leon e
Walter. Nada de Buzz, Todd ou Rocky.
Eles riram, mas Bruce ficou curioso e perguntou:
— Ei, por que chamou os bonecos de Billy, Leon e Walter?
— Porque foram eles que vieram ao meu encontro quando
cheguei lá no céu — respondeu James, voltando em seguida a
brincar.
Uma vez mais, Bruce e Andrea se viram diante de um
arrepiante lembrete de que seu filho, o pequeno James, vivia
experiências muito além da capacidade de compreensão deles.
Fizeram, então, a única coisa em que pensaram: bateram em
retirada. Percorreram o corredor em direção ao escritório,
fecharam a porta e ficaram calados por um momento
tentando recuperar o juízo.
— Foram eles que vieram ao meu encontro quando cheguei lá
no céu? — repetiu suavemente Andrea, por não querer
assustar James.
Bruce foi até a escrivaninha e começou a remexer em alguns
documentos.
— O que é? — perguntou Andrea. — O que você está
procurando?
Bruce pegou uma folha de papel e leu o que estava escrito
nela. Em seguida, releu, mas não conseguia dizer o que estava
se passando em sua cabeça.
Ele tinha em mãos a lista com o nome dos homens que foram
mortos a bordo do Natoma Bay. Ele a entregou a Andrea. Na
lista constavam os nomes James M. Huston Jr., Billie Peeler,
Leon Conner e Walter Devlin.
— Oh, meu Deus! — exclamou Andrea. — Eles o receberam
quando ele chegou no céu. Quando eles foram mortos?
Bruce lançou um olhar inexpressivo para a mulher e em
seguida começou a remexer de novo nos papéis. Ele tinha
arquivos com datas e detalhes, e poderia achar os registros em
um minuto.
— Eles eram todos do mesmo esquadrão — declarou Bruce.
— O VC-81.
Foi uma dessas
momentos para
significativo.
reveser
lações
absorque
vidas.
precisavam
Aquele dde
etalhe
alguns
era
— Quando eles morreram? — perguntou Andrea, fazendo um
esforço para falar em um tom normal.
Mas não havia nada de normal a respeito de tudo isso. Bruce
examinou os documentos e conferiu-os de novo. Em seguida,
olhou para a mulher. Sua voz estava neutra.
— Leon Conner foi morto em 25 de outubro de 1944. Walter
Devlin, em 26 de outubro de 1944. Billie Peeler morreu em
17 de novembro de 1944...
— E James Huston foi morto no dia 3 de março de 1945 —
disse Andrea. O fato estava claro. Leon, Walter e Billie já
estavam mortos quando James Huston foi morto ao sobrevoar
Chichi-Jima.
Estavam esperando por ele no céu.
TERCEIRA PARTE
Os homens do Natoma Bay
CAPÍTULO VINTE E TRÊS
Andrea era uma pianista na internet. Era capaz de acessar
links como um músico de jazz, improvisando, encontrando o
caminho através dos becos sem saída e das pistas falsas até
obter sua doce melodia narrativa.
Mas ela não conseguia encontrar a combinação certa de notas
para decifrar a história de James Huston. Aquilo a deixara
desconcertada.
Naturalmente, ele era o primeiro nome da minha lista. Se eu
ia descobrir alguma coisa a respeito de alguém, esse alguém
era Huston.
Mas não era tão simples assim. James M. Huston Jr. era o
único descendente do sexo masculino na família. Andrea
descobriu em seu site preferido, Ancestry.com, que o pai e a
mãe dele estavam mortos, e os únicos possíveis irmãos
sobreviventes eram duas irmãs.
Era relativamente fácil rastrear descendentes do sexo
masculino, porque o sobrenome deles resistia a casamentos,
divórcios e novos casamentos. Mas Andrea sabia, devido aos
anos que passara tentando descobrir a genealogia de sua
família, que encontrar parentes do sexo feminino era
praticamente impossível. As meninas cresciam e se casavam, e
o sobrenome da família desaparecia com o casamento. Na
década de 1940, os Estados Unidos ficaram repletos de jovens
viúvas de guerra.
Mas não era totalmente impossível rastreá-las, desde que se
conseguisse ter acesso à certidão de casamento, a qual a
maioria dos estados emite mediante o pagamento de uma
taxa. Mas era preciso saber onde (o estado e o município) e
quando exatamente a mulher se casara. E, mesmo assim, nem
sempre o problema era resolvido. Se a mulher se divorciasse
ou o marido morresse, era preciso recomeçar, procurando por
outro nome de casada.
Era como o salão de espelhos de um parque de diversões —
não se sabia onde começar a procurar a verdadeira imagem.
Andrea, em geral, começava com uma coisa fácil. Quando
elaborava uma lista de tarefas, sempre incluía três coisas que
já tivesse realizado, porque, dessa maneira, começava em
posição vantajosa. Ainda assim, quando decidiram que iam
escrever um livro, ela começou com Huston. Não era um
começo fácil, mas era ele quem ela estava determinada a
encontrar. Se um livro iria se tornar realidade... na verdade,
muito pouco tempo de¬pois da reunião, eles chegaram à
conclusão de que o livro teria de ser escrito.
Na realidade, foi Bruce quem chegou primeiro a essa
conclusão. Seria sua penitência. Sua mentira inofensiva, junto
aos pequenos detalhes que acrescentava a ela, tinham se
tornado uma pedra em seu sapato. Ele sabia que "o livro"
tinha sido uma tática essencial para abordar aqueles homens,
mas não esperava que fosse realmente gostar deles. Não
previra o tratamento caloroso que recebera, nem a ajuda
franca e sincera, tampouco imaginaria que fosse sentir tanta
admiração pela absoluta grandeza das façanhas deles. Não
esperara que fosse desejar tão intensamente que eles o
respeitassem.
E o livro estava sempre no ar.
— Quando você acha que vamos ver esse livro? —
perguntava um dos veteranos.
— Oh, os livros demoram a ser escritos — explicava Bruce.
— E como ele está indo?
— Está caminhando.
— O que podemos fazer para ajudar?
— Você pode me enviar os Relatórios de Combate das
Aeronaves?
Essas coisas deixaram-no um pouco ansioso. Para piorar,
Bruce também estava sob pressão financeira, profissional e
doméstica. Estava previsto que ele começaria a trabalhar em
um novo emprego em janeiro de 2003. Conseguira um
contrato de consultoria com a Lafayette Steel Erectors, que
tinha um futuro promissor a longo prazo. Seriam necessárias
muitas horas para dessindicalizar os 250 funcionários e ajudar
a companhia a melhorar sua competitividade. Ele também
teria de contratar novos trabalhadores e providenciar pacotes
de benefícios para todos. Depois do longo e infrutífero
período que passou desempregado, com a família tendo de
apertar o cinto, Bruce não poderia se dar ao luxo de cometer
algum erro nesse momento. O emprego não lhe deixaria
muito tempo livre para fazer pesquisas.
Então, surgiu a inevitável conclusão de que ele necessitava de
ajuda. Não poderia cuidar do livro sozinho. Ele precisava de
Andrea.
Ele tinha um título para o livro. Este se chamaria One Lucky
Ship (Um Navio de Sorte). Essa parte ele tinha resolvido. O
Natoma Bay participara de nove campanhas no oceano
Pacífico, desde a invasão das ilhas Marshall ao ataque a
Okinawa. Ele conquistara nove estrelas de serviço e recebera
uma rara Presidential Unit Citation. Bruce estava
razoavelmente seguro de que o navio tinha sido o último
porta-aviões na guerra a ser atingido por um camicase.
Durante todos esses combates, de outubro de 1943 até o final
guerra, em agosto de 1945, ele perdera apenas 21 tripulantes.
De acordo com qualquer critério, era um navio de sorte.
Andrea não estava tão entusiasmada. "Ninguém realmente
precisa de outro livro de história desinteressante a respeito de
um único navio na Segunda Guerra Mundial", comentou.
Por que não um livro a respeito dos homens, e não apenas do
navio? Isso era algo que havia muito tempo a estava
incomodando. Andrea percebia isso sempre que passava por
uma cidadezinha que não conhecia. No centro, perto da
Prefeitura, erguia-se, invariavelmente, um memorial de
guerra. Normalmente, era uma placa de mármore com
qualquer formato, na qual estavam gravados os nomes de
soldados mortos em combate. Solitários, abandonados,
melancólicos — e, com o tempo, à medida que os membros da
família iam morrendo, quase esquecidos.
Os 21 militares da Marinha e da Força Aérea mortos em
combate no oceano Pacífico estavam se tornando parte desse
pedaço de gramado negligenciado que se estendia ao longo da
memória dos Estados Unidos; se ela e Bruce conseguissem
trazê-los de volta à vida, esse feito valeria um livro.
Certa manhã de inverno, no início de fevereiro de 2003,
tomei minha segunda xícara de café e me plantei diante do
computador com uma lista de 21 nomes. Eu já estava muito
interessada, mesmo antes de começar. Eu queria ver o rosto
daqueles homens, descobrir quem eles eram, quem eles
haviam deixado para trás... como eles morreram.
É bem verdade que eu tinha alguma experiência com o
assunto, pois montara a genealogia de nossas famílias. No
entanto, naquele caso, eu estava lidando com ancestrais
conhecidos. Eu aprendera a rastrear os registros de
casamento, de óbito e de propriedade. E tinha todo o direito
de investigar; afinal, eu fazia parte da família. Neste caso,
tudo o que eu tinha eram os nomes dos mortos do Natoma
Bay, o estado no qual eles haviam se alistado e a data de sua
morte. E meu direito de pesquisar era bastante questionável,
pois eu era uma desconhecida.
A tarefa parecia impossível.
A confiança de Andrea foi abalada por suas primeiras inábeis
e inúteis tentativas de encontrar James Huston. Mas ela não
desistia facilmente. Violara a própria regra de começar de
maneira simples, tendo ido impetuosamente atrás de James
Huston. Mas os becos sem saída e os problemas eram
excessivos: os sobreviventes eram do sexo feminino, e as
raízes familiares não eram estáveis. Ela voltaria a ele mais
tarde. Era melhor ser metódica e começar pegando as frutas
penduradas nos galhos mais baixos. No final, esse método
acabaria sendo melhor. Ela aperfeiçoaria suas técnicas de
pesquisa. Encontraria os outros tripulantes, e eles
completariam o quadro.
Com um suspiro, ela recomeçou, em ordem alfabética. Iniciou
a busca com a letra "B": Eldon Bailey, Eddie Barron, William
Bird, Donald Bullis...
Digitou o nome na página do Google. Talvez um dos
membros da família tivesse relacionado o aviador morto em
uma busca genealógica.
Nada.
Ela tentou então "mortos da Segunda Guerra Mundial". Nada.
"Baixas da Segunda Guerra Mundial." Nada.
"Baixas da Marinha."
Houve resultados relevantes, ou seja, referências a outros sites
militares, mas era impossível navegar neles ou exigiam
informações (como o número do seguro social) que ela
simplesmente não tinha.
Na terceira xícara de café, Andrea decidiu procurar sites com
os quais fosse mais fácil trabalhar. Sites mais simpáticos. Mas
isso também foi frustrante. Alguns deles surgiam e
desapareciam. Não estavam mais disponíveis.
Depois de algum tempo, e com seu dom de ir de link para
link, Andrea começou a captar importantes pistas em seu site
preferido, o Ancestry.com. Era um site caro — 50 dólares a
cada três meses (ela não podia pagar por prazos mais longos, o
que reduziria o custo mensal) —, mas que valia a pena. Ele a
conduziu aos proveitosos sites militares.
Havia um que relacionava todos os mortos da Segunda
Guerra; eram centenas de páginas repletas de nomes. As
baixas eram listadas por estado. E, ao lado do estado, eles
também relacionavam o parente mais próximo.
Andrea estava procurando um parente mais próximo do sexo
masculino. Edward Barron e Eldon Bailey não estavam
relacionados entre os mortos de seus estados. Donald Bullis
tinha a mãe listada como o parente mais próximo. William
Bird tinha um padrasto com um nome diferente. Ela os
separou.
Leon Conner era o seguinte. Ele era de Eufaula, Alabama. Seu
pai, Lynn Lewis Conner, era o parente mais próximo. Andrea
agora encontrara uma fruta madura pendurada em um galho
baixo. Ela entrou no Ancestry.com e conseguiu o registro do
censo de 1940 para Lynn Conner em Eufaula, Alabama. Os
pais de Leon, seus três irmãos e o próprio Leon estavam
relacionados.
Havia um caminho claro para a história de Leon Conner, e
parecia que ele se tornaria acessível a ela. Ela procurou
Eufaula, Alabama, no Google, e descobriu que a cidade tinha
uma peregrinação anual, ou seja, uma recriação do sul
anterior à Guerra Civil, onde as residências clássicas,
guarnecidas de colunas, são abertas e os convidados são bem-
vindos e tratados com pródiga hospitalidade. Uma dessas
antigas mansões era chamada de residência Conner-Taylor. E
agora ela sentiu o choque da descoberta.
Andrea era sulista e sabia que essas pequenas cidades eram
intimamente relacionadas. O nome Conner tinha
necessariamente de ter um longo rastro de ligações.
Emocionada, ela procurou "Conner" e "Eufaula, AL" no
Google e encontrou um Conner-Lawrence Real Estate.
Em seguida, ela entrou no site das listas telefônicas,
concentrando-se em Eufaula, onde descobriu um total de
cinco sobrenomes Conner. Pegou o telefone e discou um dos
números, ao acaso. Existe um encanto comum, que as pessoas
com determinada procedência cultural reconhecem. Elas
detectam-no e reagem a ele. A fala suave e harmoniosa de
Andrea era invariavelmente recebida com uma atenção
educada e prestativa:
— Olá! Meu nome é Andrea Leininger, e meu marido e eu
estamos trabalhando em um livro a respeito de um porta-
aviões da Segunda Guerra, chamado Natoma Bay. Um dos
homens mortos em combate no navio foi Leon Conner, de
Eufaula, e eu estava tentando encontrar algum parente de
Leon. Por acaso você é parente dele?
— Não, não sou parente dele, mas conheço uma prima dele,
Gwen. Você quer o telefone dela?
O primeiro telefonema!
Gwen Conner ficou tão emocionada quanto Andrea quando
atendeu o telefone. Ela fora criada com Leon e casara-se com
um dos primos dele. Ele era uma lenda na família, o menino
de ouro que fora para a guerra e morrera lutando pelo seu
país.
Gwen tinha fotos, cartas comoventes e detalhes poéticos a
respeito de Leon, que era bonito como um artista de cinema e
filho de um empresário bem-sucedido que ajudava as famílias
pobres de Eufaula nas épocas difíceis.
Gwen não conseguia parar de falar no primo, em seu trabalho
na igreja, em seu jogo de tênis, nos papéis que representava
nas peças da escola e em sua voz nas operetas da cidade. Ele
era um dançarino maravilhoso, e durante as festas da cidade
ele dançava durante tanto tempo que sua camisa ficava
encharcada de suor. Ele corria então para casa, vestia uma
camisa limpa e voltava, para dançar mais. Um perfeito
entusiasta. Um espírito magnífico.
Gwen ficou uma hora no telefone, falando sobre o primo
falecido, as longas lembranças retornando depois de sessenta
anos.
Ele era um bom partido: l,83m de altura, louro, olhos azuis,
estrela do futebol, e também tocava violino. Inteligente e
ambicioso, formara-se pelo Alabama Polytechnic Institute
(que mais tarde tornou-se Auburn) em 1942 e ingressou na
Reserva Naval em abril.
Louro! Exatamente como o boneco GI Joe de James.
Quando ele foi morto em outubro de 1944, um mês antes de
completar 24 anos, já ganhara algumas Air Medals por ter
comandado ataques contra campos de aviação inimigos nas
ilhas Salomão. Ele recebeu postumamente a Navy Cross, a
segunda mais elevada condecoração dos Estados Unidos, por
ter feito repetidos ataques contra um cruzador inimigo. Seus
atos de heroísmo naquele dia fatídico durante a Batalha do
Golfo de Leyte, ao largo da ilha de Samar, nas Filipinas, eram
quase lendários.
O TBM de Leon havia feito repetidas incursões contra o navio
inimigo e, quando suas bombas acabaram, ele avistou um
TBM de outro porta-aviões partindo para um ataque. O outro
piloto perguntou a Leon se este poderia ir na frente dele e
atacar em vôo rasante com fogo de metralhadora para atrair o
fogo antiaéreo, e Leon foi primeiro, apesar de seu avião ser
volumoso e lento, e os vôos rasantes serem geralmente
reservados aos pequenos caças, mais ágeis. O TBM que ele
escoltara conseguiu acertar diretamente o cruzador e depois
caiu no mar, em chamas. Quando Conner voltou para o
Natoma Bay, seu atirador, Louis Hill, teve uma conversa séria
com ele no convés de vôo. "Se você fizer uma idiotice dessas
de novo, eu quebro sua cara." Conner ofereceu-se como
voluntário para uma segunda missão mais tarde nesse mesmo
dia, atacando a mesma formação inimiga. Foi no segundo
ataque a pesados navios de guerra que ele foi abatido, com os
tripulantes Donald Bullis e Louis Hill.
Ele recebeu um total de seis medalhas por bravura.
Oh, sim, disse Gwen, ele era um bravo piloto e um membro
querido da comunidade. E deixou para trás alguns corações
partidos. Quando estava fazendo o treinamento de piloto em
Jacksonville, na Flórida, se casou com Mary Frances "Fay"
Widenburd, no dia 28 de maio de 1943.
Seus pais, Lynn e Laila, já haviam suportado sua cota de dor.
Eles tiveram seis filhos, dois dos quais morreram durante uma
epidemia de gripe no inverno de 1917-1918. Com a morte de
Leon, eles perderam a metade dos filhos.
Foi uma conversa longa e comovente — a primeira de muitas
—, e Gwen tentou fazer com que Andrea compreendesse a
importância, as qualidades excepcionais, do falecido primo.
— A esposa dele casou-se de novo — disse ela a Andrea. —
Mas nunca esqueceu Leon. Manteve o retrato dele na
mesinha de cabeceira pelo resto da vida. O segundo marido
não se importava.
No entanto, o tempo todo, Andrea tivera sentimentos
confusos a respeito desse processo de pesquisa; não sabia se
queria ou não ver o que havia debaixo das pedras. Ela sabia
que não queria descobrir nada ruim a respeito de James
Huston Jr. Mas os membros do conselho decidiram contra ela.
O argumento era simples: Huston tinha de ser uma pessoa
legal. A Marinha não permitia que vagabundos ou foragidos
de Alcatraz pilotassem seus aviões.
Tudo bem, mas e se ela não gostasse dele? Era simples assim.
E se ele se revelasse um completo idiota? Andrea talvez
desistisse do projeto. No entanto, é claro que não faria isso.
Ela era obstinada demais para isso.
Se ainda restava alguma apreensão, a história de Leon Conner
conseguiu tranqüilizá-la totalmente.
CAPÍTULO VINTE E QUATRO
As felizes coincidências e as ocorrências de detalhes precisos
relacionados aos bonecos GI Joe eram assombrosos. Como
James poderia dar a eles o nome de pilotos mortos? Como ele
poderia saber o nome daqueles que morreram antes de James
M. Huston Jr.? Ele não saberia ler a lista de nomes das baixas;
ele não tinha como saber quem iria "esperá-lo no céu". Ele era
uma criança de 4 anos e estava dizendo coisas que faziam seus
pais ficarem de cabelo em pé.
Leon Conner era louro, exatamente como seu boneco
homônimo. Bruce e Andrea sabiam que, quando
encontrassem Billie Peeler e Walter Devlin, o cabelo deles
também teria a cor dos bonecos correspondentes.
Eles estavam perdendo o controle sobre tudo que estava
ocorrendo. Não entendiam exatamente o que estavam
procurando, mas sabiam que a pesquisa proporcionaria a
resposta para as impressionantes declarações de seu filho. Era
como se todos os tripulantes mortos estivessem esperando ser
descobertos, e o trabalho de Bruce e Andrea fosse
desempenhar esse papel.
Desse modo, no seu jeito inconstante e ao mesmo tempo
sistemático, eles seguiram adiante. Eles encontrariam algumas
respostas localizando as famílias de todos os mortos do
Natoma Bay. Andrea, tentando não se precipitar, continuou a
busca em ordem alfabética. Eddie Barron não era um dos
bonecos, mas uma coisa levaria à outra...
Ed era judeu e tinha se casado com uma bela jovem judia em
Los Angeles uma semana antes de deixar San Diego.
O texto estava escrito em um fichário de folhas soltas. As
páginas estavam cuidadosamente datilografadas, da maneira
como as pessoas costumavam guardar suas lembranças antes
dos computadores. Ele fora enviado por Cliff Hodge, um
atirador do VC-63. Seu nome estava na lista de veteranos do
Natoma Bay, mas ele estava doente e não pudera comparecer
ao encontro de 2002. Quando Bruce voltou para casa, depois
da reunião em San Diego, telefonou para Cliff Hodge em St.
Louis, apresentou-se e perguntou a ele se servira alguma vez
com alguns dos homens mortos em combate.
— Para dizer a verdade, servi...
A investigação compensou. Havia aquelas incríveis surpresas
que surgiam de repente o tempo todo em decorrência da
diligência e da persistência de Bruce. Cliff Hodge lhe disse
que servira com Eddie Barron e Eldon Bailey, que os conhecia
pessoalmente; eles foram colegas de bordo e veteranos de
combate do mesmo esquadrão.
Bruce e Cliff conversaram durante muito tempo ao telefone.
Os veteranos estavam, em geral, ansiosos para falar,
principalmente com alguém que estivera nas reuniões,
alguém que conhecia o assunto. No final do telefonema,
Hodge disse que tinha algo para enviar a Bruce. Era sua
autobiografia inédita, um livro que ele intitulou World War
II: A Scrapbook & Journal — The Human Side (Segunda
Guerra Mundial: diário e álbum de recortes — o lado
humano). Estava cheio de fotografias, anotações e histórias a
respeito dos homens e da vida a bordo do Natoma Bay. Esse
era outro exemplo de um tesouro — um pacote grosso com
pistas. Partes da autobiografia haviam permanecido nos
armários e álbuns de Cliff Hodge durante sessenta anos. Ele os
estivera juntando para seus netos, mas disse que Bruce
poderia ficar com uma cópia.
As histórias que Cliff Hodge enviou mostravam o lado
humano da guerra. No dia 12 de fevereiro de 1944, o Natoma
Bay estava ancorado em uma baía protegida nas ilhas
Marshall. Cliff, um marinheiro de máquinas, era responsável
pelo equipamento do esquadrão, e o suprimento de
determinado tipo de válvula para os TBMs estava faltando no
navio. A baleeira a motor do navio levou-o até o USS
Intrepid, que tinha um estoque dessa válvula. "Não se esqueça
de voltar para me buscar!", gritou ele para o timoneiro.
Cliff pegou as válvulas, mas a baleeira não voltou. O
timoneiro não se esqueceu; ele simplesmente se perdeu entre
todos os navios na laguna.
Ouviu-se a ordem: "Todos os homens no seu posto para
levantar âncora!"
O Intrepid recebera ordens para se juntar a uma força-tarefa
que lançaria um ataque surpresa à ilha de Truk. Cliff ficou de
mãos atadas. Os oficiais do Intrepid arranjaram um velho
catre para ele e lhe deram umas tarefas leves, e Cliff tentou
não atrapalhar. Quatro dias depois, ele estava no meio do
ataque à ilha. Na segunda noite, foi arremessado para fora do
catre. Seu pescoço realmente doía, e ele não sabia o que
poderia ter feito tremer um porta-aviões tão grande. O navio
fora torpedeado; não o bastante para que afundasse, mas o
suficiente para ficar fora de ação.
Cliff constataria mais tarde que tivera fraturas em duas
vértebras do pescoço.
O Intrepid foi mandado de volta a Pearl Harbor, para reparos.
Vivendo num frágil catre, Cliff ficou com medo de ir à corte
marcial por ficar tanto tempo ausente do serviço sem
autorização. Outra coisa o estava incomodando muito. Sua
esposa, Elsie, estava no último trimestre de gravidez, e havia
semanas que ele não tinha notícias dela. Certa noite, um
homem com farda de oficial perguntou-lhe se poderia fazer
alguma coisa por ele. Ele era da Cruz Vermelha. "Pode sim,
quero saber se sou pai de um menino ou de uma menina."
Cliff esqueceu-se da visita e voltou a dormir.
No dia 1º. de março, fizeram Cliff rolar do catre às 2 da
manhã e disseram-lhe que se apresentasse imediatamente à
pequena plataforma de embarque. Ele embarcou em um
grande hidroavião e foi levado para Espiritu Santo, nas ilhas
Hébridas, onde, quase duas semanas depois, o Natoma Bay
ancorou. Ele voltou ao navio, sem saber se seria preso ou
reintegrado no posto.
Todo mundo adorou a história; afastar-se por uma hora para
pegar algumas peças sobressalentes, ficar detido no meio de
uma batalha, ser torpedeado, navegar 13 mil quilômetros e
voltar um mês depois, sem as peças. Era uma história incrível.
Novos uniformes, seu velho beliche e a correspondência o
aguardavam. As notícias eram boas. Sua filha, Nancy Lee
Ann, tinha nascido no dia 5 de fevereiro de 1944. Apenas
uma coisa levemente desagradável acontecera. Elsie estava
voltando para casa do hospital com o bebê quando viu um
carro estacionado na frente da casa. Quando Elsie saltou do
carro, segurando Nancy Lee Ann, uma mulher de uniforme
aproximou-se dela para lhe entregar o conhecido telegrama
amarelo. Elsie começou a tremer. Todo mundo conhecia o
conteúdo desses envelopes amarelos. Ou o marido dela ou seu
irmão...
— Não são más notícias — disse logo a mulher de uniforme,
ao ver o rosto de Elsie empalidecer.
Ninguém morrera. Era simplesmente o telegrama de Cliff
pedindo notícias do bebê.
Foi uma história divertida em uma guerra muito sombria.
A autobiografia foi acrescentada às pilhas de papéis e pastas
que estavam começando a bloquear alguns cômodos da casa
em Lafayette. O escritório estava transbordando, a sala de
jantar só funcionava como depósito, e as prateleiras estavam
repletas de livros a respeito da Segunda Guerra Mundial. Em
outras circunstâncias, Andrea teria reclamado, mas também
fora enfeitiçada pelo Natoma Bay. Ela estava extasiada e
desejava saber tudo a respeito dos homens no navio. Mas,
acima de tudo, é claro, ela ainda queria descobrir o máximo
possível a respeito de James M. Huston Jr. e das misteriosas
declarações de seu filho. E ela sabia como James Huston era,
por intermédio da tripulação. As histórias pareciam uma
canção, e ela era uma ouvinte sincera.
No início, não estava claro quais elementos eram importantes
ou não. A autobiografia chegou, foi rapidamente lida e em
seguida colocada em outra pilha de documentos, perdendo-se
em meio a tantas informações.
É possível ter documentos e dados em abundância. E por ser
colecionador de documentos eletrônicos e impressos dos
pesquisadores modernos, Bruce juntava tudo. Imprimia todos
os arquivos. Copiava-os. A casa estava começando a correr
risco de incêndio por causa dos papéis do Natoma Bay.
— Está tudo aqui — dizia Bruce para Andrea, e saía correndo
para o trabalho, deixando-a à deriva no oceano de
documentos. E ele estava certo; provavelmente, estava tudo
lá, mas onde? Era preciso saber onde procurar.
Por sorte, Andrea tinha o instinto de um cão de caça para
encontrar as famílias perdidas. No auge de sua frustração,
quando estava perdida na teia de todos os sites, ela se lembrou
da autobiografia de Cliff Hodge. E se lembrou também de que
dentro dela lera outra referência a Eddie Barron. Era algo dito
por outro colega de bordo, James Gleason:
Eddie gostava de chamar a si mesmo de "garoto judeu". E ele
estava pronto para voltar para casa assim que pudesse. Estava
muito animado por ter se casado com aquela que ele descrevia
como "a moça mais bonita do mundo". Ele estava loucamente
apaixonado pela esposa. Eddie modificou o estereótipo que eu
tinha a respeito de como era um judeu. Eddie era um rapaz
simpático e cordial, que genuinamente fazia as pessoas se
sentirem bem por estarem ao seu lado. Ele deixava os outros à
vontade.
Um judeu que chamava a si mesmo de "garoto judeu", como
uma espécie de vacina preventiva para que não o chamassem
assim primeiro, o colega de bordo que fica surpreso com o
fato de um judeu poder ser simpático e cordial — essas
ofensas condescendentes eram comuns na década de 1940.
Andrea olhou além dos pequenos insultos expressos como
elogios. Agora ela percebia um punhado de pistas. Ela sabia
que Eddie Barron era judeu e se alistara na Marinha em
Minneapolis. An¬drea não tivera êxito em Minnesota, mas
agora tinha em mãos a referência de Cliff Hodge à Califórnia.
Talvez Eddie Barron estivesse na relação de mortos da
Califórnia. Ela tentou o site nara.gov (National Archives and
Records Administration), que relaciona a linhagem, e — voilà
— lá estava ele: Edward Brennan Barron. O parente mais
próximo estava relacionado como sua esposa, Miriam Koval
Barron, de Los Angeles.
Mas Andrea ainda não atingira seu objetivo. Não conseguiu
encontrar Miriam Barron nem Miriam Koval na busca que fez
no site das listas telefônicas, de modo que tentou os registros
de casamento de Los Angeles para o ano de 1943. Não
estavam disponíveis. Recorreu então aos registros do censo de
1930 e descobriu que Miriam Koval tinha três irmãs: Zelda,
Elaine e Pearl. Andrea fez uma busca no registro de
casamento com o nome Koval e descobriu que uma tal de
Pearl Koval, de Los Angeles, se casara com um tal de Hyman
J. Davis.
Davis era um nome bastante comum, mas ela tentou os
catálogos telefônicos da Califórnia e encontrou um Hyman J.
e Pearl Davis em Bakersfield. Andrea telefonou para o
número e contou sua história, e a mulher do outro lado ouviu
com aquele misto de desconfiança e assombro que
caracterizava aquelas conversas. Finalmente, convencida de
que Andrea não era uma pessoa com uma nova maquinação
para lhe vender um plano de investimento, a mulher
confessou que Miriam era sua irmã mais velha.
Às vezes o rompimento da barreira acontecia com facilidade
— ou parecia se esclarecer rapidamente depois da longa e
árdua abordagem. Nesse caso, descobrir o número de telefone
certo — encontrar a irmã — abriu as portas. O nome de
Miriam não era mais Barron. Como tantas viúvas de guerra,
ela voltara a se casar. Seu nome agora era Miriam Sherman, e
ela estava disposta e ansiosa para falar a respeito de Eddie.
Sim, ela conhecera Eddie em um encontro quando ele estava
fazendo o treinamento em San Diego. Ficou encantada com o
uniforme e a beleza morena do rapaz, e um pouco nervosa,
por ser alguns meses mais velha do que ele. Ela ocultou esse
fato durante algum tempo, com medo de que ele perdesse o
interesse. Naquela época, os homens tinham idéias engraçadas
a respeito desses detalhes.
Foi amor à primeira vista. Ele a chamava de "Mickey" e não
lhe contou suas terríveis premonições. Ele falou para todas as
outras pessoas que não achava que estaria entre os
sobreviventes da guerra.
Ela sabia detalhes sobre os antecedentes civis dele?
Sabia; os namoros sempre começavam com uma troca de
informações sobre o histórico familiar. Seu nome de batismo
era Edward Brennan Barron, e ele nascera em Minneapolis,
no dia 24 de fevereiro de 1924, filho de Joseph e Pearl Barron.
Eles eram imigrantes; Joseph viera da Rússia, em 1908, e
Pearl, da Romênia, em 1910. Joseph tinha uma loja de roupas.
Eddie tinha um irmão mais novo, Norman, e uma irmã mais
nova, Marguerite. Eles a chamavam de "Dolly".
Miriam descreveu todos os pequenos detalhes que fascinavam
Andrea. Eddie fizera parte da escola de arte dramática
durante o ensino médio e depois se alistou na Marinha,
ficando baseado em San Diego.
Não tiveram muito tempo para ficar juntos. Foi como todos os
casamentos da época da guerra: alguns meses em terra e ele
partiu. Eles mal se conheceram, além do fato de que, durante
algum tempo, em meados dos anos 1940, ele foi seu marido.
Ela voltou a se casar duas vezes depois da guerra, mas Eddie,
disse ela, foi "o amor da minha vida". Miriam estava grávida
quando Eddie partiu. Ele não sabia disso. Depois que soube da
morte do marido, ela deu à luz, gêmeos prematuros, que
morreram dias depois.
Ele era um operador de rádio em um TBM Avenger. Seu
piloto era Ruben Goranson. Seu outro companheiro de equipe
era Eldon Bailey, o atirador de bordo. Ele, provavelmente, os
conhecia melhor do que conhecia a esposa; pelo menos
passava mais tempo com eles.
A parte militar da história — alguns vislumbres do caráter de
Eddie — estava detalhada na autobiografia de Cliff Hodge.
Uma interessante informação suplementar; o tipo de
heroísmo do dia a dia que nunca chega às manchetes (...).
Aconteceu poucos dias antes do vôo fatal (...). Durante a
catapulta, o operador de rádio agarra duas alças que estão
diante dele para preparar o corpo para a (força G) da
decolagem. Era como ser projetado de um canhão. Bem na
frente das duas alças, havia uma prateleira que continha todo
o equipamento eletrônico pesado, como o rádio, o radar etc.
Nesse dia, Ed estava se segurando nas alças quando a catapulta
foi acionada, mas alguma coisa se soltou. O equipamento caiu
com força para trás, imobilizando as mãos de Ed. As duas
mãos ficaram machucadas, e ele ficou preso entre as alças e a
prateleira.
Na torre do atirador, Eldon Bailey olhou para baixo, por
entres os pés, e pôde ver o que tinha acontecido; ele desceu
para tentar ajudar Barron. Sem ferramentas, Eldon não
conseguiu mover a prateleira. Bailey chamou o piloto,
Goranson, e segurou o microfone para que Barron pudesse
falar. Goranson perguntou a Eddie se ele deveria abortar a
missão e voltar para o navio, mas Ed disse que não, que ele
fosse em frente. Partiram então para a missão, em busca de
submarinos, enquanto as mãos de Ed Barron estavam presas
debaixo da pesada prateleira. O pouso no porta-aviões foi
aflitivo, e as duas mãos de Eddie estavam cortadas e feridas.
Mas ele não fraturou osso algum. Sentiu muita dor, mas não
ficou incapacitado. Alguns dias depois, foram escalados para
sair novamente na patrulha antissubmarino, e Eddie foi
dispensado do vôo. No entanto, ele se recusou a deixar que
outra pessoa assumisse seu posto. Insistiu em voar, afirmando
que conseguiria operar perfeitamente os instrumentos.
Às 10h07 do dia 7 de fevereiro de 1945, 17 dias antes do seu
aniversário de 20 anos, enquanto fazia uma patrulha a 20
quilômetros do atol de Majuro, perto das Filipinas, Eddie
Barron enviou um SOS para o navio. O avião estava com
problemas no motor e no rádio e iria fazer um pouso forçado
na água. Foi o último sinal do avião em pane.
Um destróier, o USS Kidd, junto a duas aeronaves da patrulha
antissubmarino, foi desviado para procurar o TBM
desaparecido. Outros aviões ajudaram na busca, mas nenhum
vestígio da aeronave foi encontrado. Nenhum destroço.
Nenhum sobrevivente. Todos desapareceram. Goranson,
Bailey e Barron.
Os nomes eram familiares para Andrea. Quando um TBM
desaparecia, os membros da tripulação morriam juntos; uma
pequena família. Goranson, Bailey e Barron estavam na lista
de 21 mortos do Natoma Bay.
Ela descobriu algumas coisas a respeito dos outros por meio
da autobiografia de Hodge e de alguns registros do navio. O
guarda-marinha Ruben Goranson também era de Minnesota.
Seu pai, Adolph, era lapidador de cristais e insuflador de
vidro. A mãe, Alma, era dona de casa. Também eram
imigrantes, da Suécia. Ruben tinha dois irmãos mais velhos,
Henry e Harold. Os três serviram na Segunda Guerra
Mundial.
Ruben, o caçula, era aluno do curso pré-médico quando a
guerra foi deflagrada. Ele se interessou bastante por voar e
ingressou no programa de candidatos a oficiais da faculdade.
A fábrica de cristais de seu pai ficava no final de um campo de
golfe da cidade, e Ruben, para se exibir, freqüentemente fazia
vôos rasantes sobre a fábrica em seu avião de treinamento. O
pai, que, de um modo geral, era um homem controlado, às
vezes saía correndo da fábrica berrando palavrões em sueco
para o céu.
Isso não incomodava Ruben nem um pouco, que continuava a
fazer os vôos rasantes sobre a fábrica. Ruben era baixo, e
mexiam muito com ele por causa disso. No entanto, tinha
porte atlético; trabalhara como salva-vidas quando estava no
ensino médio. Morreu solteiro, aos 21 anos.
Depois de receber a notícia de que seu filho tinha
desaparecido em combate, seguindo um costume sueco, Alma
cortou galhos de sempre-vivas e colocou-os debaixo da cama
de Ruben. A crença era de que os ramos de sempre-viva
proporcionariam uma passagem segura para casa.
Andrea soube dessas coisas por intermédio de Roger,
sobrinho de Ruben nascido em 1948, que não conheceu o tio.
Eldon Ray "Bill" Bailey era de Kentucky. Seus pais, Hubert e
Elgie Bailey, eram agricultores. A família mudou-se para o
Kansas nos anos 1930 e viram-se às voltas com o Dust Bowl.
A vida deles era muito difícil.
Eram pessoas duronas; era preciso ser vigoroso e obstinado
para sobreviver na Grande Depressão. Eldon também faleceu
com 21 anos.
Eldon tinha um irmão mais novo, cujos estudos ele pagava, e
que simplesmente o adorava. Depois da morte do irmão,
Floyd alistou-se na Marinha.
Andrea e Bruce obtiveram essas informações de um primo, J.
D. Bailey, que fora morar com Hubert e Elgie depois que seus
pais morreram em 1919, vítimas da grande pandemia de
gripe.
As histórias eram desanimadoras, mas, de certa forma,
reconfortantes. Os homens que morreram eram meninos,
apenas meninos, não muito mais velhos do que o filhinho de
Andrea.
CAPÍTULO VINTE E CINCO
Bruce havia descoberto todos os detalhes a respeito da vida
militar dos 21 homens que morreram enquanto serviam no
Natoma Bay. Ele tinha os relatórios de combate, os diários de
guerra, os relatos do pessoal de bordo dos aviões, citações
oficiais de todos os tipos. Ele sabia como e por que tinham
morrido. Porém, não sabia nada a respeito da vida pessoal.
Havia um motivo para isso, ou seja, o fato de que os marujos a
bordo do porta-aviões mantinham uma distância emocional
das tripulações de combate. A experiência lhes ensinara que
tinham de pagar um preço por se aproximarem de homens
condenados.
Portanto, se Bruce e Andrea quisessem completar o quadro —
descobrir toda a história —, teriam de recorrer às famílias dos
militares mortos. Teriam de fazer a pesquisa recuar no tempo,
despertar as famílias para uma dor de mais de cinqüenta anos.
Por outro lado, essas famílias talvez reagissem bem à
possibilidade de saber como seus entes queridos haviam
morrido. Elas raramente tinham essa informação.
O boneco moreno GI Joe no travesseiro de James era uma
cópia exata do guarda-marinha Billie Peeler, piloto do
Natoma Bay, que morreu no dia 17 de novembro de 1944.
Bruce e Andrea tinham certeza desse fato. No entanto, Billie
Peeler não constava da lista principal dos mortos na guerra do
Natoma Bay.
Depois de alguma pesquisa, Bruce descobriu o motivo: Billie
Peeler não perdera a vida em combate, e sim em um vôo de
lazer, com outro membro da tripulação, Lloyd Holton,
durante um período de folga. Seu avião perdeu potência, ficou
descontrolado e mergulhou no mar ao largo da ilha de Pityliu,
depois da batalha do golfo de Leyte.
Billie era um piloto de combate — ganhou a Air Medal em
Samar, na Batalha do Golfo do Leyte, em outubro de 1944 —,
mas, como morreu durante uma folga, seu nome não foi
incluído na placa oficial dos mortos de guerra do Natoma Bay,
localizada no USS Yorktown Museum, em Charleston,
Carolina do Sul.
Bruce examinara os registros e relatórios que conseguira
reunir — relatos de testemunhas oculares de outros navios e
tripulações que nem mesmo os homens do Natoma Bay
tinham visto — e descobriu o trágico fim de Billie Peeler.
Desse modo, do seu jeito corajoso e determinado, o casal
Leininger agiu para estabelecer um lugar adequado para Billie
Peeler na lista principal dos mortos do Natoma Bay e, o que
talvez fosse menos importante, conceder a ele um descanso
apropriado no travesseiro de James.
Andrea encontrou-o no site nara.gov: Billie Rufus Peeler. Ele
era de Granite Quarry, Carolina do Norte. Os parentes mais
próximos eram Carl Banks Peeler e Pearl, Os registros do
censo de 1930 relacionavam quatro crianças como filhas do
casal Peeler: Erdine "Virgínia", a mais velha, Billie, Carl
Banks Jr. e Wallace.
Carl Jr. morreu em 1997.
Havia três W. Peeler na Carolina do Norte, e Andrea
telefonou para os três, mas nenhum era parente de Billie.
Voltei para o whitepages.com e digitei Wallace Peeler, sem
especificar nenhum estado. Obtive um único resultado para o
país inteiro, o que é inacreditável. Wallace L. e Stella Peeler.
Estavam morando em Alexandria, Louisiana, que fica a uma
hora de carro da nossa casa. Não achei que pudesse ter tanta
sorte. Disquei o número, e um homem com voz agradável
atendeu. Repeti a rotina habitual e depois perguntei se ele era
irmão de Billie Rufus Peeler.
O homem foi cordial, loquaz e era o cara certo. O irmão mais
novo de Billie Peeler.
Gastei um total de trinta minutos na internet e qua¬tro
telefonemas para encontrá-lo.
Ficou claro que Wallace fora muito próximo do irmão mais
velho, Billie. A foto dele no uniforme branco de gala ainda
estava pendurada na parede do escritório de Wallace. E o
homem na fotografia tinha grande semelhança com o boneco
GI Joe que James chamara de Billy.
Wallace estava ansioso para falar. Seu pai, Carl Banks Peeler,
era um jogador de beisebol semi-profissional, um
arremessador. Mas naqueles dias, antes da Segunda Guerra,
um jogador de beisebol semi-profissional precisava ter um
emprego para alimentar a família. Assim, ele se tornou
vendedor de automóveis. Durante a guerra, quando as vendas
de carro foram suspensas, ele passou a consertar locomotivas a
vapor. Depois da guerra, voltou a vender carros. Pearl, a mãe
de Billie, Carl e Wallace, era dona de casa. Ela pensou em
trabalhar como costureira quando estava com 80 anos, apenas
para conhecer a sensação de receber um contra-cheque, mas
não levou a idéia adiante.
Billie formou-se no ensino médio em 1940 e imediatamente
ingressou no programa de treinamento de pilotos V-5 da
Marinha. Ele também ficou noivo, mas o nome da moça foi
perdido e esquecido.
Em julho de 1944, Billie, que tinha 21 anos, tornou-se um
piloto de FM-2 Wildcat no VC-81 a bordo do Natoma Bay.
Durante a Batalha do Golfo de Leyte, Billie pilotou seu
Wildcat através de uma chuva de fogo antiaéreo para atacar
um encouraçado e um destróier.
Foi uma ação heróica que lhe valeu uma medalha, mas esses
foram momentos heróicos na história naval, e os homens
envolvidos na guerra estavam mais interessados em ter uma
pausa para respirar e ficar longe do fogo do que em ganhar
medalhas.
Os homens do Natoma Bay foram levados para a ilha Pityliu,
que fazia parte das ilhas Admiralty. Havia um grande pátio de
reparos de aviões em Pityliu, e um piloto com ânsia de voar
podia dar uma volta em qualquer avião desocupado que fosse
declarado em condições de vôo e não estivesse designado para
alguma missão. Às vezes, os aviões não estavam em condições
perfeitas de vôo por terem sido atingidos, mas isso não
preocupava um jovem piloto irrequieto que já participara de
alguns combates difíceis. Desde que não tivessem de voar
através de uma torrente de fogo antiaéreo, ele estava feliz.
Billie e Lloyd Holton, o oficial engenheiro do VC-81 que não
tinha muitas oportunidades de voar, decolaram em um
bombardeiro de mergulho Dauntless, desgastado pela guerra,
e nunca voltaram. O acidente e as mortes foram
testemunhados e confirmados imediatamente, mas a Marinha
só revelou os de¬talhes para a mãe dele depois da guerra.
Prezada Sra. Peeler,
(...) Eu não sabia que a senhora não tinha sido in¬formada de
todos os fatos a respeito de Billie. Não existe nenhuma chance
de que ele possa ter sobrevivido à queda. Um piloto de outra
base viu o acidente e circundou a cena.
Na ocasião, estávamos morando temporariamente na ilha
Pityliu, situada na parte norte do porto Seeadler em Manus,
nas ilhas Admiralty. Vários esquadrões foram enviados até lá
depois da invasão de Leyte e da Batalha de Leyte para
descansar. Tivemos duas árduas semanas de operações e todos
precisávamos relaxar.
Estávamos voando muito pouco. Passávamos os dias nadando,
jogando um pouco de basquete e também à toa, sem fazer
nada.
Certa tarde, Bill e um bom amigo dele, Lloyd Holton,
chegaram à conclusão de que gostariam de voar. Foram até
outro esquadrão e pegaram emprestado um bombardeiro de
mergulho SBD [Ship Borne Dive-Bomber]. Decolaram para
sobrevoar os arredores. Pouco antes do anoitecer, recebemos
uma mensagem pelo rádio informando que haviam recebido
um comunicado sobre um acidente. Como constatamos
depois, o acidente tinha sido com o avião de Bill.
Enviamos um barco de resgate para a cena do acidente, cerca
de 8 quilômetros ao norte de Pityliu. O barco chegou ao local
quando já estava escuro. Não havia nada lá, a não ser alguns
destroços flutuando.
No dia seguinte, conversei com o piloto que viu o acidente.
Ele disse que estava voando em uma altitude relativamente
elevada e, quando olhou para baixo, avistou o SBD em
parafuso a uma altitude de cerca de 600 metros. Em seguida,
viu o avião se recuperar do parafuso e, logo depois, entrar em
outro parafuso. O avião estava começando a se reequilibrar do
segundo parafuso quando atingiu a água e afundou, quase
imediatamente. Ninguém subiu à superfície. O piloto fez a
comunicação pelo rádio e depois continuou a circular o local
e orientar o barco de resgate.
Não há uma explicação segura para a causa do acidente (...).
Todos sentimos imensamente a perda de Bill...
A carta estava assinada pelo capitão-de-corveta Bill Morton,
do esquadrão de Billie.
Wallace estava com a carta. Sua mãe conservara-a consigo até
morrer, em 2000. Ela nunca aceitou a morte de Billie nem se
recuperou completamente. Guardava as roupas dele em um
baú, porque achava que o filho iria precisar delas quando
voltasse para casa.
O sentimento de uma história incompleta rondava toda a
família. Não era apenas a cruel morte acidental, embora esse
fosse um dos fatores.
— Eu também servi na Marinha — disse Wallace a Bruce e
Andrea quando eles foram visitá-lo. — Tinha 19 anos e era
um marinheiro de primeira classe no USS Chester, um
cruzador, que fazia parte da mesma frota do Natoma Bay:
estávamos nos preparando para dar apoio à invasão das
Filipinas. Estávamos em outubro. Billie era oficial e tinha
acesso a todos os navios da frota. Ele tinha feito preparativos
para pegar um barco e ir até o Chester para me ver no dia 12
de outubro. Eu estava muito animado porque fazia quase três
anos que não o via.
Mas no meio da noite, antes que os irmãos pudessem se
encontrar, o USS Chester partiu de repente com os outros
na¬vios de sua força-tarefa e retirou-se do porto Seeadler.
Estavam a caminho de um ataque surpresa a Formosa.
O desencontro continuou enquanto a frota travava combate
no oceano Pacífico. Finalmente, o USS Chester ficou perto do
Natoma Bay em Iwo Jima, onde muitas grandes frotas haviam
se reunido para a invasão. Entretanto, a essa altura, Billie já
estava morto, e as cartas que os pais enviaram da Carolina do
Norte informando o fato a Wallace ainda estavam cruzando o
oceano.
Wallace lembrou-se de ter ficado no convés do Chester
durante a batalha de Iwo Jima, contemplando o horizonte,
observando centenas de navios de guerra, pensando que seu
irmão mais velho estava no Natoma Bay e iria visitá-lo assim
que as coisas se acalmassem.
James chamara seu boneco de "Billy" em homenagem a Billie
Peeler. Finalmente, Bruce e Andrea não tinham mais dúvida
quanto a isso.
O cabelo do último boneco GI Joe era castanho-avermelhado,
na verdade quase ruivo. Seu nome na vida real fora Walter
"Big Red" John Devlin. Era nisso que o casal Leininger
acreditava, embora fosse muito difícil confirmar.
Walter Devlin nasceu em 1921, em Ozone Park, no Queens,
cidade de Nova York. O Queens é um bairro da periferia, o
que indicava que ele provavelmente vinha de uma família da
classe operária.
Lamentavelmente, seu pai não estava relacionado no censo de
1930 e permaneceu não identificado. A mãe de Walter, Mary,
que tinha 46 anos em 1930, morava com o cunhado,
Patrick Devlin, que na época tinha 47 anos, trabalhava como
bombeiro hidráulico e era viúvo. Outra pessoa morava no
local, outro viúvo, Thomas F. Leese, de 67 anos. Ele estava
relacionado no mesmo censo como pai de Mary. Esta teve três
filhos: James, Walter e Gerard, nascidos, respectivamente, em
1920, 1921 e 1923.
Walter se tornou um homem alto, com cerca de 1,95m de
altura.
Mas nem toda a magia de Andrea no computador conseguiu
encontrar um membro vivo da família. Ela encontrou um
James J. Devlin, que morrera em 1995. Consultando os
registros do censo, descobriu que Gerard se alistara em 1942 e
servira na Força Aérea do Exército. Embora tivesse o número
de seu seguro social, Andrea não conseguiu descobrir se ele
estava vivo ou morto. Havia 74 pessoas com o nome Gerard
Devlin em Nova York — das quais 50 moravam no Brooklyn
e em Queens —, e Andrea telefonou para cada uma delas, em
vão.
Só conseguiram recompor a história de Walter Devlin pelos
olhos dos veteranos do Natoma Bay. Ken Wavell, ex-piloto de
Avenger, tinha intensas recordações de "Big Red", que nas
fotografias do esquadrão se parecia com Gary Cooper.
Ele era bem magro e, na realidade, alto demais para ser piloto.
Eu não conseguia imaginar até mesmo como ele cabia na
cabine de pilotagem do caça FM-2. Irlandês, com uma vasta
cabeleira ruiva. Todas as vezes que tinha de fazer um checkup,
ele se abaixava um pouco. Um ianque típico. Grande fã do
Brooklyn Dodger. E gostava de jogar bridge. Dizem que fora
até piloto de carro de corrida, por isso não sentia muito medo.
Mas havia uma coisa que preocupava Red: a água. Ele não
sabia nadar, e tinha medo de um dia precisar fazer um pouso
no oceano. A idéia de um pouso na água deixava-o
simplesmente apavorado.
No dia 26 de outubro de 1944 dois grupamentos foram
enviados contra os navios japoneses que fugiram da Batalha
de Samar e foram para o mar de Visayan. Treze aviões
atacaram um destróier e afundaram-no. A aeronave pilotada
por Red Devlin estava entre as que atacaram o navio. O líder
do grupo era Ken Wavell.
No vôo de volta para o porta-aviões Ken Wavell recebeu um
chamado de Red Devlin. Este disse que estava com problemas,
que estava quase sem combustível. Wavell chamou o porta-
aviões no rádio de comando e pediu para que deixassem
Devlin pousar primeiro, porque sua situação de combustível
estava crítica. O navio não confirmou o recebimento da
chamada, de modo que, quando Red se aproximou, o navio
estava virando na direção do vento. O oficial de sinalização de
pouso, sem saber o quanto a situação de Red era crítica, fez
sinal para que ele não aterrissasse.
Red Devlin respeitou o sinal, recolheu as rodas e ficou sem
combustível. Fez um pouso de emergência no mar a algumas
centenas de metros do Natoma Bay. Os homens no convés o
observaram sair da cabine de pilotagem, dar alguns passos
vacilantes em cima da asa e depois cair na água. Ken Wavell,
que sobrevoava o local, deixou cair uma balsa salva-vidas.
— Ele estava boiando de bruços na água — disse Wavell.
Os homens do Natoma Bay ficaram um pouco desconcertados
com o ocorrido. Eles viram Red Devlin sair da cabine e
caminhar sobre a asa, e uma balsa salva-vidas estava ao
alcance dele. Por que ele simplesmente não nadou
cachorrinho até a balsa? Até mesmo um mau nadador seria
capaz de fazer isso.
A única explicação era que ele talvez estivesse tonto por causa
do impacto do pouso de emergência. Pode ter cambaleado
sobre a asa, mas provavelmente estava apenas executando
automaticamente os movimentos; uma espécie de memória
muscular para escapar.
Eles tinham bons motivos para essa especulação. Todo mundo
sabia que a porta da cabine de pilotagem de um Wildcat tinha
tendência a emperrar durante um pouso forçado no convés ou
no mar. Devlin, com medo de ficar preso dentro da cabine,
provavelmente soltou a correia do equipamento antes de
atingir a água, para livrar-se e ter mais tempo para sair do
avião quando este começasse a submergir.
Quando o avião efetivamente atingiu a água, sem o
equipamento para segurá-lo, a cabeça de Devlin deve ter se
chocado contra a estrutura do avião, e ele ficou atordoado.
Quando os homens no convés o viram cambaleando sobre a
asa, Red Devlin estava provavelmente sofrendo os efeitos de
um traumatismo craniano. E seu maior receio se concretizou:
ele se afogou depois de um pouso na água.
E foi assim que morreu Walter "Red" Devlin, o último boneco
GI Joe.
CAPÍTULO VINTE E SEIS
Você só precisa saber o que perguntar e como perguntar.
Adoro fazer pesquisas no computador.
Tudo se encaixou em fevereiro. Andrea agora era uma
dançarina, serpenteando através do eixo de informações, dos
links, dos sites e dos becos sem saída. Em um mês, ela
encontrara 11 das 21 famílias dos militares mortos. Porém,
mais do que isso, suas preocupações a respeito do caráter de
James Huston Jr. haviam desaparecido. Segundo se constatou,
os jovens do Natoma Bay que perderam a vida na guerra eram
dignos e respeitáveis. Em face de todas as sagas heróicas, a
idéia de que James Huston Jr. se revelasse uma exceção
parecia ridícula.
No final, os militares mortos representavam uma elegante
amostragem da vida americana, com uma amplitude que ia de
filhos de agricultores paupérrimos a rebentos de poderosos
industriais.
E, à medida que cada história se desdobrava, revelava-se sua
dolorosa aflição. Richard Quack, por exemplo, era um dos
rapazes do Natoma Bay que morreram na guerra. Criado em
uma fazenda em Sault Saint Marie, Michigan, entusiasmou-se
desde cedo pela aviação. Seu quarto era repleto de
aeromodelos, e sua cabeça, de aviões de verdade. Ele entrou
para um clube civil de treinamento de vôo quando cursava o
ensino médio, e quando a guerra foi deflagrada Richard
Quack alistou-se na Marinha e ofereceu-se como voluntário
para o treinamento de vôo. Pouco antes de ser enviado ao
Pacífico, casou-se com a namorada do ensino médio,
Dorothy. Ela estava grávida quando ele partiu.
Sua filha, Karen, não conheceu o pai. Richard foi morto em
uma colisão no ar, em uma decolagem antes do amanhecer,
no dia 9 de abril de 1945. Na ocasião, ele tinha 22 anos. Essa
história tinha uma comovente familiaridade.
Peter Hazard foi uma das pesquisas mais difíceis de Andrea. A
família do rapaz era de Rhode Island, mas nos registros do
censo de 1920 eles também estavam relacionados como
residindo em Santa Barbara, Califórnia. Uma pista para o
múltiplo registro estava na descrição dos membros da unidade
familiar: Rowland Hazard, 38 anos, chefe da família; Helen
Hazard, 30 anos, esposa; Caroline, 6 anos, filha; Rowland Jr.,
2 anos, filho; Peter, 1 ano, filho; Elizabeth Stevenson, 30
anos, ama de leite; Catherine McCaughey, 20 anos, babá;
Marie Ziegfeld, 40 anos, arrumadeira; Ana Tobin, 45 anos,
cozinheira; William Ryan, 19 anos, mordomo; Samuel Lopes,
27 anos, motorista.
A família de cinco membros tinha seis empregados. (Outro
filho, Charles, nasceria depois do censo.)
Sob o título da ocupação da família, estava escrito:
"Nenhuma." A família Hazard era rica.
Quando Andrea começou sua pesquisa, todos já tinham
falecido, com exceção da esposa de Charles, Edith. Como
Andrea não conseguiu encontrar um atestado de óbito, ela
digitou "aabibliography.com/rowlandhazard.htm". Não teve
sorte com as listas telefônicas, mas durante uma busca feita ao
acaso encontrou Edith Hazard relacionada como membro do
conselho diretor de um museu de Rhode Island.
Andrea telefonou para o museu e falou com um alto
funcionário, que se recusou a fornecer o número do telefone
de Edith, mas Andrea finalmente convenceu o relutante
administrador a dar seu número a ela. Meia hora depois, ela
ligou para Andrea, e a saga da família Hazard foi revelada.
Era uma antiga família aristocrática inglesa, cuja genealogia
datava do século XI. Os ancestrais de Peter lutaram nas
Cruzadas.
No início, eram magnatas da lã envolvidos com petróleo e
atividades bancárias. Também eram vítimas de tragédias que
pareciam conferir uma espécie de justiça rudimentar à
aristocracia americana. Os filhos morreram na guerra, da
Segunda Guerra à Guerra do Vietnã, e as filhas, de doenças
peculiares (anemia perniciosa ou reação alérgica à penicilina).
Eles eram dispersos e destruídos pelo divórcio e pelo
alcoolismo.
Ainda assim, nas épocas de crise, todos atendiam ao chamado
do dever. Isso também estava escrito no código de honra da
família. Rowland, o filho mais velho, morreu em um acidente
de treinamento na Flórida. Peter, que estudou na St. Paul's
School, em Vermont, e depois em Harvard, onde foi o capitão
do time de futebol, tornou-se piloto naval. Morreu
heroicamente, aos 26 anos, no dia 27 de março de 1945, na
batalha de Okinawa.
Peter estava pilotando um Avenger, pronto para atacar um
alvo terrestre, quando um enxame de camicases cruzou sua
frente, prestes a atacar a frota americana. Sem hesitar, Peter
Hazard interrompeu sua missão e tentou interceptar os aviões
suicidas japoneses. Ele voou na direção do fogo antiaéreo
americano para romper a formação japonesa. Foi um ato
suicida temerário e corajoso, e talvez tenha salvado a frota.
Eles não encontraram destroços ou sobreviventes, apenas um
corante amarelo de sinalização no lugar em que o avião de
Hazard afundou. Peter Hazard morreu junto com sua
tripulação: o operador de rádio Bill Bird e o marinheiro de
máquinas Clarence Davis.
Charles, o filho mais novo, estava lutando em um batalhão de
tanques na Europa. Ele foi levado para casa como o último
herdeiro sobrevivente do sexo masculino.
Edith Hazard desconhecia os detalhes da morte de Peter;
Elizabeth, a irmã de Richard Quack, convivera com o
mistério da morte de seu irmão durante meio século.
Era a política do Ministério da Marinha dos Estados Unidos
manter os detalhes como "Altamente Sigilosos", temendo na
ocasião que o inimigo pudesse se beneficiar ao aprender
táticas ou mesmo ao saber quem tinha morrido. Era uma
época voltada para a segurança, quando o slogan "Loose lips
sink ships" (Falar demais faz navios afundarem) era o mantra
entoado por todos.
As famílias enviavam cartas para os comandantes ou os
colegas de bordo pedindo informações, e, com raras exceções,
elas eram negadas por motivos de segurança. Mesmo depois
da guerra, a burocracia impedia o governo de revelar os fatos.
Bruce achou que estava na hora de romper o silêncio, de
modo que, depois de cada contato, o casal Leininger enviava
uma carta agradecendo à família, uma cópia dos diagramas
dos Relatórios de Combate da Aeronave e qualquer outro
documento oficial relacionado com a morte em questão. Ele
também incluía transcrições de quaisquer entrevistas
informais com colegas da tripulação, acrescentando uma
narrativa humana à história. E, por último, anexava cópias das
fotografias que encontrara na reunião.
O alívio era sempre grande. Essas famílias haviam passado
sessenta anos agarrando-se a tênues fios de dúvida e
esperança. A conclusão era sempre bem recebida.
Bruce também incluía um poema. Foi algo que ele escreveu
depois da primeira reunião dos veteranos a que compareceu,
ocorrida em 7 de dezembro de 2002. O poema intitulava-se
"Knights of the Air and Water" ("Paladinos do ar e da água").
Paladinos que nunca viram o último amanhecer.
Que o aguardam na última chamada para o QG ou TWO
BLOCKFOX.
É realmente um por todos e todos por um.
Deus, conceda este dia à essência do companheirismo desses
homens enquanto equipe.
Que Seu Espírito de amor eterno abrace cada um dos entes
queridos deixados para trás.
Isso também era um conforto para os sobreviventes.
CAPÍTULO VINTE E SETE
James McCready Huston, pai, perseguia Bruce Leininger. A
idéia desse homem freqüentando as antigas reuniões do grupo
na década de 1960, perambulando entre os veteranos,
perguntando sobre o filho, tentando descobrir como ele
morrera e indo embora de mãos vazias transmitia a sensação
de uma ferida aberta para Bruce. James McCready Huston
morreu em 1973, mas Bruce achava que, mesmo assim, devia
a ele um relato da morte do filho.
O trabalho do último mês no computador aumentara a
confiança de Andrea, e ela tinha um acervo maior de sites e
links com os quais trabalhar. Além disso, ela e Bruce tinham
se livrado do medo do que iriam encontrar. Estava na hora de
voltar a investigar James Huston Jr.
Comecei com o registro do censo, porque ele confirmaria se
eu estava lidando com a família certa. Procurei todos os
registros da Pensilvânia que continham o nome James M.
Huston ou James Huston. Na terceira ou quarta tentativa,
encontrei o que estava procurando: James M. Huston, chefe
de família; esposa, Daryl; filha, Ruth; filha, Anne; e filho,
James Jr. Eu sabia, é claro, que James M. morrera em outubro
de 1973 e que Daryl falecera quatro meses depois. E sabia
também que eles moravam em Los Gatos, Califórnia. Mas era
aí que a trilha parava abruptamente. A essa altura, eu estava
determinada a me esforçar mais. E isso significava voltar para
a base da Pensilvânia.
Andrea pesquisou o índice de óbitos do seguro social e
confirmou que James e Daryl tinham morrido em 1973 e
1974, respectivamente, na Califórnia; em seguida, ela entrou
no site ancestry.com, tentando encontrar registros de
casamento para Ruth ou Anne. De volta ao beco sem saída das
mulheres.
A única coisa a fazer era mudar de rumo e recuar mais ainda
na história. Ela queria ver se conseguiria localizar algum
primo, qualquer parente do sexo masculino. Quanto mais
detalhes, melhor.
Então, foi atrás dos registros de James do censo nos anos 1910
e 1900. O pai de McCready Huston era dentista, Dr. Joseph
Andrew Huston. Ele se casara com uma professora, Elizabeth
Fishburn. Tiveram três filhos: John Holmes Huston, James
McCready Huston e Smith Fishburn Huston. John Holmes
Huston faleceu aos 23 anos, possivelmente na Segunda Guerra
Mundial. Ele era solteiro e não deixou filhos. Smith Fishburn
Huston, que morreu em 1960, casou-se com Christena
Williams e teve cinco filhos, dos quais quatro eram meninas.
O único menino era Robert M. Huston.
Não havia sinal dele nas listas telefônicas da Pensilvânia.
Havia 250 pessoas com o nome de Robert Huston nos Estados
Unidos, um número excessivo para uma metodologia baseada
em telefonemas, mesmo para uma pessoa incansável como
Andrea.
De volta ao essencial. A ocupação de James McCready Huston
estava relacionada como redator de jornal. Por definição, um
redator de jornal deixaria um rastro de papel. Navegando na
internet, Andrea encontrou alguns artigos a respeito de James
McCready Huston. Um deles foi no Brownsville Time
Capsule, de Brownsville, Pensilvânia. Era a crítica literária de
um romance que ele escrevera e que estava sendo publicado
pela Bobbs-Merrill Company. A obra chamava-se The King of
Spairis Daughter e desfrutava um modesto sucesso. A crítica
do livro mencionava que Huston tinha sido editor do News-
Times de South Bend, Indiana. Andrea também encontrou
outro artigo mencionando uma coluna que ele escrevera para
o Brownsville Telegraph, chamada "And That Was
Brownsville".
A família McCready tinha raízes em Brownsville.
A ligação com a Pensilvânia parecia mais forte, de modo que
Andrea telefonou para o Brownsville Telegraph e perguntou
se alguém se lembrava de James McCready Huston ou do
filho dele, James M. Huston Jr.
Foi uma das tentativas ao acaso, uma pequena linha tênue
lançada no escuro sem muita esperança de sucesso. Por sorte,
o Brownsville Telegraph era um desses jornais pequenos em
que todo mundo conhece todo mundo, ou pelo menos sabe
onde descobrir coisas a respeito das pessoas.
Andrea foi encaminhada para uma ex-secretária que tinha
trabalhado no jornal durante muitos anos. Claro, ela se
lembrava da família Huston. Uma das primas de Huston ainda
morava na região. Era uma das filhas de Smith Huston, Jean.
A velha secretária pegou a lista telefônica, procurou o
número e desejou boa sorte a Andrea.
"Olá, meu nome é Andrea Leininger, e meu marido, Bruce, e
eu estamos trabalhando em um livro..."
Jean ficou feliz com o telefonema de Andrea. Sabia tudo a
respeito de James M. Huston Jr. e seu heroísmo na Segunda
Guerra Mundial. A irmã mais velha dele, Ruth, fora colunista
social do Brownsville Telegraph. Mas falecera.
A essa altura, Andrea já aprendera a lidar com o entusiasmo
da esperança e a frustração da decepção trazidos pelo vento.
As pessoas morrem, desaparecem ou esquecem. Entretanto,
Jean tinha uma notícia arrasadora: a outra irmã de James,
Anne, ainda estava viva, e morava na Califórnia. Jean não
tinha informações de contato, não sabia como encontrá-la,
mas estava certa de que sua irmã, June, sabia tudo isso. Então,
Andrea anotou o número do telefone de June e telefonou para
ela.
June era loquaz. Passou uma hora falando a respeito de tudo
com Andrea: do pé chato do filho, do que estava cozinhando
para o jantar... e Andrea conseguia ouvir em segundo plano o
barulho das panelas, a água correndo e as portas batendo.
June vivia com o fone encaixado no ombro e agora fornecia
informações à sua nova amiga a respeito dos antecedentes do
clã Huston. Depois de muito tempo, Andrea finalmente
conseguiu obter o nome de casada de Anne e seu número de
telefone, e desligou. O nome era Anne Huston Barron, e ela
estava então com 84 anos.
Uma voz doce e suave atendeu o telefone em Los Gatos,
Califórnia.
— Alô?
Andrea explicou novamente quem ela era e por que estava
telefonando e, em seguida, fez a pergunta aflitiva e
apavorante:
— Você é irmã de um piloto, James M. Huston, que morreu
na Segunda Guerra?
E a voz doce e suave respondeu:
— Sou.
O coração de Andrea estava batendo como o de um coelho
assustado, e ela se sentou à mesa da cozinha com um bloco,
um lápis e o telefone. Explicou a Anne o caminho que teve de
percorrer pata encontrá-la e como descobrira Jean.
— Jean gosta muito de falar — disse Andrea.
— É verdade — respondeu Anne. — Depois que converso
com ela durante meia hora no telefone, preciso atender a
porta de repente.
Ela falou sobre seus pais. Tinham se mudado para a Califórnia
depois que se aposentaram. Morreram com poucos meses de
intervalo um do outro.
Andrea queria falar sobre o irmão dela, James.
— Nós o chamávamos de Jimmy.
— O que você tem a me dizer a respeito dele?
— Oh, ele era louro, de olhos azuis, e tinha estatura e
constituição medianas. Um rapaz bonito. Adorava voar.
Desde pequeno, costumava construir modelos com pau de
balsa. Quando ficou mais velho, sempre que tinha
oportunidade, voava nos velhos biplanos. Oh, e tinha uma
boa voz para cantar. Até mesmo cantava no rádio, em um
coral. Adorava "Red Sails in the Sunset".
— Você se lembra de alguma coisa a respeito da morte dele?
— No dia em que ele morreu, eu estava arrumando minha
casa na Califórnia, para a volta dele. Íamos reunir a família.
Nossos pais viriam de Bryn Mawr, na Pensilvânia, onde
moravam na época.
"Enquanto eu fazia a limpeza, tive a repentina sensação de
que Jimmy estava perto de mim. Sua presença foi tão forte
que na verdade comecei a conversar com ele. Eu me lembrei
disso alguns dias depois, quando papai ligou para me dar a
notícia. Eu me lembrei que isso tinha acontecido no dia 3 de
março.
"Mamãe e papai nunca falavam a respeito da morte de Jimmy,
mas papai foi a várias reuniões para ver se conseguia obter
alguns detalhes, sem qualquer êxito."
Jimmy tinha um amigo, Jim Eastman. No dia em que Jimmy
morreu, a mãe de Jim Eastman disse que teve um sonho no
qual Jimmy se aproximou dela e disse: "Eu só queria me
despedir." O sonho fez seu cabelo ficar em pé.
Eu ainda tinha esperanças de que toda essa conversa a
respeito de espíritos estivesse errada. Huston fora abatido
quando pilotava um caça FM-2 Wildcat — não um Corsair.
Esse era um fato concreto ao qual eu podia me agarrar.
Ninguém no encontro ao qual eu comparecera vira, em
nenhum momento, um Corsair decolar do Natoma Bay.
Nesse meio tempo, eu tinha de cuidar do meu negócio de
consultoria, que exigia muita atenção. E depois recebi aquele
telefonema muito agitado no dia 17 de fevereiro. Dre
encontrara a irmã de Huston. Eu nunca realmente imaginara
que ela fosse conseguir. Quero dizer, ela já havia tentado
intensamente, e se vira sem opções; portanto, meu entusiasmo
com relação à possibilidade de ela ser mais bem-sucedida
dessa vez era pouco. Pelo menos no que dizia respeito a James
Huston. Mas Dre é persistente e talentosa quando se vê diante
de um computador, e em questão de dias ela descobriu o
paradeiro de Anne.
Era uma senhora de 84 anos que morava em Los Gatos, na
Califórnia; telefonei algumas vezes para ela e ficamos amigos.
Ela disse que iria me enviar algumas fotos de James tiradas
durante o serviço militar. Para a minha pesquisa.
Quando ela me perguntou por que eu estava tão interessado,
menti, assim como mentira para Leo Pyatt. Mais uma vez, eu
não tinha escolha. Apenas disse que estava curioso e queria
escrever um livro. Na verdade, ninguém sabia por que eu
estava tão determinado a obter essas informações. Descrevi a
ela os detalhes sobre a morte de James, como seu avião fora
abatido em Chichi-Jima. Ela me perguntou qual era o local
exato, e respondi que era um porto, muito bonito. Ela pareceu
gostar da resposta.
Li para ela os relatórios pós-combate. Eu lhe disse que lhe
enviaríamos os registros militares, inclusive uma fotografia do
porto de Chichi-Jima, e ela ficou muito agradecida.
O pacote de Anne chegou no dia 24 de fevereiro. Eu não
estava preparado. Na realidade, eu estava totalmente
despreparado.
Eis o que dizia a carta:
Muito obrigada por todos os dados que me enviaram. Tenho
refletido bastante sobre isso. É muito mais pessoal do que
tudo o que eu tenho. A fotografia mostra que a baía é bela e
muito tranqüila. Um túmulo encantador. Como quase todas as
pessoas que moram sozinhas, tenho minha pequena rotina. O
meu café da manhã e o jornal. Depois das notícias, as palavras
cruzadas. No nosso jornal, o horóscopo está impresso acima
das palavras cruzadas. Raramente o leio, porque ele
geralmente diz que um objeto perdido será encontrado ou que
um grande romance se descortina no futuro (aos 84 anos, essa
é uma boa notícia). De qualquer modo, resolvi dar uma
olhada no horóscopo de ontem, e eis o que li:
"Escorpião (23 de outubro a 21 de novembro). Ênfase no que
aconteceu há muito tempo e muito longe. Você talvez esteja
contemplando uma viagem, uma reunião com alguém que
desempenhou um importante papel no seu passado..."
Junto da carta, havia fotos. As primeiras eram de James M.
Huston Jr. Bruce e Andrea tinham-no visto nas fotografias em
grupo e também nas do esquadrão, de modo que já conheciam
sua aparência.
Foi a quarta foto que os deixou paralisados. Era uma fotografia
do esquadrão, do tipo costumeiro de um grupo de
rapazes bem animados e com saúde para dar e vender. Não foi
isso que os deixou paralisados. Foi uma coisa em segundo
plano. Atrás desse esquadrão particular, havia um Corsair.
— Você tem certeza? — perguntou Andrea.
— A capota — replicou Bruce. — A capota do motor de um
Corsair é inconfundível. É um Corsair.
A fotografia seguinte era ainda mais assustadora. Era apenas
de James Huston, e ele estava de pé na frente de um Corsair.
Não havia engano. A fuselagem, as asas de gaivota, a cabine
de pilotagem elevada. Decididamente, um Corsair.
CAPÍTULO VINTE E OITO
Bruce procurava uma explicação lógica a respeito do
significado dos pesadelos de seu filho. Ele pesquisara com
afinco e insistia em afirmar que, fossem lá o que fossem, não
eram prova de uma vida passada. Entretanto, ele perdera a
batalha com relação ao nome Natoma Bay, pois o navio era
americano, não japonês. Jack Larsen revelou-se uma pessoa de
carne e osso que decolara do Natoma Bay. O conhecimento
que o filho de Bruce tinha de aviões e da aviação era no
mínimo estranho; os combates no oceano Pacífico eram reais,
e os veteranos confirmaram os detalhes. Finalmente, ele teve
de aceitar que James Huston Jr. era o piloto que tinha
morrido nos horrendos pesadelos de seu filho.
Ainda assim, Bruce se agarrava ao fato de que James insistia
em afirmar que pilotara um Corsair na guerra, embora não
houvesse relato algum sobre Corsairs no Natoma Bay. E agora
a última barreira tinha caído. Ele tinha nas mãos a foto de
James Huston Jr. diante de um Corsair.
Bruce estava começando a acreditar em algo além da razão.
Fui batizado e criado como católico. Cresci indo à igreja todos
os domingos com minha mãe e minha irmã. Meu pai teve
muito pouco envolvimento com a igreja durante minha
infância. A igreja é um lugar que faz com que eu me sinta à
vontade, seguro e bem-vindo.
Quando era mais novo, eu ia à igreja com amigos de
diferentes religiões para ver como elas eram. Freqüentei
templos budistas, catedrais católicas, igrejas luteranas,
pentecostais, anglicanas... e a maioria das outras igrejas
protestantes. Fui até mesmo a sinagogas.
No entanto, quando amadureci, associei-me ao movimento
cristão evangélico e, com o tempo, vi-me envolvido com uma
associação de empresários cristãos da Igreja Anglicana.
Nós nos encontrávamos de 15 em 15 dias para estudar a
Bíblia, realizar debates e assimilar a Palavra de Deus em nossa
vida. Era uma jornada dramática. Eu estudava a Bíblia
intensamente. O Espírito Santo manifestou-se para mim na
glossolalia, na cura pela fé e no discernimento.
Presenciei curas que sei que eram genuínas.
Compreendi pessoalmente o verdadeiro poder da oração.
Rezei pedindo uma segunda chance depois do fracasso de meu
primeiro casamento porque eu estava espiritualmente
perdido. Rezei pedindo uma esposa de olhos verdes — e
oriental —, e minha segunda mulher, Andrea, tem olhos
verdes, e sua mãe é metade filipina.
Basta dizer que sinto que sou um cristão desenvolvido em
uma trajetória contínua de crescimento espiritual.
Se os pesadelos de James eram verdadeiramente a
manifestação de uma vida passada, a prova de uma
reencarnação, então, na minha opinião, isso ameaçaria a
promessa bíblica da salvação. Se a alma imortal pode se
transferir aleatoriamente de pessoa para pessoa, de geração
para geração, então qual a implicação desse fato para a
redenção da ortodoxia cristã? O que acontece no Dia do Juízo
Final se a alma imortal é transferida dessa maneira? Isso vai
contra o ensinamento evangélico do renascimento por meio
de uma vida pessoal transformada.
O impacto da história de James em meu bem-estar espiritual...
bem, parecia uma operação militar espiritual. Meu propósito
ao tentar ignorar o que estava acontecendo com meu filho era
confirmar que tudo isso não passava de uma coincidência, por
mais remota que essa possibilidade pudesse parecer.
É claro que fui arrastado para isso ao criar aqueles testes, ao
elaborar perguntas que tinham que ser respondidas, e o tempo
todo eu estava me aproximando cada vez mais de uma coisa...
perigosa... Era como colocara mão no fogo...
No entanto, mesmo agora que todas as evidências estavam do
outro lado, de maneira que sua recusa em ceder parecia
despropositada, Bruce ainda não se convencera
completamente. Havia a antiga questão da falta de uma
testemunha ocular. Um mero fiapo ao qual ele se agarrou,
mas, mesmo assim, era alguma coisa. Ele não diria em voz
alta, não poderia dizer, que se tratava de uma vida passada.
Ele simplesmente não era capaz de dar esse último passo. A
palavra "reencarnação" violava os Evangelhos e sua própria
interpretação do significado da Bíblia.
E foi um período de relativa paz. A crise espiritual pareceu
regredir. Até mesmo os pesadelos haviam quase desaparecido
da casa situada na West St. Mary Boulevard. Eles se tornaram
raros, irrompendo de meses em meses.
Bruce estava empenhado em pesquisar a vida dos mortos que
haviam servido no Natoma Bay. As famílias enviavam pacotes
de documentos e fotografias para Lafayette, e Bruce copiava
todos com cuidado, e depois os devolvia. As famílias
remetiam os documentos originais ao casal Leininger, o que
causava uma grande impressão em Bruce e Andrea, de modo
que eles eram muito cautelosos ao lidar com o material.
Os pacotes amorosamente embrulhados continham os
telegramas originais notificando o falecimento à família, os
registros do recrutamento, as cartas que eles mandaram para
casa e seus últimos pertences. Bruce criou um inventário para
cada vítima.
Ele elaborou uma pasta de folhas soltas para cada um dos
rapazes, e Andrea chorava cada vez que um pacote chegava
pelo correio.
Bruce telefonava todos os dias do trabalho, perguntando se
algum pacote tinha chegado. No início de março, eles estavam
atolados de material. Bruce passava o início de cada noite
telefonando para as famílias para lhes dizer que o pacote
havia chegado em segurança. Delicadamente, ele fazia e
respondia a novas perguntas geradas pelo material.
A atenção de Andrea estava voltada a assuntos mais
rotineiros. Ela ficava acordada a noite inteira preocupada com
a escola na qual James começaria sua formação. O ano escolar
2002-2003 para a turma do jardim de infância da Asbury
United Methodist Church estava prestes a terminar, e com
seu jeito meticuloso Andrea procurou uma escola substituta.
Tinha de ser a melhor escola particular; ela não admitiria
nada menos para James. A Ascension Day School passou em
todos os testes.
Eu não tinha uma segunda escolha. Eu estava em pânico,
imaginando que ele poderia não ser aceito. Até mesmo
telefonei para a escola para verificar se eles estavam enviando
cartas de aceite. Eu não conseguia dormir. Parecia que eu
estava esperando uma carta de Harvard.
Certo dia, quando o Sr. John, o carteiro, trouxe nossa
correspondência, lá estava a carta da Ascension. James fora
aceito. Eu chorei. Telefonei em seguida para Bruce. James
ficou feliz, mas não tão entusiasmado quanto eu.
No departamento de como educar filhos de maneira criativa,
Andrea tinha poucas pessoas à sua altura. No fim de fevereiro,
ela compareceu a uma maratona de bicicleta de São Judas
Tadeu na Asbury Church. Algumas crianças estavam andando
em bicicletas de duas rodas. Ela disse a Bruce que estava na
hora de fazer a transição. Já fazia um ano que James tinha
rodinhas na bicicleta.
Mas James estava nervoso com relação a andar sem elas.
As rodinhas na bicicleta são mais como muletas, já que a
maioria das crianças nesse estágio já descobriu como se
equilibrar sem realmente ter consciência disso. Quando eu
era bailarina, tive uma professora maluca que gostava de bater
com a bengala no chão acompanhando o ritmo da música.
Isso enlouquecia todo mundo, de modo que meus colegas
decidiram levar a bengala dela a um marceneiro, que a
reduziu em 3 milímetros. Foi um pedaço imperceptível, e ela
nada notou.
Algumas semanas depois, eles cortaram mais 3 milímetros da
parte inferior da bengala. A professora não conseguiu definir
o que estava acontecendo, mas sentia que algo estava
diferente.
Um mês depois, após mais algumas aparadelas, ela começou a
ter de se curvar para bater com a bengala no chão.
Finalmente, ela solucionou a charada e comprou uma bengala
nova, com a ponta de aço. Essa peça fez com que as batidas se
tornassem suportáveis.
Decidi usar o mesmo truque com as rodinhas da bicicleta de
James. Levantei-as um pouco, e ele não notou. Depois,
levantei-as um pouco mais. Finalmente, ele precisou ajustar o
equilíbrio para não cair da bicicleta.
O problema é que nossa entrada de veículos era curta demais
para que ele pudesse desenvolver velocidade suficiente a fim
de encontrar o equilíbrio adequado. Certo dia, eu o levei para
o fim da West St. Mary, onde há um beco sem saída. James
pôde ficar andando em círculos na bicicleta como se estivesse
nas 500 Milhas de Indianápolis. Retirei as rodinhas da
bicicleta e segurei a parte de trás do selim, correndo junto à
bicicleta, por medida de segurança.
Quando James finalmente desenvolveu velocidade suficiente,
soltei o selim, e ele decolou na bicicleta em direção à nossa
casa, e eu comecei a gritar para que ele parasse nas placas de
"pare". Ele simplesmente não deu a menor atenção a elas. Não
sou uma boa corredora. Todos os meus anos de balé me
ensinaram a usar os dedos do pé, não os calcanhares. Mas eu
era mãe, e meu filho estava correndo perigo. Corri como o
vento, gritando e berrando para que ele parasse nas placas.
Quando chegamos em casa, gritei com ele.
— Eu disse para você parar nas placas. Você passou direto por
todas elas! Teve muita sorte por não ter sido atropelado por
nenhum carro. Por que você não parou?
James simplesmente respondeu: "Não consegui me lembrar do
que eu tinha que fazer para parar a bicicleta."
Fiquei mancando nos três meses seguintes porque machuquei
o joelho quando corri atrás dele, mas depois daquele dia James
não precisou mais das rodinhas.
Em suma, foi uma época tranqüila e feliz. Andrea conseguiu a
escola de sua preferência, e Bruce não precisou quebrar a
cabeça a respeito das implicações espirituais da provação de
James.
Certa noite, estavam acordados até mais tarde, transcrevendo
anotações e copiando registros e fotos. Passava de meia-noite;
Bruce estava em seu escritório, e Andrea, na cozinha. De
repente, ouviram James gritar durante o sono. Andrea saiu da
cozinha e se dirigiu ao corredor, encontrando Bruce na porta
do quarto de James.
Entraram no quarto e viram James sentado na cama,
soluçando, só que ele parecia estar dormindo. Ambos se
aproximaram dele, abraçaram-no, e ele abriu os olhos, mas
estava claramente adormecido.
— Está tudo bem, amigão? — perguntou Bruce. James não
respondeu; apenas continuou a chorar.
— Você está tendo um pesadelo? — perguntou o pai. James
simplesmente fitou os pais e continuou a chorar.
— O que está havendo? — insistiu Bruce.
Bruce começou a ficar perturbado, pois queria uma resposta.
Se havia algo errado, ele esperava ouvir o que era. Era aquela
antiga tendência didática que ele tinha desde a faculdade. Mas
Andrea não conseguia determinar se James estava acordado
ou dormindo.
— Vá buscar um copo d'água — disse ela a Bruce, arranjando
uma tarefa útil para tirá-lo do quarto.
Em seguida, Andrea massageou as costas de James e quase
cantou: "Está tudo bem, querido. Você está seguro no seu
quarto, e tudo está tranqüilo." Era a técnica básica de Carol
Bowman de acalmar a criança sem abalá-la, sem acordá-la
abruptamente, sem intensificar o medo.
James pareceu acordar suavemente no momento em que
Bruce voltava trazendo a água. O menino tomou um longo
gole.
— Com o que você estava sonhando? — perguntou Bruce.
— Não me lembro.
E, enquanto ele se deitava para dormir de novo, Andrea disse
a Bruce que voltasse aos seus afazeres porque ela ia ficar um
pouco mais ao lado de James.
Quando Bruce foi embora, Andrea abraçou o filho,
murmurando palavras doces para que ele se sentisse
protegido, até ter certeza de que estava tendo um sono
tranqüilo; em seguida, ela seguiu pelo corredor em direção ao
escritório de Bruce.
— O que você acha que foi aquilo? — perguntou ele. —
James não tem um pesadelo há meses.
Andrea tinha uma idéia. Era algo em que ficara pensando o
dia inteiro, embora não fosse uma coisa que desejasse trazer à
tona, por recear ser ridicularizada.
— Você sabe que dia é hoje?
Bruce pestanejou. Ele não sabia aonde Andrea queria chegar
com aquilo. As idéias dela continham muitas esquisitices.
— A data? Sei, hoje é dia 3 de março. Andrea assentiu com a
cabeça.
— Três de março. É o aniversário da morte de James Huston
— comentou.
Bruce entendeu e deu um tapa na cabeça. Claro. Em seguida,
pensou em outra coisa.
— Você disse isso a ele? — perguntou.
— Claro que não — respondeu Andrea.
— Você nem mencionou o fato durante o dia? Não existe
possibilidade de ele ter ouvido essa informação por acaso?
— Não. De jeito nenhum. Mas de uma coisa você sabe: não
existe nenhuma maneira de algum dia sabermos com certeza
— declarou Andrea.
CAPÍTULO VINTE E NOVE
Andrea ficou exausta naquela primavera. Ironicamente, as
provas eram excessivas! Eram excessivas para ela, e
insuficientes para Bruce.
Francamente, eu estava cansada da interminável investigação
de Bruce. Nada era suficiente. Havia sempre apenas mais um
detalhe que deveria ser precisamente definido, confirmado —
quando então ele realmente acreditaria. A minha vida era
mais simples. Escolhi acreditar. Eu não precisava de um
cadáver na minha sala para me convencer de que James estava
vivendo a vida de James Huston.
Tomemos o pesadelo que ocorreu no aniversário da morte de
James Huston; isso parecia amarrar a situação, ou pelo menos
indicar uma ligação com James Huston. No mínimo, era
intensamente sugestivo, mas não acabou com a controvérsia
sob o teto da família Leininger.
— Não podemos ter certeza. Foi apenas um pesadelo. Ele teve
um milhão deles.
— Espere um pouco! Não houve outro pesadelo mais ou
menos na mesma época, no início de março de 2002? Talvez
tenha até sido no dia 3 de março.
— Houve, mas isso foi em 2002. Não significou nada.
— Por que não?
— Foi antes de sabermos de fato a data da morte de James
Huston.
— E daí?
— Então não conta.
Estavam tontos com tanta confusão, de modo que fizeram o
que sempre faziam: pestanejaram, engoliram em seco e
prosseguiram com a vida — isto é, a vida com toda a incerteza
que a acompanhava.
Em abril, comemoraram o quinto aniversário de James indo
de carro até a Naval Air Station, em Pensacola, na Flórida,
sede do Naval Air Museum. Pensacola também era o centro
de operações dos Blue Angels.
Como de costume, Bruce percorreu alguns quilômetros
adicionais, viajando mais 320 quilômetros até Eufaula, no
Alabama, para visitar a família de Leon Conner. Esse era bem
o estilo — perambular pelo país, procurar pilotos, como se
estivesse indo encontrar o elo perdido. Cada viagem tinha
uma causa subjacente. Andrea aceitava, era apenas mais um
pedágio na estrada que poderia conduzi-los adiante.
Passaram um dia no museu naval de Pensacola. O
equipamento e os artefatos dos aviões e porta-aviões eram
sempre emocionantes. Todo mundo gostava de se comprimir
nos espaços apertados dos velhos porta-aviões, imaginando os
marinheiros serpenteando e correndo em direção aos postos
de combate ao som das sirenes de guerra.
E havia também as cabines de pilotagem que estavam
guardadas no segundo andar; James simplesmente as adorava.
Quase tiveram de expulsá-lo da cabine de um velho F-4
Phantom, uma das aeronaves originais dos Blue Angels.
Precisaram implorar e ameaçar deixá-lo sem comer para
conseguir tirá-lo de lá.
Um dos objetivos da viagem era obter mais informações a
respeito do Natoma Bay, mas estavam no museu errado. O
museu dos porta-aviões de escolta ficava no Texas. Estava
situado a bordo do USS Lexington (CV-16), que estava
atracado em Corpus Christi.
Outra viagem, outra chance para Bruce procurar veteranos.
Sempre havia pilotos reformados que pairavam como
mariposas ao redor da chama de uma base aérea naval.
Alguma coisa a respeito da proximidade dos aviões os atraía,
fazia com que se instalassem nas proximidades.
A família Leininger passou o fim de semana do Memorial Day
em Corpus Christi e, certa tarde, enquanto Andrea levava
James para nadar, Bruce pegou o carro e foi até Rockport para
visitar outro piloto idoso. Esse voara em uma missão na qual
outro piloto do CV-63 fora morto. Ele não tinha muito a
acrescentar aos relatórios de combate, mas Bruce não se
importou. Olhando para esses velhos homens, de cabelos
brancos e finos, deslocando-se em andadores, ele via os
impetuosos jovens pilotos que um dia eles haviam sido
naquelas fotografias de sessenta anos atrás.
Na verdade, as visitas aos pilotos nunca eram completamente
infrutíferas. Suas memórias não eram confiáveis e os detalhes
que conseguiam acrescentar não eram significativos. No
entanto, Bruce apreciava encontrá-los em carne e osso; sentia
prazer na companhia deles e continuava a fazer acréscimos a
seus documentos.
No entanto, ele não podia contar com o que estava sempre
procurando: uma testemunha ocular da morte de James M.
Huston Jr. Esse era seu último pequeno fio de ceticismo.
Ele estava prestes a ser cortado.
À tarde do dia 3 de junho foi abafada, como é normal na
Louisiana, nessa época do ano. Andrea estava em casa,
tentando organizar um cardápio para o jantar, sem prestar
atenção a nada em particular, quando o telefone tocou.
— Olá, meu nome é Jack Durham, e você não me conhece.
Estou ligando porque encontrei uma mensagem que seu
marido colocou em um site a respeito de Chichi-Jima...
Outro membro do clube "nunca vamos parar de pesquisar ou
falar a respeito do Natoma Bay".
— Venho tentando entrar em contato com seu marido há
semanas, mas ele deve ter mudado de endereço de e-mail,
porque todas as minhas mensagens estão voltando.
Finalmente, decidi procurar na lista telefônica.
Andrea não estava prestando muita atenção ao que o homem
estava dizendo, pois havia a tarefa mais urgente do jantar, e
ela não conseguia estabelecer uma relação muito próxima
com todos os personagens do grande drama do Natoma Bay.
— Bruce está em casa?
— Hã?
— Eu estava dizendo que encontrei a mensagem dele no site
de Chichi-Jima — a que ele colocou setembro passado...
Um momento! Essa foi aquela antiga mensagem na garrafa.
Era uma resposta do homem que estivera em Chichi-Jima. Ele
era uma possível testemunha ocular!
— Não, Bruce não está em casa, mas eu sou a esposa dele,
Andrea. Terei prazer em transmitir a ele seu recado e pedir
que ele telefone para você.
Jack Durham, o homem que estava telefonando, começou
então a explicar para Andrea o motivo pelo qual ele estava
tentando entrar em contato com Bruce. Na verdade, ele
queria falar com alguém a respeito da incerteza com a qual
convivia havia muitos anos.
— Fiquei emocionado quando li a mensagem que ele colocou
a respeito do ataque ao porto de Futami Ko. Bruce queria
descobrir se alguém tinha visto aquele avião ser derrubado.
Quando li os detalhes, eu me dei conta de que eu estivera
naquela missão em 3 de março de 1945, e vimos o avião ser
atingido e cair no porto.
— Oh, meu Deus! — Andrea mal conseguia falar. — Você
realmente viu o avião ser atingido?
A voz do outro lado da linha forneceu a resposta para um
número enorme de perguntas que estavam levando a família
Leininger ao seu limite.
— Vi. Eu vi o avião ser abatido.
Por que ele não relatara o fato? Por que os relatórios pós-
combate estavam tão desorganizados e confusos? Por que
todos foram apresentados como uma espécie de boato — uma
versão na terceira pessoa?
Durham tinha uma explicação perfeitamente razoável.
— Bem, minutos depois de o avião daquele cara ser atingido,
o meu avião também foi. Não chegamos a voltar ao navio, o
USS Sargent Bay. Caímos na água. Mas todos os membros da
minha tripulação sobreviveram.
Desse modo, Andrea pôde ver que seu marido não era tão
maluco, afinal de contas. Sua longa investigação produzira
mais do que uma descoberta chocante.
Andrea disse a Jack Durham que Bruce teria realmente muito
prazer em falar com ele. Ela anotou o número do telefone,
confirmando-o várias vezes. Pegou também o endereço e um
número alternativo para o caso de ocorrer outra falha na
comunicação.
Ela estava esperando por mim na porta, com um pedaço de
papel no qual tinha escrito um número de telefone. Era de
um cara chamado Jack Durham, e ela disse que ele era a
pessoa por quem eu estivera esperando a vida inteira.
É claro que dei o telefonema assim que entrei em casa. Ele me
disse o que dissera a Dre: que lera minha mensagem no site de
Chichi-Jima, a que eu colocara meses antes, em setembro.
Quando a leu, deu-se conta de que ele era uma testemunha da
morte de James Huston no porto de Futami Ko.
Ele fazia parte da tripulação do Sargent Bay; era um operador
de rádio em um dos oito TBM Avengers que participaram do
ataque a Chichi-Jima partindo do Sargent Bay. Os oito caças
de escolta FM-2 eram do Natoma Bay.
Perguntei se ele estava absolutamente certo com relação aos
detalhes. Ele respondeu que tinha verificado — que tinha
procurado no seu diário de vôo: 3 de março de 1945. Essa
tinha sido sua missão.
Jack Durham escrevera a história sob a forma de uma
autobiografia informal.
"A rotina estava normal até o final da tarde do dia 2 de março
de 1945. Fui informado de que iria substituir Pop Stewart e
que sairia em uma missão contra Chichi-Jima, o buraco do
inferno das ilhas Bonin (...).
"Essa parte da história deveria começar por volta de 2h30 do
dia 3. Fomos acordados e vestimos os trajes de vôo. Em
seguida, fomos para o refeitório, onde os cozinheiros nos
perguntaram como íamos querer os ovos — e, se estou bem
lembrado, como queríamos os bifes. Bifes! Isso deveria ter
servido de alerta.
"Fomos informados de que uma formação japonesa de
reposição de soldados e suprimentos tinha de ser detida. Cada
um de nossos aviões estava carregado com quatro bombas de
230 quilos e seis projéteis com ogivas de 130 milímetros.
Nosso vôo em direção ao objetivo era de cerca de 200
quilômetros, e queríamos estar lá quando amanhecesse para
que nossa aproximação fosse favorecida pelo fato de eles
estarem contra o sol. Quando nos aproximamos da ilha, pelo
leste, pudemos avistar o fogo antiaéreo explodindo ao longe
— para que soubéssemos que eles estavam esperando que nós
os 'surpreendêssemos'.
"Formamos em escalão e nos preparamos para mergulhar, e
reparei que o nosso era o último avião no ataque. Seja o que
for, pensei eu, vamos fazer o mergulho, disparar os projéteis,
soltar as bombas e cair fora o mais rápido possível. Em poucos
minutos, estaríamos no caminho de volta, depois de cumprir
outra missão.
Eu tinha carregado a minha arma de calibre 30 milímetros e
achei que poderia acertar alguma coisa quando estivéssemos
nos afastando do porto. Com somente 280 cartuchos em
minha caixa de metralha — e uma elevada cadência de tiro —
, eu não tinha muito tempo para ficar à toa.
A primeira coisa que reparei foi a incrível quantidade de fogo
antiaéreo; isso não era como Iwo Jima.
Um dos caças de nosso esquadrão de escolta estava perto de
nós e foi atingido diretamente no nariz. Tudo que consegui
avistar foram pedaços caindo na baía. Ele também era o
último avião dos caças de escolta.
Antes que eu me desse conta, minha metralhadora ficara
quieta. Minha munição acabara.
Quando saímos do mergulho e nos dirigimos a mar aberto, vi
o lugar em que o caça tinha caído. Os anéis na água ainda
estavam se expandindo perto de uma grande pedra na entrada
no porto.
"Quando o ataque terminou, ouvi a conversa entre os outros
pilotos do grupo; eles ainda não tinham soltado suas bombas.
Ganhamos altitude para a segunda investida. Fizemos uma
vez; podemos fazer de novo."
Mas na segunda investida o avião de Durham foi atingido,
embora não a ponto de ele ir direto para o porto. Com avarias,
conseguiram se afastar e fazer um pouso forçado na água em
um lugar onde puderam ser resgatados por companheiros
americanos.
Agora o relato estava completo. Ninguém do Natoma Bay vira
Huston cair na água, porque todos estavam voando para longe
da cena. Huston era o último avião do grupo dos caças de
escolta a atacar os navios atracados no porto. Ele era o último
da formação. Quando deparou com o fogo antiaéreo, os outros
caças — inclusive seus wingmen Jack Larsen, Bob Greenwalt
e William Mathson Jr. — já estavam se formando para o
ataque seguinte. Ninguém olhou para trás. Somente os
bombardeiros de outro esquadrão, que haviam decolado de
outro porta-aviões, presenciaram a morte de Huston.
A história de Durham a respeito da missão foi eloqüente.
Bruce pediu a ele que esperasse um instante, descansou o fone
em cima da mesa e foi correndo até o escritório. Pegou os
registros de combate e o diário de guerra do Sargent Bay,
voltou para o telefone e leu-os para Durham. Tudo o que se
tinha dito estava confirmado ali. O avião de Huston fora
atingido no motor, e a parte da frente explodiu e formou uma
bola em chamas que caiu instantaneamente no porto.
Ninguém avistou sobreviventes.
Todas as versões oficiais eram compatíveis, porém, mais do
que isso — em um nível ainda mais emocionante —,
correspondiam exatamente à descrição do pesadelo feita pelo
pequeno James em 2000.
Por um momento, Bruce emudeceu. Andrea ficou ao lado
dele, com as mãos sobre a boca.
Havia outras testemunhas, afirmou Durham. Pilotos dos
TBMs tinham visto o avião de Huston ser atingido e cair.
Durham forneceu os nomes a Bruce: Ralph Clarbour, Bob
Skelton e John Richardson. Eles também estavam na missão;
também viram o avião de Huston ser atingido e cair em
chamas.
Ao longo das semanas seguintes, Bruce conversou com as
outras testemunhas, e com pequenas variações sem
importância, todos os relatos respaldaram o que Durham
dissera. Era uma espécie de efeito Rashomon da batalha do
porto de Futami Ko ao lado de Chichi-Jima.
Como era seu hábito, Bruce quis visitar os veteranos, falar
com eles frente a frente, provar a si mesmo que estava
obtendo fatos concretos, de fontes confiáveis.
John Richardson morava em Nacogdoches, Texas. Ele tinha
doença de Parkinson, mas estava ansioso para ver Bruce.
Pediu-lhe que levasse uma fotografia do falecido piloto.
Bruce dirigiu quase 500 quilômetros para vê-lo. John
Richardson estava velho e fraco, mas tinha coisas para
desabafar.
O bate-papo foi breve. Richardson disse que queria contar
algo a Bruce antes que ficasse cansado demais. Ele parecia
estar lutando contra seus sentimentos enquanto estavam
sentados na sala.
— Essa missão revelou-se realmente arriscada. Tínhamos
informações a respeito de Chichi-Jima e sabíamos que era um
lugar extremamente perigoso, mas naquela época éramos
jovens e tínhamos energia para dar e vender. Nada nos assusta
quando temos 19 anos. Depois daquele dia, a sensação passou
a ser diferente.
Quando começamos a entrar em formação para nossa investida
do lançamento de bombas, vimos os caças entrando
antes de nós. Ser um atirador em um TBM era uma posição
excelente, uma verdadeira poltrona de camarote. O caos era
total. Podíamos ver bombas caindo no mar embaixo de nós.
Parecia chuva.
Os japoneses começaram a atirar em nós quando ainda
estávamos bem fora de alcance. Entramos em formação para o
ataque, e, é claro, não consegui ver realmente para onde eu
estava indo, porque minha função era proteger nossa
retaguarda no caso de um ataque. Mas comecei muito rápido a
ver centenas de baforadas de uma feia fumaça preta ao meu
redor quando meu avião e outro da minha seção que estava
atrás, à minha esquerda, foram encobertos pelo fogo
antiaéreo.
Uma quarta aeronave me assustou. Era um caça. Estava bem
perto de nossa asa esquerda. Estava disparando suas
me¬tralhadoras, atirando no que estava embaixo de nós. Não
mais de 30 metros nos separavam quando o piloto
deliberadamente virou a cabeça e olhou para mim.
Captei o olhar dele e estabelecemos contato. Nesse exato
momento, o avião dele foi atingido no motor por uma bomba
que parecia bem grande.
"O avião foi engolido por um clarão instantâneo de chamas.
Ele não se desintegrou, mas desapareceu debaixo de mim
quase imediatamente."
Nesse ponto, John Richardson começou a soluçar. Em
seguida, lentamente se recuperou.
— Sr. Leininger, vivi com o rosto desse piloto com os olhos
fixos em mim todos os dias depois daquele dia. Eu nunca
soube quem ele era. Fui a última pessoa a vê-lo com vida.
Ele começou a gaguejar, e depois concluiu, com a voz repleta
de emoção: — Fui a última pessoa que ele viu antes de
morrer. Seu rosto me perseguiu a vida inteira.
Ele olhou para baixo, para a foto que segurava com as mãos
trêmulas.
— Reconheço o rosto dele nesta foto. Jamais poderia esquecêlo.
Agora eu sei quem ele foi.
Ele voltou a falar, com suavidade: — Quando fomos embora
do porto, pude ver onde Huston tinha caído. As ondulações
causadas pelo impacto estavam se propagando pelo porto. Ele
bateu em uma grande pedra bem perto da entrada.
Depois, Bruce mostrou a Richardson um diagrama do porto
de Futami Ko e do local marcado pelo relatório pós-combate.
Ele assentiu com a cabeça: — Foi ali que ele caiu.
Mais tarde ele e Bruce penduraram a foto de James Huston no
gabinete de Richardson.
Este último telefonou para Anne Barron, a irmã de James
Huston, algumas semanas depois, e contou a ela o que tinha
visto. Ela se sentiu grata por ele ter telefonado.
— Estou aliviada por saber que Jimmy não sofreu — disse ela
a Bruce — e um pouco triste porque meu pai morreu antes de
saber o que aconteceu.
Richardson faleceu pouco tempo depois.
CAPÍTULO TRINTA
A teoria operacional, ou seja, que eu estava essencialmente
trabalhando em um livro a respeito do Natoma Bay, estava
agora no fundo do porto de Futami Ko. Afinal de contas,
tratava-se realmente de James.
Não que eu estivesse completamente despreparado para essa
conclusão. Houvera o pinga-pinga lento e incessante de
provas — um desafio tombando depois do outro —, até que
somente um idiota continuaria a resistir. Eu estava preparado
para admitir que meu filho, James, estava vivendo uma vida
passada. Seja o que fosse que isso significasse.
Mas não significava reencarnação. Esta palavra me deixa
muito pouco à vontade.
Houve mais um momento de "dúvida" grotesca, que exigiu
mais uma prova maluca antes que Bruce ficasse disposto a
jogar completamente a toalha.
Por que não ir até o avião que estava no fundo do mar e
examiná-lo? Bruce chegou à conclusão, depois de ouvir a
história de Durham e Richardson, de que o avião de Huston
poderia ser facilmente localizado no fundo do porto de
Futami Ko. Ele tinha a posição precisa do local no mapa; todas
as testemunhas oculares afirmaram que ele ficava na entrada
do porto, perto da grande pedra. Por que um mergulhador
não poderia ir ao fundo do mar para confirmar que a cabine
de pilotagem estava emperrada, como James insistia que
estava? Ele tinha o número de identificação da aeronave —
74037 —, que podia ser visto sem que a cabine fosse aberta.
Parecia um teste bastante objetivo. Foi nesse ponto que
Andrea bateu o pé.
Se eu estivesse em um shopping quando tinha 15 anos e
alguém se aproximasse de mim dizendo que estava fazendo
uma pesquisa de opinião e me perguntasse se eu acreditava ou
não na reencarnação, eu teria respondido "Acredito". Não
tenho motivo algum. Não foi uma conclusão a que eu cheguei
depois de muita ponderação. Era uma convicção intuitiva.
A reencarnação não foi a conclusão inicial à qual cheguei no
caso de James. Eram apenas pesadelos. Levei cerca de oito
meses para chegar à teoria da reencarna¬ção. Bruce levou...
bem, ele nunca realmente mudou de idéia.
"Mas isso resolverá toda a questão", argumentou ele. "Os
céticos terão de abandonar seu ceticismo."
Se pudesse, Bruce pegaria o DNA dos ossos dentro daquela
cabine para verificar se havia compatibilidade com a família
Huston.
Bruce estava mais ou menos começando a se convencer da
idéia da vida passada, mas, já que não podia ir ao local olhar
para a cabine, quis verificar alguns pontos não resolvidos.
Conversar com mais alguns homens.
A reunião do esquadrão VC-83 do Sargent Bay estava
programada para o período de 12 a 15 de setembro de 2003,
em San Diego. Jack Durham pediu a Bruce que fosse até lá.
Muitos pilotos e membros da tripulação estariam presentes,
homens que tinham visto o avião de James Huston cair.
A oportunidade era boa demais para ser desperdiçada.
Mais uma vez, Bruce se viu em um avião fantasmagórico no
dia 11 de setembro, dessa vez em 2003, a caminho da
Califórnia. Era um momento de reflexão. Nos últimos anos,
ele gastara milhares de dólares, viajara milhares de
quilômetros, conhecera e conquistara totais desconhecidos,
desenvolvera um afeto por um velho porta-aviões esquecido,
lera dezenas de livros a respeito da Segunda Guerra Mundial,
juntara milhares de páginas de documentos e passara a se
sentir à vontade entre veteranos não-valorizados. As esposas,
e até mesmo alguns dos filhos e netos, estavam sempre
presentes nessas reuniões, permanecendo em segundo plano,
sorrindo entusiasmados, enquanto esses velhos pilotos se
juntavam de novo às suas famílias da época da guerra,
revivendo todas as antigas histórias, os olhos cintilando com
lembranças insistentes e distantes, agitando antigos vínculos
que o tempo acabaria apagando.
As reuniões eram sempre planejadas de acordo com a
conveniência, já que muitos dos veteranos não tinham muita
facilidade de locomoção. O grupo não era muito grande em
2003 (todos os anos os encontros contavam com menos
pessoas à medida que os veteranos iam morrendo ou ficavam
doentes), e a reunião era apenas de um único esquadrão, o
VC-83, e não como as do Natoma Bay, em que toda a
tripulação no navio e os grupos aéreos se reuniam.
Bruce fez o check-in no hotel e foi em busca da sala de
operações. Cerca de vinte homens com as respectivas esposas
estavam assinando a lista de presença, olhando em volta,
verificando os que estavam presentes, os que ainda estavam
vivos. Bruce conheceu John Provost, que fora o piloto de Jack
Durham, e Bob "SBD" Skelton. Ambos tinham visto o avião
de Huston ser atingido e cair, embora não tivessem tido
acesso à visão completa e detalhada que John Richardson
tivera do avião caindo na água. Skelton estava em uma
cadeira de rodas, e Bruce curvou-se um pouco para poder
ouvi-lo melhor.
Eles viram o avião ser atingido, mergulhar e depois
desaparecer, o que foi um fato incomum. O combate aéreo é,
em geral, um evento solitário, emocionalmente distante, que
o espaço tornava mais aceitável. Huston, no entanto, não
estava a mais de 30 metros de distância dos TBMs que
participavam do ataque quando seu avião explodiu.
A descrição respondeu a outra questão. A bomba que atingiu
o avião de Huston arrancou a hélice. Isso explicava por que as
aeronaves de brinquedo de James sempre acabavam ficando
sem as hélices.
Àquela altura, Bruce já conhecia o procedimento-padrão das
reuniões: a leitura das minutas, visitas ao Memorial do Porta-
Aviões de Escolta e lembranças das vitórias e das perdas do
ano. Em uma das noites, Bruce fez uma apresentação no
PowerPoint mostrando como os porta-aviões de escolta
tinham participado juntos na guerra. Um fotógrafo a bordo do
Sargent Bay tinha captado o ataque camicase ao Natoma Bay
nos últimos meses da guerra.
No entanto, foi em um pequeno encontro no café da manhã,
no primeiro dia da reunião, que Bruce teve sua verdadeira
epifania.
Ele marcara um encontro com Jack Durham no restaurante
do Holiday Inn na baía de San Diego. Era um desses cafés-
restaurantes em que as garçonetes se aproximam e vão
enchendo de novo sua xícara antes que você tenha a chance
de provar o conteúdo.
Um senhor simpático aproximou-se para conduzir Bruce à
mesa dele.
— Olá, sou Jack Durham. Você é Bruce?
Bruce lembrou a si mesmo que aquele senhor "simpático" um
dia voara em perigosas missões de combate e bombardeara
posições inimigas.
À mesa, estavam sentados Ralph Clarbour e a esposa, Mary.
Ralph, que um dia fora atirador em um TBM, era o presidente
da VC-83 Association. Após as apresentações e o bate-papo
inicial de costume, os homens encontraram seus pontos em
comum. Na vida civil, Ralph fora presidente do American
Institute of Steel Erection Contractors e, por coincidência,
estava familiarizado com um dos principais clientes de Bruce,
a Lafayette Steel Erector.
— Você pode me dizer por que quis comparecer à reunião? —
perguntou Ralph.
— Bem, estou tentando encontrar o maior número possível
de testemunhas oculares da morte de James Huston, no dia 3
de março de 1945...
Ralph assentiu com a cabeça.
— Eu estava lá nesse dia. Vi o que aconteceu.
— Mesmo? O que você viu?
A resposta não foi mecânica, mas desprovida de emoção.
— Vi quando ele foi atingido. O avião de Huston foi atingido
no motor. Houve um clarão de fogo instantâneo, e o avião
mergulhou imediatamente em um ângulo mais inclinado e
caiu no porto.
A garçonete chegou nesse momento com os pratos do café da
manhã subindo pelos braços: ovos, cereais e bacon. A
entrevista teria de esperar.
Mas Ralph estava curioso.
— Por que você está tão interessado em homens como
Huston? — insistiu, com o garfo a meio caminho da boca.
Àquela altura, eu deveria estar preparado para essa pergunta.
Os veteranos e suas famílias sempre queriam saber por que eu
estava tão interessado em James Huston. Minha resposta
sempre fora a mesma: eu estava fazendo uma pesquisa para
um livro. Entretanto, naquele momento, eu estava com um
grande pedaço de ovo preso na garganta e, literalmente, não
conseguia engoli-lo. Acho que engasguei com a idéia de
repetir a mesma velha mentira. Finalmente degluti e contei a
verdade.
Não estou absolutamente certo do que me levou a escolher
aquele momento. Talvez fosse o fato de a história de James ter
se tornado inegável. Talvez fosse a vergonha que eu sentia por
ter me infiltrado no meio deles com falsos pretextos. Talvez
fosse simplesmente o fato de eu não conseguir começar a me
relacionar com outro grupo de veteranos sem ser
completamente sincero. Eu desejava que eles me aceitassem,
queria a aprovação deles. A verdade é que eu desejava
escrever um livro a respeito deles, mas queria que soubessem
como tudo realmente começara.
Na mesa, Jack estava à minha esquerda, e Mary, diante dele.
Ralph estava na minha frente. Afastei meu prato com ovos.
"Há três anos meu filho começou a ter pesadelos..."
A mesa ficou em silêncio. Os três ouviram a história de Bruce:
os detalhes específicos que tinham surgido nos pesadelos de
James, o conhecimento íntimo dele a respeito do Natoma Bay
e de seus pilotos, os nomes que surgiam do nada, os fatos que
haviam sido conferidos e verificados, o menino de 2 anos que
mostrou ao pai, em um mapa, o lugar no qual o avião de
James Huston tinha sido derrubado.
A essa altura, Ralph, Mary e Jack também tinham empurrado
o prato para o lado. Bruce inclinou-se para frente e contou a
eles que James explicara que seu avião — o avião de James
Huston — tinha sido atingido diretamente no motor,
exatamente como Ralph descrevera momentos antes.
Ralph mostrou-se espantado.
Bruce contou também que localizara as famílias dos pilo¬tos
falecidos e que encontrara Anne Barron, a irmã de Huston;
descreveu os desenhos inflamados de emocionantes combates
aéreos assinados por "James 3", seu filho.
As pessoas na mesa ficaram paralisadas. Finalmente, Mary
interrompeu o silêncio:
— Como está James agora?
— Os pesadelos praticamente acabaram; ele agora é apenas
um menino normal de 5 anos.
Bruce estivera falando durante quase uma hora. O primei¬ro
a reagir foi Jack Durham.
— Bem, eu vou lhe dizer uma coisa...
Bruce encolheu-se, esperando um ataque, ou pelo menos uma
censura por tê-los enganado.
Mas não foi o que aconteceu. Jack tinha a própria história
dramática. Ele fora derrubado pouco depois de Huston ter
morrido. Na mesma missão. Deslocara o ombro e perdera os
dentes na queda. E tinha parentes próximos que juravam tê-lo
ouvido gritar naquele dia, na hora em que ele passou pelo
grande perigo e sofreu enorme angústia.
Todos tinham seus pequenos sinais de paranormalidade. Mary
disse que seu filho morrera no Vietnã. Quando o Exército lhe
deu a informação oficial, ela já desconfiava de que ele
estivesse morto. Ela tivera premonições a respeito do filho
sendo ferido ou morto. Essas coisas não eram raras entre os
veteranos e suas famílias.
— Acreditamos em sua história; sabemos que essas coisas
acontecem — declarou Mary.
Os outros concordaram com a cabeça.
Queriam que Bruce participasse de uma excursão ao porto de
San Diego e depois contasse sua história na noite seguinte em
um jantar do esquadrão, mas ele estava hesitante. Esse ainda
era um assunto delicado, eram coisas que ele não entendia
completamente.
Bruce precisava ficar algum tempo sozinho para pensar sobre
a questão. Falar a respeito do assunto para um grande grupo
lhe parecia um pouco como uma prédica, talvez até mesmo
arrogante.
Bruce nem mesmo entendia por que tinha lutado tanto contra
a idéia, resistido por tanto tempo. Tinha de haver algo além
de sua vontade de desmascarar o conselho. De algum modo,
ele teria de chegar a um acordo com os fenômenos gêmeos do
fato e da fé.
Sozinho no quarto do hotel, Bruce pegou uma Bíblia Gideons
e folheou o livro de Eclesiastes no Antigo Testamento.
"Tudo tem seu tempo determinado (...). Tempo de calar e
tempo de falar..."
E eu tive uma espécie de revelação. A experiência de James
não era contrária à minha crença. Deus, pensei, nos dá um
espírito que vive para sempre. O espírito de James Huston
voltara para nós. Por quê? Eu nunca saberei. Mas ele tinha
voltado. Existem coisas que são inexplicáveis e misteriosas.
Eu tinha sido vencido. Não devia explicações do motivo a
ninguém. Tudo o que eu precisava fazer era dizer às pessoas o
que havia acontecido.
Minha jornada tortuosa apresentava fatos. A cultura secular
exigia fatos e provas, e eu realizara esse difícil trabalho.
Eu dera um salto de fé. Eu acreditava — realmente acreditava
— na história. Não precisava de um motivo.
CAPÍTULO TRINTA E UM
No dia 15 de setembro, Bruce Leininger pegou o avião de
volta para Louisiana em uma nuvem de recém-descoberta
satisfação. Ele decifrou o caso e, o que era mais importante,
libertou-se de suas dúvidas. E sua história fora aceita pelo
único público que realmente contava: os próprios veteranos.
Toda aquela pesquisa, todos aqueles documentos, aquelas
refeições insípidas dos aviões, tudo não passava de detalhes
históricos. Uma experiência técnica. O processo inteiro fizera
com que ele saísse da lista dos indecisos e fosse para a lista do
sim. Bruce não poderia estar mais feliz e satisfeito.
É claro que essa disposição de ânimo não iria durar. Primeiro,
teria de passar pelo duro interrogatório habitual dos membros
do conselho Scoggin, o que era problemático agora, pois ele
estava do lado delas. Além disso, elas eram as mulheres
Scoggin, e tinham uma inclinação para dizer "Bem que eu
disse" e exigir concordância, e Bruce foi obrigado a aceitar
tudo de bom humor.
— Está bem, está bem — disse ele —, vocês estavam certas. O
que mais posso dizer? James teve uma vida passada. Vocês
estavam certas, e eu, errado.
— Tudo bem — replicou Andrea —, mas você não vai
mergulhar para encontrar o avião e tentar abrir a cabine,
certo?
— Não, não vou, embora não consiga ver que mal... Nesse
momento, o telefone tocou, Andrea atendeu e ouviu uma voz
conhecida.
Estávamos no dia 19 de setembro, sexta-feira; era o início do
outono, época em que, na Louisiana, o tempo continua
quente e úmido. James começara a freqüentar o jardim de
infância na Ascension Day School, e eu estava ocupada na
cozinha com um monte de tempo livre.
— Olá, Andrea, aqui é Shalini Sharma, do ABC Studios em
Nova York.
— Shalini! Há quanto tempo! Como vai você?
Era a jovem produtora que tinha trabalhado na história do
programa 20/20 que nunca fora ao ar.
— Como vão as coisas por aí? Como está James? Alguma
novidade? Vocês conseguiram localizar Jack Larsen?—
perguntou Shalini de um só fôlego.
Se havia alguma novidade? Era melhor ela se sentar!
Eu a atualizei com as notícias. Nos últimos 18 meses,
tínhamos encontrado Jack Larsen, localizado grande parte da
tripulação sobrevivente dos aviões do Natoma Bay,
confirmado grande parte da história de James, inclusive o fato
de ele ter realmente pilotado um Corsair. Descobrimos o
nome completo do piloto James de que o menino se lembrava:
James M. Huston Jr.
Shalini ficou empolgada. Suas raízes ancestrais são indianas, e
ela realmente acredita em reencarnação.
Acrescentei:
— E agora Bruce está do nosso lado.
Esse talvez tenha sido o maior choque de todos. Bruce era um
incrédulo linha-dura.
— Não trabalho mais no 20/20.
Bem, isso era natural no ramo da televisão. Os jovens
produtores trocavam de empresa com enorme facilidade.
— Para quem você está trabalhando agora?
— Para o ABC Primetime.
Ela disse que houvera uma sessão de brainstorming no ABC
Primetime e que nosso nome viera à tona quando estavam
discutindo pautas para o programa. Ela perguntou se
estaríamos interessados em contar novamente a história, dessa
vez para o Primetime.
Respondi que teria de conversar com Bruce a respeito. Disse
que ela poderia fornecer nosso nome ao produtor, Clem
Taylor, e que discutiríamos minuciosamente o assunto com
ele.
Shalini mencionou que o fator tempo era importante.
Queriam fazer tudo muito rápido, já que estavam
pretendendo levar o programa ao ar no dia 31 de outubro.
Bruce sentou-se e tomou um drinque.
— Não gosto da parte do Halloween — comentou.
Andrea também não gostava.
Ainda assim, um passo de cada vez. É claro que colocaram o
assunto em discussão no conselho, e todas foram a favor de
que a história fosse transmitida na televisão. A atitude delas
foi bem típica dos descendentes de franceses da Louisiana:
"Laisser les bons temps rouler"— "Deixemos rolar os bons
tempos."
Nos dias que se seguiram, enquanto o debate prosseguia na
Louisiana, Shalini telefonou e disse que, se eles concordassem,
o correspondente seria Chris Cuomo, filho do ex-governador
do estado de Nova York, Mario Cuomo, que era um jovem
correspondente de televisão muito bem-apessoado e em
ascensão.
A data prevista, Halloween, ainda estava incomodando
Andrea, porque poderia retirar um pouco da seriedade do
processo, fazer com que ele parecesse mais uma história
insubstancial de fantasmas e duendes. Apenas outra história
de assombração.
Por outro lado, havia um grande incentivo. O casal Leininger
ainda não conseguira encontrar oito das famílias dos militares
do Natoma Bay que haviam morrido na guerra. Transmitir a
história na televisão a divulgaria e, talvez, persuadisse os
sobreviventes a se revelarem.
No início de outubro, Shalini começou a insistir em uma
resposta. Ela queria marcar uma data certa com Chris Cuomo
e a equipe para que viajassem a Lafayette para a filmagem.
Depois de muitas conversas, finalmente combinaram que a
equipe chegaria no domingo, 19 de outubro. A produção
aconteceria no dia seguinte.
Agora a pressão estava sobre a família Leininger. Os
produtores queriam entrevistar todas as pessoas relacionadas
com o Natoma Bay: Al Alcorn, John DeWitt, Leo Pyatt, Jack
Larsen e a irmã de James Huston, Anne Barron.
O grande problema era que nenhuma das pessoas com quem
eles queriam conversar a respeito da vida passada de James
sabia da verdadeira história, ou seja, do verdadeiro motivo
que levara a família Leininger a se envolver com o assunto.
Bruce contara a verdade para algumas pessoas na reunião do
Sargent Bay, mas os veteranos do Natoma Bay ainda tinham a
ilusão de que o interesse de Bruce começara por causa de um
vizinho e se transformara no desejo de escrever um livro.
Para que pudessem concordar em participar da história do
Primetime, todos teriam de ser informados. Alguém teria de
contar a verdade a essas pessoas. Já que haviam aceitado
receber a equipe de filmagem em menos de uma semana,
teriam de falar, primeiro, com Anne Barron.
Andrea estava uma pilha de nervos, preocupada com a
possibilidade de Anne achar que eles eram lunáticos ou
charlatões. Ela poderia até ter um ataque do coração. Andrea
obteve então o número do telefone do Corpo de Bombeiros
de Los Gatos para o caso de alguma coisa acontecer com Anne
quando ela estivesse ouvindo a notícia.
Afinal de contas, Anne era uma mulher de 86 anos. Na noite
da grande revelação, Andrea fortalecera-se com um drinque e
oferecera outro a Bruce para se prepararem para a
teleconferência. Esperaram até as 22h no horário da
Louisiana, 20h na Califórnia, para telefonar. Levaram esse
tempo todo para reunir coragem.
Bruce pegou o telefone, digitou sete ou oito números, e
desligou. Outro copo de vinho; talvez isso tornasse a situação
mais fácil.
Finalmente, pensando "Seja o que Deus quiser", digitou os
nove números do telefone.
— Alô?
— Olá, Anne. Aqui falam Bruce e Andrea. — O tom deles
estava alegre, mas era por causa do vinho. — Como você está?
— perguntaram, em um tom bastante animado, como se
fossem apresentadores de um programa de televisão. Se Anne
se queixasse de alguma coisa, se não estivesse bem de saúde,
eles encerrariam a ligação. Mas ela disse que estava ótima.
Que não poderia estar melhor. O casal Leininger ficou dando
voltas, evitando o momento crucial.
— Como você está?
— Muito bem e vocês?
— Muito bem também.
— Como está James?
— Ele está ótimo.
Andrea estava fazendo sinais com as mãos e movendo os
lábios:
— Fale logo de uma vez, pelo amor de Deus! Em seguida, ela
sugeriu que Anne se sentasse.
— Anne, você bebe?
— Não — respondeu Anne.
— Oh, isso é péssimo, porque esta história talvez vá precisar
de um copo de vinho — disse Andrea.
Bruce continuou:
— Estamos telefonando por que temos notícias interessantes.
— Ah, é?
— O ABC Primetime entrou em contato conosco porque quer
fazer um programa a respeito do Natoma Bay... e de seu
irmão.
— É mesmo? — exclamou Anne. — É uma notícia
interessante. Como eles ouviram falar nele?
— Anne, você tem certeza de que não quer tomar um copo de
vinho? — insistiu Andrea.
— Tenho.
— Bem — disse Bruce. — Então vou começar pelo início.
Quando James tinha 2 anos, começou a ter pesadelos a
respeito de ser o piloto de um avião que foi atingido e caiu na
água...
Silêncio.
— Você ainda está aí, Anne? Você está bem?
— Sim, estou aqui.
Andrea narrou então toda a história — as vívidas descrições
da batalha, o nome preciso do navio, a lembrança do nome
dos pilotos —, e Anne ficou calada o tempo todo. De vez em
quando, Andrea perguntava se ela ainda estava lá, se ela
estava bem, e Anne respondia: "Ainda estou aqui; estou bem."
Bruce descreveu com muitos detalhes sua pesquisa e todas as
coisas que haviam acontecido nos três anos anteriores.
Finalmente, quando chegaram ao fim da história, Andrea
perguntou a Anne se ela queria fazer alguma pergunta.
— Não — respondeu ela, baixinho. — Só preciso pensar a
respeito de tudo o que vocês disseram. Quero telefonar para
minha filha, Leslie, e conversar com ela.
— Entendemos perfeitamente — replicou Andrea. — Mas
queríamos que você soubesse que não somos malucos, que
não queremos nada de você; queríamos apenas que você
soubesse o que está acontecendo em nossa família.
Anne agradeceu a ambos, disse que entraria em contato em
breve e desligou o telefone.
No dia seguinte, Bruce recebeu um e-mail de Leslie Frudden,
filha de Anne.
Não sei por onde começar! Acho que vou pedir que você me
envie por e-mail as informações que deu à minha mãe ontem
à noite por telefone (...). Isso tornará as coisas mais claras,
porque acho que não preciso dizer que minha mãe estava um
tanto agitada hoje de manhã quando falou comigo ao
telefone. Também poderei encaminhar seu e-mail para os
netos de mamãe, bem como para seu sobrinho John, para
evitar que eles assistam ao Primetime sem saber de nada (eu
raramente perco o programa) (...). Quero agradecer de novo a
vocês por terem devolvido à minha mãe parte do passado que
ela reprimira por bons motivos, algo que compartilharei com
vocês em particular. Na ocasião da morte de tio Jimmy, ela
estava na Califórnia comigo e com meu irmão, sentindo-se
muito solitária (...). O retorno de tio Jimmy foi o ponto mais
alto de sua vida (...). Muito amor para vocês dois e para seu
precioso James III.
Isso tirou um peso dos ombros de Bruce e de Andrea. E
depois, tendo superado esse obstáculo, Bruce passou a
comunicar aos outros o que estava acontecendo. Leo Pyatt foi
calmo e receptivo. Disse que fazia parte de um grupo de
estudos na Igreja que estava investigando reencarnação.
Ele, também, perguntou como James estava indo.
Al Alcorn, o presidente da Natoma Bay Association, aceitou a
história.
— Já ouvi muitas coisas a respeito de vidas passadas — disse
ele. — Isso não me surpreende.
A esposa de Jack Larsen, Dorothy, atendeu o telefone e ouviu
o que Bruce tinha a dizer, murmurando "Oh, meu Deus!" de
vez em quando. Ela sempre se perguntara por que o casal
Leininger era tão misterioso. Em seguida, perguntou por
James. Seu marido, Jack, disse que precisava falar com o padre
de sua igreja antes de dar uma opinião. Depois, ele disse que
estava tudo bem, mas que não assumiria qualquer
compromisso com relação à veracidade da história.
Todos foram compreensivos, receptivos; talvez não
acreditassem na história, mas não se revelaram
completamente incrédulos.
Era o suficiente. Agora Bruce poderia libertar-se do últi¬mo
resquício de culpa a respeito de sua "mentira".
CAPÍTULO TRINTA E DOIS
O vôo de Clem Taylor, o produtor do ABC Primetime,
chegou a Lafayette na noite do dia 19 de outubro, na véspera
da filmagem. Era um homem de meia-idade alto e intelectual,
do tipo que deixa todo mundo à vontade. Trazia consigo o
modelo de um Corsair; era como dar de presente a James um
buquê.
Clem e a família Leininger foram jantar no Dons Sea-food,
um restaurante cajun famoso da cidade, e conversaram sobre
o tempo, o Mardi Gras e os detalhes rotineiros da vida. Clem
tinha um filho mais ou menos da idade de James, e fez
perguntas a respeito das escolas e dos restaurantes, além de
elogiar a delicadeza da vida na cidade pequena; estavam
trocando informações, mas evitando qualquer tema
potencialmente perturbador.
As regras básicas já haviam sido definidas pelo casal
Leininger: não seriam feitas perguntas diretas a James a
respeito dos pesadelos nem de suas lembranças da guerra. A
equipe de televisão poderia envolvê-lo em uma conversa
normal, mas não poderiam "entrevistá-lo", porque, se o
fizessem, James simplesmente ficaria paralisado. Além disso, o
nome da família não seria usado, e a cidade em que moravam
não seria mencionada.
No dia seguinte, Chris Cuomo e a equipe dirigiram-se à West
St. Mary Boulevard como um esquadrão de operações
especiais em uma missão. Esse procedimento sempre
mostrava uma terrível urgência, mas era apenas televisão.
Para reduzir o estresse, realizaram grande parte da filmagem
enquanto James estava na escola. Eram lembrados o tempo
todo de que o menino tinha apenas 5 anos.
Por volta de uma hora da tarde, a gravação estava em grande
parte concluída, e todos estavam prontos para almoçar.
Entretanto, Chris Cuomo tinha mais uma pergunta a fazer
antes que fizessem o intervalo.
— O que a família de James Huston pensa de tudo isso?
Bruce e Andrea explicaram que, alguns dias antes da
filmagem, Bruce telefonara a Anne Barron para confirmar
que ela fora convidada a dar uma entrevista para o ABC
Primetime. Anne estava agitada e nervosa diante da
perspectiva de aparecer na televisão. Entretanto, mais do que
isso, ela queria que Bruce e Andrea soubessem que ela
estivera pensando a respeito da história. E, quanto mais ela
pensava, mais acreditava.
Ela disse a Bruce que não era apenas por causa das revelações
sobre James e da sua ligação com o Natoma Bay.
Anne passara pela própria experiência de transformação
pessoal:
"Estava previsto que Jimmy voltaria para casa em março de
1945, e eu estava na sala de estar, fazendo uma limpeza,
ansiosa por sua chegada. Senti que ele estava na sala comigo e
falei com ele como se ele estivesse presente, do meu lado.
"íamos todos nos encontrar em minha casa em Los Angeles
para a reunião. Alguns dias antes, meu pai me deu a notícia de
que Jimmy estava desaparecido. A reunião nunca ocorreria.
Fiquei arrasada. Éramos muito próximos.
"Quando meu pai me disse a data em que Jimmy
desaparecera, 3 de março, eu me lembrei... fora o dia em que
eu sentira a presença dele, enquanto estava limpando a sala.
Nunca soubemos o que aconteceu com ele. Gostaria muito
que meu pai estivesse aqui para saber disso. Quero que você
saiba que acredito na história. E enviei um pacote a James."
Nesse estágio, talvez fosse uma experiência frágil, baseada
principalmente na intuição. Mas Anne Barron tinha
sentimentos muito intensos a respeito do assunto, que
ficariam ainda mais fortes, mais intensos, apoiados por um
conjunto maior de provas circunstanciais e irrefutáveis.
Quando conversaram ao telefone, Anne sentiu grande
simpatia por James. Ele a chamou de "Annie". Somente seu
falecido irmão a chamava de Annie. Andrea achou que isso
era um tanto desrespeitoso, mas James insistiu em afirmar que
o nome dela era Annie. E ele disse a Andrea que tinha outra
irmã, Ruth. Só que ele pronunciou o nome errado, como
"Ruf". Ela era quatro anos mais velha do que Annie, que, por
sua vez, era quatro anos mais velha do que James. Quando
Andrea verificou as informações com Anne Barron, esta
confirmou que eram precisas. Ruth era quatro anos mais
velha do que ela, Anne, e James era quatro anos mais novo do
que ela.
De algum modo, as ligações pareciam sólidas, como as de uma
família. Quando conversava com Annie ao telefone, James se
referia ao pai e à mãe deles, do modo como um irmão faria.
Ele falava a respeito da irmã falecida, Ruth, com a
familiaridade de um irmão.
Essas coisas não podiam ser explicadas. O James de 5 anos
tinha conhecimento do alcoolismo do pai do piloto. Ele
conhecia todos os segredos da família com uma intimidade
suave.
Por exemplo, James lembrava-se com surpreendente riqueza
de detalhes da ocasião em que o alcoolismo do pai piorou
tanto que ele começou a quebrar coisas e teve de passar algum
tempo em uma clínica de reabilitação (que, naquela época, era
chamada de "sanatório"); ele sabia tudo a respeito disso. E
sabia que Ruth, que era colunista social de um jornal da
cidade, ficou "mortificada" quando a mãe deles precisou
trabalhar como empregada comum na casa de uma
proeminente família a respeito da qual ela estava escrevendo.
A quantidade de minúcias da família sobre as quais
conversavam ao telefone era impressionante e, com o tempo,
eliminou quaisquer dúvidas que Anne Barron pudesse ter a
respeito da verdadeira identidade de James. O que decidiu o
assunto foi a inexplicável questão do quadro. A mãe de Annie
e James, Daryl, era uma artista talentosa, e Annie enviara a
James um retrato que Daryl pintara do filho quando ele era
criança.
"Onde está o quadro que ela pintou de você?", perguntou
James quando o recebeu, e a pergunta fez Annie ficar sem
fôlego. Apenas ela sabia que Daryl pintara dois retratos — de
Annie e de James —, e o retrato de Annie estava no sótão.
Ninguém no mundo sabia disso, só ela.
Annie ficou atônita. Ela sabia que estava falando com o
irmão, apesar do fato de ele ter 5 anos, e ela, 86. Ela não
poderia deixar de reconhecer esse espírito familiar quando o
ouvia.
Por conseguinte, ela ficava feliz porque James a chamava de
Annie e aceitava o mistério do espírito do seu falecido irmão
em uma criança de 5 anos.
— Então, como eles se sentem a respeito disso? — insistiu
Chris Cuomo.
— A família está aceitando bem a situação — respondeu
Andrea.
Nesse momento, a campainha tocou, interrompendo a
concentração da filmagem da televisão. Era o carteiro, com o
pacote que Annie enviara. Dentro, havia o modelo de um
Corsair de baquelite, um pequeno busto de George
Washington de peltre e uma carta:
Queridos Bruce e Andrea:
Dentro do pacote vocês encontrarão o modelo de um Corsair
que estava com os pertences de Jim (que foram) devolvidos
aos meus pais. Quero que James fique com ele. Sinto que
pertence a ele (...). Comecei a limpá-lo, mas, pensando
melhor, achei que poderia haver alguma ligação com a sujeira
original. Também encontrarão um busto de Washington que
estava sempre na escrivaninha dele em casa (...). Jim Eastman
(um amigo de infância de Jim Huston) me disse que, quando
Jim (Huston) morreu, a mãe de Jim (Eastman), Lydia, lhe
telefonou para dizer que Jim Huston aparecera para ela em
um sonho para dizer: "Vim me despedir'." Tudo isso ainda é
atordoante. Lemos a respeito dessas coisas, mas nunca
pensamos que possam acontecer conosco. Só posso imaginar
como deve ter afetado vocês. Mas eu acredito.
Com amor,
Anne
Clem sugeriu que filmassem James no momento em que ele
recebesse o pacote. Andrea saiu para comprar sanduíches na
delicatessen do bairro e buscar James na escola. E durante o
almoço Clem finalmente convenceu o casal Leininger a
permitir que usassem seu sobrenome e o nome da cidade no
programa. É assim que as coisas funcionam na televisão; a arte
de vender é sofisticada e se expande por meio de pequenos
passos de confiança.
James ficou alvoroçado com toda aquela atenção e com a
agitação de uma equipe de filmagem montando o
equipamento em sua casa. O técnico de som instalou um
microfone nele, e Chris e James foram para o quintal e
brincaram no trepa-trepa. Chris levantou James no ombro, e
pareceram gostar um do outro.
A gravação correu tranquilamente. James estava à vontade.
Ele se sentou nos degraus da sala de estar, e Bruce entregou-
lhe o busto de Washington. Ele o agarrou, correu pelo
corredor em direção ao seu quarto e, em seguida, voltou,
dizendo que o colocara em sua mesa. Pegou o Corsair,
examinou-o e cheirou-o; acabou a fita de vídeo da equipe de
filmagem e eles ficaram frenéticos tentando colocar uma
nova.
— James, por que você está cheirando o avião? — perguntou
Bruce.
— Ele tem o cheiro de um porta-aviões.
Bruce pediu ao filho que repetisse o que dissera, e James o fez,
e em seguida Bruce pegou o modelo do avião e detectou odor
de fumaça de óleo diesel, o cheiro provável de um porta-
aviões. Andrea sorriu.
Os membros da equipe permaneceram aturdidos, em silêncio,
e Andrea pensou: "Ótimo, para variar, alguém além de mim
está perplexo."
O programa não foi ao ar no dia de Halloween, para alívio do
casal Leininger. A data foi adiada, e chegaram a pensar que as
coisas poderiam acabar se revelando iguais à primeira
experiência com o programa 20/20: esquisitas demais para o
Primetime. Ambos se sentiram ao mesmo tempo agradecidos
e decepcionados.
Ocorreu uma mudança interessante com as entrevistas com os
veteranos, agora que todos sabiam a respeito de James. Um
enorme fardo de culpa fora retirado dos ombros de Bruce e
Andrea.
As festas chegaram e foram embora, e fez frio demais na
época do Mardi Gras para que pudessem comemorar, mas eles
se divertiram mesmo assim. Abril chegou, e Clem ligou para
dizer que o programa finalmente iria ao ar. Andrea avisou à
professora de James.
Bruce e Andrea notificaram todas as famílias dos veteranos e
ficaram nervosamente esperando a bomba explodir.
O programa foi ao ar no dia 15 de abril de 2004, me¬nos de
uma semana depois de James completar 6 anos. E teve
conseqüências. Como resultado, o telefone na casa da família
Leininger enlouqueceu. Houve chamadas de pessoas que os
apoiaram, de pessoas que afirmaram acreditar totalmente na
experiência de James, e de pessoas excêntricas. Por incrível
que pareça, os vizinhos mal mencionaram o fato. Essa atitude
era extremamente compatível com uma das características do
sul dos Estados Unidos: o profundo respeito pela privacidade.
Houve convites para o casal Leininger aparecer em vários
programas de rádio e televisão locais, e eles não resistiram e
aceitaram participar de um programa de rádio que ia ao ar de
manhã bem cedo. Mas foi um desastre. Foram alvo das mais
loucas acusações, e não estavam preparados para organizar
uma grande defesa às 5 horas da manhã. Depois dessa
experiência, não apareceram mais em público.
Nesse meio tempo, James continuava a surpreender as
pessoas. Enquanto assistia a uma fita de vídeo de um
programa do History Channel a respeito dos Corsairs, ele
corrigiu o narrador. As tomadas das velhas metralhadoras
fotográficas mostravam repetidas cenas de Corsairs
derrubando Zeros.
— Bruce, você ouviu o que James disse?
— Não, não ouvi.
— Pergunte a James o que ele disse.
— James, o que você acaba de dizer?
— Esse avião que foi derrubado agora por um Corsair era um
Tony, não um Zero.
Bruce rebobinou a fita e começou a assistir ao programa
novamente, mas não conseguiu perceber a diferença.
— Que tipo de avião era um Tony?
— O Tony era um caça japonês menor e mais rápido do que o
Zero.
— Por que o chamavam de Tony? — perguntou Andrea.
— Os caças recebiam nomes de meninos, e os bombardeiros,
de meninas.
Bruce ouvira James mencionar isso antes: a distinção entre
menino-menina nas aeronaves japonesas. Ele até mesmo
pesquisara o assunto e descobrira que era verdade. Mas ele
não se lembrava do Tony. De algum modo, isso pareceu
importante.
Ele voltou então a pesquisar. Descobriu que o Tony era uma
imitação do ME-109 alemão. Os pequenos aviões de caça
eram desmontados e enviados clandestinamente para o Japão
em submarinos. Quando Bruce consultou o diário de guerra
do VC-81, descobriu que o esquadrão tinha destruído um
Tony no ar. O piloto que avistara a aeronave e a derrubara
tinha sido James M. Huston Jr.
Depois da transmissão do Primetime, Bruce entrou em casa
certa noite e ouviu, por acaso, Andrea falando ao telefone.
"Bruce ficará encantado em falar com você."
Bruce olhou para ela com um ar de poucos amigos. Estava
cansado e não queria conversar com outro maluco. Ela se
virou para ele e disse: "Bob Greenwalt está ao telefone; ele
conheceu James Huston."
— Eu sei quem é Bob Greenwalt. Ele embarcou no Natoma
Bay com Jim Huston e Warren Hooper no dia 8 de outubro
de 1944.
Greenwalt assistiu ao programa por acaso. Seu filho, que
morava em Houston, estava assistindo ao programa
Primetime e reconheceu o nome Natoma Bay. Telefonou
então para o pai, que morava em Albuquerque, onde era mais
cedo, por causa do fuso horário, e lhe disse que assistisse ao
programa.
Bruce agarrou o fone, e ele e Greenwalt conversaram como
velhos companheiros de guerra. Bruce já sabia muitas coisas a
respeito de Bob Greenwalt, mas este último acrescentou
alguns detalhes às informações. Ele participara da última
missão no dia 3 de março de 1945. Na realidade, ele era o
wingman de James Huston. Eram muito amigos. Fora ele que
arrumara os pertences de Huston quando este morreu,
inclusive o modelo do Corsair que Anne enviara para James.
De janeiro a agosto de 1944, Greenwalt e Huston serviram no
VF-301, um esquadrão de elite chamado "Devil's Disciples"
(Discípulos do demônio). A função deles era testar o Corsair
modificado para ser usado em porta-aviões. Em abril de 1944,
o Corsair foi qualificado para ser usado no Gamber Bay, um
porta-aviões de escolta que foi posteriormente afundado. O
Corsair revelou-se uma valiosa arma. Os japoneses chamavam
a aeronave de "Morte Sibilante" por causa do barulho que ela
fazia quando mergulhava. Mas os Corsairs sempre tinham
problemas no momento delicado de pousar nos porta-aviões.
O motor era grande demais, e a cabine de pilotagem elevada
não oferecia uma visibilidade suficiente para o piloto
controlar o avião. Ele não conseguia enxergar o convés. O
avião pousava com brutalidade e tinha a tendência de
estourar os pneus.
Também tendia a se deslocar para a esquerda na decolagem,
devido ao alto torque do motor. Quando James descreveu o
Corsair, ele disse: "Ele queria virar para a esquerda."
Os pilotos de teste experimentavam-no, e os engenheiros
constantemente faziam ajustes nos ailerons; posicionavam o
piloto mais alto na cabine para que ele tivesse melhor
perspectiva. Substituíram o pneu traseiro inflável por um
pneu de borracha maciça e acabaram, com o tempo, tendo nas
mãos um avião que se tornou um padrão para as tarefas nos
porta-aviões da Marinha dos Estados Unidos.
— Jim era um excelente piloto — afirmou Greenwalt. — E
um grande amigo.
Houve muitas coincidências, fatos que poderiam ter
modificado o destino de James Huston. Outro piloto deveria
ter ido para o Natoma Bay, mas foi transferido, de modo que
Huston o substituiu. No revezamento, ele já não deveria estar
mais combatendo no dia 3 de março de 1945, mas apresentou-
se como voluntário para aquela última missão em Chichi-
Jima, onde foi morto — no dia 3 de março.
A guerra encerra muitas incertezas.
Um telefonema não foi suficiente, de modo que Bruce e Bob
Greenwalt combinaram se encontrar na reunião seguinte da
tripulação do Natoma Bay.
CAPÍTULO TRINTA E TRÊS
O programa ABC Primetime levantou a sombra que tinha
pairado sobre Bruce Leininger. A reunião da Natoma Bay
Association de 2004, em San Antonio, no Texas, seria seu
momento de revelação. Ninguém mais questionaria por que
ele estava tão ávido para comparecer aos encontros dos
tripulantes do "Naty Maru" ou por que ele tinha uma
preferência tão grande e um interesse tão emocional por um
pequeno porta-aviões. Todos agora sabiam da história de seu
filho, James, e tinham conhecimento dos pesadelos do
menino. Bruce fora eleito o fanático da Natoma Bay
Association.
Por conseguinte, ele estava determinado a tornar essa reunião
memorável. Não apenas em benefício próprio, mas por causa
da inexorável passagem do tempo: os membros estavam
morrendo, ficando frágeis ou, como costuma acontecer no
final da vida, perdendo grande parte do apego aos assuntos
mundanos. Bruce queria fazer uma contribuição para o grupo
antes que fosse tarde demais.
Às 10h do inevitável dia 11 de setembro, mais tarde do que
planejara, Bruce colocou Andrea e James no velho Volvo e
iniciou a jornada de seis horas em direção a San Antonio.
Bobbi, sua sogra, encontrou-se lá com eles. Bruce queria uma
multidão. Tentara convencer todos os veteranos da lista de
membros ativos a comparecer. E James passara mais tempo ao
telefone com "Annie", convencendo a "irmã" a fazer a viagem
da Califórnia até San Antonio.
Bruce passara meses montando 21 pastas azuis de folhas soltas
dedicadas a cada um dos mortos do Natoma Bay, cada uma
completa com biografia, registros de guerra e fotografias.
Andrea passou semanas preparando um vídeo caseiro que era
ao mesmo tempo específico (fotografias de cada membro da
tripulação que morreu) e genérico (fotografias do navio em
combate). Foi uma homenagem inesquecível de noventa
minutos ao navio e a seus mortos.
E Bruce encontrou um novo motivo para a reunião, algo que
faria com que ela se destacasse, que a tornaria um evento! Na
ocasião, havia apenas um único memorial para o Natoma Bay.
Ele se encontrava no Yorktown, em Charleston, na Carolina
do Sul. E três dos homens do Natoma Bay que morreram na
guerra estavam ausentes, não estavam relacionados na placa:
Billie Peeler, Lloyd Holton e Ruben Goranson.
Bem, aquilo me deixou um pouco obcecado. Então, entrei em
contato com John DeWitt, o historiador do navio, e alguns de
nós decidimos iniciar um pequeno fundo de capital para
mandar fazer um novo monumento. Decidimos que ele
deveria ser inaugurado na reunião; nós o levaríamos para o
Nimitz Museum, em Fredericksburg, no Texas, que ficava
apenas a uma hora e meia de carro a noroeste de San Antonio.
A ocasião e o lugar seriam perfeitos.
Os veteranos e os membros sobreviventes da família foram
atraídos pela cerimônia em memória aos mortos e pela placa,
principalmente as três famílias cujos entes queridos tinham
sido deixados de fora da placa original. E havia o incentivo
adicional da presença de James. Para muitos deles, a
informação do ABC Primetime de que seu companheiro,
James Huston Jr., tinha voltado de sua última missão na forma
de um menino da Louisiana era provocante demais para ser
desconsiderada.
E o próprio James, com sua inocente maturidade, dominou o
local.
Depois que a família Leininger fez o check-in no Wood-field
Suites, em um quarto equipado com uma pequena cozinha e
uma sala de estar, Andrea e James saíram para comprar algo
para comer e beber. Como o hotel só servia o café da manhã,
Andrea queria ter algo à mão para James. Compraram leite,
suco, mini-caixas de cereais, laranja, uva, biscoito e pipoca de
microondas. Depois que voltaram para o quarto, guardaram as
compras, e Andrea desfez as malas, encaminhando-se em
seguida para a sala de operações, onde James tornou-se uma
presença que chamava a atenção.
Nesse meio tempo, Bruce estava ocupado preparando sua
exibição na sala de operações. Ele tinha os registros, as
fotografias e o material para a apresentação em PowerPoint
do USS Natoma Bay (CVE-62), que entrou em atividade em
outubro de 1943 e foi vendido como sucata em maio de 1959
— para os japoneses.
John DeWitt também chegara cedo. Ele e a esposa, Dolores,
tinham trazido sua coleção de fotografias, com modelos do
Natoma Bay e de aeronaves da Segunda Guerra Mundial.
Naquela primeira manhã, quando saíam da sala de operações,
foram abordados por um homem bonito, vestindo uma camisa
pólo, que eles nunca tinham visto.
O homem baixou os olhos para James e perguntou em uma
voz forte e vigorosa:
— Você sabe quem eu sou?
James olhou nos olhos dele, pensou por um segundo, e
respondeu:
— Você é Bob Greenwalt.
O homem pareceu chocado. Rindo, um pouco nervoso, ele
disse:
— Isso mesmo. Andrea perguntou:
— Você é mesmo Bob Greenwalt? E ele respondeu que era.
Mais tarde, no quarto, Bruce perguntou ao filho:
— Como você soube?
— Reconheci a voz dele — respondeu James.
Até Greenwalt, que chama a si mesmo de "cético racio¬nal",
ficou impressionado.
Os sussurros a respeito de James percorreram o encontro
como o vento:
— Você assistiu ao programa? Passou no Primetime.
— Ele é igualzinho ao Jimmy!
— Que menino encantador!
— Não sei o que pensar!
A família Leininger foi envolvida pela importância do
momento. Pela primeira vez, Andrea estava tendo um contato
pessoal com os membros da família que ela passara mais de
um ano tentando localizar. Uma afinidade imediata teve lugar
entre eles. Ao tentar aliviar a dor do seu filho, ela reabrira
antigas feridas. Mas Andrea também compreendia que isso
logo terminaria; a confrontação poria fim a muitas indagações
dolorosas.
Nesse meio tempo, Andrea tinha de cumprir seu papel de
mãe. James fora dispensado da escola durante três dias, e ela
pegara com as professoras a matéria que ele teria que estudar.
Andrea começou a trabalhar com ele no carro, e depois foram
para a mesa de centro da pequena sala de estar da suíte. A
questão do dever de casa decidiu para sempre qualquer
dúvida com relação à possibilidade de eles optarem pelo
ensino em casa; nem Andrea nem James estavam a fim.
A reunião sempre era emocionante para Bruce. Os veteranos,
invariavelmente, cumprimentavam-se quando assinavam o
livro da reunião na hora da chegada, com o entusiasmo
exagerado de homens que tinham acabado de chegar de um
combate e estavam emocionados por constatar que ainda
estavam vivos.
Houve os costumeiros jantares e discursos, e as atividades
habituais de fazer a chamada, pagar as mensalidades e ler as
minutas — e olhar em volta para verificar quem tinha
envelhecido, quem tinha perdido o cônjuge e quem estava
ausente. Cuidaram de todas as coisas convencionais que
precisam ser tratadas nesses encontros. Nos dias em que a
programação esteve menos intensa, os veteranos zarparam
pelos pequenos canais de San Antonio, visitaram os museus
locais e ficaram sentados contando fatos curiosos e mentiras.
As histórias dos veteranos eram transmitidas oralmente.
Victor Claude Evans, um homem forte, calvo, com um senso
de humor obsceno, era um atirador de metralhadora de 20
milímetros do Natoma Bay. Ele é famoso pela história do seu
ataque à sua própria frota ao largo da costa das Filipinas. Os
pilotos entraram voando baixo, e os japoneses obrigaram-nos
a voltar. Evans estava tão empenhado em atirar nos aviões
inimigos que atirou na cauda dos aviões americanos
estacionados no convés. Ele também danificou
superficialmente um encouraçado americano que estava nas
proximidades, o USS West Virgínia, que enviou ordens
urgentes de cessar fogo: "Nós nos rendemos!" Ele desprezou as
ordens e derrubou o avião japonês, junto de dois ou três
TBMs americanos estacionados, e ele tinha varrido à bala o
convés de um navio de guerra americano.
Evans permaneceu na Marinha durante trinta anos e tornou-
se oficial, chegando ao posto de capitão-de-corveta. Ele era
um master diver e mais tarde ensinou a equipe de efeitos
especiais e Robert DeNiro a mergulharem no filme Homens
de honra.
No segundo dia, Bruce foi à locadora para pegar um DVD
com instruções sobre como operar o equipamento áudiovisual
que usaria para fazer a apresentação em PowerPoint e
em vídeo na ocasião do banquete. Nesse ínterim, James vestiu
seu macacão de vôo e desceu para a sala de operações. James e
Andrea encontraram um senhor de aparência envelhecida
com um sorriso jovial; era Jack Larsen, e Andrea gritou de
emoção quando foram apresentados. James apertou a mão
dele e sorriu.
O fato de existir realmente um Jack Larsen e de estarem todos
ali juntos, frente a frente, era em si uma coisa impressionante.
A realidade era suficiente. E todos os veteranos e suas famílias
começaram a entrar pouco a pouco na sala de operações, onde
James ficou de sentinela em seu macacão de vôo. Ele
examinou em silêncio todos os rostos, ouviu as novidades nas
conversas e ficou atento a pequenos hábitos e trejeitos; ele
estava procurando seus amigos.
Ninguém achou estranho que um menino de 6 anos estivesse
totalmente envolvido com a situação, tomando o café da
manhã, almoçando e jantando com os velhos veteranos,
ouvindo as histórias deles com uma atenção educada e um
profundo interesse, não como um companheiro, mas
tampouco exatamente como uma criança.
Ele não se separava dos homens que haviam sido seus
wingmen na guerra. Ele se sentava com eles quando estavam
tomando café e os seguia como um cachorrinho. Certa
manhã, quando estava descansando um pouco com a mãe na
piscina, James pareceu perturbado. Andrea perguntou o que
estava errado.
Ele balançou a cabeça; estava pensando em algumas coisas —
nada sobre o que quisesse falar naquele momento. Andrea
pressionou-o um pouco, e ele acabou confessando: "Estou
triste porque todo mundo está muito velho."
Bem, isso era natural. Ele se lembrava deles todos como
pilotos jovens e impetuosos! Andrea se deu conta de que o
filho estava imprensado em um vácuo de memória.
Naturalmente, o fato que tornou essa reunião tão
extraordinária foi a presença de Annie Barron. Quando ela e
James se conhecessem, seria um encontro entre uma velha
senhora e um menino, ou seria aquela outra reunião: o
encontro de irmãos que haviam se separado há mais de meio
século?
Bruce e Andrea estavam nervosos. Ela estava esperando poder
coordenar o encontro, preparar mentalmente o terreno, mas
James e Annie tropeçaram um no outro, como se o destino
tivesse outra coisa em mente.
Andrea e James estavam se dirigindo ao lobby, a caminho da
piscina, quando Andrea avistou Annie e sua filha, Leslie,
encaminhando-se para o balcão da recepção. Ela entrou em
pânico. Esse não era o momento ideal. Annie acabara de
chegar da Califórnia e, certamente, deveria estar exausta.
Assim, Andrea levou James de volta para o quarto. Passados
vinte minutos, Bruce voltou, e decidiram ir juntos para a
piscina. Quando se encaminharam para o elevador, se viram
defronte a Annie e Leslie.
Não havia como não ir ao encontro delas. Foram feitas as
apresentações, abraços foram trocados, e James ficou
atipicamente quieto. Ele observou Annie atentamente,
examinando-a, avaliando... alguma coisa. Era como se ele
estivesse tentando encontrar o rosto da irmã de 24 anos na
mulher de 86.
— Eu o achei tímido — relembraria Annie. — As crianças
dessa idade são tímidas. Eu o apanhei me fitando, como se
estivesse me examinando.
Falaram muito pouco, como se estivessem com medo de
despedaçar algo frágil. Mesmo assim, havia algo poderoso e
visivelmente compatível entre eles.
Andrea e Bruce convidaram Annie e Leslie para jantar com
eles naquela noite. Seria um momento mais apropriado,
pensou Andrea. Combinaram se encontrar no San Antonio
Riverwalk. Naquela noite, todos eles, acompanhados por
Bobbi, foram jantar em um restaurante mexicano. A
atmosfera animada do local acalmou os nervos de todo
mundo, e Annie e James pareceram se identificar um com o
outro. Eles se relacionaram de forma natural, com afetividade,
que dispensava uma explicação.
O evento de destaque da reunião era a cerimônia em memória
dos mortos e a inauguração da nova placa no Nimitz Museum,
em Fredericksburg. Esse era o evento que Bruce estivera
planejando durante meses — sua própria operação
combinada, sua versão do Dia D. Ele seguiu na frente, no
Volvo, porque queria ter tempo para organizar as coisas.
Ao chegar lá, dispôs as cadeiras, colocando uma bandeira e
um programa em cada uma. Entretanto, mal terminara a
arrumação, o grupo principal de veteranos e suas famílias
chegaram.
Esse não era o plano. Bruce desejara ficar sozinho algum
tempo para organizar as idéias, já que teria de fazer um
discurso, mas era tarde demais. Os convidados tinham
chegado. A cerimônia começou: um sino tocou para cada
homem morto na guerra, e um dos membros da família
colocou uma pequena bandeira em uma plataforma que Bruce
construíra. As pessoas proferiram discursos, ficaram em
silêncio e disseram orações. Ouviram-se então toques de
silêncio, e a placa foi descoberta. Foi uma cerimônia tranqüila
e impressionante. Foi o momento de Bruce.
Mas na realidade a reunião pertencia a James. Depois da
cerimônia, o grupo percorreu o museu. Muitas coisas estavam
expostas nas dependências. Havia até mesmo um canhão de
127 milímetros. James quis subir nele.
— O Natoma Bay tinha um desses — declarou o menino
sobre o velho canhão.
Stanley Paled e Frank Woolard, que tinham servido a bordo
do Natoma Bay, estavam bem ao lado de James quando ele
disse isso e não conseguiam acreditar no que haviam acabado
de ouvir.
— Onde ele estava colocado? — perguntou Stanley.
— Na saliência da popa — respondeu James, e os dois
veteranos simplesmente ficaram olhando para ele; era
exatamente onde ficava o canhão de 127 milímetros.
Lloyd McKann e a esposa, Alta, estavam passando nesse
momento pelo canhão, um pouco mais à frente do que o
restante do grupo, de modo que ele também ouviu o que
James disse.
James e sua mãe estavam uns 12 metros atrás de nós — bem
atrás — quando passamos pelo canhão de 127 milímetros. O
Natoma Bay tinha um exatamente igual a ele na saliência da
popa. Sussurrei esse fato para minha mulher. Foi quando
ouvimos James dizer: "Oh, eles tinham um canhão como esse
no Natoma Bay."
Quando eu disse isso para Alta, o menino estava fora do
alcance de minhas palavras. Não poderia ter me ouvido.
Tenho certeza disso.
Na noite seguinte, houve um banquete, e os veteranos
estavam agitados, porém com uma espécie de alívio. Tinham
conhecido James. Tinham conhecido Annie, a irmã de James
Huston. Tinham assistido ao vídeo, lido o conteúdo das
pastas, visto o quadro completo do serviço de guerra do "Naty
Maru", documentado e ilustrado por Bruce Leininger.
Entre eles, havia os que acreditavam totalmente na história,
os céticos e aqueles que aceitavam que algo inexplicável havia
zarpado na esteira do Natoma Bay.
Os anos de dedicação subserviente aos registros, aos
documentos e à localização dos veteranos tinham sido
exaustivos. Bruce e Andrea realizaram algo quase milagroso.
Tinham solucionado a charada dos pesadelos do filho. Mas o
processo era mais amplo. Enquanto faziam todas essas coisas,
estavam resolvendo o mistério para muitas famílias e
veteranos de um pequeno porta-aviões de escolta, um dos
muitos que tinham servido briosamente na guerra do Oceano
Pacífico.
Quando voltaram para casa no velho Volvo, depois da
reunião, Bruce e Andrea estavam exaustos, mas felizes. Um
grande peso fora aliviado. Também realizaram algo profundo.
Esses homens nunca mais estariam juntos dessa maneira; as
mortes causadas pelo tempo eram ainda mais inexoráveis do
que as vítimas da guerra. A família Leininger teve a
oportunidade de ver todas essas pessoas, a chance de dizer
adeus.
E, no banco de trás, James dormia tranquilamente.
EPÍLOGO
No verão de 2006, James era como a maioria dos outros
meninos de 8 anos. Era louco pelos filmes de Guerra nas
Estrelas, pelo Homem Aranha, pelo Batman e pelos
videogames que acabavam com as unhas de sua mãe. Ele
ainda brincava com aviões, mas sua vida era preenchida pelas
atividades habituais das cidades pequenas: jogos de beisebol,
festas de aniversário, piqueniques e pernoites ocasionais na
casa dos colegas. Ele era mais ou menos parecido com
qualquer outro menino meigo dessa idade afável e sonhadora,
com a diferença que, de vez em quando, tinha um pesadelo.
Não aqueles grandes pesadelos em que ele não parava de
chutar, mas um lembrete mais suave, soluçante, de que
alguma coisa ainda se prolongava dentro dele.
O interessante é que o encontro de San Antonio não acabara
com a febre de Bruce com relação ao Natoma Bay. Ele ainda
estava perseguindo a história do navio, ainda era acossado
pela ansiedade de cumprir sua promessa de escrever um livro,
ainda acalentava a tempestuosa esperança de que conseguiria
desenredar tudo e chegar ao fundo da sua confusão espiritual.
Com esse intuito, acolheu favoravelmente a idéia de se
colocar em evidência na televisão. Isso poderia ampliar a
história, atrair novas linhas de discussão, proporcionar-lhe
mais uma oportunidade de expandir os arquivos Leininger.
Portanto, em julho, quando a família Leininger recebeu um
convite de Chris Cuomo, correspondente da rede ABC de
televisão, os três voaram para Nova York para participar no
programa Good Morning America.
Fizeram isso apesar do fato de James ter inequivocamente
exposto sua oposição a discutir seus sonhos em público: "Às
vezes eu me lembro do que aconteceu, mas não quero falar a
respeito. Talvez quando eu for adolescente."
E o programa respeitou a vontade dele. Quando estavam no
ar, Cuomo, com sua habitual sensibilidade, não tocou no
delicado assunto com James; apenas mostrou alguns clipes da
entrevista de 2004 e perguntou como o menino estava
passando.
Mas o programa despertou um novo interesse na saga de
James. Quando a família Leininger voltou para Lafayette,
começaram a receber telefonemas de uma produtora
japonesa. A empresa estava ansiosa para televisionar a história
de James e disposta a levar a família inteira ao Japão para a
filmagem.
Bruce era totalmente a favor da viagem. Ele ainda alimentava
o sonho de enviar mergulhadores ao local onde estavam os
destroços do avião de James Huston, embora Anne Barron, a
irmã de James Huston, não quisesse que os restos mortais do
irmão fossem violados.
Andrea era contra a viagem. Seus motivos eram os de sempre:
o custo, o fato de que James teria de perder duas semanas de
aula — e agora havia algo novo. Durante a viagem a Nova
York, ela contraíra um caso de vertigem intensa, o que fez
com que viajar, para ela, se tornasse algo simplesmente
insuportável. Andrea precisou ser fortemente medicada para
conseguir fazer o percurso de volta de Nova York. Desde
então, ela estivera equi¬librando medicamentos, tentando
controlar o corpo. A idéia de uma longa e complicada viagem
ao Japão, que envolveria aviões, trens e navios, a deixava
simplesmente apavorada.
Mas Bruce estava tonto de ansiedade para viajar. Ele anunciou
que iria ao Japão, com ou sem ela. Durante algum tempo, esse
evento se transformou em uma calorosa batalha em família,
com Bruce sendo despachado para o sofá.
Finalmente, ele conseguiu fazer com que Andrea mudasse de
idéia quando convenceu a companhia japonesa a realizar uma
espécie de evento cerimonial de cura em Chichi-Jima, algo
que Andrea ficou ansiosa para ver. E, para aliviar seus ataques
de vertigem, os japoneses também concordaram em fazer o
upgrade da passagem dela para a classe executiva (Bruce e
James viajaram na econômica), prometeram hospedá-los em
hotéis de primeira classe, cobrir todas as despesas eventuais e
ainda pagar uma pequena remuneração à família.
Quando Andrea concordou, Bruce ficou empolgado, e
rapidamente providenciou os passaportes, as vacinas e os
intérpretes.
A essa altura, Andrea tinha conseguido certo alívio das
vertigens. Seu novo médico, Juan Perez, receitou emplastros
de Meclizine — um poderoso bloqueador de receptor de
histamina — e Lexapro, para controlar seus ataques de
pânico. A diretora da Ascension Day School, Pat Dickens,
autorizou James a faltar à escola durante as duas semanas da
viagem.
Quinze dias depois, partiram para gravar um especial de uma
hora de duração para um programa chamado Experiência
Misteriosa — Inacreditável, que seria transmitido na Fuji
National Television.
Anne Barron, na ocasião com 88 anos, recusou o convite que
lhe foi feito, pedindo a Bruce que colocasse algumas flores no
lugar do último descanso do irmão. Não havia campo de
aviação em Chichi-Jima, de modo que teriam de ir até lá no
barco que fazia o percurso de 15 em 15 dias. Além disso,
como não havia floristas na ilha, a família Leininger comprou
em Tóquio um buquê de flores com gladíolos, cravos e cravosde-
amor, e carregou-o no Ogasawara Maru durante a viagem
de 26 horas para a ilha.
Foi uma travessia difícil, através de mais de mil quilômetros
do oceano Pacífico, até o arquipélago de Ogasawara, com um
tufão passando perto, e Andrea compartilhou suas pílulas com
a agradecida equipe de filmagem japonesa. Ela passou muito
bem com o emplastro de Meclizine.
Na manhã da chegada, Bruce e Andrea foram para o convés,
esforçando-se para avistar a ilha. James, por razões que só ele
conhecia, optou por permanecer na cabine.
Foi quando avistamos a ilha. Ela lembrava dentes de
barracuda projetando-se do oceano. Quando nos
aproximamos, pudemos discernir as verdes montanhas de
Chichi-Jima. E quando nos viramos para entrar no porto de
Futarni Ko pude ver "Welcome Rock". Bruce tinha me
avisado de antemão, de modo que eu estava esperando por
isso. Dentro do porto, era possível divisar os destroços
enferrujados de um antigo navio japonês, e pensei que talvez
James Huston tivesse atirado naquele navio quando entrou no
porto com o avião.
Em seguida, passamos pelo lugar em que o avião de James
Huston efetivamente fora derrubado.
Quando desembarcamos, fomos recebidos por uma banda de
metais e levados para dar uma volta na ilha em uma espécie
de passeio turístico VIP. Em determinado ponto, quando
paramos à beira de um penhasco de onde se descortinava
Futami Ko, James puxou a manga de Bruce e disse: "Foi aqui
que os aviões entraram quando James Huston foi morto. "Ele
reconheceu a paisagem.
Com a continuação do passeio, pudemos perceber que a ilha
era escassamente povoada. Apenas duas mil pessoas residem
em Chichi-Jima, e muitos dos acessos de veículos das casas
tinham cartuchos de balas de canhão de 150 milímetros
marcando o meio-fio. Os morros ao redor de Futami Ko
estavam cheios de canhões enferrujados; eles cobriam todos
os ângulos de ataque. Um deles, pensei — nós dois pensamos
—, provavelmente derrubara o avião de James Huston.
A família Leininger ficou hospedada em uma pequena
pousada chamada Cabbage Beach Pension, e todos
descansaram depois do suplício do tufão e da longa viagem.
Na tarde do dia 4 de setembro, realizou-se uma cerimônia em
memória de Huston. Embarcaram em um pequeno barco de
pesca chamado Little George. O capitão não falava inglês, e
durante a maior parte do percurso todo mundo ficou em
silêncio. Andrea segurava as flores. Bruce acalmou seus
pensamentos, e James ficou observando os peixes que
nadavam logo abaixo da superfície. Ele não sabia o que estava
planejado; apenas que marcariam o lugar em que o avião de
James Huston tinha sido derrubado.
O Little George navegou na direção do porto. O mar ainda
estava um pouco agitado em conseqüência da tempestade.
Bruce pedira a mergulhadores do local que descessem ao
fundo e dessem uma olhada, mas, devido à profundidade, eles
se recusaram a fazê-lo.
Quando o barco chegou ao local onde o avião de Huston
tinha caído na água, o capitão desligou o motor. Todos
olharam para James, mas ele não demonstrou emoção alguma.
— Você está bem, companheiro? — perguntou Bruce.
— Estou ótimo.
Mas James não quis olhar nem para Bruce nem para a câmera.
Estava claro que o menino estava contendo suas emoções.
Andrea puxou o filho para perto de si e disse suavemente:
— James Huston tem sido parte da sua vida até onde vai sua
lembrança. E ele sempre será uma parte importante de quem
você é. Está na hora de você parar de pensar nele.
James assentiu com a cabeça.
— Está na hora de dizer adeus.
O menino colocou a cabeça no colo da mãe e começou a
chorar. Foi um soluço profundo, de partir o coração, como se
ele estivesse soltando toda a emoção reprimida que estivera
em ebulição dentro de seu corpo de criança nos últimos seis
anos. Todos os outros passageiros do barco ficaram em
silêncio e boquiabertos diante da visão de um menino tão
pequeno que estava sentindo um pesar tão profundo. Ele
parecia estar chorando por si mesmo e por James Huston — e
por toda a angústia que ele jamais vira ou sentira.
Finalmente, James restabeleceu-se e pegou o buquê. O barco
estava balançando, e ele jogou as flores. Seu nariz estava
escorrendo, o rosto banhado de lágrimas, e ele disse, com a
voz entrecortada:
— Adeus, James M. Huston. Nunca me esquecerei de você.
Em seguida, James ficou em pé, em posição de sentido, e
bateu continência. Depois, voltou a apoiar a cabeça no colo da
mãe e chorou um pouco mais.
Bruce chegou à conclusão de que o círculo se completara. A
alma de James Huston não conseguira descansar enquanto a
missão não fosse concluída; não a missão dos pilotos sobre
Chichi-Jima, e sim a narração de sua história.
Bruce está convencido de que a narrativa é uma dádiva para
aqueles que precisam de uma prova tangível de que existe
algo além da morte, que a vida encerra um significado que
transcende a simples matemática da duração da vida de uma
pessoa. A história confirmou suas convicções religiosas,
reviveu (em vez de desafiar) sua fé e lhe ofereceu uma coisa
rara e maravilhosa: esperança.
Andrea não precisou ser convencida. Suas fé e convicções
repousavam em algo menos complicado do que a prova: a
simples aceitação. Ela acreditou na história porque sempre
acreditara na possibilidade de uma alma se expressar além do
túmulo. Entretanto, foi agradável e glorioso ver a prova.
A caminho de casa, quando a família Leininger parou em São
Francisco, James fez outro desenho. Era uma cena de outro
oceano, mas com uma variação. Um barco japonês estava
ancorado na água. O mar estava repleto de golfinhos que
saltavam no ar. Aviões voavam tranquilamente no céu.
Não havia mais disparos de armas de fogo.
O desenho estava assinado "James".
A Volta - Bruce e com Andrea Leininger Ken Gross
http://www.ziddu.com/download/16242151/AVolta-BruceecomAndreaLeiningerKenGross.doc.html
O livro: A volta de Bruce e Andrea Leininger com Ken Gross é o corajoso relato de um casal que, sem medir esforços para decifrar as misteriosas situações vividas por seu filho no início de sua
infância, destrói mitos ao se deparar com aquilo que para eles, até então era uma ideia absurda: a reencarnação. As evidências de uma história real e estarrecedora são expostas nesta obra, que convencerá o mais cético dos leitores a considerar a possibilidade de uma criança abrigar a alma de um herói de guerra. A incrível reencarnação de James huston Jr. piloto americano morto na 2ª Guerra Mundial
Boa leitura
Abraços.
M. Loureiro
http://www.manuloureiro.blogspot.com/
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"Tudo aquilo que não podemos incluir dentro da moldura estreita de nossa compreensão, nós rejeitamos."
Henry Miller
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